Utopia Sebastião Bicalho UTOPIA Peça teatral de Sebastião Bicalho pág.: 1 Utopia Sebastião Bicalho PERSONAGENS: Paulo: Doutor em filosofia, 50 anos, casado com Ana; Ana: socióloga, em torno de 35 anos, professora; Pepê: universitário de uns 20 anos; ÉPOCA: dias atuais; LUGAR DA CENA: casa de Ana e Paulo, faculdade de filosofia. pág.: 2 Utopia Sebastião Bicalho Ao acender das luzes, Ana circula ansiosamente pela sala de sua casa, parecendo procurar algo que, no final, revela ser um maço de cigarros. Acende um cigarro; demonstra estar com o pensamento longe. Paulo, seu marido, entra em casa como se estivesse chegando do trabalho. Traz consigo uma pasta e tem o semblante triste, cabisbaixo. Ana percebe que o marido está entrando em casa, mas finge que não o vê chegar. Depois de afrouxar a gravata e largar a pasta, Paulo, com fisionomia desesperançada, olha para a mulher. CENA I PAULO Oi! ANA (secamente, ainda sem olhar para ele) Oi... Um silêncio desagradável se instala entre os dois. Paulo olha a mulher como a implorar sua atenção, mas ela permanece impassível, apenas fumando e olhando para o outro lado. Depois de alguns instantes nesse silêncio, é ele quem toma a iniciativa de rompê-lo. PAULO (amargurado) Ana, a gente não pode mais continuar assim. ANA (apaga o cigarro e finalmente o encara) Também acho... PAULO (tenta abraçá-la, ela acontecendo, meu bem? se esquiva) O que é que está ANA A pergunta certa não é essa, Paulo... Na verdade, acontecendo nada... E já faz muito tempo que nada conosco... Quantas vezes eu já te falei que chega... acabou... Mas você insiste em fingir entende... pág.: 3 não está acontece pra mim que não Utopia Sebastião Bicalho PAULO (tenta abraçá-la novamente, de novo ela se esquiva) Mas como é que pode acabar assim, de repente, uma relação de mais de dez anos? ANA (enfaticamente) Exaustão, Paulo... Exaustão! Nosso casamento não acabou de repente... Já tem muito tempo que ela vem se deteriorando... você é que nunca fez questão de ver... Mas agora eu não aguento mais... Estou me sentindo saturada, presa nisso que já não tem mais energia... Parece que estou prolongando a agonia de uma coisa que na verdade já morreu... É como se estivesse participando de um velório que nunca mais tem fim... PAULO Ana, acorda! Nem parece que é você quem está falando assim, meu bem... E tudo que a gente viveu? Tudo que a gente ainda pode viver?! Justo agora que estamos chegando no auge de nossas carreiras... ANA (impaciente) Você só pensa em carreira, carreira, carreira! Alguma vez você me perguntou se eu realmente gosto da minha carreira? PAULO É claro que gosta! Você é muito preparada, com ótimas qualificações... são poucos os professores da faculdade que têm um currículo comparável ao seu... ANA (desanimada) Está vendo, Paulo!? Tanto tempo juntos e você nem desconfia do quanto eu odeio esse trabalho... Não fui eu que me formei e adquiri tantos títulos... Foi você quem me obrigou a isso... PAULO Ana, pelo amor de Deus! Quer dizer agora que a culpa é minha? ANA Eu tinha que me esforçar para agradar ao todo-poderoso, eu não podia envergonhar o paradigma máximo da escola... pág.: 4 Utopia Sebastião Bicalho afinal de contas, o que os outros diriam do “gênio superstar” (entonação irônica), se sua esposa fosse apenas uma profissional medíocre? PAULO Ana, eu nunca cobrei nada de você! ANA Claro que não! Você é muito inteligente para não deixar pegadas no território que arrasa... Suas cobranças nunca foram explícitas, mas sempre estiveram presentes em discursos aparentemente despretensiosos... PAULO Seja como próprios! for, você chegou aonde chegou por méritos ANA Conversa! Você, melhor do que eu, sabe que todas as minhas promoções naquele lugar só foram conquistadas por sua interferência direta... PAULO Não é bem assim... ANA Claro que é! Por favor, não me subestime! Aquele povo lá sempre comeu na sua mão... Eles morrem de medo de perder o grande astro da companhia... O que você fala naquele lugar vira lei... PAULO Tudo bem, Ana, não vamos discutir isso... ANA É! Não vamos discutir! Vamos jogar tudo embaixo do tapete como sempre fazemos...(pausa; ainda mais amargurada) Ah, Paulo! Bem se vê que você até hoje não me conhece... PAULO Como não, se eu tento de tudo pra te fazer feliz? pág.: 5 Utopia Sebastião Bicalho ANA Corrigindo: você tenta de tudo pra “se” fazer feliz, não é? Eu sempre fui um fantoche nas suas mãos, meu caro... Eu era ainda uma menina quando me deixei levar pela sua sedução... pelo poder das suas palavras sempre muito bem escolhidas para causar a melhor das impressões... eu era muito ingênua... caí inteiramente na sua lábia... PAULO Quanta amargura, Aninha... ANA (explode de ódio) Para de me chamar de Aninha, Aninha, Aninha! Quantas vezes já te pedi pra não me chamar assim, com esse diminutivo ridículo?! Você faz com que me sinta uma idiota... Eu estou com 35 anos, Paulo... Não sou mais aquela caloura dentuça que você conheceu tanto tempo atrás... Você continua me tratando como se eu não fosse capaz de cuidar da minha vida... Isso é sufocante... Me diminui como mulher... Quando estou dando aulas na faculdade, os garotos me tratam como a adulta que sou... mas quando chego em casa... você faz questão de escarrar na minha cara esse apelido infantiloide que tanto me ofende... Pai, eu já tive um... O que eu preciso é de um marido... PAULO Um marido ou um filho? ANA (pega de surpresa, cala-se por alguns instantes para em seguida continuar extravasando suas mágoas) O que você quer insinuar com isso?! Que eu sou um fracasso como mulher? Que estou histérica só porque não fui competente pra gerar um filho? PAULO Ana, não ponha palavras na minha boca... Eu só quis dizer que talvez você esteja vendo um defeito na nossa relação quando na verdade o problema pode ser outro... Quem sabe se nós adotássemos uma criança?! Talvez você se sinta melhor... Talvez a gente consiga fazer voltar aquela paixão de antigamente... pág.: 6 Utopia Sebastião Bicalho ANA (esgotada pela decepção) Paulo, como você é cruel... Usar do meu complexo para distorcer tudo e fingir que não entende