ESCOLA DO MST – UTOPIA EM CONSTRUÇÃO
Valter Morigi
Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre/RS
Mestre em Educação pelo PPGEDU/UFRGS
Mesa-Redonda Nº 51 – Eixo 9 – Educação e Trabalho
Palavras-Chave: Trabalho, Movimentos Sociais, Educação Básica.
Contextualização
Nos anos finais da década de 80, Fukuyama produziu sua tese intitulada “O Fim da
História e o Último Homem” (1992), a qual decretava o fim da História e o fim da luta de
classes, afirmando que somente o capitalismo poderia promover a libertação do homem,
tendo em vista que as experiências socialistas mostraram-se falhas.
As teorias elaboradas pelos ideólogos neoliberais, (tais como Friedrich Hayek, Milton
Friedman, Karl Popper, Lionel, Robbins, Ludwig Von Mises, Walter Lipman, Michael
Pélerin) 1 indicavam uma nova ordem mundial de paz e progresso. A inveracidade de tais
idéias se demonstra facilmente pelos acontecimentos posteriores, tais como os conflitos
étnicos na Iugoslávia, a barbárie que assola o Timor Leste, o imperialismo que crava suas
garras por todos os meios na América Latina, através das organizações financeiras e/ou
organismos militares, como o que ocorre na Colômbia, onde os bancos internacionais
despejam milhões de dólares a pretexto de combater o narcotráfico, mas que servem para
treinamento dos militares colombianos.
A política dos países pobres, também chamados de periféricos, é definida e
monitorada pelo FMI (Fundo Monetário Internacional), Grupo Banco Mundial e BID(Banco
Interamericano de Desenvolvimento). Com a nova ordem mundial, que
representa a
imposição do superestado americano no sentido de testar a sua tecnologia pós-moderna no
antigo Terceiro Mundo, redefiniu-se o papel do Estado, mantendo-se sua estrutura de
coerção, mas desarticulando suas funções sociais, frutos de décadas de lutas. Os resultados
são o desemprego em massa, aumento da criminalidade e da violência social, prostituição,
1
Sobre o assunto, ver FERRARO, Alceu. Neoliberalismo e Políticas Sociais: um pé em Malthus, outro em
Spencer. In: Revista Universidade e Sociedade, Brasília, V. 9, nº 20, p. 11-14, set/dez 1999. E FERRARO,
Alceu. O movimento neoliberal: gênese, natureza e trajetória. In: Sociedade em Debate, n.º 8 , p. 5-19, jan/jun
1997.
2
degradação geral das condições de vida com impactos imediatos na saúde, educação e
cultura (Haddad, 1988; Gentili, 1995 e 1996).
Esse quadro surge na esteira da implementação do Consenso de Washington, que é o
nome popularizado pelos meios acadêmicos e jornalísticos para um conjunto de propostas e
discursos, que inclui um programa de ajuste e estabilização com dez tipos específicos de
reforma, que, como assinala Williamson (apud Portela Filho, 1994), foram quase sempre
implementadas com intensidade pelos governos latino-americanos a partir da década de
oitenta: disciplina fiscal; redefinição das prioridades do gasto público; reforma tributária;
liberalização do setor financeiro; manutenção de taxas de câmbio competitivas;
liberalização comercial; atração das aplicações de capital estrangeiro; privatização de
empresas estatais; desregulação da economia; proteção de direitos autorais.
O neoliberalismo desmantela as políticas sociais de maneira dura: deflação,
desmontagem dos serviços públicos, privatizações de empresas, crescimento do capital
corrupto (dinheiro envolvido no tráfico de drogas, nas negociatas políticas, na venda de
armas, no comércio do sexo...), polarização social, desemprego massivo, redistribuição de
renda em favor dos ricos.
No Brasil dos anos 90, a política de privatização de FHC entrega rapidamente, por
valores irrisórios 2, um patrimônio construído ao longo de um século, com o governo
aceitando o papel de serviçal do imperialismo, utilizando a mídia para a desmoralização das
empresas, serviços e funcionários públicos.
