Os Desafios da Participação e da Representação: Uma Análise da Comissão de Legislação
Participativa
Autoria: Gabriela de Brelaz
Resumo
Este ensaio tem como objetivo analisar os principais desafios da Comissão de
Legislação Participativa (CLP) como espaço de participação sob as óticas da democracia
representativa e deliberativa. A democracia representativa possui limites como ideal
democrático, sendo necessária uma maior participação da sociedade civil na deliberação de
assuntos de seu interesse. Diversos mecanismos de participação surgem a partir da
Constituição de 1988: iniciativa popular, referendo, plebiscito, ação popular, e outros como
orçamentos participativos e as CLPs, comissões permanentes em 40 casas legislativas no
Brasil onde organizações da sociedade civil (OSC) podem propor projetos de lei e assim
influenciar na definição de leis e políticas públicas. Podemos observar que as CLPs são um
exemplo de democracia representativa, já que se trata de um processo que passa por
parlamentares eleitos pela população, e pode ser vista através de uma ótica da participação,
ressaltando a complementaridade entre a representação e a deliberação ao invés do conflito.
Entretanto há indícios de que se trata de um espaço de participação que ainda precisa se
desenvolver e superar alguns desafios e limitações para deveras tornar-se um espaço
institucionalizado e democrático de participação.
Introdução
A participação como um ideal necessário para a democracia se destaca e começa a
fazer parte da agenda, principalmente, no período pós Constituição de 1988. Percebemos que
as primeiras análises feitas no período da Constituinte e no início da década de 90 traziam
argumentos normativos quanto aos benefícios democráticos gerados pelo processo de
descentralização e participação, contudo, diversos estudos apontam para os limites desta
tríade: descentralização / participação / democratização (Arretche, 1996; Nogueira, 1996;
Santos Jr, 2001; Souza, 2004).
É inquestionável que muitos avanços foram trazidos pela Constituição Cidadã de 1988
no que se refere à garantia de direitos sociais, civis e políticos. Além disso, diversos
mecanismos de participação surgem, direta ou indiretamente a partir da nova Constituição:
iniciativa popular, referendo, plebiscito, ação popular, e também outros como orçamento
participativo e as comissões de legislação participativa. Quando a análise recai sobre estes
mecanismos de participação, uma maior ênfase é dada à análise dos conselhos de políticas
publicas e às práticas de orçamento participativo.
Este ensaio tem como objetivo analisar o processo de participação na sociedade
brasileira levando em consideração os mecanismos de participação hoje existentes,
especialmente, a Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados sob a ótica
da democracia representativa e da democracia deliberativa. Trata-se de um estudo que busca
levantar hipóteses e argumentos em relação à atuação da CLP sem se caracterizar por ser um
estudo de caso em profundidade da mesma. A metodologia do ensaio é fundamentada na
revisão da literatura sobre democracia participativa, democracia representativa,
descentralização, organizações da sociedade civil e cultura política e em dados empíricos
sobre a CLP da Câmara dos Deputados.
A CLP é uma comissão permanente do poder Legislativo, trata-se de um foro
institucionalizado de participação em mais de 40 casas legislativas em todo o Brasil, onde
1
organizações da sociedade civil podem propor projetos de lei e influenciar na definição de
políticas públicas. É um processo menos complexo de participação quando comparado às
iniciativas populares. Parte-se do princípio de que a democracia representativa possui
limitações como ideal democrático, sendo necessária uma maior participação da sociedade
civil na deliberação de assuntos de seu interesse.
Analisar as CLPs é um desafio, em parte pelo curto período de existência, pois a
primeira surgiu na Câmara dos Deputados em 2001, em parte por envolver a discussão sobre
democracia representativa e deliberativa, vista em alguns casos como conflitante. Este estudo
propõe uma visão de complementaridade, porém com a devida análise aos conflitos existentes
no processo de representação e participação. O interesse da academia para a participação da
população na deliberação de assuntos que, tradicionalmente, estiveram focados no poder
legislativo e executivo é recente. Podemos observar que as CLPs são um exemplo de
democracia representativa, já que é um processo que passa por representantes eleitos, mas
pode ser vista através de uma ótica da participação, já que requer que organizações da
sociedade civil, que também representam determinados grupos e interesses, façam
proposições quanto a projetos de lei entre outros.
A partir de 2001, estas comissões passaram a ser instituídas no âmbito estadual e
municipal a fim de promover este mecanismo de participação junto aos cidadãos no plano
local. Entretanto ainda não é possível afirmar que se trata de um espaço eficaz de deliberação
com avanços em termos de consolidação dos princípios democráticos. Hoje, 20 anos após a
promulgação da Constituição Brasileira de 1988, temos um período de tempo que nos permite
iniciar análises mais profundas quanto à regulamentação, aplicação e efetividade desta.
A descentralização e o processo de democratização
De acordo com Santos Jr (2001) podemos observar que o Brasil vive hoje um processo
de Reforma Institucional decorrente das limitações das instituições tradicionais de
representação com grandes implicações para os governos locais. Surgem novos atores na
arena política e social e surge:
[...] um novo regime de ação pública onde são criadas novas formas de
interação entre governo e sociedade, através de canais de participação da
sociedade na gestão pública, principalmente em torno dos conselhos
municipais de gestão de políticas setoriais, tanto no plano nacional como nas
esferas subnacionais, em que se destacam os governos municipais (Santos Jr,
2001, p.65-66).
Este processo tem como base a Constituição Cidadã, onde prevalece a idéia da
soberania popular e de que o poder emana do povo, fundamental na legitimação do princípio
de descentralização, tanto na questão de arranjo federativo, como também na questão política,
ou seja, atrelada à participação da sociedade (Nogueira, 1997). Diversas responsabilidades e
competências foram transferidas aos governos locais possibilitando o fortalecimento do
governo na esfera local e a participação dos cidadãos.