que eu simplesmente não quero mais nada com você! (a última frase é dita pausadamente, escandindo as sílabas, quase beirando o ódio; ela vira as costas para ele) PAULO (fingindo não entender a esposa, tenta enlaçá-la pela cintura; ela se desvencilha dele) Ana, isso é só mais uma crise... Todo casal passa por isso... Por que seria diferente conosco? Eu ainda sou apaixonado por você... E tenho certeza de que você também ainda é apaixonada por mim... ANA (debochadamente, volta-se para ele) Como você é egocêntrico, Paulo! E como se acha tão superior com essa autossuficiência arrogante! Você realmente queria que fosse assim, não é? Mas eu tenho uma péssima notícia pra lhe dar: eu estou apaixonada sim, mas não é por você não... Estou encantada por um cara bem mais novo, que ainda não se mostra com esse seu ar pedante... com esse tom professoral que ignora a opinião alheia e desdenha de todo ponto de vista que não esteja de acordo com o seu... Ele tem tudo que você não tem mais: juventude, frescor, entusiasmo, inocência, garra, sede de viver... PAULO Eu não acredito... agredir... Você está dizendo isso só pra me ANA (mais calma) Não, Paulo! Você não acredita porque sempre foi muito seguro de si... Nunca deve ter passado pela sua cabeça que alguém pudesse rejeitar você... No fundo, eu não rejeito... Tenho muito carinho por tudo que você representou na minha vida... Mas pra mim realmente acabou... Ficar insistindo nessa relação só vai fazer com que o resto de carinho e admiração que ainda tenho por você acabe por completo... (pausa; ele abaixa a cabeça como que vencido. Ela se aproxima dele, como quem quer consolar alguém) Paulo, eu não posso mais viver com você... Isso tudo está me sufocando e eu não aguento mais viver assim... Se você realmente me ama... pág.: 7 Utopia Sebastião Bicalho PAULO (interrompendo-a, conformado com a derrota) Não precisa continuar... Eu já entendi... Amanhã eu arrumo minhas coisas... Pode deixar... A partir de amanhã... Você vai ficar livre... (pega a pasta, desata o nó da gravata e sai de cena) ... Amanhã... Ana, pensativa, acompanha a saída do marido. Seu rosto transmite todo o desgosto que lhe causou o diálogo. Aos poucos as luzes vão se apagando gradativamente até o Black-out. pág.: 8 Utopia Sebastião Bicalho CENA II Paulo, de pé, discursa durante uma de suas aulas na faculdade. Tem o ar professoral e fala de um jeito bastante formal, como que se distanciando dos alunos. O ator usa a própria plateia como se ela fosse o grupo de alunos que o ouve. Pepê se infiltra sutilmente na plateia, sem se deixar ser percebido, até que Paulo termine seu discurso. PAULO Portanto, meus alunos, estudaremos nos próximos dias a obra “Utopia” de Thomas More, ou melhor dizendo, “Santo” Thomas More, uma vez que foi canonizado por se tornar um mártir da causa católica... Essa obra-prima de More é de 1516 e trata de um dos maiores sonhos da humanidade: a busca de um lugar ideal para viver; um tipo de terra prometida... Na ficção de More, os costumes da ilha de Utopia lhe foram revelados por um culto viajante que havia participado de uma das expedições de Américo Vespúcio... Segundo esse viajante, Utopia era um lugar paradisíaco, onde as relações humanas chegavam à beira da perfeição... Lá, os habitantes viviam em plena liberdade religiosa, havia trabalho para todos, os bens eram distribuídos com igualdade e justiça, não havia o conceito de propriedade individual; enfim, tudo funcionava na maior harmonia e todos se mostravam muito felizes... E é por tudo isso que a palavra Utopia foi adquirindo com o tempo o significado de algo inatingível; um propósito ou meta quase que inalcançável... (pausa; a entonação muda para indicar um desafio aos alunos)... E é aí que proponho a vocês um desafio... Com base nesse texto, quero que explorem todos os ângulos de um possível mundo ideal... Ou seja, quero reflexões a respeito do que é a felicidade para o ser humano... É um lugar geográfico? Um ambiente? Um espaço interior? A felicidade existe mesmo? E a infelicidade, o que é? A infelicidade não seria apenas a tensão de uma busca incessante pela felicidade? Será que se parássemos de buscar a felicidade não a encontraríamos no mesmo instante? Somos seres de relação... Nossa noção de existir reside muito no fato de sermos reconhecidos pelo outro, vistos pelo outro... Estamos sempre nos medindo pelo que o outro faz ou é... Somos movidos pela comparação... Por isso, lanço mais perguntas: nossa felicidade ou infelicidade não seriam também um subproduto da comparação? Como seria viver num lugar onde todos são felizes? Não seria um tanto frustrante? Aguentaríamos ser infelizes, mesmo que seja um pouquinho só, numa terra onde só detectamos felicidade? Ou essa infelicidade se potencializaria num grande tormento? (pausa) Muito bem, meus queridos alunos... Por hoje é só... Multipliquei as perguntas para que busquem dentro de vocês mesmos as pág.: 9 Utopia Sebastião Bicalho respostas... Essa é velha maiêutica de Sócrates... Não há nada a ensinar que já não esteja dentro de vocês para ser descoberto... Toda a sabedoria e todas as respostas já estão latentes em seu interior, pedindo apenas que vocês retirem o véu que há sobre elas... Nisto é que consiste a revelação: retirar o véu... eliminar a ignorância que encobre a sabedoria... Pensar, filosofar, encontrar jeitos novos de percorrer estradas antigas... Essa é a utopia maior... (pausa)... Até semana que vem... Paulo se prepara para sair de cena, mas Pepê, surgindo do meio da plateia, o interpela. O garoto tem uma paixão platônica pelo professor, a quem admira e respeita como um ídolo. PEPÊ Professor! Professor! O senhor tem um minuto? PAULO Claro! PEPÊ (deslumbrado, sem conseguir disfarçar o nervosismo e a paixão que sente por Paulo)... Sua fala foi muito inspiradora... Mas eu queria saber mais sobre o que o senhor pensa a respeito do assunto... PAULO Sem essa de senhor, ok? PEPÊ (embaraçado)... Tá bom, desculpa! Mas é que eu sempre fui fã do senhor... quero dizer, você... E eu fiz questão de vir nessa aula como penetra pra ouvir a sua fala... Só