Geraldo Pieroni
Documentos e historiografia: uma
trajetória da Inquisição - Portugal e
Brasil Colonial
Geraldo Pieroni (Doutor)
Curos de História - Universidade Tuiuti do Paraná
Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 187-206, Curitiba, mar. 2002
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Resumo
Apresentação e análise das fontes primárias e secundárias da Inquisição em Portugal e no Brasil. O artigo percorre
a trajetória da organização dos documentos inquisitoriais identificando as fontes documentais e a produção
historiográfica dos séculos XIX e XX a respeito do Santo Ofício.
Palavras-chave: Inquisição, documentos, historiografia.
Resumé
Cet article porte sur l’identification et la trajectoire des sources historiques primaires et secondaires sur l’Inquisition
au Portugal et au Brésil. Les principaux documents sont ici nommés et analysés en tant que contribuition aux
étudiants enquêteurs interessés sur les tribunaux du Saint Office: Les Règlements, les inventaires, les procès et la
historiographie du XIX et XX siècles.
Mots clés : Inquisition, documents, historiographie.
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Geraldo Pieroni
Na História, de fato, é sempre o documento
que comanda a compreensão.
Nicole Lemaître
O tribunal
No dia 23 de maio de 1536, a Inquisição recebeu
autorização para funcionar em Portugal e, em 1540,
realizou-se a primeira cerimônia pública do auto-dafé em Lisboa. No entanto, por razões de divergências
diplomáticas entre a monarquia portuguesa e a cúria
romana, foi somente no dia 16 de junho de 1547,
através da bula do papa Paulo III - Meditatio Cordis que o Tribunal foi definitivamente estabelecido.
Uma vez a instituição alojada, os inquisidores tiveram necessidade de estabelecer regras e instruções internas para orientação do funcionamento e atribuições
dos funcionários do Tribunal da fé.
Em Portugal estas regras foram benecifiadas pela
experiência espanhola que havia instalado seus tribunais inquisitoriais 50 anos antes. O corpo das normas
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e instruções foram esboçadas tendo como referência
fundamental o Manual dos Inquisidores de Eymerich
(1376); aliás, várias vezes impresso nos séculos XVI e
XVII (Bethencourt, 1995).
Os regimentos
Para o Santo Ofício existiam duas espécies de regimentos: aquele referente exclusivamente ao exercício
de um específico setor, como, por exemplo, o Regimento dos Comissários , o Regimento dos Familiares , o Regimento do Fisco e, paralelamente, havia os Regimentos
Maiores os quais se ocupam do procedimento da
Inquisição no seu conjunto. São destes últimos que trataremos aqui como primeiras fontes indispensáveis
sobre a Inquisição.
Em nome e “ para o serviço de Nosso Senhor ”,
foi elaborado o primeiro Regimento da Inquisição
portuguesa em 3 de agosto de 1552. Este conjunto de
regras foi dado às mesas subalternas do tribunal pelo
cardeal Dom Henrique, inquisidor geral do Santo
Ofício entre 1539 e 1578. O Regimento de 1552 está
dividido em 142 capítulos, agrupados em títulos : do
promotor, dos notários, do meirinho, do alcaide dos
cárceres, dos solicitadores, do porteiro da casa do
despacho e dos procuradores. O documento não discorre sobre as penas que hão de haver os culpados
nos crimes de que se conhece no Santo Ofício (Regimento, 1552). O original deste Regimento, devidamente
assinado pelo cardeal Dom Henrique, encontra-se nos
Arquivos Nacionais/Torre do Tombo (AN/TT Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, Conselho Geral, Livro 480).
Dom Henrique ordenou a elaboração de um outro Regimento o qual foi aprovado por El-Rei Dom
Sebastião por um alvará datado de Évora em 15 de
março de 1570. Também este segundo código
inquisitorial não se preocupava em fixar as penas a
serem aplicadas aos réus. O capítulo 23 anuncia algumas poucas penalidades, porém de maneira genérica:
... o conselho poderá dispensar, comutar ou perdoar as penas e penitências postas pelos inquisidores assim de hábitos
como de cárceres, degredo ou dinheiro e quaisquer outras,
dando disso conta ao Inquisidor Geral e com informação dos
inquisidores, sendo as tais penitências perpétuas, ou de tempo
certo, porque nas arbitrárias dispensarão os inquisidores como
é de costume as quais dispensações se não farão senão com
grande consideração. (Regimento, 1570)
Os castigos não eram nomeados segundo o tipo
de crime cometido, porém as punições existiam e eram
severas. Ao lado das galés, o degredo constituiu-se um
castigo amplamente utilizado no tempo deste Regimento e podemos constatar através da leitura dos
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Autos da fé que elencam centenas de réus condenados com o banimento temporário (AN/TT, Inquisição
de Coimbra, Evora e Lisboa, Conselho Geral do Santo Ofício, Livros 433, 434, 435).
