Estudo pouco cuidadoso e supostamente concreto a (des)respeito de uma escritaarte ou De como a poesia concreta não passou impunemente por nossa escrita-arte a respeito da escrita-arte Renato Jacques (sob o pseudônimo de Mário Geraldo Fonseca ou de Alice Medrado) Acima desse texto há um letreiro com a seguinte inscrição: as palavras que se seguem uma a uma enfileiradas – como árvores numa alameda – não cobram seu juízo, não pedem reputação. Texto desataviado que percorre essas páginas passageiro dos teus olhos. Foi composto como uma melodia, que encerra continuamente sua forma e seu conteúdo, é acadêmico-poético, é ético-estético, é antropológico-literário. Não só segue uma viagem escrita concreta. É. Diz do que ele próprio realiza. Capítulo um O homem reza ao escritor de novelas, ao antropólogo congênito, ao poeta culto, ao artista loquaz: – Vejamos o que você sabe escrever, vejamos se esses buracos dos quais sua letra tira interesse são espelhos suficientemente completos de nada, vejamos se por sobre o seu texto ainda há uma espessa camada de vidro. O homem prossegue: – De um barco não haverá socorro ao dizer designação genérica de qualquer pequena embarcação sem coberta. (Ao fazer duplo clique sobre uma palavra, você pode consultar diretamente o seu significado. Em algum lugar de Portugal, alguém que mora longe pra caralho, mora em cascos de rolha) O famoso narrador de aventuras, numa entrevista recente, afirmou que o Microsoft Word era seu terreiro de macumba, “wikimacumba”. O que supor de um problema filosófico da definição? O finório artista conta pra ninguém, mas arte interpretada em seu contexto não cola, não pega. Ele intui que o contexto da obra é o instante do verolhar. Ele lê que o olhar indica o ponto do objeto (da imagem) a partir do qual o sujeito que o vê já é olhado, ou seja, é o objeto que me olha. O olhar, longe de assegurar a presença em si do sujeito e de sua visão, funciona, pois, como uma mancha, um ponto na imagem que perturba sua visibilidade transparente e introduz uma distância irredutível em minha relação com a imagem: nunca posso ver a imagem no ponto de onde ela me olha, isto é, a visão e o olhar são essencialmente dessimétricos. O olhar, enquanto objeto, é uma mancha que me impede de olhar a imagem a partir de uma distância “objetiva” e segura, enquadrando-a como uma coisa à disposição do domínio de minha visão: ele é, por assim dizer, um ponto em que o próprio enquadre (de minha visão) já está inscrito no conteúdo da imagem vista. O escritor barato trama em segredo seu texto, que sequer é remédio tampouco veneno. Somente um efeito qualquer, que acontece sem saber. O esbelto filósofo recorre à pintura para dizer da artescrita. O que há de perturbador na arte pictórica é que suas figuras têm atitudes de seres vivos, mas se alguém as interroga ficam caladas. Com o texto escrito acontece o mesmo: quando indagado, repete sempre a mesma coisa. Se a escrita fosse nosso modelo de democracia, estaríamos todos proibidos de uma única coisa, de nos defendermos. O artista balinês se dá conta de que o dragão se anima numa probabilidade tridimensional e permanece uma superfície plana. (Isso o leva a conceber uma instalação em que essa mesma imagem é projetada sobre um muro de chapisco) No papel onde está impresso o dragão foram feitas duas incisões. Depois foi dobrado, de maneira que resultaram dois buracos quadrados. Mas é um animal teimoso, este dragão e, apesar de ter duas dimensões, insiste em possuir três. Por conseguinte, enfia a cabeça através dum buraco e a cauda através do outro. Mordida estéril esterilizante. O cartesiano se torna estéril, se torna incapaz de procriar pela ablação das suas glândulas sexuais ou pelo estrangulamento dos seus ductos. Destrói seus germes deletérios e se torna, finalmente, inútil e, portanto, utilizável. O pintor dos primeiros bagos coloridos nos cachos de uvas suspende o juízo e sabe que no instante em que cria não existem regras específicas, que pode usufruir o que for, o que seu corpo precisar