Dentro dessa política de governo, emerge a questão agrária que, no Brasil, devido a
fatores do passado e do presente, significa terra em mãos de poucos. Entre os fatores do
passado estão a 1ª Lei das terras (1850) e a própria escravidão, que não permitiram o acesso
à terra aos menos favorecidos. Isso influi na estrutura agrária brasileira até os dias atuais.
Esses menos favorecidos, principalmente os negros, ficaram sem a possibilidade de
comprar terras dos outros, sendo obrigados, então, a continuar trabalhando nas fazendas dos
senhores. Devido a alguns deles (negros) não concordarem com esta situação, houve o
surgimento dos primeiros trabalhadores rurais sem terra.
2
Não vou me deter no assunto, por não ser o tema central de meu trabalho, mas a questão é analisada
profundamente em BIONDI, Aloysio. O Brasil privatizado. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 1999.
3
Hoje, no Brasil, diversas terras são passíveis de desapropriação. Isso ocorre pelo fato de
o país possuir a mais alta concentração de terras do mundo. E grande parte dos latifúndios é
improdutiva.
A redefinição dos sistemas educacionais está situada no bojo das reformas estruturais
encaminhadas pelo Banco Mundial. Ao considerar apenas a dimensão instrumental da
educação (habilitação e qualificação requeridas) face à dinâmica do capital, o pensamento
crítico não rompe os marcos do economicismo, contribuindo para o aumento da crença no
determinismo tecnológico, com significativas conseqüências desmobilizadoras 3.
A prática educacional adotada pelo governo federal brasileiro, ao longo das últimas duas
décadas, tem proposto o cultivo/produção/distribuição do projeto neoliberal, o que nos
coloca de frente a uma problemática social grave, traduzida na desvalorização da categoria
do magistério, incluindo:
-
arrocho salarial;
-
implementação do projeto de municipalização e conseqüente privatização do
ensino público, que, no caso brasileiro, não se realiza prioritariamente pela transferência de
serviços públicos ao setor privado, mas pela constituição objetiva de um mercado de
consumo de serviços educacionais, o que ocorre pela omissão ou saída do Estado em
diversos âmbitos educativos e pela deteriorização dos serviços públicos, combinadas às
exigências crescentes de formação do mercado de trabalho ( Haddad: 1998) ;
- implantação do ensino a distância, cujo princípio orientará para o enxugamento dos
profissionais da educação pública, substituídos pelo sucesso da TV;
- divisão do ensino médio em geral e profissionalizante;
- desmantelamento do ensino superior gratuito, entre outros.
Estas medidas neoliberais caminham na contramão do que penso ser a necessidade da
luta em defesa e garantia do acesso plural e permanência à escola pública, gratuita e laica,
em todos os níveis e modalidades de ensino.
Para super este quadro, afirmo a idéia de pensarmos um projeto educacional políticopedagógico-cultural em que a escola não produza e reproduza a desigualdade, mas que
esteja vinculada a um novo projeto de desenvolvimento, auto-sustentável, ecológico,
3
Sobre o assunto, ver HOLLOWAY, J. e PELÁEZ, E., “Aprendendo a curvar-se: pós-fordismo e
determinismo tecnológico”, in Outubro, 2, 1998.
4
socialmente justo e nele uma escola anti-capitalista, sob o controle social e popular da
comunidade.
O trabalhador, através de sua própria experiência, descobriu que
os discursos de
igualdade não passavam de teoria, uma teoria que apenas reproduzia a estrutura social ,
preparando o aluno para uma aceitação e inserção nesta. A educação democratizou o acesso
escolar, mas deformou o método, rebaixando a qualidade, mostrou ao povo a escola, porém
não lhe deu uma verdadeira escola. Paulo Nosella, ao avaliar a educação brasileira na última
década, afirma que:
...criou cursos supletivos, cursos noturnos de “faz-de-conta”, faculdades de beira de
estrada, quatro ou até cinco turnos diários, superlotação de salas, sobrecarga da
jornada dos trabalhadores em educação, grande confusão na avaliação dos
resultados, redução da hora/aula, tudo para cicatrizar a ferida de uma sociedade
desigual, que para uns oferece a escola, para outros faz de conta que oferece
Nosella (1998:179):
Esta escola pretendida ainda está em gestação, sabe-se que ela estará
colocada a serviço das modificações sociais e na formação “omnilateral” do trabalhador,
porém ainda não há clareza sobre a proposta e a escola em si que se busca construir.