Para Albuquerque (2007) esta onda descentralizadora é um fenômeno não apenas
brasileiro, mas de diversos países do cone sul latino-americano, contudo, com características
diferentes. Na Argentina e no Chile, a descentralização foi implementada pelos governos
privatistas e autoritários, como parte de um projeto de redução do Estado. No Brasil, houve
uma convergência da agenda democratizante que buscava a universalização de direitos, com a
agenda neoliberal de redução do Estado e ajuste fiscal. Ao analisar o papel da participação e o
controle da sociedade sobre políticas sociais em cinco países: Brasil, Argentina, Uruguai,
2
Chile e Paraguai, a autora afirma que apesar das diferentes agendas de reformas, em todos os
casos o espaço local foi apontado como o lócus de melhor atendimento às necessidades do
cidadão e onde poderia se efetivar a participação ativa dos cidadãos.
No caso brasileiro, Arretche (1996) afirma que no início do processo de
descentralização havia argumentos normativos quanto aos benefícios que a descentralização
traria para a democracia. Acreditava-se que a descentralização favoreceria a participação e a
promoção da democracia, pois é no nível local que se estabelecem as instituições capazes de
viabilizar a participação de cidadãos no processo de tomada de decisões públicas, e
influenciar no fortalecimento da vida cívica desses cidadãos. A descentralização garantiria
maior eficiência, pois no processo de formação das burocracias governamentais locais
privilegia-se a meritocracia e não o favoritismo político. Além disso, havia a idéia de que a
descentralização levaria a uma redução de clientelismo e, conseqüentemente, das ineficiências
por este geradas. Acreditava-se que a descentralização levaria a uma redução do poder central,
pois ao descentralizar, colocar-se-ia o poder em outras entidades já que a centralização era
vista como antidemocrática, pois há possibilidade de dominação política. Por último, outro
argumento favorável era o de que a descentralização favoreceria o controle social dada a
maior proximidade entre os prestadores de serviços e os usuários o que levaria a uma maior
accountability e responsabilização dos governos. A autora afirma que o caráter democrático
da descentralização depende menos do âmbito (federal, estadual ou local) onde as decisões
são tomadas e mais das instituições, ou seja, do Estado e do fortalecimento de suas
capacidades administrativas e institucionais.
Nogueira (1997) também enfatiza que há uma grande confusão entre descentralização,
democratização e participação. Para o autor, o processo de descentralização não implica
diretamente em uma maior participação da sociedade, levando a uma menor desigualdade
social, maior eficiência do Estado e, conseqüentemente, a uma melhoria em termos de
princípios democráticos. Sendo assim, percebemos que o questionamento colocado por
diversos autores é se deveras os novos arranjos institucionais estabelecidos possibilitam o
aprofundamento da democracia (Arretche, 1996, Nogueira, 1997, Santos Junior, 2001).
O surgimento das comissões de legislação participativa em 40 casas legislativas,
resultado de uma onda de incentivo à participação e de descentralização, leva à necessidade
de compreender a efetividade deste novo espaço, pois é comum observar o pressuposto de que
as CLPs contribuem com a participação e, conseqüentemente, com a democratização, apesar
de alguns dados não confirmarem isso. É fundamental considerar as discrepâncias em termos
de diferenças regionais a fim de ter maior subsídio para entender o potencial de atuação das
CLPs em nível local.
Representação e participação no Brasil
Sorj (2000) enfatiza que no Brasil moderno, os partidos políticos sempre foram
limitados em sua função de representação social em parte pelos grandes períodos de ditadura,
pelas mudanças sucessivas no sistema partidário e em parte pelos limites da uma sociedade
com baixa capacidade de absorção de informação o que gera uma crise no processo
representativo.
Partimos do princípio de que a democracia representativa dá sinais claros de limitação,
sendo assim, surge a participação da sociedade civil e das suas organizações, tanto na esfera
do poder legislativo como na esfera do poder executivo, como forma de complementação e
não como forma de substituição da democracia representativa. “[...] em inúmeros países está
se vivenciando uma abertura do poder executivo à participação de atores societários
investidos juridicamente como representantes de determinados segmentos e interesses da
3
população no desenho, implementação e supervisão de políticas públicas” (Lavalle; Araújo,
2006, nota introdutória). Também observado por Tenório:
O que se pretende mostrar [...] são as limitações da democracia representativa
para justificar que um processo de alargamento da democracia na sociedade
contemporânea pode ocorrer por meio de uma integração da democracia
representativa e da democracia participativa [deliberativa], pois não existe
propósito em abandonar o mecanismo de democracia representativa [...] A
questão que se impõe não é “eleitos” versus “eleitores”, mas sim a
possibilidade de exercício de uma administração pública ampliada, em que as
questões da sociedade não sejam apenas objeto de gestão de gabinetes ou de
plenários, porém de processos democráticos nos quais todos os interessados
têm vez na decisão (Tenório, 2007, p.110).
Instâncias de participação democrática como: projeto de iniciativa popular, plebiscito,
referendo, ação popular, audiência pública, consulta pública, conselhos de políticas públicas e
a própria comissão de legislação participativa, são apenas alguns exemplos de espaços
institucionalizados de participação derivados direta ou indiretamente da Constituição de 1988,
junto ao legislativo, executivo e judiciário. Além destas formas de participação, surgem
também outros arranjos institucionais visando à participação e, conseqüentemente, o
desenvolvimento local, como por exemplo, conferências (em nível municipal, estadual e
federal), consórcios intermunicipais, conselhos regionais de desenvolvimento e orçamentos
participativos (Tenório, 2007).
Entretanto, a discussão acadêmica brasileira se concentra em discutir a importância da
participação e como esta contribui para a democracia. Estudos mais críticos ainda estão
surgindo sobre os efeitos dessa participação, talvez pelo fato de só agora, haver um período
suficiente de análise. Dagnino e Tatagiba (2007) afirmam que estão surgindo trabalhos com
um olhar mais crítico e que destacam a “qualidade da participação” como uma questão
fundamental para entender a sua efetivação em determinados contextos político-institucionais,
abandonando o registro celebratório dos primeiros estudos sobre o potencial democratizador
da sociedade civil e dos espaços participativos.