para se comunicar. O artista de vinte e poucos anos acha que a beleza da arte contemporânea não está no virtuosismo de inúmeras piruetas, e sim na dança que se inicia interiormente na alma e então se torna concreta. Quase tão amoral quanto aquele rebanho que passa ao seu lado pastando ele não sabe o que é ontem e o que é hoje; ele saltita de lá para cá, come, descansa, digere, saltita de novo; e assim de manhã até a noite, dia após dia; ligado de maneira fugaz com seu prazer e desprazer à própria estaca do instante, e, por isto, nem melancólico nem enfadado. O professor de literatura que vez ou outra arrisca uns versos reconhece que, talvez, só faça evidenciar tudo quanto gostaria que a poesia concreta fosse e que, também de alguma forma, a sua própria. Ele sabe que a competência de seu texto talvez resida na sua incompetência. Se existe ou não pensamento sem forma, trata-se de uma questão que ele nem sequer entende. Ao invés ele cita: muito mais do que escrever direitinho, ou mesmo do que escrever bem, é a descrição que incorpora a seu traçado a interpretação que a governa. O jovem antropólogo escreve que o que há são respostas sem pergunta, excessos, e se lembra de ter lido que, em 1949, um músico deu uma conferência, Lecture on Nothing, cuja escrita seguia a mesma estrutura rítmica que ele aplicava, naquele momento, em suas composições musicais. Uma das divisões estruturais era a repetição, umas quatorze vezes, de uma única página na qual corria o refrão, “se alguém está com sono, deixe que vá dormir”. Uma mulher se levantou, conferência pela metade, gritou e depois disse, “John, I dearly love you, but I can’t bear another minute”. Dito isto ela saiu. Mais tarde, a uma pergunta vinda da platéia ele deu aleatoriamente uma das seis respostas previamente preparadas por ele – severamente exemplar. Assim, o antropólogo qualquer um experimenta um objeto de pesquisa etnográfica sem responder necessariamente por ele. O texto cita o texto: de um lado o lugar cada vez maior ocupado pelas artes na cultura e, de outro, a insuficiência dos métodos de abordagem até agora utilizados. A classificação realizada pela História da Arte, calcada ou na Botânica ou na Biologia, inteiramente descritiva e indiferente às funções sociais ou às significações diferenciais da obra em relação a seus criadores, usuários e à posteridade, não atribui valor decisivo a não ser ao documento escrito, recusa o documento figurado ou o monumento. Ela só o emprega para “ilustrar” uma verdade estabelecida em função tão-somente das fontes escritas que o acaso pôs em suas mãos. O homem saciado, o poeta refeito, o escritor contente, o poeta realizado, o antropólogo executado, sentados à beira de uma página em branco, se perguntam, Duvignaud? Francastel? Derrida? Os irmãos de Campos? Pignatari? O antropólogo indenizado conclui que o documento escrito só pode ser a própria vida e sua experiência. Ele patrocina, portanto, a carência de conceitos operatórios onde quer que se dê a análise. O poeta otimista já nem consegue dizer de alguma coisa. O antropólogo religioso acredita que a poesia concreta seja irresponsável, o poeta manhoso prefere que ela seja irresponsabilizável, e o escritor velhaco revela que a loucura daquelas palavras foi o que encontrou para escapar da aridez do formalismo acadêmico. O poeta perplexo oferece poemas desnecessários, inúteis. Poesia sem caráter. Talk about talk about talk que reinventa a ética da relação com o outro (pela diferença ou não). O antropólogo sossegado indaga, virar a página da antropologia ou lê-la de outro modo? O poeta curioso pergunta ao filósofo sabido se a poesia concreta, enquanto possível anticlássico, abre a filosofia para o que sua tradição de pensamento recalcou, reprimiu, obliterou, em suma, calou. Mas que centro é esse que ocuparia o clássico, se o nome do centro só faz mudar? Onde está a soberania dos clássicos? – se pergunta o escritor de fim-de-semana que poucos deles leu. Nenhum deles sabe responder ao certo se o errado faz ou não