A educação rural no Brasil
A educação, nesta sociedade capitalista transmite os modelos da classe dominante, educa
os alunos para a reprodução desta sociedade, incluindo a dominação de classe.
A escola que interessa aos trabalhadores é buscada pelos movimentos sociais, construída
nas experiências que transgridem esse modelo; ela apresenta uma concepção clara de
articulação entre saberes e conhecimentos, reconhecendo e aceitando os saberes populares,
associando a formação à vida e ao trabalho.
Num sucinto retrospecto da educação no país, um aspecto que se evidencia é o de sempre
ter estado vinculada com o projeto econômico dominante e ligada aos sistemas oficiais e
regulares de ensino, concebendo a escola como um instrumento urbano estratégico para
disciplinamento da força de trabalho e para aceitação da sociedade estratificada e a serviço
de alguns. Na história da educação rural destaco alguns momentos:
5
1) O “ruralismo pedagógico” – evidenciado na preocupação com a educação rural na
Constituição de 1937, pregava uma educação que levasse o homem do campo a reforçar os
seus valores, a fim de fixá-lo à terra, adaptando programas e currículos ao meio rural.
2) A Lei Orgânica do Ensino Primário – 8529/46 - fazia referências ao tratar dos
períodos letivos, obrigatoriedade de matrícula e designações oficiais das escolas.
3) A Comissão Brasileira – Americana de Educação das Populações Rurais – criada na
década de 40, pregava a implantação dos Clubes Agrícolas, adaptação de uma idéia surgida
em 1909 nos Estados Unidos, reafirmando a superioridade do mundo urbano.
4) A Campanha Nacional de Educação Rural (CNER) e o Serviço Social Rural (SSR) –
criados na década de 50, limitaram-se a repetir fórmulas tradicionais de dominação,
auxiliando a internacionalização da economia brasileira aos interesses monopolistas.
5) A Lei 4.024/1961 – Lei das Diretrizes e Bases da Educação – deixou a cargo dos
municípios a estruturação da escola fundamental da zona rural. Sem condições de autosustentação pedagógica, administrativa e financeira, a escola rural entrou num processo de
extinção.
6) A Lei 5.692/71 – Reforma de Ensino do 1º e 2º graus – foi fruto do autoritarismo da
ditadura militar. As referências ao rural são para falar da empresa rural e não da pequena
propriedade rural. Reconhece a natureza
e o ritmo da atividade
rural, abrindo a
possibilidade da escola organizar seu calendário, observando a época do plantio e da
colheita.
Na atualidade, a lei 9.394/96 não explicita os princípios e as bases de uma política
educacional para o campo. Faz menção, semelhante à Lei Orgânica de 1946, à questão dos
períodos letivos e também ao currículo.
Um projeto de educação que contribua para com a realidade camponesa é estratégico
para a modernização da agricultura brasileira. Existe a urgência de investimentos na
interpretação e construção de conhecimento desde a agricultura familiar, sendo um passo de
partida a valorização da escola básica no campo e do campo, especialmente com os projetos
de assentamento e a organização da cooperação entre os pequenos agricultores se
ampliando, o que torna esta necessidade ainda mais presente.
O currículo da escola rural
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A definição curricular para a escola do campo passa por um processo onde a cultura
urbana dominante é que determina o modelo a ser utilizado nas escolas, mesmo as da zona
rural.