no semestre que vem é que vou poder cursar a sua disciplina, mas, desde já, queria ouvir o que você tem a dizer... Eu já li todos os seus livros... Pra falar a verdade, escolhi fazer esse curso porque curto muito o que você escreve e, principalmente, porque queria muito ser seu aluno... PAULO Puxa! Assim você até me envaidece... PEPÊ (mais calmo)... É de coração, pode acreditar... pág.: 10 Utopia Sebastião Bicalho PAULO Tá bem, eu acredito! (pausa em que ambos ficam se olhando; Pepê olha Paulo com o ar abobalhado de quem não acredita estar frente a frente com alguém muito especial; Paulo pigarreia e, constrangido com a falta de palavras, retoma a conversa)... Mas... Você disse que queria saber um pouco mais... Sobre o quê? PEPÊ Pelo jeito, você não acredita na felicidade, né? PAULO (rindo sem jeito, como se um segredo seu tivesse sido desvendado) Olha só... O que eu acredito é que a felicidade, como é entendida pelo senso comum, só se conquista mediante um preço... às vezes o preço é baixo, mas às vezes é tão alto que costuma ser pago, paradoxalmente, com a moeda mais impensável: a própria infelicidade... PEPÊ O quê? Ser feliz sendo infeliz? PAULO (rindo de forma paternal) Parece estranho, mas é mais ou menos isso que você falou... Tem horas que a gente opta por ser um pouquinho infeliz na esperança de que, mesmo que seja por alguns momentos, a gente seja feliz completamente... PEPÊ Não entendi! PAULO (rindo) Veja bem... Esse é um ponto de vista meu... não tem nada de científico... Portanto, esqueça que quem está aqui falando é um professor... Como professor, gosto de atuar como mediador entre os pensadores e os alunos, sem juízo de valor nem preocupação de quem está certo ou errado... A minha verdade não é a mesma verdade de muitos filósofos que admiro... Entretanto, respeito todos eles porque sei que nem eles nem eu abarcamos a verdade toda... A admiração nasce exclusivamente do fato de eu reconhecer neles a ousadia de pensar... o atrevimento de não se conformar com a mediocridade... a capacidade de questionar valores pág.: 11 Utopia Sebastião Bicalho sedimentados por preconceitos e injustiças... a coragem de propor novos pontos de vista para uma humanidade carente de direcionamento... PEPÊ Tudo bem, entendi, mas ainda assim gostaria de saber qual é o seu ponto de vista... Você tem alguma utopia? PAULO (pensativo) Olha só... Eu acho que é fundamental a gente ter utopia, desde que ela não se torne uma obsessão e sim apenas uma referência... Eu não acredito nessa felicidade permanente que é o sonho acalentado por quase toda a humanidade... Nós vivemos imersos num mundo de dualidades, no meio das quais nos orientamos... um polo não vive sem o outro... se um se desintegra, o outro se extingue também, uma vez que os dois são complemento um do outro e não opostos... Se perdermos o contato com um dos polos, passamos a não reconhecer mais o outro e corremos o risco de cair num tédio e num vazio absolutos que podem até nos levar à loucura... Eu te pergunto: como é possível valorizar o bem se não tivermos a contraposição do mal? Como usufruir completamente um prazer sem termos tido contato com o contraste da dor? E, por analogia, como podemos curtir a felicidade sem que conheçamos a infelicidade? ...(pausa)... Eu prefiro sentir a felicidade intermitente que vem temperada e permeada com um pouco de infelicidade... É nessa felicidade pulsante que quero acreditar, pois tenho verdadeiro pavor de atracar meu barco na ilha de Utopia, onde a felicidade deve ser um tédio permanente... O grande prazer do ser humano reside mais em viajar do que propriamente chegar ao destino... O destino é somente um pretexto para nos motivar a caminhada... Somos como um cachorro que corre latindo atrás de um carro... Se o carro parar, a brincadeira perde a graça... Por isso é fundamental sonhar com a felicidade permanente, não com a ilusão de lá ficar para sempre, mas com a capacidade de suportar os momentos de infelicidade que nos motivam a caminhar para o polo oposto... O segredo da sabedoria é o equilíbrio... A felicidade extrema nos paralisa e anestesia os sentidos, enquanto a infelicidade na dose certa nos estimula e nos faz crescer... Pra concluir, penso que este é o segredo: curtir os altos e aceitar os baixos, pois tudo é cíclico... Com essa postura, creio que a vida fica muito mais leve e fácil de suportar... PEPÊ Sei lá! Essa felicidade que você defende ainda me parece uma forma meio masoquista de encarar a vida... pág.: 12 Utopia Sebastião Bicalho PAULO (rindo) Liga não! Você ainda é muito novo... Tem a vida inteira pra filosofar... Quem sabe um dia entenda o que eu quis dizer? (pausa, olha o relógio) Bem, tenho que ir! Espero vê-lo outras vezes por aqui... (pausa; lembra-se que não sabe o nome do rapaz)... Como é mesmo o seu nome? PEPÊ Pedro Paulo! Mas o pessoal me chama de Pepê... PAULO (pensativo) Ok! Então tá, Pepê! Até a próxima! Paulo se vira e sai de cena. Pepê permanece ainda um pouco no palco enquanto as luzes vão diminuindo gradativamente até o Black-out. pág.: 13 Utopia Sebastião Bicalho CENA III As luzes se acendem lentamente. Pepê está sentado confortavelmente, lendo um livro. Está tão concentrado que nem percebe a aproximação de Ana. Ela fica a princípio um pouco longe dele, observando-o. Aproveita-se do fato de ele estar concentrado na leitura e olha-o demoradamente. Está embevecida, curtindo o seu amor até então não declarado a ele. ANA (chegando bem perto do rapaz) Oi! PEPÊ (surpreso, mas sem demonstrar muito entusiasmo) Oi! ANA (senta-se junto dele, procurando tornar-se íntima) Pedro Paulo, não é? PEPÊ É sim, ‘fessora! Mas pode me chamar de Pepê! ANA (desajeitada, tentando puxar conversa depois de um pequeno silêncio que se faz entre eles) Pois então, Pepê... Eu tenho reparado que você está sempre sozinho aí pelo campus... Até mesmo na minha sala você fica pelos cantos sem se enturmar... PEPÊ (despreocupado) Ah, esse é o meu jeito mesmo... Mas quando eu acho alguém que me interessa, solto a língua na mesma hora... (ri inocentemente; ela ri também) ANA (envergonhada) Eu