Com a nova Constituição o papel das organizações da sociedade civil pôde ser
ampliado e um importante passo foi dado: “No que diz respeito à democracia, a Assembléia
Constituinte [...] deu ao princípio participativo uma definição muito mais forte, colocando-o
virtualmente em pé de igualdade com a democracia representativa” (Lamounier e Souza,
1990, p. 99). Porém, apesar do grande avanço que representou a incorporação desses
mecanismos de participação, é importante analisar quanto estes foram incorporados ao
cotidiano político brasileiro, ou seja, entender a sua efetividade e a qualidade dessa
participação.
A definição de sociedade civil e das organizações que a compõem é complexa
e diversas interpretações emergem. Analisar o conceito de Estado e sociedade civil é um tema
fundamental, mas que não se esgota e que por si só renderia análises extensas que não são o
objetivo deste artigo. Cohen e Arato definem sociedade civil como “a esfera de interação
social entre a economia e o Estado, que inclui, acima de tudo, a esfera íntima (especialmente a
família), a esfera de associação (especialmente as associações voluntárias), os movimentos
sociais e as formas de comunicação pública” (Cohen e Arato, 1992, p. ix). Jürgen Habermas
(1996) ressalta que a esfera da sociedade civil foi redescoberta recentemente. O autor afirma
que a sociedade civil envolve as conexões não governamentais e não econômicas e as
organizações não voluntárias:
4
A sociedade civil é composta de associações, organizações e movimentos que
emergem mais ou menos espontaneamente e que concordam sobre como os
problemas no nível societal ressoam nas esferas da vida privada e transmitem
tais reações de forma amplificada para a esfera pública. O cerne da sociedade
civil abrange uma rede de associações que institucionalizam discursos sobre a
solução de problemas em questões de interesse geral dentro da estrutura das
esferas públicas organizadas, [...], Emergindo mais ou menos da esfera
privada, este público é feito de cidadãos que buscam interpretações aceitáveis
para seus interesses sociais e experiências e que querem ter uma influência na
opinião institucionalizada e na formação da decisão (Habermas, 1996, p. 367,
tradução nossa).
Para fins deste estudo, denominaremos organizações da sociedade civil, as
organizações privadas, separadas do Estado, sem fins lucrativos e que desenvolvem atividades
com o intuito de propiciar benefícios para a sociedade ou para grupos específicos. São
também chamadas de organizações sem fins lucrativos e organizações não governamentais.
Essas organizações têm diversos papéis na sociedade sendo um deles o de participar e
deliberar no processo de formulação de políticas públicas, ou seja, o papel de influenciar
políticas públicas.
É através da deliberação pública que é possível conectar a liberdade de expressão e
discussão, a formação de identidades plurais e a livre associação junto com os mecanismos de
foro público e de accountability. É importante ressaltar que a deliberação na esfera pública
não substitui o sistema democrático representativo, ou seja, esta deliberação passa por
procedimentos institucionalizados de debate no parlamento no processo de elaboração de leis.
A maior parte dos estudos sobre as formas de participação concentram-se nos
conselhos de políticas públicas e nas iniciativas de orçamento participativo. As análises de
Gohn (2003) e Sampaio (2006) sobre os conselhos apontam para as suas diversas limitações
como: o fato dos conselhos serem espaço de tomada de decisões pouco significativas, para os
problemas de representatividade da sociedade civil, para a inexistência de mecanismos
institucionais que garantam o cumprimento das decisões dos conselhos, assim como para a
responsabilização e a fiscalização dos conselheiros. Para compreender a interação entre
governo e sociedade é fundamental entender a relação de forças entre os atores sociais, pois
esta pode ser muito significativa, inclusive mais do que o contexto institucional no qual se
realiza (Santos Jr., 2001).
[...] de fato, as vantagens políticas para a comunidade que decorrem de
projetos elaborados por meio de parcerias provêm menos da parceria como
modelo institucional de cooperação, e mais do fato de os atores conseguirem
inscrever suas exigências em função de suas prioridades, de seus objetivos e
de seus valores. Em resumo, o que conta é menos a parceria como modelo
institucional particular e mais a natureza das relações sociais e políticas,
incluindo aí as relações de forças entre os atores sociais (Santos Jr, 2001,
p.62).
Analisando a relação entre Estado e sociedade, enfatizamos a definição de Estado
social de Bobbio, não apenas no sentido de Estado que permeou a sociedade, mas também do
Estado permeado pela sociedade. Estes processos representam um cidadão participante e um
cidadão protegido que estão em conflito. Este é um ponto importante na questão da
participação: quem participa e quais os seus interesses, qual é a agenda dessa participação e
quais os riscos?
5
Observou-se, de outra parte, que a este processo de estatalização da sociedade
correspondeu um processo inverso, mas não menos significativo de
socialização do Estado através do desenvolvimento das várias formas de
participação nas opções políticas, do crescimento das organizações de massa
que exercem direta ou indiretamente algum poder político [...]. Estes dois
processos representam bem as duas figuras do cidadão participante e do
cidadão protegido que estão em conflito entre si às vezes na mesma pessoa: do
cidadão que através da participação ativa exige sempre maior proteção do
Estado e através da exigência da proteção reforça aquele mesmo Estado do
qual gostaria de se assenhorar e que, ao contrário, acaba por se tornar o seu
patrão (Bobbio, 1985, p.52-53).
Sendo assim, uma melhor análise dos mecanismos de participação já mencionados é
fundamental. O processo de iniciativa popular, apesar de ser muito inovador, tornou-se
praticamente inviável já que requer a assinatura de 1% do eleitorado nacional, cerca de 1.3
milhões de cidadãos distribuídos em pelo menos cinco estados. Devido a essa exigência,
poucos foram os projetos de iniciativa popular apresentados à Câmara dos Deputados, e
devido à impossibilidade de conferência dos dados, todos os projetos apresentados foram
assinados por deputados ou pelo Poder Executivo (Ajufe, 2007).