A escola, através do currículo, não apenas reproduz conhecimentos, mas transmite
relações de poder e, no caso da escola rural, a relação sempre é de inferioridade diante da
concepção urbana dominante. É uma transposição do currículo das escolas urbanas.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN – 9394/96 – prevê apenas
uma adaptação dos conteúdos e da metodologia. Não há reconhecimento do trabalho e da
cultura rural, apenas se transfere a escola da zona urbana para a zona rural.
O desafio, hoje, é saber aproveitar os vários passos dados, em lugares diferentes,
respeitando a realidade e a criatividade de cada grupo e de cada lugar, para concretizar o
aprofundamento da proposta político-pedagógica, já construída por alguns movimentos
sociais do campo, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem terra - MST e também
em algumas experiências de administrações populares.
A educação no MST
A importância dada à educação pelo MST é mensurada pela afirmação de que investir em
educação é tão importante quanto o gesto de ocupar a terra. Os princípios da educação no
MST estão explicitados no Caderno de Educação n.º 8, publicado pelo Movimento. Alguns
princípios filosóficos:
-
educação para a transformação social;
-
educação para o trabalho e a cooperação;
-
educação voltada para as várias dimensões da pessoa humana;
-
educação com e para valores humanistas e socialistas;
-
educação como um processo permanente de formação/transformação.
Alguns princípios pedagógicos:
-
relação entre prática e teoria;
-
combinação metodológica entre processos de ensino e de capacitação;
-
a realidade como base da produção de conhecimento;
-
conteúdos formativos socialmente úteis;
-
educação para o trabalho e pelo trabalho;
7
-
vínculo orgânico entre processos educativos e processos políticos;
-
vínculo orgânico entre processos educativos e processos econômicos;
-
vínculo orgânico entre educação e cultura;
-
gestão democrática;
-
auto-organização dos estudantes;
-
criação de coletivos pedagógicos e formação permanente dos educadores;
-
atitudes e habilidades de pesquisa;
-
combinação entre processos pedagógicos coletivos e individuais.
A educação do campo precisa ser uma educação que assuma a identidade do meio rural,
não só como uma cultura diferenciada, mas como um contexto em que se efetive um projeto
de desenvolvimento do campo, ou seja, uma escola do campo comprometida com um
projeto político-pedagógico vinculado às causas, aos desafios, aos sonhos, à história e à
cultura de quem vive e trabalha no campo.
A educação do campo precisa mudar o conteúdo e a forma da escola funcionar para
qualificar o processo educativo. Isso sem perder de vista o ser humano como sujeito
envolvido no processo de formação e o tipo de sociedade que se quer construir.
A formação dos professores
São preparados para o meio urbano, não há uma proposta de formação específica para o
campo. Na década de 1940, o governo federal criou escolas normais rurais, com objetivo de
preencher a carência de professores nas zonas rurais e promover a interação do homem do
campo com o urbano.
A formação do professor rural estava ligada à assimilação de técnicas, com as quais o
homem rural poderia ter uma vida melhor, seria o passaporte para um estado superior, a
passagem do mundo arcaico da agricultura familiar para o mundo civilizado da agricultura
mecanizada ligada à indústria urbana. A saída do campo era percebida como um fenômeno
natural, como se fosse a busca pelo “progresso”, “conhecimento”, a superação do seu
“atraso”.
A formação de professores para o MST
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Parte dos professores defende que os professores devam ser indicados pelo próprio
Movimento. Para isso, lutam pela implementação de uma Universidade Popular, com
condições específicas para atender essa população. No Rio Grande do Sul, a Universidade
Estadual, UERGS, recentemente criada, pode vir a ocupar esse espaço.
A escola Josué de Castro, em Veranopólis/RS, oferece o curso Magistério do MST, no
qual suas práticas são trabalhadas para que levem consigo a ideologia do MST para ser
divulgada aos jovens e crianças que venham a ser alunos nos acampamentos e
assentamentos.