Este corpo de normas internas foi mantido até o
ano de 1613, quando o inquisidor geral, Dom Pedro
de Castilho, assinou o terceiro Regimento (Regimento, 1613). O novo documento, como os anteriores,
não especificava as penas para os réus. Deixa em aberto
como parecer aos inquisidores e a condenação em outras
penas e penitências que lhes parecer, regulando-as conforme a qualidade da pessoa do réu, culpas e indícios
que contra ele houver segundo a disposição do direito.
(Regimento, 1613)
Substituindo o código de 1613, o Regimento de
1640, ordenado pelo bispo Dom Francisco de Castro, inquisidor geral dos Conselhos de Estado de sua
majestade, foi impresso no palácio dos Estaos, no
largo do Rossio da cidade de Lisboa, local que serviu de sede da Inquisição durante muitos anos. É
este o Regimento que melhor aprofundou as punições dos condenados segundo o tipo de delito, as
circunstâncias pelas quais foi cometido e o nível social do culpado e da vítima. O Livro III especifica
detalhadamente as penas dos culpados. Todos os
crimes de interesse dos juízes inquisitoriais e suas resTuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 187-206, Curitiba, mar. 2002
pectivas punições são muito bem expostos (Regimento, 1640). Portanto é o Regimento de 1640 que
sistematiza toda a experiência dos tribunais da fé
existentes em Portugal. Nesta época a Inquisição encontra-se profundamente fortalecida e o Regimento
revela-se como uma suma jurídica monumental onde
estão consignados os vários aspectos do direito penal como também os procedimentos específicos da
Inquisição. Seu volume é cinco vezes maior que aquele do Regimento anterior. Trata-se de uma obra sólida que permanecerá em vigor 134 anos.
Enfim, no ano de 1774 foi preparado o último
Regimento do Santo Ofício em Portugal. Esta obra
testemunha a centralização pombalina, imagem da
nova situação política portuguesa. No seu prefácio,
o cardeal da Cunha critica todos os inquisidores anteriores acusando-os de terem publicado os Regimentos sem a aprovação do rei (Bethencourt, 1995).
É mantido até a extinção do tribunal da fé, em 1821.
Sem dúvida alguma, todos estes Regimentos constituem fontes primárias de primeira grandeza para a
compreensão dos aspectos jurídicos que determinavam o funcionamento do Santo Ofício. Manifestamente todos eles estão em conformidade com as
Ordenações do Reino, que além de se ocuparem dos
crimes seculares, normatizavam rigoramente os comportamentos religiosos e morais.
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O fim de uma instituição
O diploma de abolição do Santo Ofício – o decreto de 31 de março de 1821, promulgado a 5 de
abril – determinava que os arquivos inquisitoriais seriam depositados na repartição dos manuscritos da Biblioteca Pública de Lisboa. Neste mesmo ano, a 10 de
maio, o Tesouro Público Nacional, baixou uma portaria que incumbia o corregedor do bairro de Alfama,
Dr Bernardo António da Mota e Silva, de arrolar os
bens de raiz, móveis, alfaias, papeis e livros pertencentes ao extinto Conselho Geral do
Santo Ofício e Inquisição de Lisboa. O Inventário
foi concluído em 11 de outubro de 1824 (Santos, 1990)
e, em seguida, transferido para o “Real Archivo da
Torre do Tombo”. Junto com o material da Inquisição
de Lisboa, ainda não inventariado, muitos papéis avulsos foram simplesmente depositados nas gavetas.
O Visconde de Santarém, então guarda-mor da
Torre do Tombo, aconselhava que esta importante
fonte fosse organizada segundo a ordem do Inventário
(AN/TT, Avisos e ordens, Maço 12, no 59; Reg. do
Arquivo, Livro 40, folha 123-123v.).