suspeitar dos dogmatismos, dos pressupostos. O antropólogo milionário fala ao filósofo frugal de instituição sem instituição. À véspera da entrega do texto, o aluno de graduação recebe uma carta virtual, intitulada o acaso!!: Renato, acabei (às 17:30, de terça) de ler o nosso hiper.......texto! São palavras-flechas, como aquelas que os tikuna nunca souberam fazer! Sobretudo no que diz respeito à sua velocidade: é, como diz a Alice, atômico! E os tikuna não conseguem lidar com o tempo jogando dados. Esta coisa do "acaso" é que, para os povos primitivos, acaba se resolvendo no mito. Só que para construir um mito é preciso esperar o tempo morrer. Para nós, não. Queremos o mito já, como na bandeja que servimos a verdura colhida há poucos minutos. Então, ao terminar a leitura do nosso hiper fiquei realmente com aqueles famosos olhos de ressaca da Capitu. Só que, ao contrário da personagem famosa de Dom Casmurro, eu não consigo enganar os meus amores e devo confessar: realmente, boa parte desta ressaca é devido ao tranco do final de semestre, particularmente nesta semana em que tenho as famosas bancas de final de curso, uma vez que dou aula para alunos que estão formando. Hoje me acordei às 5 para dar conta de ler 150 páginas de uma monografia. Daqui há pouco tem mais três bancas. Neste caso, não se joga o dado: se é o jogo que o dado não quer jogar. Por isso, não consegui acrescentar nada. E isso, bem sei, é o maior dos agravantes, tendo em conta que devemos entregar o texto amanhã (não é isso mesmo?). E, além do mais, devemos entregar o texto para alguém que vai olhar logo o que chamamos de "estrutura". E, acredito, neste momento não temos condição de oferecer isso através do nosso hiper. Logo, eis a minha proposta, inclusive já mencionada na nossa última conversa: será que não é melhor entregar a primeira versão que você escreveu e que, primeiramente, foi ouvida e lida por nós dois? E o nosso hiper ficaria para ser construído posteriormente, quem sabe pensando em um espaço na revista que você está organizando. O que você acha? Podemos nos propor de, nele, tecer o "acaso". Jogar os dados com Marlamé, apará-los com os irmãos Campos, para chegar aos tikuna sabendo que ali é no meio da aldeia que deve ser jogado. Em outras palavras, contextualizar o jogo como alguém, porém, que estipula as regras; novas regras. E elas podem estar no que já estamos fazendo com o acaso que nos juntou. O que você pensa disso? De qualquer forma, tirei uma cópia do texto para seguir viagem com ele para casa (estou na Fumec) amanhã poderia voltar com algo que coubesse em outro algo – talvez se chame texto. Mande-me seu parecer; se possível, logo. Abraços, Mário. O crítico literário escreveu que, em 1837 Liszt deu em Paris um concerto, onde se anunciava uma peça de Beethoven e outra de Pixis, obscuro compositor já então considerado de qualidade ínfima. Por inadvertência, o programa trocou os nomes, atribuindo a um a obra de outro, de tal modo que a platéia, composta de gente musicalmente culta e refinada, cobriu de aplausos calorosos a de Pixis, que aparecia como de Beethoven, e manifestou fastio desprezivo em relação a esta, chegando muitos a se retirarem. Capítulo dois Num site intitulado poesia concreta – o projeto verbivocovisual, está escrito que essa configuração de um setor urbano-industrial moderno estreitava, como nunca, os laços entre o processo social interno e a dinâmica do sistema internacional. Uma área considerável da população passava a desfrutar de uma experiência social cada vez mais próxima a dos habitantes dos maiores centros urbanos internacionais. Diminuíam as distâncias e aumentava a sensibilidade para as conquistas tecnológicas que repercutiam rapidamente na configuração do imaginário urbano e na própria conformação do cotidiano das grandes cidades. Em 1950, o Brasil já tinha transmissões regulares de TV; sabia que um certo Peter Goldmark inventara o Longplay no mesmo ano (1948) em que três americanos formularam a teoria dos transistores e construíram os