Como observado por Young (2006), a representação não necessariamente enfraquece a
participação inclusiva e, nas sociedades de massa “a representação e a participação se
requerem uma à outra para que haja uma política plenamente democrática”. Esta
representação dá-se através de parlamentares eleitos e através de organizações da sociedade
civil que representam grupos, interesses e necessidades específicas. Este é um dos
pressupostos da democracia, a representação de diferenças sociais. Isto é algo que
percebemos, claramente, ao utilizar a comissão de legislação participativa como exemplo de
representação e de deliberação.
O representante naturalmente irá se afastar dos eleitores, mas também deve
estar de alguma forma conectado a eles, assim como os eleitores devem estar
conectados entre si. Os sistemas de representação, por vezes, deixam de ser
suficientemente democráticos, não porque os representantes deixam de ser pôr
pela vontade dos eleitores, mas porque perderam a conexão com eles. Nas
democracias de massa modernas, as relações entre representantes e eleitores
de fato se rompem facilmente: o difícil é mantê-las [...] O processo de
autorização e responsabilização que constitui a prática representativa não deve
enfim ser confinado aos organismos públicos oficiais. Já assinalei aqui que a
livre associação da sociedade civil contribui para a formação e a expressão de
interesses e opiniões. A sociedade civil também é uma importante instância de
consolidação e expressão de perspectivas sociais. Ademais, a organização e a
mobilização nas esferas públicas da sociedade civil estão entre os meios mais
efetivos de se manter as conexões entre representantes e eleitores, e de se
efetivar a prestação de contas dos representantes. Aprofundamos a democracia
quando encorajamos o florescimento das associações que as pessoas formam
de acordo com os interesses, opiniões e perspectivas que consideram
importantes. As atividades autônomas e plurais das associações civis
propiciam aos indivíduos e aos grupos sociais, em sua própria diversidade,
uma inestimável oportunidade de serem representados na vida pública
(YOUNG, 2006, p.153, p.187).
As CLPs são um interessante objeto de estudo, pois combinam elementos da
democracia representativa e da democracia deliberativa, já que organizações da sociedade
civil podem propor projetos de lei diretamente ao poder legislativo, casa dos representantes
6
eleitos e, por essas mesmas organizações também atuarem como agentes de representação de
determinados grupos e interesses. Nesse contexto vale destacar que há assimetria de vozes, ou
seja, assimetria de forças entre os diversos atores sociais. Adicionalmente, quando nos
referimos à participação da sociedade civil brasileira, esta não se caracteriza por um alto grau
de mobilização e politização (Carvalho, 2001; Dowbor, 1995; Faoro, 1994, Sorj, 2000), sendo
necessário levar isto em consideração quando falamos da institucionalização e efetivação de
mecanismos de participação.
Comissão de Legislação Participativa como espaço de participação
É possível analisar a atuação das CLPs de acordo com o que Avritzer (2002)
denomina públicos participativos. Para o autor esta participação deve ser baseada na formação
de mecanismos de deliberação públicos, de livre expressão e associação que chamam a
atenção para determinadas questões que devem ser resolvidas através da política e pela
atuação de movimentos sociais e organizações da sociedade civil, pois estes movimentos e
associações chamam a atenção para assuntos controversos e trazem práticas alternativas,
mostrando-se como importantes agentes de uma democracia. Contudo, como já mencionado,
a deliberação na esfera pública não substitui o sistema democrático representativo, ou seja,
esta deliberação passa por procedimentos institucionalizados de debates no parlamento na
elaboração de políticas públicas.
A comissão de legislação participativa é uma comissão permanente da casa legislativa
e tem como objetivo facilitar a participação da sociedade no processo de elaboração
legislativa. A primeira a ser instituída foi a da Câmara dos Deputados em 2001. Qualquer
entidade civil organizada como: organizações não governamentais, sindicatos, associações e
órgãos de classe (exceto partidos políticos), podem apresentar à Câmara dos Deputados suas
sugestões legislativas como propostas de leis complementares e ordinárias, sugestões de
emendas ao Plano Plurianual ou à Lei de Diretrizes Orçamentárias e à Lei Orçamentária
Anual. Abaixo podemos observar as possibilidades de sugestões que podem ser feitas à CLP:
a) Sugestão de projeto de Lei Complementar: sugere disciplinar
complementarmente matéria a que a Constituição faz exigência expressa.
Exemplo: normas para controle de gastos com saúde, nos Municípios, Estado
e União.
b) Sugestão de Projeto de Lei: sugere disciplinar assuntos próprios à
legislação ordinária (comum) como, por exemplo, direitos trabalhistas. A lei
que recentemente instituiu os medicamentos genéricos, entre outras, foi
proposta por meio de projeto de lei.
c) Sugestão de Projeto de Resolução: sugere alterar o Regimento Interno da
própria Câmara dos Deputados, ou seja, dispor sobre o funcionamento desta
casa legislativa. Exemplo: estabelecer prazos e normas de apreciação de
matérias.
Também são cabíveis sugestões como Requerimento solicitando Audiência
Pública, Requerimento solicitando Depoimento de Cidadão ou Autoridade,
Requerimento de Convocação de Ministro de Estado, Projeto de Decreto
Legislativo, Projeto de Consolidação, Proposta de Emenda à Lei Orçamentária
e a seu parecer Preliminar, Proposta de Emenda ao Plano Plurianual (Vogel,
2006, p. 4).
A sugestão de iniciativa legislativa realizada por uma organização da sociedade civil é
analisada pela comissão e, havendo parecer favorável, a sugestão é transformada em
proposição legislativa de iniciativa da CLP, com a indicação do nome da entidade que lhe deu
7
origem, sendo encaminhada à Mesa Diretora da casa legislativa para tramitar normalmente.
As sugestões que receberem parecer contrário são arquivadas. Este processo simplifica o
processo de iniciativa popular cuja operacionalização é praticamente inviável, facilitando a
participação da sociedade civil na formulação de políticas públicas.
Por meio desta Comissão, a Câmara dos Deputados abre à sociedade civil um
portal de acesso ao sistema de produção das normas que integram o
ordenamento jurídico do País, chamando o cidadão comum, os homens e
mulheres representados pelos Deputados Federais, a levar diretamente ao
Parlamento sua percepção dos problemas, demandas e necessidades da vida
real e cotidiana (Comissão de legislação participativa Câmara dos Deputados,
cartilha, p. 7-8).