O trabalho é iniciado com a organização do tribunal lisboeta. Os cartórios dos tribunais de Évora e
Coimbra foram encaminhados muito posteriormente para o mesmo arquivo.
Em 1902, o conservador da Torre do Tombo,
António Baião, teve como tarefa principal a organização dos cartórios do Santo Ofício. O interesse que lhe
despertou este acervo documental está muito bem
expresso nos seus estudos sobre a Inquisição, todavia
foi Pedro de Azevedo, em 1905, quem publicou a
obra O archivo da Torre do Tombo. Sua história, corpos que o
compõem e organização. Antonio Baião deu continuidade
às suas investigações organizando as Diligências de habilitação para familiares, os Processos e dos cadernos do Promotor, as Receitas e Despesas com os presos pobres, as Despesas
com os ricos e nota das quantias por eles entregues à sua conta,
os Repertórios de culpados, os Livros de contas, os Livros de
Visitações e outros (Dias Farinha, 1990).
Identificação das fontes
A identificação deste imenso acervo documental depositado na Torre do Tombo, obriga o pesquisador a recorrer freqüentemente aos célebres
“rosários”, como são conhecidos os fichários dos
processos das Inquisições de Lisboa e Coimbra,
onde consta o nome do réu, a data da prisão, e, às
vezes, a naturalidade. Nos “rosários” pode-se conhecer os números dos processos dos milhares de
réus que passaram pelos tribunais da Inquisição. Hoje
os arcaicos «rosários» foram substituídos pela conTuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 187-206, Curitiba, mar. 2002
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sulta nos computadores facilitando, assim, o trabalho do pesquisador.
Maria do Carmo Dias Farinha, especialista dos
arquivos inquisitoriais, apresenta a composição atual
da organização dos documentos inquisitoriais existentes na Torre do Tombo:
O Inventário dos Papéis pertencentes ao Extinto conselho
Geral do Sancto Officio inclui as seguintes rubricas:
1- Diligências de habilitação para o serviço do Santo
Ofício (Fls. 1-588 verso).
2- Autos forenses que subiam ao Conselho Geral por
apelação ou agravo ou qualquer outro recurso dos
privilegiados (Fls. 589-638 verso).
3- Causas em que foi autora a justiça (Fls 639-642).
4- Livros impressos (Fls 624 verso - 646).
5- Livros manuscritos (Fls 646 verso - 658).
6- Papéis avulsos (Fls 658 verso - 669 verso).
7- Livros e Papéis de contas (Fls 670-671 verso).
Os Tribunais estão identificados da seguinte maneira:
1- Inquisição de Coimbra - 700 livros, 73 maços, 300
processos.
2- Inquisição de Évora - 598 livros, 23 maços, 24
processos.
3- Inquisição de Lisboa - 841 livros, 30 maços, 55
processos.
4- Inquisição de Lamego - 1 livro, 7 denúncias.
5- Inquisição do Porto - 1 livro, 44 processos.
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Principais rubricas comuns: Apresentações; Autos de Fé; Confissões; Consultas ao Conselho; Contraditas; Correspondência; Crédito de testemunhas;
Culpados; Culpas de Judaísmo; Decretos de prisão;
Denúncias; Judeus de Sinal (1 livro em Lisboa); Juízo
do Fisco: bens confiscados, denúncias, receita e despesa; Ministros e oficiais (reg. de nomeação e termos de juramento); Nefandos; Ordens do Conselho,
Petições; Presos: culpeiros, entradas, fianças; Procurações; Promotor; Receita e Despesas: Geral, Nova
Tença, Presos Pobres, Presos Ricos, Receita das condenações, das Denúncias, dos Depósitos de
habilitandos, Despesas gerais, de Aposentadorias,
dos Autos de Fé, de Diligências, de Obras; de Vencimentos, etc; Reconciliações, Reduzidos,
Reperguntados; Solicitantes; Visitas.
Dias Farinha enfatiza que as séries de livros não
estão completas e que o volume de documentação por identificar é ainda considerável. Há fortes
probabilidades de virem a ser encontrados os livros agora em falta. Eis o inventário de alguns
importantes arquivos inquisitoriais:
Registro de Correspondência expedida: Lisboa
(7 livros de 1590-1605; 1677-1770; 1780-1802).