A constituição de uma pedagogia apropriada às atuais demandas de um meio rural em
transformação exige a articulação da experiência da realidade local com a regional,
estadual, nacional, internacional; ou seja, relacionando permanente e dialeticamente o
micro e o macro, o grande e o pequeno, o particular e o mais geral. Sobre o assunto afirma
Therrien (1993 : 11):
É conveniente enfatizar que há um movimento social no campo em marcha,
gestando uma pedagogia, um saber da prática política e organizativa desse
movimento que está contribuindo para a criação da educação e do campesinato. Por
outro lado, assistimos à negação desse saber, pois os camponeses são esmagados
como sujeitos pensantes, como produtores de conhecimentos e de cultura, fato que
enfraquece os seus avanços.
Dados históricos oficiais mostram que a maioria das escolas nas zonas rurais são escolas
isoladas, com classes multisseriadas. Algumas escolas, por medida de economia, foram
fechadas, e com isto, as crianças e adolescentes obrigados a estudar longe de suas famílias e
de sua realidade, em alguns casos precisando fazer uma viagem para chegar à escola.
Como predomina a concepção unilateral da relação cidade/campo, muitas prefeituras
trazem as crianças para as cidades, num trajeto de horas, por estradas precárias, com a
finalidade de reduzir custos e as crianças são colocadas em classes separadas das crianças da
cidade, reforçando a dicotomia ainda presente no imaginário da sociedade. Ou então são
colocadas na mesma sala, onde são chamadas de atrasadas pelos colegas urbanos e, para
serem modernas, passam a assumir valores duvidosos.
A concepção de que a escola urbana é melhor do que a rural coloca o determinismo
geográfico como um fator regulador da qualidade de educação, sendo um critério
equivocado da política de investimentos. O que está em questão é um projeto de escola que
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tem uma especificidade inerente à histórica luta de resistência camponesa, a qual deveria ter
valores singulares que vão em direção contrária aos valores burgueses e à lógica patronal.
No vazio deixado pelo Estado, têm surgido algumas iniciativas da própria população,
através de suas organizações e movimentos sociais, tentando reagir ao processo de exclusão
e forçar novas políticas públicas que garantam o acesso à educação, tentando assim
construir uma identidade própria das escolas do campo. São exemplos deste esforço:
- As Escolas-Famílias Agrícolas (EFAs), que existem em vários estados há 30 anos, com
mais de 200 centros educativos em alternância espalhados pelo Brasil, voltados para a
educação dos filhos da agricultura familiar;
- As várias iniciativas no campo da alfabetização de jovens e adultos, como o trabalho
do Movimento de Educação de Base ( MEB);
- A luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) pela escolarização
dos sem terra nos assentamentos e nos acampamentos e suas experiências na área de
formação de professores e de técnicos na área da produção. Para maior aprofundamento na
questão da escola do MST, há uma bibliografia extensa, da qual sugiro Educação em
Movimento. Formação de educadoras e educadores no MST (1997) e
Pedagogia do
Movimento Sem Terra: escola é mais do que escola, (2000), ambos de Roseli Salete Caldart
e a dissertação de mestrado de Isabela Camini, O cotidiano pedagógico de professores e
professoras em uma escola de assentamento do MST: limites e desafios (1998).
- A luta dos indígenas e dos povos da floresta por uma escola vinculada a sua cultura.
A problemática educacional ganha importância à medida que o MST coloca como
fundamental o rompimento de três grandes “cercas”: a cerca do latifúndio, a cerca do
capital e a cerca da ignorância que submetem os trabalhadores rurais sem terra a condições
de vida degradantes no Brasil.
Ao longo dos tempos, o MST vem construindo uma proposta pedagógica através da qual
educar não se reduz meramente a transmitir conhecimentos acumulados, uma vez que ,
através da educação o Movimento busca integrar o homem ao seu meio.
A educação é vista como possuidora de uma vocação redentora da miséria a que a maior
parte da sociedade brasileira está submetida pelos “desmandos” da classe dirigente do país,
formada por uma burguesia aliada a um segmento agrário retrógrado e mal intencionado,
10
que procura manter o povo na ignorância como forma de facilitar a dominação dos
trabalhadores por essa classe de parasitas.