É possível observar uma tendência à descentralização e busca por uma maior
participação da sociedade civil em nível local através das comissões de legislação
participativa dos municípios e estados. De acordo com dados de junho de 2008, há mais de
quarenta CLPs em funcionamento no Brasil que podem atuar como importante mecanismo de
desenvolvimento de poder local. Destas, onze estão localizadas em Assembléias Legislativas
Estaduais, trinta em Câmaras Municipais (sendo 14 no Estado de São Paulo e sete em Minas
Gerais), uma na Câmara dos Deputados e uma no Senado Federal. Dados de agosto de 2007
apontavam para trinta CLPs, ou seja, em um ano houve a criação de mais de uma CLP por
mês, em média. Contudo, não se trata de um número significativo considerando o total de
municípios, 5.564 brasileiros (IBGE, 2006) e considerando que apenas seis CLPs municipais
correspondem à capital dos respectivos Estados. Interessante observar também que dos onze
estados que possuem CLPs nas Assembléias Legislativas, apenas quatro estados possuem
também a CLP na Câmara Municipal da sua capital.
Casas Legislativas com Comissão de Legislação Participativa
1
Câmara dos Deputados
23
Câmara Municipal de Curitiba/PR
2
3
Senado Federal
Assembléia Legislativa do Estado do Acre
24
25
Câmara Municipal de Goiânia/GO
Câmara Municipal de Gravataí/RS
4
Assembléia Legislativa do Estado do Alagoas
26
Câmara Municipal de Guaratinguetá/SP
5
Assembléia Legislativa do Estado do Amazonas
27
Câmara Municipal de Guarulhos/SP
6
Assembléia Legislativa do Estado de Goiás
Assembléia Legislativa do Estado do Maranhão
Assembléia Legislativa do Estado de Mato Grosso do
Sul
Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais
28
Câmara Municipal de Itabira/MG
29
Câmara Municipal de Itapeva/SP
30
Câmara Municipal de João Pessoa/PB
31
Câmara Municipal de Juiz de Fora/MG
32
Câmara Municipal de Manaus/AM
7
8
9
10 Assembléia Legislativa do Estado da Paraíba
Assembléia Legislativa do Estado de Rio Grande do
11
Sul
12 Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina
13 Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo
34
35
14 Câmara Municipal de Americana/SP
36
15 Câmara Municipal de Atibaia /SP
37
Câmara Municipal de Peruíbe/SP
Câmara Municipal de Santos/SP
Câmara Municipal de São Bernardo do
Campo/SP
Câmara Municipal de São José dos Campos/SP
16 Câmara Municipal de Barbalha/CE
17 Câmara Municipal de Belém/PA
18 Câmara Municipal de Belo Horizonte/MG
38
Câmara Municipal de São Paulo/SP
39
40
Câmara Municipal de Sete Lagoas /MG
Câmara Municipal de Teresina/PI
33
Câmara Municipal de Pariquera-Acu/SP
8
19 Câmara Municipal de Bertioga/SP
20 Câmara Municipal de Campinas/SP
21 Câmara Municipal de Campos do Jordão/SP
41
42
Câmara Municipal de Tibagi/PR
Câmara Municipal de Uberaba/MG
43
Câmara Municipal de Unaí/MG
22 Câmara Municipal de Conselheiro Lafaiete/MG
Fonte: CLP Câmara dos Deputados, 10/06/2008
Quanto à eficácia e efetividade destas comissões como mecanismo de participação, há
poucos dados para análise. No caso da comissão de legislação participativa da Assembléia
Legislativa do Estado de São Paulo, criada em 2004, apesar da celebração quanto à sua
criação, pouquíssimos projetos foram apresentados e nenhum foi aprovado pela CLP. Os
dados da Câmara dos Deputados demonstram uma maior atividade, porém sem resultados
efetivos quanto à participação da população na atividade legislativa. De 2001 a julho de 2008,
a CLP da Câmara dos Deputados recebeu 633 sugestões oriundas de organizações da
sociedade civil, sendo que 220 foram aprovadas, transformadas em proposições e
encaminhadas para tramitar na Câmara dos Deputados. Desde 2001 apenas uma sugestão
vinda de organização da sociedade civil, de autoria da Associação dos Juízes Federais
(AJUFE), foi aprovada pelo Congresso e sancionada pelo Presidente da República,
transformando-se na lei 11.419/06.
Sugestões recebidas pela CLP no período de 2001 a 17 de Julho de 2008
Recebidas
Ano
Sugestões (projetos de lei, requerimento
de audiência pública, etc)
Sugestões de Emendas à Lei Orçamentária
Anual
Sugestões de Emendas ao Plano Plurianual
Sugestões de Emendas à Lei de Diretrizes
Orçamentárias
Total
Atualizada em 17/07/08
2001 2002 2003 2004 2005
2006 2007 2008 Total
24
59
57
28
107
69
11
21
16
1
12
21
45
1
35
80
74
40
5
133
7
122
93
18
455
126
2
26
119
16
34
54
633
Fonte: Comissão de Legislação Participativa, 29/07/2008
Sugestões transformadas em proposições (incluindo as emendas às leis orçamentárias)
Proposições
2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 Total
Projeto de Lei (PL)
1
20
22
10
8
14
19
14 108
Projeto de Lei Complementar (PLP)
1
4
1
2
8
Emenda a Projeto de Lei
1
2
1
4
Indicação (INC)
2
1
1
3
3
10
Rquerimento (REQ) de Audiência Pública
e Seminário
2
1
3 02*+01
7
16
Rquerimento de Informação (RIC)
1
1
Voto de Louvor
1
1
Voto de Pesar
1
1
Emenda à LOA
5
5
5
5
5
5
30
Emenda ao PPA
1
1
2
Emenda à LDO
5
7
24
13
49
Total
7
34
30
17
25
31
55
30 220
Atualizada em 17/07/08
* Esses dois requerimentos são oriundos de uma única sugestão (SUG 90/2005)
Fonte: Comissão de Legislação Participativa, 29/07/2008
9
Braga (2005) aponta como uma dificuldade no funcionamento da CLP o fácil envio de
sugestões para a comissão. Esta facilidade constitui um paradoxo, pois ao mesmo tempo em
que representa uma vantagem, leva a apresentação de propostas inconsistentes em termos de
mérito e constitucionalidade (exemplo: sugestão de matérias que estejam na competência de
outro nível – federal, estadual ou municipal e de outro poder, executivo ou judiciário - que
não o da CLP) e sobre temas de pouca relevância. Ao analisar a atuação da CLP da Câmara
dos Deputados de 2001 a 2005, a autora constatou que apenas cinco organizações da
sociedade civil foram responsáveis pela autoria de mais da metade de propostas recebidas,
sendo a grande maioria propostas inconsistentes.