primeiros exemplares; já ouvira falar em cibernética e no "cérebro eletrônico", criado em 1946, na Universidade da Pensilvânia; tinha notícia de que a Força Aérea dos EUA fizera o primeiro vôo a jato cruzando o país; admirava o gênio de Einstein que expandira a fantástica Teoria da Relatividade na Teoria Geral do Campo. Sete anos depois, já empolgados pela mobilização ideológica do desenvolvimento de JK, os brasileiros – que já haviam se surpreendido com a produção da primeira pílula anticoncepcional, (1952); com a exploração da primeira bomba de hidrogênio (1952); e com outras novidades incríveis como a vitamina B12 ou a invenção dos aparelhos de telefoto – ficaram sabendo que a URSS colocara em órbita um satélite artificial, uma nova lua chamada Sputnik. Num texto-livro intitulado A Realidade Figurativa, está escrito que o problema geral da situação do artista na sociedade não concerne apenas à questão de saber como os homens ocuparam seus lazeres a fim de encantá-los. Está escrito que a arte não é apenas o domínio das satisfações fáceis e imaginárias, ela informa atividades fundamentais. Está escrito que imensos aspectos da vida atual, assim como do passado, manifestam-se em setores que dependem da Arte. Está escrito que as artes figurativas preenchem uma função permanente e coercitiva que age mesmo sobre aqueles que mais as ignoram. A poesia concreta instaura-continua um modo de uso das palavras em que aquilo que se diz carece (ou, porque não, prescinde) de autoridade representativa. Não por insuficiência, mas por uma coragem irreferencial. Aqui a palavra não se quer serva de uma frustração. O fotógrafo amador se lembra de que no dia em que – ele contava uns dez anos – encontrou a foto do seu falecido avô, finalmente chorou a morte que aos três anos não estava disposto a chorar. Um choro que a foto dele não teria despertado não fossem os nomes – dele, de sua avô, de sua mãe, de seus tios – que leu no jornal. Seu avô não morreu de Alzheimer, morreu do seu e daqueles nomes todos. É bem plausível, cogita ainda o instalador de Tv por assinatura, que para o cachorro do seu amigo, lá de dentro da sua percepção do mundo, ele, o instalador, que está regularmente na sua companhia, seja um pedaço intermitente do seu dono. O escritor de contos eróticos conclui que as palavras já não lhe privam de conceber a comida como um pedaço intermitente da geladeira, pois já não precisam ser estas coisas. Para o antropólogo despreocupado, que leva a poesia concreta a sério, ao “limite”, a objetividade deixa de fazer sentido. Arremata, então, o saxofonista de uma big band, que a objetividade que levou você a entender ou não estas palavras tanto faz. Capítulo três Uma antropologia não necessariamente objetiva é o que resulta da equação concreta. Trata-se de uma tentativa-mundo deliberadamente lançada ao mundo. Quando a expressão plástica passa a habitar a palavra, esta passa a viver fora de sua relação com a realidade – torna-se ela. Está mais que claro que o convencimento se dá pela plasticidade (sonora, gráfica, não objetiva) disso que não é simplesmente uma seqüência-soma de palavras a que se dá o nome de frase. A objetividade prescinde de uma classificação necessariamente arbitrária dos fatos cósmicos. Arte não objetiva – antropologia. Suscitando participações diferenciadas da palavra, impossibilitamos qualquer definição em termos de uma função. O essencialismo se enfraquece e o lugar do antropólogo torna-se qualquer um. O sociólogo da arte escreve, procuram-se então novas justificações para apresentar o inexplicável, pois a distinção da forma e do conteúdo se tornou velha e, ainda, estéril. O escritor desconhecido intui que a obra não deve necessariamente servir de justificação a outra atividade que não seja ela. Continua o sociólogo da arte, a coesão interna de uma obra de arte, que parece necessária para justificar a associação de formas imaginárias a modelos gerais e estabelecer laços entre o estilo de uma obra e uma visão de mundo, é mais problemática que