reportagem Uma questão de escamas Por Carlos Torres, fotos Nuno Correia A bracelete em pele é, desde o início do século XX, um elemento indissociável da maioria dos relógios de pulso. Neste texto, pretende-se esclarecer uma dúvida recorrente: o que distingue, afinal, um crocodilo de um aligátor? Um tema que não pode passar ao lado da defesa e conservação das espécies, e de quem por elas é responsável. Crocodilo e aligátor: o que os distingue? Para melhor compreender o que diferencia estas duas espécies, convirá primeiro debruçarmo-nos sobre as caraterísticas físicas que efetivamente as separam. Deste ponto de vista, o primeiro aspeto a reter é o de que ambas pertencem a ‘famílias’ diferentes, muito embora aparentem ser similares entre si. O crocodilo, que pode atingir até sete metros de comprimento, pertence à família dos crocodylidae, e o aligátor, que não ultrapassa os quatro metros e meio, à dos alligatoridae. A principal caraterística física que diferencia estas duas espécies está relacionada com um aspeto particular da sua morfologia e diz respeito à forma do focinho. O focinho do crocodilo tem uma forma afilada, ou em ‘v’, enquanto o do aligátor tem uma forma arredondada na extremidade. Outra caraterística que as distingue é a forma dos maxilares. O aligátor tem o maxilar superior mais largo do que o inferior, ocultando quase totalmente os dentes quando as mandíbulas estão fechadas. No caso dos crocodilos, os maxilares inferior e superior têm aproximadamente a mesma dimensão, possibilitando aos dentes permanecerem visíveis mesmo com as mandíbulas fechadas. Mas quando o tema se orienta para a utilização da pele destas duas espécies na produção de braceletes de relógios, passa a ser útil saber identificar as diferenças e conhecer as vantagens qualitativas e estéticas de cada uma delas. Assim, se as escamas apresentarem um pequeno ponto perto de uma das extremidades, a pele provém claramente de um crocodilo e não de um aligátor. Trata-se de sensores de pressão dérmicos bastante sensíveis e caraterísticos desta espécie, destinados principalmente a localizar as presas na água. No que se refere ao aligátor, as escamas da pele têm habitualmente um padrão mais simétrico e suave do que o do crocodilo. Há mesmo um efeito de relevo que é mais fácil de obter na generalidade das peles desta espécie, apesar de os melhores exemplares oriundos do crocodilo não lhe serem em nada inferiores. Mas mesmo considerando todas as caraterísticas identificadas, a qualidade da pele varia bastante de animal para animal, e depende do local de onde é retirada. A pele mais apreciada situa-se na barriga e garganta, onde as escamas costumam ser mais suaves e de maior dimensão. A pele de crocodilo terá, à partida, uma utilização bastante menos frequente por parte da indústria relojoeira, já que a grande maioria das peles exóticas utilizada na conceção das braceletes tem origem no aligator mississippiensis, uma espécie, de origem norte-americana, que não se encontra ameaçada e que é produzida em cativeiro no Louisiana. reportagem A produção em cativeiro do “aligator mississippiensis” é uma das histórias de conservacionismo de maior sucesso nos EUA. O programa que gere a sua produção recolhe os ovos dos diversos habitats para abastecer as quintas de cultura. 12% dos Aligátor são posteriormente devolvidos á liberdade num processo que protege a espécie de diversos factores de mortalidade como cheias, tempestades ou secas. Um contributo para a proteção e conservação das espécies A produção em cativeiro do aligator mississippiensis é uma das histórias de conservacionismo de maior sucesso nos EUA. De acordo com o programa que gere a produção destes animais, os ovos são recolhidos dos diversos habitats para abastecer as quintas de cultura. 12 % dos aligatores são posteriormente devolvidos à natureza, seguindo um processo que protege a espécie de diversos fatores de mortalidade, como cheias, tempestades ou secas. Neste processo, cada pele é identificada com um número de série, com as indicações da data e do local em que o aligátor foi criado, que fica associado à pele desde o processo de tratamento até ao fabricante do produto final. Este sistema permitiu que se recuperassem espécies anteriormente ameaçadas, em risco de extinção, como é o caso do crocodilo do Nilo. Uma grande fatia das receitas provenientes deste comércio acaba por ser reinvestida em programas de pesquisa, conservação e educação, mas também no financiamento de atividades essenciais de fiscalização como as desenvolvidas pela CITES (Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies de Fauna e Flora Selvagem Ameaçadas de Extinção). CITES – Um sistema de controlo essencial A CITES foi criada em 1963 e representa, atualmente, uma união voluntária entre governos destinada a regular o comércio internacional de espécies de plantas e animais selvagens. O objetivo des ta convenção é, simultaneamente, simples e exigente: assegurar a sobrevivência e continuidade das diversas espécies que habitam o nosso planeta. Na CITES participam, atualmente, 175 países, entre os quais Portugal, que aderiu ao sistema em 1980. O método de funcionamento da CITES pode ser explicado de forma resumida: cada país signatário é responsável por inspecionar a importação, a exportação, a reexportação ou a introdução direta a partir do mar de espécies abrangidas pela Convenção. Estas espécies estão sujeitas a um processo de licenciamento que abrange três áreas distintas: espécies ameaçadas – em risco de extinção –, espécies não ameaçadas – sem risco de extinção –, mas cuja utilização deve ser controlada de maneira a evitar uma incompatibilização com a sua sobrevivência, e espécies protegidas pelo menos num país signatário, que tenha solicitado aos seus pares auxílio na proteção das mesmas. Estas três áreas englobam a proteção de cerca de 5000 espécies de animais e 28.000 espécies de plantas, atestando inequivocamente a importância crucial da atividade deste organismo internacional. Em Portugal, o organismo ou a autoridade administrativa, científica e fiscalizadora responsável pela implementação do sistema de controlo da CITES é, desde 1981, a Unidade de Aplicação das Convenções Internacionais do Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade (ICNB). Uma sensibilidade e preocupação genuínas No dia 7 de outubro de 2010, um programa de um canal de televisão suíço dava tempo de antena a um tema bastante controverso ao denunciar a existência de uma fábrica de processamento de peles exóticas na Indonésia. As imagens eram extremamente explícitas e não poupavam detalhes quanto ao tratamento cruel a que os animais eram sujeitos. Em qualquer outro país do mundo, este género de documentário ter-se-ia ido juntar às dezenas de denúncias sobre outras espécies ameaçadas, e para as quais invariavelmente a maioria dos espetadores reage mudando de canal. Mas, neste caso, havia uma indústria específica à qual se pretendia alegadamente apontar o dedo. A visada era precisamente a indústria relojoeira suíça que, desde há décadas, utiliza peles de algumas espécies nas suas braceletes. A reação não se fez esperar, e não deverá ter havido empresa nem marca que não tenha verificado, nos dias seguintes, a origem e certificação das braceletes de pele que acompanham os respetivos relógios. Sucederam-se comunicados oficiais por parte de diversas organizações e entidades do setor a assegurar não só que a utilização de peles exóticas está associada a apenas um ínfima parte dos relógios produzidos, assim como que a sua quase totalidade provém de criadores certificados. O programa televisivo tentava associar injustificadamente o problema das peles exóticas à relojoaria em geral, sem com isso identificar o seu maior prevaricador: a indústria da contrafação e, consequentemente, quem a consome. Esta acabou por ser uma prova de fogo bem superada por uma indústria que afinal demonstra sensibilidade e uma preocupação genuína pelos proble mas ambientais onde se vê inserida.