Coimbra (4 livros de 1661-1670; 1753-1769;
1790-1821). Évora ( 6 livros de 1570-1575; 15881815).
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Decretos de prisão: Lisboa (5 livros de 1627 a
1758). Coimbra (1 livro de 1640 a 1773).
Denúncias (11 livros de 1537 a 1619. Faltam o
Livro 6 e dois não têm números). Coimbra (4 livros
de 1541-1543; 1566-1620). Évora (10 livros de 15411565; 1571-1578; 1588-1618).
Ministros e oficiais (Registros de nomeação e termos de juramento): Lisboa (1540-1820. É a série mais
completa; era de 23 livros e apenas falta o terceiro:
1621-1640; o último tem um só caderno). Coimbra
(1565-1636; 1643-1706; 1710-1711; 1726-1734; 17521758; 1783-1802: Livros 1, 2, 4, 8, 10, 12, 15, 19.
Évora (1541-1612; 1671-1707; 1735-1783: livros 1,
2, 4, 6, 7, 8).
Nefandos: Lisboa (1610-1781, não há seqüência
cronológica. Ainda não foram encontrados os cadernos de números 1, 11, 18 e 22). Coimbra (16111714: 6 cadernos). Évora (1644-1740: 3 cadernos).
Ordens do Conselho: Lisboa (1617-1816, foram
encontrados os cadernos 1, 3 a 10, e 12 a 15). Coimbra
(1566-1788). Évora (1630-1790, encontrados os cadernos de números 4, 6, 8, 10, 12, 14, 15, 17, 18, 22,
24 e dois que não foi possível conhecer o número).
Promotor: Lisboa (Primeira série - século XVI encontrados os cadernos 1 a 9 e 14. Segunda série séculos seguintes - com 135 cadernos). Coimbra (Primeira série - 1570-1638. Segunda série - depois do
Regimento de 1640 - com 126 cadernos). Évora
(1566-1815: cadernos de 1 a 97).
Reduzidos: Lisboa (1641-1820 – série de 50 cadernos). Coimbra (1686-1796: 8 cadernos). Évora
(1662-1811: 3 cadernos).
Solicitantes: Lisboa (1640-1802: 29 cadernos).
Coimbra (1611-1791: 30 cadernos). Évora (16321810: 19 cadernos).
Visitas: Lisboa (33 livros incluindo ilhas e Brasil). Coimbra (12 livros). Évora (1 livro).
Visitas às naus estrangeiras: Lisboa (3 livros de
1641-1644 e 1677-1685). Coimbra (10 livros: 2 da
Figueira da Foz – 1664-1683 e 1694-1724; 2 do
Porto - 1700-1710, 1733-1743, 1754-1785; 3 de
Viana do Castelo - 1635-1651, 1714-1772). Évora
(5 livros: 4 do Faro - 1618-1754; 1 de Portimão 1694-1724).
Esta amostra do variado acervo documental
contidos nos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo permite aos pesquisadores o estudo administrativo do tribunal e das estruturas sociais, políticas,
econômicas, religiosas e comportamentais nos quase três séculos de existência da Inquisição.
Todos estes documentos permitem ao investigador atencioso conhecer o vastíssimo dinamismo da
vida cotidiana e de suas condições materiais e espirituais. Entre 1903 e 1906, António Baião na coletânea
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editada pelo Arquivo Histórico Português, entusiasmava-se com o
potente clarão sobre a mentalidade nacional no décimo sexto
século! Percorram-se os livros existentes das visitações ao
Brasil: que messe de documentos curiosos sobre os costumes
da época e as almas que iam ser o alicerce de uma nova
formação étnica! As listas dos auto de fé, com os seus bígamos, feiticeiros, taumaturgos, curandeiros, réus do crime nefando, clérigos luxuriosos, falsários, que animado painel nos
apresentam da vida inferior borbulhante no sub-solo da sociedade!. (Azevedo, 1935)
Posteriormente José Lúcio de Azevedo, em 1935,
escreveu: verdadeiramente se não poderá escrever uma história, digna desse nome, da época posterior ao estabelecimento da
Inquisição, sem miudamente consultar tão copioso arquivo.