O elemento inovador que emerge das práticas do MST dirigidas à escolarização referese ao sentido de apropriação da escola pública por um movimento social, organizado com o
objetivo de promover uma educação escolar profundamente ligada ao seu projeto social.
O MST, ao definir sua proposta de trabalho educacional, procurou aliar a educação ao
trabalho e à organização que poderá possibilitar uma formação para as suas lutas, cujos
princípios orientadores podem ser sintetizados através do trabalho, organização e
participação coletivos, tornando mais firme o vínculo entre o trabalho produtivo e o estudo,
que deve ser uma tônica constante na educação do MST, bem como a necessária ligação
entre teoria e prática, sendo esta última entendida como tarefa obrigatória dos educandos.
Partindo desses princípios, o MST reivindica do Estado que a escola pública do meio
rural seja pensada e organizada para o trabalho no campo, dando a mesma ênfase para o
trabalho manual e o trabalho intelectual, rompendo assim com a dicotomia social do
trabalho intelectual para uma classe e o trabalho braçal para outra. O MST entende,
portanto, que, partindo da prática produtiva para a educacional, estaria fazendo uma relação
dialética entre teoria e prática.
Mesmo defendendo que a escola deva ter um caráter diferente, o Movimento não se
empenhou em criar uma “ escola modelo” e sim em disseminar uma proposta educacional
que se realiza diferencialmente devido à heterogeneidade das realidades locais.
Na prática, é uma apropriação da proposta educacional de Paulo Freire, acompanhada das
orientações pedagógicas de Makarenko, Piaget, Jose Martí e Che Guevara. De Makarenko,
o MST serve-se de suas experiências durante o período em que esteve à frente da Colônia
Gorki, no período pós-revolução russa. De Piaget, aproveita as teorias sobre o processo
pedagógico que desembocaram nas metodologias construtivistas, tão disseminadas nas
últimas décadas. De Jose Martí, o MST procura aproveitar as propostas nacionalistas que
este apregoava em Cuba, como forma de garantir a soberania de sua nação. Quanto a Che
Guevara, suas experiências revolucionárias servem como estímulo para a luta e para o
desenvolvimento da formação de consciência do cidadão-militante.
O MST inova também no conceito de escola pública, entendendo que esta deva ser
mantida com recursos públicos (estatais) e orientada pelos interesses da comunidade. Para o
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MST, o fato de a educação ser um dever do Estado não pode significar que a direção da
escola pública deva ser reservada exclusivamente ao Estado, pois esta tem que estar a
serviço da comunidade e é ela quem melhor identifica suas necessidades. A administração
escolar deve ser centralizada e estar sob o controle dos trabalhadores que a utilizam. O
Movimento incentiva a participação das comunidades nas escolas, entendendo que estas
devem ser geridas por coletivos formados por professores, pais e também pelos educandos
que são os maiores interessados nos destinos da escola e da educação em geral.
Com relação ao conteúdo ensinado nas escolas rurais sem nenhuma adequação para o
campo, o MST entende que, da maneira como está sendo feito, ele contribui para acelerar o
êxodo rural, ao fantasiar uma realidade considerada bem mais atraente que a realidade do
meio rural. Além disso, o conteúdo trabalhado costuma mostrar os benefícios existentes na
cidade que não são levados ao campo. Tem-se, ainda, o agravante de dificilmente o
conteúdo dos livros didáticos utilizados nesse setor apontarem para a realidade dos pobres e
miseráveis que vivem nas grandes cidades. Esse conteúdo, associado à falta de formação
adequada do professor (eminentemente urbana) e aos problemas advindos do período letivo
não coincidente com os períodos de plantio, colheita, etc., contribuem para a não fixação do
homem no campo, contrariando o objetivo maior do MST, no momento, que é sua
preservação no meio rural. O MST tem tentado interferir também nas formas de avaliação
dos educandos, entendendo que o modelo de educação tradicional não satisfaz às
necessidades do ensino em suas comunidades.
O MST tem como objetivo construir um novo modelo de educação mas, ao mesmo
tempo, entende que há muitas dificuldades para mudar a mentalidade educacional no Brasil.