Em estudo de caso realizado com o Grupo de Institutos Fundações e Empresas
(GIFE), Brelaz (2007) identificou que o GIFE reconhecia a CLP como um mecanismo
institucionalizado e apartidário de participação, mas tinha restrições quanto ao seu uso. Para o
GIFE os parlamentares viam a CLP como uma intromissão das organizações da sociedade
civil no processo legislativo e que por isso não aprovavam os projetos apresentados pela
comissão. A percepção era de que para os parlamentares as organizações da sociedade civil
deveriam recorrer diretamente a eles já que estes eram representantes eleitos. Sendo assim, o
senso comum era de que a CLP era uma comissão desprestigiada e sem mobilização política.
Como para que uma proposição seja aprovada no Congresso, é importante o apoio de
parlamentares, muitas entidades priorizariam outras estratégias de atuação no legislativo,
criando a hipótese de um conflito entre a representação e a participação. Burgos (2007)
enfatiza que:
Segundo os entrevistados há a percepção e certo temor por parte de um
número de parlamentares que os processos de participação direta da cidadania,
conhecido como democracia participativa, e que tem sua forma mais
conhecida nas formas de plebiscito e referendos, é algo que enfraquece a
democracia representativa e que, portanto, leva à diminuição ou mesmo perda
de poder por parte dos parlamentares, lideranças políticas e dos partidos
políticas. Isso ocorreria pelo fato que a comissão [CLP] aproxima a sociedade
civil organizada do centro do poder, excluindo a intermediação política. Não
haveria, portanto, a figura do “coronel” que é sempre procurado
principalmente nos rincões mais atrasados da sociedade brasileira. Uma
observação que apontada pelos servidores que pode corroborar com essa
análise, é o fato de que a CLP é sempre a última comissão a ter sua mesa
diretora escolhida, e que nunca há o preenchimento de todas as vagas
destinadas às bancadas para a indicação de representantes na comissão.
Certamente, é um reflexo da importância destinada à comissão pelos partidos
e lideranças políticas (Burgos, 2001, p.61).
Esta hipótese abre portas para uma análise mais profunda sobre o verdadeiro papel da
CLP como espaço institucionalizado de participação. Poderia ser visto como mais um
paradoxo do movimento de maior participação promovido pós Constituição de 1988? Trata-se
de uma instância de participação que existe, mas que não estimula deveras a deliberação? São
as comissões de legislação participativa espaços de participação eficazes? São espaços de
participação popular? São espaços de participação onde prevalecem as desigualdades e a
assimetria de vozes entre os atores da sociedade civil?
Apontamos cinco desafios em relação ao potencial das CLPs como mecanismos de
participação, à luz da literatura abordada, que pode servir de base para pesquisas futuras.
Estes pontos levantados são hipóteses e problematizações geradas por este ensaio, não se
esgotando em sua complexidade.
10
Primeiramente destacamos a relação entre o poder executivo e legislativo. É
importante olhar para as particularidades da política partidária no Brasil e como isto afeta as
relações entre o poder executivo e legislativo e, conseqüentemente, a relação entre a
sociedade civil e os seus representantes. O poder legislativo no Brasil passa por um processo
de descrédito, muitas vezes legislando apenas sobre temas superficiais. Por outro lado, um
forte poder executivo tem um papel fundamental na criação de leis, contrariando o modelo
clássico de divisão de poderes (executivo, legislativo e judiciário). Esta reflexão gera alguns
questionamentos quanto ao papel do legislativo brasileiro e a sua capacidade de promover a
participação da sociedade civil na formulação de políticas públicas.
Apesar do pouco tempo de atuação da CLP, esta já dá alguns indícios de que pode não
ser um mecanismo de participação e democratização eficaz. Adicionalmente, é necessário
analisar qual é o papel da representação política e como este dialoga com a representação nas
organizações da sociedade civil e como a dinâmica entre o poder legislativo e o executivo
afeta a participação da sociedade civil na formulação de políticas públicas. Para Burgos
(2007), a percepção de perda de poder no meio político com o desenvolvimento da CLP, faz
com que esta seja uma comissão desprestigiada e sem grandes atuação.
José Murilo de Carvalho (2001) estabelece como um importante fator para o
desenvolvimento da democracia no Brasil o estabelecimento dos direitos sociais antes dos
direitos políticos e civis, levando a uma valorização extrema do poder executivo. Os direitos
sociais foram implantados em épocas ditatoriais onde o legislativo não tinha grande atuação,
passando a imagem de uma centralidade no poder executivo e uma desvalorização do
legislativo. Isso leva ao desenvolvimento de uma cultura que visa a negociação junto ao
executivo, sem ter a tradição de passar pela mediação tradicional da representação: “Esta
cultura orientada mais para o Estado do que para a representação é o que chamamos de
“estadania”, em contraste com a cidadania” (Carvalho, 2001, p.221).