Historiografia inquisitorial do século XIX
Das fontes primárias à interpretação histórica, a
História completa das Inquisições de Itália, Hespanha e Portugal, escrita em 1821 por um autor anônimo, foi o primeiro texto crítico sobre a Inquisição publicado em
Portugal. O esquema da obra espelha-se na Histoire de
l’Inquisition et son origine, publicada em 1693 pelo abade
Marsollier. O texto coloca em evidência o aspecto
detrator e cruel da Inquisição em contrapartida à beTuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 187-206, Curitiba, mar. 2002
nevolência e mansidão da Igreja primitiva (Bethecourt,
1993).
Em 1826 aparece o Resumé de l’histoire littéraire du
Portugal, obra de Ferdinand Denis. O autor salienta a
idéia da decadência literária portuguesa depois de
Camões. Aponta o rigor da censura inquisitorial como
sendo uma tática de inútil crueldade que abafava tudo aquilo que queria se elevar (Bethencourt, 1993).
Entre 1854 e 1859 surge a História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal, de Alexandre Herculano. O autor busca as procedências da Inquisição ibérica
observando a Inquisição medieval até o seu estabelecimento em Portugal. Aponta os aspectos da corrupção
da cúria romana como elemento determinante da
Inquisição moderna, posição que vai gerar protestos
dos seguimentos mais conservadores. Inovadora, porém, foi a utilização do método comparativo (Herculano, 1853).
A História dos principais actos e procedimentos da Inquisição
em Portugal, de António Joaquim Moreira foi publicado
em 1845; obra inserida no IX volume da História de
Portugal de Shaeffer, traduzida por José Lourenço
Domingues de Mendonça. Trata-se esta de uma obra
sólida onde a fundamentação nas fontes manuscritas e
impressas é manifestável. O autor privilegia neste estudo o estabelecimento do tribunal, os regulamentos e a
organização interna do Santo Ofício (Moreira, 1845).
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Mais tarde, em 1875, Teófilo Braga publica o Manual de História da literatura portuguesa, onde insiste no
aspecto nocivo da Inquisição que colocou obstáculos
ao desenvolvimento das artes e letras (Braga, 1875).
Estes são evidentemente apenas alguns exemplos
da produção literária e historiográfica do século XIX.
Estas obras, em geral, evidenciam o caráter políticoreligioso da época e são estudos caracterizados simplesmente pela questão temática, longe ainda de uma
apresentação sistemáticamente problematizada. Todos
eles fazem notar a ferocidade da instituição, com
excessão de frei Fortunato de São Boaventura que em
1823 defende a urgente necessidade de imediata restituição do
tribunal do Santo Officio, o único que pode fazer huma guerra
bem sucedida ao maçonismo (São Boaventura, 1823).
Em 1856 é publicada Algumas observações sobre a
Inquisição, sobre as Cruzadas e outros objectos análogos em
resposta à obra intitulada Da origem e estabelecimento da
Inquisição em Portugal. Neste texto, o Marquês de
Lavradio critica a obra de Alexandre Herculano justificando a necessidade da instituição como cousa
utilíssima perante os horrores causados pela Reforma
protestante. O livro não faz nenhuma referência documental e se reduz a uma genérica defesa do tribunal inquisitorial (Lavradio, 1856).
Paralelamente a esta literatura de combate, são publicados diversos estudos de processos inquisitoriais e
trabalhos sobre o funcionamento dos tribunais, censura, organização, confisco dos bens e os mecanismos dos interrogatórios. São obras realizadas, entre
outros, por Anselmo Braamcamp Freire
(Braamcamp Freire, 1899), Capistrano de Abreu e
Rodolfo Garcia. Os dois últimos publicam, no Brasil, os livros das Visitações do Santo Ofício de Heitor Furtado de Mendonça em 1591-1595 e Marcos
Teixeira em 1618 (Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil, 1591-1592).
Escritos de fundamental relevância são aqueles de
João Lúcio de Azevedo que, entre outros, publicou a
História dos cristãos novos portugueses (1821) (Azevedo,
1975) e, António Baião que reuniu, também em 1821,
uma coletânea de seus artigos anexados com uma rica
documentação: A Inquisição em Portugal e no Brasil. Subsídios para a sua história (Baião, 1921).