só queria lhe dizer que pode contar comigo no que precisar, ouviu? Quando se é calouro, tudo parece novidade... a gente fica meio deslocado até se localizar melhor... Então, é bom saber que temos amigos com quem contar, não é mesmo? PEPÊ Poxa! Obrigado, ‘fessora! A senhora é muito legal... pág.: 14 Utopia Sebastião Bicalho ANA (incomodada) Senhora?!... Que é isso, pode me chamar de você... Afinal de contas eu não sou tão mais velha assim, não é? PEPÊ Claro que não! Eu até peço desculpas, mas de onde eu venho não é costume a gente tratar com intimidade as pessoas que ainda não conhece direito... Aí, já viu, né? É senhor pra cá, senhora pra lá... ANA (riem juntos; ela fica curiosa) Então... Você não é daqui, não? PEPÊ Não! Vim pra cá só por conta dos estudos... ANA (fingindo fazer uma pergunta inocente) E está morando onde? PEPÊ Numa república vagabunda no Centro... Na verdade vou lá só pra dormir... Não conheço ninguém da cidade... De vez em quando, faço uns bicos como professor de violão... Por isso, tenho de economizar a qualquer custo... Fico praticamente o dia todo no campus... Aqui a gente sempre gasta menos... E de noite volto pra república, torcendo pra ninguém me chamar pra sair... Porque senão já viu, né? Uma noitada nunca fica barata... ANA (calculista) Eu tive uma ideia...(pausa, toma coragem)... Por que você não vem morar lá em casa? PEPÊ (surpreso e contente ao mesmo tempo) O quê? Morar com você e o Professor Paulo? ANA (ela se surpreende com a menção do nome do marido, recém saído de casa) Como? pág.: 15 Utopia Sebastião Bicalho PEPÊ (intrigado, pensa a princípio que cometeu uma gafe) Ué, você não é casada com ele? Pelo menos é o que me falaram... (ela fica tão confusa e sem graça que nem responde nada, apenas dando a entender com a cabeça que permanece casada; o rapaz dá prosseguimento à fala)... Ele é um cara sensacional... Você tem muita sorte de ter encontrado alguém como ele, não acha? (desconcertada, ela apenas concorda timidamente com a cabeça) Puxa, eu adoraria morar na mesma casa que ele... Já pensou? Todos os dias ter aula particular com o famoso Dr. Paulo Alcântara na mesa do café da manhã... Quem não gostaria? (pausa, ele contém o entusiasmo e demonstra uma certa preocupação)... Mas ele não vai se incomodar, não? E eu? Como é que vou retribuir essa gentileza? Vou ficar sem graça de aceitar o convite e não oferecer a vocês nada em troca... ANA (circula pelo palco demonstrando todo o embaraço que sente; gagueja, não sabe como sair da situação em que entrou) Bem... sei lá... se você se sentir mal por não ajudar em alguma coisa... Quem sabe você pode cuidar do jardim... dos nossos carros... sei lá... certamente você deve ter muito a oferecer... com o tempo, quem sabe?, você vai nos retribuir com muito mais do que possa imaginar... PEPÊ (sem conter a felicidade e o deslumbramento) Então tá! Se o Professor Paulo não tiver nada contra, eu aceito com prazer... ANA (despedindo-se) Eu acho que ele não vai ter nada contra, não... Mas é bom conversar com ele primeiro... Depois a gente se fala e combina isso direito, ok? Até logo! PEPÊ Até! (pausa) Ah... E obrigado, viu ‘fessora? Ana sai de cena, enquanto o rapaz a observa indo embora. As luzes vão diminuindo gradativamente sobre ele até o Black-out. pág.: 16 Utopia Sebastião Bicalho CENA IV Ao acender das luzes, Ana e Paulo estão no palco. Ele tem as mãos à cabeça como se estivesse processando algo que estivera ouvindo de Ana. Seu semblante demonstra inquietude, desconforto e contrariedade. Está de costas para Ana, que o observa com o semblante frio. Ela parece estar esperando alguma resposta. PAULO (voltando-se para Ana) Espera aí!! Deixa ver se eu entendi... Você se apaixonou por um garoto lá da faculdade... Convidou ele pra vir morar aqui... E quer que eu volte a morar aqui também... É isso? ANA (embaraçada) É Paulo, é isso... PAULO Você tem noção do que está me pedindo? O que é que há? Não basta ter me despachado? Ainda por cima quer me humilhar? Quer que eu assista a suas cenas de amor com outro cara? ANA (falsamente ofendida) Ah, Paulo, também não precisa fazer esse drama todo... Eu não sei se estou apaixonada por ele... Meu interesse maior é tentar salvar o nosso casamento... PAULO Salvar o nosso casamento? Ana, onde é que você está com a cabeça? Não foi você mesma quem disse que o nosso casamento acabou? ANA Paulo, eu estou confusa... Já te disse que em todo esse tempo que estivemos juntos eu nunca tive oportunidade de conhecer outros horizontes... viver algumas experiências que sempre fantasiei... Você nunca largava do meu pé... Em todas as minhas lembranças você está sempre presente... Em todas as fotos de viagens ou passeios que fiz desde os meus 18 anos você está lá, sorrindo a meu lado... Você nunca me permitiu ter amigos que não fossem os seus... Em todo lugar pág.: 17 Utopia Sebastião Bicalho que eu queria ir, você estava sempre se prontificando a me acompanhar... PAULO Ana, não seja injusta... Se eu fiz isso é porque não queria que você se sentisse sozinha... Você sabe que eu te amo... ANA Se você me ama mesmo, está numa boa hora de provar... (aproxima-se dele de forma sensual e carinhosa) Olha, meu bem... eu preciso viver algo diferente que me tire desse tédio em que se tornou a nossa relação... Quem sabe uma boa apimentada nela não transforme as nossas vidas pra melhor?... Você não se diz tão moderno, tão além do seu tempo? Por que então não sai da teoria e se arrisca um pouco na prática? (sedutora, chega quase a beijá-lo) PAULO (inconformado, suplicante) Mas por que tem que ter outro cara na jogada? Quem sabe se a gente não programasse uma nova viagem de lua de mel? ANA (impaciente) Ah, desisto! Você nunca vai entender... (afasta-se e fala de costas para ele)... Pode deixar, Paulo... Vamos ficar como estamos... Você lá, eu cá... PAULO (vencido, cai na chantagem emocional) Tudo bem, Ana... Você venceu... Pra te agradar e salvar nosso casamento eu topo fazer o que você quer...