Um segundo ponto que merece destaque é o posicionamento político: apesar da idéia
de democracia participativa estar ligada à concepção de movimento político apartidário, a
criação das CLPs e de outros mecanismos de participação tem relação com o que se identifica
como propostas políticas de esquerda. Céli Regina Jardim Pinto (2004) analisou espaços
deliberativos e a questão da representação, identificando que certas experiências participativas
florescem em determinadas cidades, pois são governados por partidos políticos de esquerda
que estimulam a participação.
A participação direta do cidadão no planejamento e no orçamento é uma
política desejada pelos partidos de esquerda no governo pelo menos por três
razões. Em primeiro lugar pela própria postura política ideológica desses
partidos que defendem o alargamento da democracia e da inclusão social. A
segunda diz respeito à sua incapacidade de formar legislativos majoritários em
seus governos; e, agindo dessa forma, as decisões dos corpos participativos
rompem com as práticas clientelistas e retiram o poder de decisão dos
adversários políticos. Por fim, não se pode deixar de levar em consideração o
fato de que os governos nos países em exame sejam municipais, estaduais ou
federais, atuam em cenários de grande escassez de recursos e de carência de
serviços básicos para as populações pobres. A inclusão dessas populações no
sentido de tomarem decisão sobre as formas de aplicação dos recursos
escassos contribui para a legitimação da própria aplicação (Jardim Pinto,
2004, p. 101).
Entretanto, para a autora há uma questão ausente nas discussões sobre democracia
participativa e a política institucional. Os partidos políticos são colocados em seguindo plano,
mesmo sendo estes os espaços políticos de manifestação de interesses e ideologias: “[...] nos
11
estudos de caso [os partidos políticos] aparecem ou como estorvo, ou como local de corrupção
e privilégio; nos estudos teóricos, estão praticamente ausentes (Jardim Pinto, 2004, p.111).
Esta percepção está em linha com o senso comum de que a CLP é uma comissão mal vista
pelos parlamentares, já que estes são escolhidos pelo voto para representarem a população
dentro de um contexto político e partidário. Sendo assim, não devemos colocar os partidos
políticos de lado quando analisarmos as comissões de legislação participativa.
Outra variável, a capacidade técnica, deve ser levada em consideração em ambos os
lados: Estado e sociedade civil. No processo de criação de novas CLP em nível local é
fundamental ter em conta a qualificação dos parlamentares e do corpo técnico, sendo
fundamental levar em consideração a heterogeneidade do Brasil com diferenças significativas
entre suas regiões.
Para os servidores, o fortalecimento de CLPs nas esferas locais (Estados e
Municípios) é de fundamental importância para se ampliar a participação da
Sociedade no processo legislativo como um todo, pois permite a criação de
espaços que permitam a participação e o encaminhamento das demandas para
aqueles agentes que tenham competência de atender suas solicitações. Este
tipo de ação pode ocorrer de duas maneiras. Uma, seria o fomento à criação de
CLPs nos parlamentos locais que ainda não possuem estrutura com esta
finalidade. A outra seria uma ampla parceria entre as CLPs, de forma a
coordenar os trabalhos de forma a assegurar a maior participação possível.
(Burgos, 2007, p.102).
A multiplicação de CLPs não implica diretamente em um aumento da participação da
sociedade civil no processo legislativo. Adicionalmente, Burgos (2007) ao entrevistar
servidores públicos que atuam na CLP, afirma que a grande rejeição às proposições feitas
pelas organizações da sociedade civil pela comissão, ocorre devido ao grande despreparo das
organizações que submetem as proposições: inadequação à competência do poder legislativo,
erros de técnica legislativa, proposições sobre temas que já tramitam na Câmara dos
Deputados, entre outros, tornando-se necessário qualificar as organizações sobre o
funcionamento do processo legislativo.
Uma quarta variável que gostaríamos de destacar é o papel das organizações da
sociedade civil. A atuação da CLP depende diretamente da atuação de organizações da
sociedade civil. Assim, cidades e estados sem atuação deste tipo de organizações ou com
baixa tradição participativa tenderiam a ter uma menor atividade na comissão de legislação
participativa. Jardim Pinto (2004) e Albuquerque (2007) enfatizam que o sucesso de
experiências participativas está ligado a uma longa tradição de organizações da sociedade
civil. Como destacado por Dowbor (1995), “o Brasil é um país sem cultura participativa e a
transformação do nível de consciência é lenta”. A atuação destas organizações junto a
mecanismos de participação é uma estratégia que pode ter uma grande influência na
capacidade de autotransformação econômica e social de uma determinada comunidade, sendo
assim, uma importante forma de poder local.
O poder local está no centro do conjunto de transformações que envolvem a
descentralização, a desburocratização e a participação, bem como as chamadas
novas tecnologias urbanas, [...]. No caso dos países subdesenvolvidos, a
questão se reveste de particular importância na medida em que o reforço do
poder local permite, ainda que não assegure, criar equilíbrios mais
democráticos frente ao poder absurdamente centralizado [...]. O poder local,
com os seus instrumentos básicos que são a participação comunitária e o
planejamento descentralizado, constituem, neste sentido, um mecanismo de
12
ordenamento político e econômico que já deu as suas provas, em particular
nos países desenvolvidos, e é sem dúvida o grande recurso subutilizado no
país (Dowbor, 1995).
Em sua análise sobre a atividade da CLP de 2001 a 2005 Burgos (2007) apresenta
dados onde podemos observar que cerca de 40% das organizações que propuseram projetos à
CLP no período apontado são organizações de classe e sindicatos que defendem interesses de
um segmento da economia ou classe específica. Destacamos que os sindicatos e as
associações a eles ligadas tiveram um surgimento e desenvolvimento diferente de outras
organizações da sociedade civil, como por exemplo, as organizações não governamentais. O
desenvolvimento do sindicalismo no Brasil como descrito por Landim (1993) e Draibe (2004)
ocorre na época da industrialização brasileira no final do século XIX, sendo este movimento
sindical fortemente controlado pelo Estado. Podem ser considerados os primeiros casos de
associativismo no Brasil, porém diferentes daqueles que emergem na década de 70, sendo
fortemente marcado pela centralização estatal que organiza o sistema de representação de
classes no Brasil.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2004) na pesquisa realizada sobre as
Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos no Brasil, não considera os sindicatos,
federações, confederações e centrais sindicais, de trabalhadores ou patronais na mensuração
do setor composto por fundações e associações, pois estes não atendem ao critério de
organização voluntária já que a sua existência está ligada a uma categoria profissional
específica e a não existência de outra entidade sindical no mesmo território. Entretanto, fazem
parte da mensuração as associações criadas por estes órgãos de classe. Sendo assim,
percebemos que os sindicatos são organizações que, desenvolveram outro tipo de relação com
o Estado na influência de políticas públicas, e isto deve ser observado quando os dados
demonstram a sua forte atuação junto à comissão de legislação participativa. São organizações
que tem também tradição no contato direto com parlamentares e que, dado o seu histórico,
conhecem o processo legislativo com maior profundidade.