Essas dificuldades estão presentes tanto nos órgãos do Estado, que fiscalizam e enquadram
o currículo e os conteúdos trabalhados pelos professores, como no conservadorismo dos
pais que muitas vezes se colocam contra as novas propostas educacionais.
Apesar de se auto reivindicarem dialéticos, apontam para a utilização de uma
metodologia advinda do existencialismo cristão de Paulo Freire, ao escolherem como ponto
de partida os complexos temáticos em torno de uma abordagem interdisciplinar. Esses
complexos temáticos giram em torno da realidade do MST, sobretudo em torno da Reforma
Agrária, da cooperativa e da luta pela terra num sentido mais amplo.
12
O MST desenvolveu, por algum tempo, uma espécie de xenofobia maniqueísta,
acreditando que somente quem morasse no assentamento, fazendo parte do MST, poderia
ter capacidade para ser um verdadeiro professor de sem-terra. Verificou-se na prática que a
proposta de se ter esse professor militante vivendo entre os acampados e assentados não
seria viabilizada, visto que o MST deparava-se com as dificuldades da formação específica
do professor e da formação do cidadão que tem de ter, também, conhecimentos técnicos e
não apenas políticos.
O MST tem insistido na participação de toda a comunidade interessada na gestão da
escola, entendendo que nisso consiste a democracia. Até agora, nem mesmo onde o
movimento está mais organizado, esse apelo tem dado os resultados esperados.
Algumas colocações à guisa de conclusão provisória
As escolas rurais fazem parte da educação. A existência e a necessidade dessas escolas
comprovam que a zona rural não é só um espaço geográfico dual, com apropriação da terra
para produção e visto como oposição à cidade.
Ao longo de todo o texto, tive como eixo a discussão presente no problema de pesquisa, ou
seja a possibilidade (ou não) da transformação/ocupação de uma escola da rede pública, porque
.. é preciso superar a visão dualista, que organiza o conhecimento sobre os
fenômenos humanos de forma dicotomizada, em pares antagônicos (ex. rural versus
urbano). Essa maneira de compreender o mundo baseia-se em aparências e não dá
conta da complexidade do mundo real. No mundo real, os objetos se interpenetram
para compor a totalidade. A totalidade contém uma integração entre o rural e o
urbano. (Silva, 2000:131)
A possibilidade de transformação estaria identificada com a pedagogia defendida por um
movimento social, o MST. Em outras palavras, a verificação da possibilidade de
transformação de uma escola no assentamento para uma escola do assentamento teve por
referência a Escola Municipal Nossa Senhora de Fátima, anteriormente identificada.
O propósito de toda a busca contida nesta pesquisa foi a percepção de que a escola do
Movimento Sem Terra, discutida e apresentada em inúmeras publicações, pode vir a ser,
também, uma possibilidade para a própria zona urbana, nesta sociedade cada vez mais
globalizada, onde a função da educação de ensinar e propor aos educandos mecanismos de
interpretação da realidade que os envolve, tornando-se consciente de seu papel de cidadãos
e agentes da história, aumenta de valor a cada dia.
13
Ao longo do processo de desenvolvimento econômico brasileiro, em todas as épocas, a
educação rural esteve servindo aos interesses do capital, no que tange à modernização da
agricultura,
voltada
de
costas
para
a
prática
dos
trabalhadores
rurais
e
multiplicadora/divulgadora dos valores e comportamentos urbanos, atrelada à vontade dos
grupos no poder, perdendo, em muitos casos, a identidade, servindo inclusive como fator de
expulsão dos agricultores de suas terras.
A proposta para a educação do MST está afinada com os interesses, as concepções de
trabalho e as relações sociais dos trabalhadores Sem Terra e, talvez por isso, cause
preocupação às classes hegemônicas, que conhecem o poder da educação como ferramenta
capaz de instrumentalizar o povo para a conquista das condições de compreensão de sua
situação, se organizar e lutar pelo seu desenvolvimento e pelos seus interesses sempre
negados.