Historiografia inquisitorial do século XX
É a partir de 1930, com o aparecimento da História da Igreja em Portugal, de Fortunato de Almeida, que
surgem os textos que assumem especificidade de defesa do tribunal da fé. Nesta obra o autor aponta explicitamente como causa do estabelecimento da
Inquisição os ódios que os próprios judeus provocavam com
palavras e actos agressivo. Fortunato de Almeida salienta a
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continuidade dos procedimentos heréticos dos cristãos-novos (Almeida, 1968).
Em 1936 Alfredo Pimenta publica D. João III,
estudo que aceita a tese da legitimidade da condenação dos hereges: “ a tolerância é filha do cepticismo
(...) A Igreja é, hoje, mais tolerante, porque sua crença
é mais fraca...(Bethencourt, 1993).
Ao mesmo tempo, António Baião dá prosseguimento aos seus estudos publicando principalmente A
Inquisição de Goa, tentativa de história da sua origem, estabelecimento, evolução e extinção (Baião, 1930) e,Os episódios
dramáticos da Inquisição, obra apresentada em três volumes e publicada em 1936-1938 (Baião, 1936).
Os estudos dos processos e censuras continuam
através das obras de Révah, entre outros, La censure
inquisitoriale portugaise au XVI siècle et, Etudes portugais
(Révah, 1960). José Sebastião da Silva Dias, no livro Política cultural de D. João III, dedica cerca de 50 páginas à
Inquisição (Silva Dias, 1969), todavia o grande impacto historiográfico foi detonado por António Saraiva que, em 1956, publicou A Inquisição portuguesa,
obra que além de criticar as publicações anteriores,
focaliza as estruturas sociais e econômicas como alicerces do estabelecimento e manutenção do Santo
Ofício. De fato Saraiva privilegia uma abordagem rigorosamente estrutural contra as análises que evidenciaram preferivelmente o fenômeno religioso como
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fator determinante da criação do tribunal. Este autor
resgata a idéia de D. Luís da Cunha de que a Inquisição
seria uma fábrica de judeus como ele mesmo afirma na
página 121: A função do tribunal não era destruir os judeus
mas fabricá-los... (Saraiva, 1956). Em 1969, Saraiva, nesta mesma linha, publica Inquisição e cristão-novos (Saraiva, 1969). Révah contestou com tenacidade as idéias
do historiador português admitindo que uma boa
parte dos cristãos novos continuavam a praticar as
crenças hebraicas. A polêmica ganhou nossos espaços
após a entrevista de Révah ao “Diário de Lisboa”,
em maio de 1971. Este classificou a obra de Saraiva
como libelo demagógico contra a Inquisição e declara a
incompetência de seu opositor sobre a matéria em questão. Este debate encontra-se publicado em anexo na
quinta edição da obra Inquisição e os cristãos-novos do
próprio Saraiva (Saraiva, 1969).
Maria José Ferro Tavares no texto Judaísmo e
Inquisição defende o aspecto cripto-judaizante dos cristãos-novos que, para a autora, mantinham um comportamento duplo: cristão e assumindo-se como tal exteriormente
(...); judeu no interior da sua consciência (Ferro, 1987)
Incluído nesta produção historiográfica estimulada pela discussão de Révah e Saraiva, citaremos também Borges Coelho que aplica as idéias deste último
num importante estudo específico sobre a Inquisição
de Évora (Borges Coelho, 1987). Do outro lado da
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corrente, situa-se a tese de Elvira Mea: A Inquisição de
Coimbra no século XVI. A instituição, os homens e a sociedade.
Estudo seriamente fundamentado na pesquisa das fontes primárias (Mea, 1989).
Cripto-judaísmo versus fábrica de judeus a parte,
os estudos de Veiga Torres revelam, pela primeira vez,
informações seguras sobre os tipos de delitos punidos pela Inquisição e o fluxo do recrutamento dos
familiares. Veiga Torres concentra sua análise na
Inquisição de Coimbra (Torres, 1986).
Romero Magalhães em seu importante estudo sobre a Inquisição no Algarve, constata a entrada tardia
desta instituição naquela região (Magalhães, 1988).
Outros trabalhos de relevo sobre a Inquisição, especificamente com relação aos cristãos novos, foram
publicados. Entre eles, José Gonçalves Salvador, Os
cristãos novos, povoamento e conquista do solo brasileiro (15301680) e, Cristãos novos, jesuítas e Inquisição (Salvador, 1969).