evidente. Cheiro de desprezo pelo a priori. O narrador de fatos pouco importantes faz, então, das palavras do sociólogo da arte, as suas: o problema das relações da arte com a vida coletiva está no coração mesmo da criação, afinal o que chamamos, por exemplo, de espaço não é um dado imediato de qualquer experiência humana. O que nós chamamos realidade só existe transposta na estrutura mental que nós elaboramos para dela propor uma imagem. A arte, então, é uma vasta tentativa de transformar em sinais o que é sugerido à experiência como um dado. O espaço tratado e repensado pelos artistas implica uma apropriação suplementar da substância humana e social. Daí não podermos mais definir antecipadamente os termos ou o conteúdo de uma obra de arte (...) O drama, o sinal intencional, as estruturas de classificação diferentes, a anomia e o atipismo são, apenas, conceitos operatórios. Servem para conduzir uma análise e para recortar, na experiência total, conjuntos significantes que possamos interpretar. É evidente que estes termos só tem sentido em relação a uma sociedade viva que serve de pano de fundo a qualquer descrição. Pano de fundo que é, também, o princípio dinâmico e o motor do conjunto, porque cada um dos seus aspectos só tem significado neste movimento de incessante transformação da criação artística, é necessário postular uma imagem coerente da criação social... Para o poeta descabido, sua obra não tem que, não precisa de, não tem que precisar de. Subvertendo um pouco o texto escrito pelo poeta concreto, o escritor abobado afirma que todo texto é uma aventura e não quer dizer isto nem aquilo, mas diz-se a si próprio e é idêntico a si e à dessemelhança do autor. Naquele livro-texto, intitulado A Realidade Figurativa, também está escrito que uma obra de arte não é jamais o substituto de outra coisa; ela é em si a coisa simultaneamente significante e significada, produto de um dos sistemas através do qual a humanidade conquista e comunica sua sabedoria ao mesmo tempo em que realiza suas obras. Está escrito que a arte que cria e exprime tanto quanto qualquer outra grande forma de ação é por definição institucional e não reflexiva. Um sistema coerente de pensamento que possui seu modo de expressão próprio, inteiramente suficiente, mas que tem, entretanto, necessidade, ao nível da difusão, de ser transposto em termos de linguagem. Naquele site intitulado poesia concreta – o projeto verbivocovisual, encontra-se o texto escrito por um dos poetas concretos, intitulado A obra de arte aberta, em que ele afirma que a concepção de estrutura pluridividida ou capilarizada que caracteriza o poema-constelação mallarmeano, liquidando a noção de desenvolvimento linear seccionado em princípio-meio-fim, em prol de uma organização circular da matéria poética, torna perempta toda relojoaria rítmica que se apóie sobre a rule of thumb do hábito metrificante. Dessa verdadeira rosácea verbal que é Un Coup de Dés emerge, como elemento primordial de organização rítmica, o silêncio, aquele silêncio que é, para Sartre, "um momento da linguagem" e que, "como a pausa, em música, recebe seu sentido dos grupos de notas que o cercam", permitindo-nos dizer da poesia o que Pierre Boulez afirmou da música, em "Homenagem a Webern": "É uma verdade das mais difíceis de pôr em evidência que a música não é somente a arte dos sons; ela se define melhor por um contraponto do som e do silêncio". Também o universo joyciano evoluiu – dentro do quadro da própria obra e ao influxo da concepção bergsoniana da durée – a partir de um desenvolvimento linear no tempo, para o espaço-tempo ou contenção do todo na parte ("allspace in a notshall" – nutshell, casca de noz), adotando como organograma do Finnegans Wake o círculo vicovicioso. Se ao primeiro corresponde uma noção visual do espaço gráfico, servida pela notação prismática da imaginação poética, em fluxos e refluxos que se deslocam como elementos de um móbile, utilizando o silêncio como Calder o ar, a Joyce se prende a materialização do "fluxo polidimensional