Editorial O ensino médico além da graduação: ligas acadêmicas Paulo Manuel Pêgo-FernandesI, Alessandro Wasum MarianiII Dando sequência à série discutindo as atividades de extensão e sua importância na formação médica atual, abordaremos as ligas acadêmicas de medicina. Apesar de existirem formatações distintas para essas entidades, podemos defini-las como organizações estudantis sem fins lucrativos que criam para seus membros oportunidades de atividades didáticas, científicas, culturais e sociais, abrangendo sempre uma determinada área da saúde, visando seu aprendizado e desenvolvimento, sendo gerida pelos próprios estudantes, mas com orientação de docentes.1 Existe controvérsia se esse tipo de atividade pode colaborar ou prejudicar o ensino no período da graduação; isso porque muitos alunos acabam por deixar de lado atividades próprias do curso médico para se dedicarem às atividades da liga acadêmica. Outro aspecto apontado como negativo reside no fato de alguns alunos tomarem essas atividades como uma chance para “especialização precoce”, dedicando-se excessivamente a alguma área, por exemplo, cirurgia plástica ou reumatologia, não se interessando devidamente por outras áreas tão importantes na formação geral.2 Entretanto, os pontos positivos que podem ser apontados em relação às atividades das ligas acadêmicas parecem ser preponderantes. As ligas representam uma chance a mais para o aprendizado, que acaba por ocorrer de uma forma mais dinâmica, já que as atividades são desenvolvidas pelos próprios alunos. Podem ser realizadas atividades teóricas, como aulas, seminários, discussões de textos, apresentações de casos clínicos; ou práticas, por exemplo, atendimento a pacientes, desenvolvimento de projetos científicos, acompanhamento de cirurgias, treinamento de técnicas como intubação orotraqueal, confecção de curativos e assim por diante. Parece claro que a convivência e a prática com o dia a dia de uma área acabam por interferir na escolha da especialidade;3 o importante é não permitir que isso interfira no aprendizado básico da graduação.4 O estatuto de uma liga acadêmica deve prever quais são seus objetivos, as obrigações dos membros, a formação da diretoria e descrever suas atividades.5 Deve também definir seus participantes, especificando quais são os acadêmicos (de que cursos, I II anos e instituições) que podem fazer parte e quantas vagas estão disponíveis. As mais procuradas necessitam de seleção, na maioria das vezes representada por avaliação escrita, porque para estas, frequentemente, o número de interessados supera o número de vagas oferecidas. Atualmente, devido ao caráter multiprofissional do atendimento à saúde, é comum que uma liga acadêmica agregue alunos de diferentes cursos, por exemplo, medicina, enfermagem, fisioterapia, nutrição, fonoaudiologia e terapia ocupacional. A primeira liga acadêmica formada no Brasil foi a Liga de Combate à Sífilis, iniciada em 1920, sendo ligada à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e permanecendo em plena atividade até hoje. Isso demonstra claramente a longevidade que essas instituições podem alcançar.6 O custo de manutenção e desenvolvimento de uma liga pode variar muito, dependendo principalmente de suas atividades; quanto mais atividades práticas, mais dinheiro ela necessita captar. Suas principais fontes de fomento são atividades pagas promovidas pela liga, como, por exemplo, congressos e cursos, patrocínio de empresas, fomento da faculdade, entre outros. Algumas ligas chegam a possuir registro em cartório, denotando o grau de complexidade que essas iniciativas acadêmicas acabam atingindo. Algumas faculdades, por possuírem um número expressivo de ligas acadêmicas, já trabalham com regras bem estabelecidas para nortear sua criação, desenvolvimento e atividades. Todavia, na maioria das universidades, sua criação depende somente da motivação dos alunos. Isso talvez seja a maior virtude dessas entidades: permitir que os alunos desenvolvam por vontade própria uma associação voltada para o aprendizado. As aulas e conteúdos ministrados nas atividades das ligas acadêmicas não devem ser encarados como corretivos para as eventuais falhas do currículo formal, devendo sim servir de ponto de partida para a constante rediscussão e readequação do currículo devido à necessidade de atualização.7 As iniciativas em termos de pesquisa são certamente o ponto de menor controvérsia, pois seu impacto positivo na forma- Professor livre-docente e associado, Departamento de Cardiopneumologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Médico, pós-graduando da Disciplina de Cirurgia Torácica e Cardiovascular da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Diagn Tratamento. 