(pausa)... Só não entendi uma coisa: se a experiência é sua, por que eu tenho de passar pelo constrangimento de ficar aqui em casa, bancando o corno manso? ANA (sem graça) O rapaz só vem morar aqui porque acredita que ainda somos um casal que vive junto... Ele é seu fã, adora o que você fala e escreve... Pra falar a verdade, acho até que é apaixonado por você... A simples perspectiva de morar aqui deixou o garoto tão excitado que ele quase não se conteve de alegria... pág.: 18 Utopia Sebastião Bicalho PAULO (intrigado) Você acha que ele é... ANA (conclui a fala dele) Gay? Acho... PAULO Quem é ele? ANA Se chama Pedro Paulo... Mas prefere que o chamem de Pepê... Conhece? PAULO (põe a mão na cabeça, enquanto responde afirmativamente com a cabeça) Ana, Ana, Ana... Que coisa terrível brincar com o sentimento dos outros... Além do mais, se ele é gay... Como é que vai querer alguma coisa com você? ANA (fria) Isso é o que eu acho mais excitante... O desafio... (sensual, caminha em sua direção)... E depois... Ele pode até não querer... mas vai fazer comigo tudo que você pedir... PAULO (decepcionado) Ana, você vai se arrepender desse jogo... Eu não quero participar disso... Acho tudo muito sujo... imoral... vulgar... ANA (afasta-se dele novamente; semblante carregado e ameaçador) Você é quem sabe, Paulo... Depois não diga que não tentei... Imoral é usar de uma moral hipócrita que sufoca o desejo para justificar a covardia de não saciá-lo... Vai embora, Paulo... Eu nem sei por que chamei você aqui... Foi estupidez tentar buscar a solução de um problema exatamente naquilo que o causou... PAULO (caindo mais uma vez na chantagem de Ana, caminha até ela e a vira de frente para si) Tudo bem, me desculpa... Mas você pág.: 19 Utopia Sebastião Bicalho precisa entender que pra mim isso é um sacrifício muito grande (ele se aproxima, abraça-a, tenta beijá-la na boca, mas ela vira o rosto)... ANA (enfaticamente) Na boca, não!! (pausa, ele estranha a atitude dela; tenta afastar-se, mas ela o abraça)... Na boca ainda não... Pelo menos agora não... Por enquanto, só me abraça... Os dois permanecem abraçados por alguns instantes. As luzes vão diminuindo gradativamente sobre eles até o Black-out. pág.: 20 Utopia Sebastião Bicalho CENA V Ao acender das luzes, Pepê está sentado num canto, balançando-se distraidamente ao som da música que ouve em seu Ipod. Depois de alguns instantes, Paulo chega do trabalho. Está de paletó e segura uma pasta. Observa Pepê de longe durante algum tempo. Pepê percebe que Paulo chegou. PEPÊ (feliz) Oi, Paulo!! Chegando cedo hoje, hein? (aproxima-se dele, pega sua pasta e guarda-a num canto; depois, retira o paletó de Paulo enquanto continua o diálogo) Hoje o clima deve ter ficado pesado por lá, né? Ouvi dizer que ia ter manifestação dos alunos contra a mudança nos critérios de avaliação... Deve ter sobrado pros professores... Eu nem fui lá... Detesto bagunça... (Paulo permanece calado, olhando para Pepê de um jeito ressabiado) Puxa! Nem parece que já estou morando aqui há duas semanas... O tempo voa, né?... (pausa, Pepê estranha o jeito de Paulo)... O quê que foi? Você está esquisito... PAULO (saindo chegou? do transe) Nada... Não é nada não... A Ana já PEPÊ Não, ela falou que vai demorar um pouco pra dar tempo de nós dois conversarmos... PAULO Sobre o quê? PEPÊ Sobre o que está se passando aqui nesta casa... Professor, eu posso ser mais novo do que vocês dois, mas não sou bobo nem ingênuo... A ‘fessora já abriu o jogo comigo... PAULO Abriu, é? E disse o quê? PEPÊ Que vocês já não estavam se dando bem... Que você até já tinha saído de casa... E também que lhe propôs um acordo para que voltasse a morar aqui... pág.: 21 Utopia Sebastião Bicalho PAULO E ela disse também quais foram as bases desse acordo? PEPÊ Olha... Eu tenho de reconhecer a coragem da ‘fessora... Ela me deixou totalmente sem chão... Disse que ficou cheia de tesão por mim desde quando me conheceu e que não via a hora de me pegar de jeito... Disse também que eu não conseguia esconder a minha excessiva admiração por você, e que por isso, achava que eu fosse gay... E pra finalizar, falou que havia um jeito de todo mundo ficar feliz nessa história... A princípio eu fiquei chocado com tanta ousadia e determinação, mas depois... fui ficando curioso pra ver até onde aquilo ia chegar... Ela então me disse que, se eu viesse pra cá, poderia ficar mais perto de você e até, quem sabe, conquistar um pouco mais além do que apenas sua atenção... PAULO Você é mesmo gay? PEPÊ (ri com expressão de deboche) Se eu estou aqui, se eu aceitei esse acordo, o que você acha? PAULO (fica cabisbaixo e em silêncio durante alguns instantes) Você realmente acha que é possível ser feliz desse jeito? PEPÊ Lá vem de novo o velho assunto da felicidade... Quem foi que disse que “tem horas que a gente opta por ser um pouquinho infeliz na esperança de ser feliz completamente, mesmo que seja apenas por alguns momentos”? PAULO (sorri contrafeito) A teoria muitas vezes não tem nada a ver com a prática... A partir deste ponto, Pepê começa a se insinuar um pouco mais, tentando seduzir o professor. PEPÊ pág.: 22 Utopia Sebastião Bicalho Numa coisa ela está certa... não custa nada experimentar... abrir mão de certos preconceitos e tentar ser feliz com o que a vida nos oferece... (aproxima-se de Paulo, que ainda está cabisbaixo; Paulo se esquiva e se coloca de costas para Pepê)... Por que você não se entrega um pouco e vive um momento especial, diferente? Que me importa o rótulo que isso tenha? O que sei é que quero ficar junto de você a toda hora... Por isso, se eu não puder ter você inteiro, me contento em ficar apenas com uma parte... PAULO (balança a cabeça negativamente) Você não sabe o que está dizendo... Na sua idade a gente se apaixona à toa por todo mundo... Isso pode ser uma carência sua... Falta de pai, de uma referência masculina na infância, sei lá... PEPÊ Não sei... Que seja, então... A última coisa que quero agora é discutir as causas e os porquês... não me interessa Freud nem Lacan... Toda a psicanálise do mundo não vai me provar que estou errado nem vai me consertar de algum defeito... Sabe por quê?... Eu não vejo em mim defeito nenhum... Simplesmente