Anita Novinsky: Cristãos novos na Bahia e a ótima publicação co-organizada com Maria Luiza Tucci
Carneiro: Inquisição: Ensaios sobre Mentalidades, Heresias e
Arte, coletânea de estudos apresentados no I congresso internacional sobre a Inquisição realizado na Universidade de São Paulo em maio 1987 (Novinsky &
Tucci, 1992). Sob a coordenação de Maria Helena
Carvalho dos Santos, três interessantíssimos volumes
das comunicações apresentadas no I Congresso Luso-
Brasileiro sobre Inquisição, de 17 a 20 de fevereiro de
1987, foram publicados pela Sociedade portuguesa
de estudos do século XVIII/Universitária editora (Santos, 1990). Ainda de Novinsky, Rol dos culpados: fontes
para a História do Brasi (Novinsky, 1992) que elenca uma
preciosa fonte sobre os cristãos novos do Brasil acusados de judaizantes. Mais recentemente o seu utilíssimo
estudo Inquisição : Prisioneiros do Brasil – séculos XVI-XIX,
publicado pela Editora Expressão e Cultura
(Novinsky, 2001).
Desconcentrando-se do núcleo específico dos cristãos novos, vários historiadores brasileiros dedicaramse às novas problemáticas tais como a feitiçaria e os
desvios sexuais. Destacam-se nesta produção os estudos de Laura de Mello e Souza: O Diabo e a terra de
Santa Cruz, feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial
e Inferno Atlântico, demonologia e colonização, séculos XVIXVII (Souza, 1987; 1993); Ronaldo Vainfas: Trópico
dos pecados, moral, sexualidade e Inquisição no Brasil (Vainfas,
1989) e A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil
colonial (Vainfas, 1995); Luis Mott: Pagode português, sub
cultura gay nos tempos inquisitoriais (Mott, 1988a) e O sexo
proibido: virgens, gays e lésbicas nas garras da Inquisição (Mott,
1988b).
Não podemos absolutamente omitir, como leitura obrigatória, o trabalho de Sônia Siqueira que se ocupa dos aspectos institucionais do Santo Ofício no Brasil:
Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 187-206, Curitiba, mar. 2002
Geraldo Pieroni
A Inquisição portuguesa e a sociedade colonial (Siqueira, 1978)
e, anteriormente, Arnold Wiznitzer: Os judeus no Brasil
colonial (Wiznitzer, 1966). Sobre a sodomia feminina,
Lígia Bellini publicou A coisa obscura - mulher, sodomia e
Inquisição no Brasil colonial (Bellini, 1989) e mais recentemente, Ronaldo Vainfas escreveu um curioso capítulo
sobre o homoerotismo feminino e o Santo Ofício
(Vainfas, 1997). Também ultimamente, a publicação
da tese de mestrado de Plínio Freire Gomes: Um herege vai ao paraíso (Gomes, 1997). Trata-se de um estudo
de caso processual de um colono que viveu no Brasil
e foi preso em Lisboa em 1741. Sobre a Inquisição e
o degredo foram publicados no Brasil três livros de
minha autoria: Os excluídos do Reino: A Inquisição portuguesa e o degredo para o Brasil-colônia. Brasília/São Paulo:
Editora da Universidade de Brasília/Imprensa Oficial do Estado, 2000. Vadios e Ciganos, Heréticos e Bruxas:
Os degredados no Brasil-Colônia. Editora Bertrand do
Brasil, Rio de Janeiro: 2000, e Os degredados na colonização do Brasil (co-autoria com Márcio Vianna), Brasília:
Thesaurus, 1999.
Voltando à historiografia produzida em Portugal,
as obras de Francisco Bethencourt se destacam pelo
aspecto inovador com que o historiador trata suas
temáticas:História das Inquisições, Portugal, Espanha e Itália, obra de fôlego que se preocupa em compreender
a Inquisição percorrendo quatro aspectos: os ritos e a
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etiqueta, as formas de organização e do funcionamento, as táticas inquisitoriais e, finalmente, os sistemas de
representação manifestado na emblemática. Outro
texto importante, também de Bethencourt, é O imaginário da magia, feiticeiras, saludadores e migromantes no século
XVI (Bethencourt, 1987).