A capacidade técnica de entender e influenciar políticas públicas se torna pré condição
para a atuação destas organizações. Isto também implica em riscos já que há assimetria de
recursos humanos e financeiros entre as organizações, tornando o processo desigual. Há riscos
de vozes que “falam mais alto” controlarem o processo de participação. Participar pode ser
muito custoso (tempo, deslocamento, conhecimento) para a sociedade civil, podendo
desmobilizar e, conseqüentemente, enfraquecer e diminuir a participação desta.
Todavia uma questão permanece em aberto: os grupos que conseguem espaço
em algum tipo de inclusão são capazes de se organizar como diferenças, mas
em sociedades que apresentam grandes desigualdades sociais, há um
significativo contingente da população que é incapaz de se constituir como
diferença na esfera pública, devido a condições de pobreza extrema,
isolamento social e falta de recursos providos pela educação formal (Jardim
Pinto, 2004, p. 105).
Sendo assim, a simples criação de CLPs não levará, necessariamente, a um aumento
de participação se não houver um ambiente socioeconômico propício para o surgimento de
organizações da sociedade civil e a sua atuação nas CLPs. É possível observar em casos de
êxito de políticas participativas uma correlação positiva com altos níveis de desenvolvimento
socioeconômicos se comparados às demais regiões do país como é ocaso do orçamento
participativo em Porto Alegre e Kerala na Índia (Jardim Pinto, 2004).
Por último, a cultura política da sociedade brasileira passa a ser outra variável que nos
chama a atenção. A não participação política é característica intrínseca da sociedade
13
brasileira, marcado pela centralização e autoritarismo estatal, ou seja, é parte da sua formação
social (Carvalho, 2001; Dowbor, 1995; Faoro, 1994, Sorj, 2000).
Sendo assim, é importante analisar as limitações do ideal participativo em relação à
cultura política no Brasil. Sendo assim, ao falar em participação na definição de políticas
públicas, é necessário considerar que, historicamente, a sociedade civil brasileira não tem em
suas raízes tendências participativas, de mobilização e não é politizada. Porém vale a pena
destacar que há também casos bem sucedidos e podem servir como exemplos de
envolvimento da população, como é o caso do orçamento participativo (Avritzer, 2002;
Carvalho, 2001).
Considerações finais
Este ensaio procurou discutir o papel das comissões de legislação participativa e
levantar questionamentos quanto ao seu papel como espaço de participação e quanto aos
desafios existentes para a sua consolidação. Não há dúvidas quanto aos avanços trazidos pela
Constituição de 1988 no processo de democratização e participação e quanto às CLPs serem
um mecanismo de participação menos complexo que a iniciativa popular. Contudo, dados
sobre a CLP da Câmara dos Deputados nos permitem levantar hipóteses sobre a baixa
efetividade deste espaço de proposição de sugestões por parte da sociedade civil, tornando-se
necessário entender as suas limitações.
Com base em estudos já realizados sobre a CLP, sugerimos a existência de problemas
quanto à inadequação das sugestões em relação à competência da esfera federal,
desconhecimento das organizações da sociedade civil quanto ao processo legislativo e quanto
à legislação brasileira e, principalmente, indícios de uma rejeição dos parlamentares às
sugestões iniciadas na CLP, já que esta implicaria perda de poder político. O “curto” tempo de
existência da CLP pode também ser destacado já que novos mecanismos de atuação podem
levar certo tempo para ser tornarem conhecidos e utilizados.
Considerando que estas comissões de legislação participativa fazem parte do poder
legislativo, é fundamental entender a formação dessa instituição em profundidade e as práticas
que a compõem. Uma das hipóteses para a não eficácia das CLPs é a não aceitação da CLP
pelos legisladores, pois crêem que como representantes do povo, é a eles que as organizações
da sociedade civil deveriam recorrer. Sendo assim evidenciamos um possível conflito entre
representação e participação.
Evidenciamos também o risco de assimetria de forças entre as organizações da
sociedade civil o que levaria a uma desigualdade no processo de participação. Há riscos de
vozes que falam mais alto, grupos mais organizados do que outros, interesses corporativistas
em detrimento de um interesse público. Porém, acreditamos que a participação traz mais
ganhos positivos do que negativos. Os riscos fazem parte do processo democrático e devem
ser evitados, certamente, através de mecanismos que visem neutralizar a assimetria de vozes,
de recursos financeiros, técnicos e humanos que levam determinados grupos a ter maior
capacidade de influenciar políticas públicas do que outros.
Encontramos nas comissões de legislação participativa um interessante objeto de
estudo que permite aprofundar os princípios da democracia representativa e da democracia
deliberativa, as suas limitações, complementaridades e conflitos. Estudos futuros são
necessários para melhor compreender o funcionamento das comissões de legislação
participativa nos diversos níveis, federal estadual e municipal, já que se trata de um novo
espaço institucionalizado de participação pouco explorado por estudos acadêmicos. Torna-se
fundamental entender se as comissões de legislação participativa seriam mais uma
idiossincrasia da recente e não consolidada democracia brasileira e o que se faz necessário
14
para aprimorar e desenvolver este espaço a fim de promover a deliberação como ideal
democrático, garantindo a convivência entre a representação e a participação.
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1 Os Desafios da Participação e da Representação: Uma