aceito esse sentimento bom que me faz levantar todo dia com a impressão de que o mundo é melhor porque você existe... PAULO (olha para Pepê, quase suplicando que ele pare de falar) Por favor, não seja piegas... Isso não tem condições de dar certo... PEPÊ (indo na direção do professor, que fica acuado) Eu não me importo se você não me ama... A mim me basta te amar... Pago o preço que for pra estar do seu lado, assim como você também paga qualquer preço pra estar com a Ana e ela também paga um preço alto para estar comigo... O meu preço é estar com ela querendo estar com você... O preço dela é estar com você querendo na verdade estar comigo... O que custa a você ficar um pouco comigo, mesmo querendo ficar só com ela? (depois de uma breve pausa, Pepê se inclina para dar um beijo na boca de Paulo que, por sua vez, vira o rosto para se esquivar) pág.: 23 Utopia Sebastião Bicalho PAULO (enfaticamente, embora vencido) Na boca, não!! (pausa; demonstra perturbação com a ousadia e desenvoltura do rapaz)... Espera um pouco... Agora não... (Paulo dá um abraço desajeitado em Pepê, mais para evitar o beijo do que propriamente para se entregar a ele). Os dois permanecem abraçados por alguns instantes. As luzes vão diminuindo gradativamente sobre eles até o Black-out. pág.: 24 Utopia Sebastião Bicalho CENA VI Ao acender das luzes, Pepê está sentado ouvindo seu Ipod. Ana chega em casa. Chama a atenção de Pepê, parecendo não querer fazer barulho. Ele desliga o aparelho e se dirige a ela. ANA (sussurrando) Chegou? PEPÊ (afirma com a cabeça) Tomou um banho e foi dormir... ANA E aí? Conversaram? PEPÊ E como!! ANA Como é que foi? Ele aceitou bem? PEPÊ Acho que ficou um pouco assustado, mas, no geral, reagiu melhor do que eu pensava... ANA O Paulo é assim mesmo... A primeira reação dele é sempre dizer não pra tudo... Mas com o tempo vai se acostumando com a ideia... PEPÊ Tem horas que eu acho essa situação um tanto surreal... Imagina então o Professor!! Ele vai precisar de um bom tempo pra assimilar tudo isso... Depois que nós conversamos, até eu fiquei um pouco baqueado... ANA (irônica, abraça-o com muita intimidade; durante o tempo em que permanecem abraçados, ele parece muito desconfortável) Meu Deus, quanto amor... Olha que eu fico com ciúmes, hein? pág.: 25 Utopia Sebastião Bicalho PEPÊ De mim ou dele? ANA Claro que é de você, seu bobo! Eu te amo desde que te vi pela primeira vez... PEPÊ O que é que você viu em mim? ANA Sei lá! Eu também não acreditava em amor à primeira vista, mas aconteceu comigo... Desde que você entrou na minha sala eu senti que tinha de ser meu... Aquele seu jeitinho desprotegido... Esse seu rosto de anjo que caiu do céu por ter feito alguma travessura proibida... Aquele ar de abandono... Aonde quer que eu fosse, sua imagem não me saía da cabeça... PEPÊ Você sabe que eu não posso corresponder ao que você espera de mim... ANA Eu não me importo! Quem sabe um dia você mude de ideia... PEPÊ (irônico) É essa a sua esperança? Acho mais fácil você voltar a se apaixonar pelo Professor... ANA O Paulo é passado... Pra falar a verdade, hoje ele é apenas um intruso nesta casa... O Paulo só está aqui porque você veio como brinde no pacote dele... (Pepê finalmente consegue fugir do abraço) PEPÊ Puxa vida, ‘fessora... Como você é maquiavélica! pág.: 26 Utopia Sebastião Bicalho ANA Você não é menos maquiavélico do que eu... Sempre soube que estávamos jogando... Aceitou ser um jogador porque acha que também pode vencer... De certa forma, você tem muito a me agradecer... (tenta novamente aproximar-se dele, mas o rapaz foge) PEPÊ Você se acha muito dona da situação, não é? Mas em qualquer jogo não é aconselhável subestimar os adversários, por mais confiança que se tenha... Só no fim do jogo é que se sabe quem perdeu e quem ganhou... ANA Que dramático o meu garotinho... E quem disse que em todos os jogos os jogadores são adversários? Em muitos deles, os jogadores são parceiros de brincadeira... E é isto que eu espero que aconteça a nós três: uma grande e prazerosa diversão... PEPÊ Você me assusta, ‘fessora! Às vezes, eu me sinto como um fantoche em suas mãos... ANA Sabe que me chamando de ‘fessora você fica ainda mais bonitinho? Vem cá, vem meu fantochinho... Dá um amasso aqui na ‘fessora... (ela tenta uma nova aproximação) PEPÊ (ele se esquiva novamente) Ana, peraí... falando sério... não me dificulta as coisas... Você mesma sabe que o meu negócio é outro... eu não curto mulher... se ainda por cima você me tratar como um debiloide, aí é que não vai rolar nada mesmo... Ok, eu aceitei o seu jogo e tudo mais... Porém, se você não ajudar, vai ficar difícil... ANA Tudo bem, já entendi... Então, vem cá... (aproxima-se dele, querendo um beijo) pág.: 27 Utopia Sebastião Bicalho PEPÊ (vira o rosto) Na boca, não!! não... Pelo menos agora não... (pausa)... Na boca ainda Os dois permanecem abraçados por alguns instantes. As luzes vão diminuindo gradativamente sobre eles até o Black-out. pág.: 28 Utopia Sebastião Bicalho CENA VII Apenas três focos estão acesos como se fossem os vértices de um triângulo equilátero. Um a um, os personagens vão entrando em cena, cada qual se dirigindo para um foco diferente do outro. Eles estão cobertos apenas por um lençol branco. Seus semblantes estão sombrios, num misto de tristeza e decepção. Os atores não contracenam entre si. Olham para o vazio, na direção da plateia, como se estivessem contracenando com ela; partilhando com ela seus segredos. ANA (foco apenas em Ana, os outros dois permanecem no escuro) Hoje eu cismei de ter saudades... Uma nostalgia imensa de algo que nunca mais vai me acontecer... Me lembrei do tempo em que acreditava em príncipes encantados... das paixões que eu teria... Esperar pela paixão era mais fascinante do que propriamente encontrá-la... No fundo, acho que tinha medo de descobrir que a paixão não seria tão intensa quanto a expectativa de me apaixonar... Eu esperava um acontecimento... uma apoteose... a confirmação de que o amor resolveria todos os problemas ou os tornaria completamente irrelevantes... Hoje eu tive saudades