Mais recentemente os Arquivos Nacionais/Torre
do Tombo publicou a dissertação de mestrado de
Ana Cannas da Cunha: A Inquisição no Estado da Índia,
origens (1539-1560) (Cunha, 1995). Este estudo salienta
uma questão primordial: se a Inquisição de Goa preferia “transferir” os suspeitos para o Reino, por que,
então, o estabelecimento de uma instituição tão arriscada numa terra onde a fuga era fácil?
O Santo Ofício como ficção
Se passamos da historiografia para a produção de
obras de ficção nas quais os personagens são envolvidos pela malha inquisitorial, contastamos que, mesmo
se os homens de letras, nos tempos do funcionamento do Tribunal da fé, mantinham uma posição cautelosa com relação aos seus textos, alguns tiveram a
ousadia de manifestar suas idéias. Muitos deles foram,
por isso, perseguidos pelos juízes do Santo Ofício.
Lembremos o caso do padre Antônio Vieira (16081697) que por ter escrito Esperanças de Portugal, Quinto
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Império do Mundo, foi acusado de proferir “proposições temerárias e escandalosas” (Vieira, 1957). Vieira,
no entanto, livrou-se da prisão graças a um Breve escrito pelo papa em Roma. Outros foram presos e
condenados como o brasileiro, poeta e autor teatral,
Antônio José da Silva que foi conduzido à fogueira
no dia 18 de outubro de 1739.
Com relação à produção literária - poética e teatral
- várias obras, pequenas ou de maior porte, foram
publicadas. Entre tantas, citaremos a tragédia Antônio
José, ou o poeta e a Inquisição (1836), escrita por Domingos José Gonçalves de Magalhães; O judeu (1866), romance histórico do célebre português Camilo Castelo
Branco, que mais tarde, em 1875, voltou a se ocupar
da Inquisição com um outro romance intitulado A
caveira da Mártir. Um fato da Inquisição no Brasil e o heroísmo
de uma capixaba (1876, anônimo); O amor de um padre, ou
a Inquisição em Roma, peça teatral representada pela primeira vez em 2 de julho de 1839 e remontada em
1877; Os ratos da Inquisição, obra do judeu português
António Serrão de Crasto (1883); Mistérios da Inquisição
(1900), e outros (Novinsky & Tucci, 1992).
Como é notório a temática foi amplamente utilizada pelas sensibilidades literárias de vários escritores
que na medida do possível vinculavam seus personagens ao contexto histórico vivido pelo Santo Ofício
na metrópole e na colônia brasileira. É evidente que
todos estes textos são considerados ficção. Não existem neles uma preocupação rigorosa alicerçada na
pesquisa documental, mesmo se os processos dos réus,
transformados em atores, foram muitas vezes lidos e
adaptados. Aliás, não se deve exigir destes textos imaginativos, o rigor científico. Embora não sendo fontes
que permitem uma abordagem diretamente histórica
no sentido de resgatar devidamente o passado, esta
produção é profundamente importante para compreensão da dimensão e da dinâmica criativa como produto da influência de certas instituições (no caso, a
Inquisição) no âmbito cultural e artístico.
Novos olhares sobre a Inquisição
Retornando à historiografia, assistimos nos últimos
anos, uma significativa fertilidade da produção de livros, artigos e resenhas sobre a Inquisição portuguesa.
Evidentemente não fizemos referência à completa e
abundante biblioteca inquisitorial o que, naturalmente,
seria impossível em um artigo. Toda esta manifestação não está unicamente centralizada na questão
temática mas sobretudo no aspecto do crescente interesse por novas abordagens e problemáticas que estão embutidas neste fecundo terreno. Através de um
criterioso rastreamento das múltiplas e diversificadas
fontes documentais, muitas delas ainda inéditas, a conTuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 187-206, Curitiba, mar. 2002
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tinuidade do processo historiográfico ganhará novas
dimensões. Somente no decurso da busca de novas e
renovadoras hipóteses será possível atingir uma mais
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profunda compreensão histórica das Inquisições e sua
influência nas múltiplas estruturas nas quais a vida humana segue sua trajetória.
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REGIMENTO DO SANTO OFICIO DA INQUISIÇÃO DOS REYNOS DE PORTUGAL ordenado por
mandado do Ilmo e Rmo senhor bispo Dom Francisco de Castro, inquisidor geral do Conselho de Estado de
sua majestade. Em Lisboa, nos Estaos, por Manoel da Sylva, 1640. Exemplar consultado na Biblioteca Nacional
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