e sem fim" – que é a durée réelle, o riverrun – élan-vital –, o que o obriga a uma verdadeira atomização da linguagem, em que cada unidade "verbivocovisual" é ao mesmo tempo continente-conteúdo da obra inteira, myriadminded no instante. Pierre Boulez, em conversa com Décio Pignatari, manifestou seu desinteresse pela obra de arte "perfeita", "clássica", do "tipo diamante", e enunciou sua concepção da obra de arte aberta, como um "barroco moderno". Talvez esse neobarroco, que poderá corresponder intrinsecamente às necessidades culturmorfológicas da expressão artística contemporânea, atemorize, por sua simples evocação, os espíritos remansosos, que amam a fixidez das soluções convencionadas. Mas essa não é uma razão "cultural" para que nos recusemos à tripulação de Argos. É, antes, um estímulo no sentido oposto. O irmão do poeta concreto que escreveu as frases que se seguiram, que também é um poeta concreto, escreveu que no Brasil, o primeiro a sentir esses novos problemas, pelo menos em determinados aspectos, é João Cabral de Melo Neto. Um arquiteto do verso, Cabral constrói seus poemas como que a lances de vidro e cimento. Em Psicologia da Composição, com "Fábula de Anfion" e "Antiode" (1946-1947), atinge a maturidade expressiva, já prenunciada em O Engenheiro. Flor é a palavra flor, verso inscrito no verso, como manhãs no tempo Capítulo quatro A obra, afirma um poeta concreto, construída de forma aberta, conteria possibilidades variáveis de leituras, demarcando acessos diferenciados à obra, dos quais derivam leituras alternativas e equivalentes. Dissolve-se, assim, a unicidade do juízo e a primazia do julgamento como decorrência da fragmentação estética e da ruptura da linearidade da linguagem. O poeta contemporâneo acredita que a discussão que geraram os concretos foi imprescindível e acha impressionante como os contornos foram sendo suprimidos, as conquistas das vanguardas históricas desconstruídas, os limites cedendo, o provisório se instaurando. Ele gosta de citar o poeta russo. Sem forma revolucionária não há arte revolucionária. Para o antropólogo subversivo, sem forma revolucionária não há teoria revolucionária. A polêmica do realismo versus abstracionismo se recaracterizou. Concluem, os que escrevem, sentados à beira da página em branco, que entender ou interpretar passa a exigir que o olhar se detenha sobre a relação dos elementos específicos do texto – palavras/linhas –, afastando-se, ou podendo se afastar, de qualquer referente exterior. Um texto não espelha nenhuma realidade empírica, não reproduz o universo multidimensional, habitualmente captado pelo nosso olhar. Citações esparsas de A Realidade Figurativa: Como as obras possuem um caráter de ambigüidade, elas se encontram, por definição, no ponto de encontro de várias séries de atividades. Mas cada um de nossos atos possui igualmente essa característica. Não existem categorias reais do pensamento ou da ação. A situação da arte não é particular (...) Não caberia considerar a Forma como uma coisa em si. As Formas não têm vida autônoma; a cadeia das Formas não constitui um universo que se desenvolva à parte; as Formas não possuem um conteúdo determinado e imutável; as Formas não remetem apenas à sua própria gênese. Nenhuma Forma se identifica absoluta e definitivamente com um sentido; as Formas não são sistemas constituídos de uma vez por todas. As Formas não constituem objetos, coisas, elas devem ser distinguidas dos suportes materiais que utilizam. A Forma não é o objeto, mas precisamente a estrutura (...) A obra de arte não propõe, portanto, à sociedade objetos figurativos de suas certezas anteriores; ela lhe oferece ao contrário matrizes em que se revelam novas relações, novos valores. A palavra é o testemunho das atividades abstratas do espírito, a Arte é o testemunho das suas atividades informantes do real, isto é, não expressivas, mas figurativas (...) A obra de arte não constitui um sinal de uma realidade localizável. Ela não remete a um absoluto, mas aos devires humanos.