de luas, estrelas e pores-do-sol... De uns tempos pra cá não os tenho mais visto... Ou por outra, até vejo, mas não os percebo mais como antigamente... Meus olhos não registram mais nada... apenas veem imagens desfocadas de prazer, embaçadas de desilusão... Definitivamente, eu olho mas não vejo como antigamente... Eu acho que é por isso que senti saudades... Na verdade, senti saudades da parte de mim que olhava e enxergava as coisas... que percebia as texturas, os brilhos e contrastes... hoje, tudo me aparece em cor sépia... como os retratos de antigamente... Hoje eu cismei de ter saudades... e uma irresistível vontade de recuperar tudo que eu nunca tive... Chorei muito... A saudade passou... Mas eu tenho medo de que ela volte com mais força ainda... PEPÊ (foco apenas em Pepê, os outros dois permanecem no escuro) Eu não cheguei a conhecer meu pai... Acho que por isso me apeguei tanto a minha mãe... Quando ela morreu, eu estava brigado com ela... Já fazia mais ou menos um mês que a gente não se falava... Eu era adolescente... Na verdade, acho que ainda continuo sendo... Sabe como é... Estava naquela fase de ser rebelde e respondão por nada... Tudo começou quando ela achou debaixo do meu colchão umas revistas de homem pelado... Eu estava começando a descobrir a minha sexualidade... Quando cheguei em casa naquele dia, pág.: 29 Utopia Sebastião Bicalho enxerguei mamãe sentada na minha cama folheando aquilo... Senti tanta vergonha que fiquei até paralisado, sem conseguir entrar no quarto... Quando ela percebeu minha presença, olhou pra mim com um semblante enigmático... Eu não sabia se era decepção, se era compaixão, embaraço ou qualquer outro sentimento... Só sei é que tive uma necessidade enorme de me defender, como se minha intimidade fosse um campo de batalha prestes a ser conquistado pelo inimigo... Comecei a despejar sobre ela um discurso interminável e furioso, cheio de baboseiras e exigências de respeito à privacidade... Sem esperar resposta, decretei que nossas relações estavam rompidas até que minha raiva houvesse passado... Ela sempre me paparicou... Já viu, né? Filho único, sem pai... E eu sempre me aproveitava dos mimos que ela me fazia... Minha mãe sempre foi muito depressiva... Vivia se culpando por eu não ter tido um pai dentro de casa... E dizem que ela nunca superou o fato de ter sido abandonada com um recém-nascido... Pobrezinha! Morreu atropelada... Algumas pessoas disseram que foi ela que se jogou na frente do ônibus... Prefiro achar que não foi assim... Fica mais fácil levar a vida adiante... Só sei é que eu amava demais a minha mãe... Não me conformo de não ter tido tempo de dizer isso antes de ela morrer... Acho que esse remorso vai me corroer pro resto da vida... É por isso que desde então não me permito deixar qualquer tipo de amor escapar de novo entre os dedos... Só dá pra amar no agora... O amor de ontem já se foi... Se não foi vivido, perdeu-se... Só deixa um rastro amargo de arrependimento... Olho pra trás e não vejo nada que tenha valido a pena... Deve ser por isso que não sei o que é saudade... Não tem nada no passado que me faça querer voltar a fita e rever a cena... Por isso, acho que tenho saudade é do futuro... É! Isso mesmo! Saudade de algo que ainda não vivi, mas que deveria... Acho que essa ânsia de experimentar o ainda não vivido é que me leva a enfrentar o desconhecido, às vezes, de uma forma imprudente... Que eu erre, e daí? Só pode se considerar um fracasso quem nunca buscou o sucesso... Tem gente que não se arrisca... Prefere ser infeliz na sombra do agora com a esperança de ser feliz depois... Eu prefiro me arriscar a ser feliz agora porque depois... Quem sabe se vai ter um depois? PAULO (foco apenas em Paulo, os outros dois permanecem no escuro) Eu também tenho saudades... Me lembro do tempo em que vivia nas ruas soltando pipas com os amigos de infância... Os olhos grudados naquele quadrado colorido, admirando o seu gingado no céu, e um rabo de olho nos meninos que ameaçavam o seu voo solitário... A segurança de continuar na posse da pipa residia apenas na frágil linha recoberta com uma pág.: 30 Utopia Sebastião Bicalho mistura de cola e vidro moído... Que ansiedade ao ver a ameaça de outra pipa vindo em direção à minha! E quando as linhas se entrecruzavam na disputa pela supremacia dos céus!? Júbilo completo se a linha partida era a do rival... Entretanto, quando era minha a linha rompida, avassalava-me um desespero cortante... A perspectiva de perder o objeto fabricado com tanto sacrifício e desvelo... A angústia de vê-lo derrotado, ziguezagueando sem sustentação em queda livre... E a corrida alucinada em direção ao lugar provável de sua aterrissagem, onde ainda teria de disputá-lo a tapas com o resto da meninada em alvoroço... Eu também tenho saudades... Quem dera o céu todo estivesse reservado apenas ao voo da minha pipa... ANA (foco apenas em Ana, os outros dois permanecem no escuro) O que eu sinto às vezes é um cansaço... Cansaço das coisas todas... Ou seria tédio a palavra certa?... Não, não, também não é tédio... É um sentimento oco, indefinível... É mais para uma ausência de sentimento... uma anestesia geral e incômoda na alma... Às vezes chego a pensar que a dor... uma dor qualquer... ainda seria preferível... Pelo menos a dor seria alguma coisa e não esse vácuo espantoso onde nem mesmo um tímido raio de luz se propaga... É tão estranho... Os meus sentidos me traem... O que penso ver se transforma em nada... Tudo que escuto é um silêncio só... Tudo que pego se esvanece e tudo que me toca não me sensibiliza... Acho que é por isso que busco a exaltação de tudo o que me cerca, a começar pelo prazer... eu preciso gozar ao extremo... quem sabe assim eu consiga o gozo mínimo?!... Na verdade, eu não quero usar ninguém... Eu só quero me sentir viva... O que eu não posso é perder a esperança de que existe alguma coisa além desse vazio... PEPÊ (foco apenas em Pepê, os outros dois permanecem no escuro) Eu ouço falar tanto em liberdade... Mas confesso que nunca entendi direito o que é isso... Liberdade é a gente fazer o que