A viabilização das escolas nos assentamentos, com um ensino diferente, ligado à história
da luta pela terra e ao mundo rural, depende do nível de organização do MST e da
disponibilidade de pessoas capazes de atuar neste campo. A proposta educativa do
Movimento, que reflete a vida, a história e a luta dos trabalhadores rurais, pode não ser bem
aceita pelos próprios interessados, devido à desvalorização feita historicamente ao ensino
popular e ao desejo de que os filhos não fiquem fora do ensino oficial. Percebo aí a
possibilidade de renovação do debate entre saber acadêmico e saber popular, talvez pela
incapacidade de articulação da escola, que é marcada pela divisão de classes e pela
imposição de uma determinada cultura e visão de mundo dominante, o que constitui mais
um desafio ao Setor de Educação do MST.
Quanto à questão primeira desta investigação, a resposta sobre a escola no assentamento
ser uma escola do assentamento, cabe citar a resposta de uma das mães entrevistadas, a mãe
B, participante das lutas do MST desde a origem, na Fazenda Annoni, que disse:
... eu ainda entendo que ela é uma escola que está no assentamento, mas do
assentamento, eu não sei, mas acho que não, né , porque (...) alguns professores
trabalham bastante nesse sentido, mas outros ainda não (...) é, tá em construção...
Afirmo a minha concordância com a afirmação desta mãe, pois realmente é um processo
que está acontecendo, é a utopia sendo realizada aos poucos, enfrentando os problemas do
dia-a-dia da escola. Isso fica visível com o trabalho de algumas das educadoras, que
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estimulam as crianças a trocarem ajudas, a aprenderem em conjunto, incentivando a todas a
acreditarem no seu potencial de aprender, de saber, ensinando coisas que são vividas pelas
crianças no assentamento.
Uma alternativa para atingir esses educadores, para além das reuniões, que são poucas e
distantes, e que fica já como uma sugestão, pode ser a assinatura e compra dos materiais
publicados pelo Movimento, colocando-os à disposição para leitura, bem como dar maior
espaço, nas reuniões, aos representantes do MST, Isso já aconteceu no 1º Conselho de
Classe deste ano, onde uma mãe, professora de outra escola, membro do Conselho de
Educação do Assentamento, palestrou sobre Paulo Freire, destacando o engajamento da
proposta de educação do Movimento às idéias do grande educador, bem como propondo
atividades concretas de aproximação com a realidade no dia-a-dia.
Cabe um apontamento para o caráter contraditório da relação da Secretaria Municipal de
Educação com a escola, pois, ao mesmo tempo em que aponta como avanço e modelo a
Escola, objetivamente considera-a como a qualquer outra escola de sua rede, rural ou
urbana, não dando conta das condições materiais necessárias para a concretização de uma
proposta pedagógica como a do MST, basta ver o salário dos professores, os quais são
obrigados a trabalhar em mais de um turno e em duas ou mais escolas, tendo que, às vezes,
faltar devido a esse motivo.
Também para a organização do currículo não existe um olhar diferenciado, uma vez que
não há horas para o planejamento coletivo e para a formação. Menciono ainda a inexistência
de professores substitutos, além de condições materiais como biblioteca qualificada e
organizada, computadores, quadras e auditório, para citar algumas.
O que ainda precisa avançar para alguns trabalhadores em educação da Escola Municipal
de Educação Fundamental Nossa Senhora de Fátima e para a própria SMED/ Viamão, é a
percepção da experiência inovadora pela qual estão passando, e que isso é motivo de
interesse de todos nós, educadores que buscamos uma pedagogia que se contraponha à
pedagogia oficial. E é isso que explica a defesa de uma escola voltada a uma política de
inclusão, articulada aos valores humanos defendidos pelos trabalhadores assentados; enfim,
é isso que significa a escola do MST ser uma utopia em construção.
Referências bibliográficas
15
ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir e GENTILI, Pablo
(orgs.). Pós-Neoliberalismo. As políticas sociais e o estado democrático. Rio de Janeiro:
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