2011;16(2):50-1. Paulo Manuel Pêgo-Fernandes |Alessandro Wasum Mariani ção é claro.8 Apesar de ainda não possuirmos uma mensuração adequada do quanto as ligas acadêmicas conseguem gerar de produção científica, fica claro que um número cada vez mais expressivo de alunos desenvolve projetos de iniciação científica dentro do ambiente das ligas acadêmicas. Outras atividades que nem sempre são adequadamente exploradas são as relacionadas com a promoção da saúde. Atividades educativas para orientação da população, participação em programas comunitários, desenvolvimento de campanhas de saúde são algumas das mais importantes atividades sociais que estão ao alcance de uma liga acadêmica de medicina. É inegável a expansão no número de ligas acadêmicas em todo o Brasil. O desenvolvimento, nos últimos anos, foi tão expressivo que propiciou a criação de organizações regionais estaduais e até nacionais, como o Comitê das Ligas Acadêmicas da Associação de Medicina Intensiva Brasileira, o Comitê Brasileiro das Ligas do Trauma, a Sociedade Brasileira das Ligas Acadêmicas de Clínica Médica, entre outras. Todavia, o maior marco, certamente, foi a criação, em setembro de 2006, durante o 8o Congresso Brasileiro de Clínica Médica, da Associação Brasileira de Ligas Acadêmicas de Medicina (Ablam), que contou com o apoio de diversas entidades médicas.9 Importante lembrar que uma liga acadêmica de medicina não deve ser encarada como teste vocacional para futura especialização, muito menos representar uma especialização precoce, nem como algo para suprir eventuais falhas do currículo da graduação, isso para que sua característica de complementaridade não seja perdida. Sendo assim, uma liga acadêmica representa uma oportunidade singular para o desenvolvimento de atividades extracurriculares, direcionadas para educação médica, pesquisa científica e promoção da saúde, que quando corretamente direcionada colabora positivamente na formação de seus participantes. REFERÊNCIAS 1. Neves FBCS, Vieira PS, Cravo EA, et al. Inquérito nacional sobre as ligas acadêmicas de Medicina Intensiva [Survey on Brazilian Critical Care Medicine undergraduate study groups]. Rev Bras Ter Intensiva. 2008;20(1):43-8. 2. Guimarães-Fernandes F, Hortêncio LOS, Unterpertinger FV, et al. Liga de Cirurgia Cardiotorácica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Diagn Tratamento. 2011;16(2):50-1. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. Paulo. In: Pêgo-Fernandes PM, Samano MN, Jatene FB, editores. Manual de Cirurgia Torácica Básica. 1a ed. Barueri: Manole; 2010. p 118-22. Gott VL, Patel ND, Yang SC, Baumgartner WA. Attracting outstanding students (premedical and medical) to a career in cardiothoracic surgery. Ann Thorac Surg. 2006;82(1):1-3. Peres CM, Andrade AS, Garcia SB. Atividades extracurriculares: multiplicidade e diferenciação necessárias ao currículo [Extracurricular activities: multiplicity and differentiation required for the curriculum]. Rev Bras Educ Med. 2007;31(3):203-11. Kara José AC, Passos LB, Kara José FC, Kara José N. Ensino extracurricular em Oftalmologia: grupos de estudos/ligas de alunos de graduação [Extracurricular teaching in Ophthalmology: undergraduate study groups]. Rev Bras Educ Med. 2007;31(2):166-72. Liga de Combate à Sífilis e a Outras Doenças Sexualmente Transmissíveis. História da liga (1920-1995). Disponível em: http://www.fm.usp.br/ ligadasifilis/historia.php. Acessado em 2010 (24 jun). Torres AR, Oliveira GM, Yamamoto FM, Lima MCP. Ligas Acadêmicas e formação médica: contribuições e desafios [Academic Leagues and medical education: contributions and challenges]. Interface Comun Saúde Educ.. 2008;12(27):713-20. Goodman NW. Does research make better doctors? Lancet. 1994;343(8888):59. Associação Brasileira de Educação Médica – ABEM. Boletim Virtu@l da ABEM. Fundação da ABLAM – Associação Brasileira de Ligas Acadêmicas. Disponível em: http://www.abem-educmed.org.br/boletim_virtual/boletim_ virtual_12.htm. Acessado em 2010 (24 jun). Informações Endereço para correspondência: Paulo Manuel Pêgo-Fernandes Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 Instituto do Coração (InCor) Secretaria do Serviço de Cirurgia Torácia — bloco II — 2o andar — sala 9 Cerqueira César — São Paulo (SP) — Brasil CEP 05403-000 Tel. (+55 11) 3069-5248 E-mail: [email protected] E-mail: [email protected] Fonte de fomento: nenhuma Conflito de interesse: nenhum Data de entrada: 22 de junho de 2010 Data da última modificação: 22 de junho de 2010 Data de aceitação: 12 de julho de 2010 51