quer sem ligar para o que os outros pensam? Se for isso, acho que sou livre... Mas, então, ser livre não tem graça nenhuma... Por isso desconfio que liberdade deve ser outra coisa... Afinal de contas, todo mundo fala dela com tanta veneração e reverência... Deve ser uma coisa muito boa, bem diferente do que experimento... Eu deveria vibrar por me sentir livre, mas não... Por mais que faça o que quero e ninguém me impeça, menos livre me sinto... Porque, no fundo, apenas faço algo que não consigo deixar de fazer... Minha liberdade é limitada à compulsão de fazer coisas contrárias à minha vontade... Não consigo fazer o pág.: 31 Utopia Sebastião Bicalho que quero... mas o que não quero, isso faço a toda hora... Então, por mais que seja livre no fazer, acabo prisioneiro de uma ação que não consigo refrear... como alguém que reconhece o mal de um vício mas não tem forças pra vencêlo... a liberdade de me viciar em alguém exige que eu seja prisioneiro de uma situação indesejada... E acho que não sou o único... PAULO (foco apenas em Paulo, os outros dois permanecem no escuro) “Mudaria o Natal ou mudei eu?”... Eu também não tenho resposta para a pergunta machadiana... Aliás, quem teria?... Mudar é uma ciência tão complexa... Quando a mudança é voluntária, o que nos move é a expectativa do sabor novo que uma provável conquista promete... Mas, e quando a mudança nos é imposta? Quando vemos que a alternativa de não mudar é muito mais catastrófica do que mudar de qualquer jeito?... Quando temos de mudar por impulso, sem muito tempo para refletir, apenas por um reflexo ou pelo instinto de sobrevivência frente a uma tragédia iminente? Quem pode julgar o que é certo ou errado quando esses dois conceitos se fundem tão fortemente a ponto de parecerem indistintos? Nesse caso, mudamos à força... não pelo desejo de mudar, mas por uma irônica vontade de permanecer os mesmos... pela ilusão de que a mudança congelará o tempo em que fomos felizes... assim como se congelam no tempo os sorrisos de retratos... fugazes instantes em que nossas poses se eternizam num mundo paralelo de faces eternamente jovens... um mundo que sempre existiu em nossas ilusões... e que por isso mesmo, muito provavelmente, nunca tenha havido... ANA (foco apenas em Ana, os outros dois permanecem no escuro) Não, minto... Não é bem verdade que eu não sinta nada... Pensando bem, até que sinto sim... É uma espécie de amor adoecido... numa espera angustiosa de uma convalescência que parece eterna... Deve ser isso que me dá todo esse cansaço... Meu amor é meio saúde, meio doença... A parte saudável quer exercer seu vigor com alguém que a repele... A parte frágil se rende à infecção de um amor que não mais deseja, tornando-se, a cada dia, mais adoentada... É isso mesmo! Eu não passo de uma doente terminal... Por isso é que às vezes me vem a certeza de uma inevitável morte emocional... Então, agarro-me à ilusão de que me prostituir com quem já não amo me garantirá um amor que no fundo me desdenha... Eu já não sinto mais nada... Será que o amor é uma utopia? pág.: 32 Utopia Sebastião Bicalho PEPÊ (foco apenas em Pepê, os outros dois permanecem no escuro) Sei que ainda é muito cedo pra desistir... Por isso continuo seguindo em frente, mesmo sem saber direito pra onde estou indo... Parar no meio da estrada me parece uma alternativa pior... Não... pra ser sincero, acho que não paro mais por medo do que propriamente por falta de opção... E é tão irracional esse medo (como de resto são quase todos os medos)... Vê só! Como é possível ter medo de perder alguma coisa que nunca foi sua?... Se bem que o amor que a gente sente é só nosso... parece que está dentro do coração e nem precisa ser correspondido para continuar ali... vivo, vibrante, concreto... Eu sempre fui muito autoconfiante... senhor dos meus próprios sentimentos... Mas agora me sinto fraco... dependente do olhar alheio... carente da admiração de quem amo... por mais atenções que receba de quem não me interessa, mais desejo as de quem luto para conquistar... o que recebo de quem amo é complacência... uma atitude condescendente de quem se resigna a olhar pro meu lado... não para me ver... mas para evitar o constrangimento de tropeçar em mim... Dou migalhas a quem não amo na esperança de me fartar com as sobras que caem da mesa de quem verdadeiramente quero... Sei que isso é muito pouco... Sei que mereço mais... Mas, mesmo assim, me convenço de que ainda não é hora de desistir... E por isso sigo em frente, mesmo sem saber aonde vou chegar... Será que o amor é uma utopia? PAULO (foco apenas em Paulo, os outros dois permanecem no escuro) Será que o amor é uma utopia? Paulo levanta-se, enquanto, vindas do escuro, ouvem-se as vozes de Ana e Pepê repetindo a mesma pergunta: “Será que o amor é uma utopia?”. Paulo repete com eles a mesma pergunta, que é feita de modo desencontrado, ou seja, ao acaso, sem a preocupação de ordem entre os personagens nem se um começa a falar enquanto o outro ainda está no meio da fala. O foco de Paulo se apaga e um quarto foco se acende, bem tênue, no centro do palco. Para ele se encaminham os três personagens, todos ainda repetindo a pergunta de forma desencontrada. Ao chegarem ao foco central, cada um parece não enxergar os outros dois, embora os três comecem a formar uma espécie de pirâmide em que se aninham de um jeito íntimo e sensual. Na “escultura” formada pelos personagens, deve estar visível a ligação intensa entre eles e, ao mesmo tempo, um certo alheamento. Depois de montada a “pirâmide”, ainda por algum tempo repetem incessante e descoordenadamente a pergunta “Será que o amor é uma utopia?”, como se ela pág.: 33 Utopia Sebastião Bicalho fosse uma ideia fixa, uma reflexão para a qual não se acha resposta. De repente, todos se calam. Faz-se um silêncio por breves instantes, suficiente para causar apenas um certo suspense. Após essa pequena pausa, a luz sobre eles se intensifica subitamente e os três repetem a uma só voz, de forma sincronizada: “Será que o amor é uma utopia?”. Imediatamente após o término da pergunta, o foco se apaga. FIM pág.: 34