GT 11 – UTOPIA E DISTOPIA NO PENSAMENTO POLÍTICO MODERNO O SONHO DA CASA PRÓPRIA: ENTRE A UTOPIA E A DISTOPIA BRITO, Marcelo.1 [email protected] RODRIGUES, Arnaldo Oliveira.2 [email protected] RESUMO No presente artigo pretende-se discutir o significado da casa própria no imaginário da população de baixa renda e de que forma esse sonho se defronta com a realidade vivida e percebida por essa classe. A disseminação do conceito da casa própria foi propagada ao longo de muitos anos e perpetuada por razões de ordens diversas, definindo uma política habitacional calcada na questão da propriedade, sendo que o espaço das cidades representava o lugar de conflito entre as diferentes classes e seus diferentes interesses. Segundo Carpintéro (1997) “o discurso da casa própria foi algo novo, mas não exclusivo, da classe dominante. Ele nasce também, nesse final dos anos 20, nos bairros operários, no instante em que seus moradores passam a redefinir suas concepções de cidade e habitação”. A referida autora distingue a representação da casa própria para as diferentes classes, sendo “para os setores dominantes, a casa própria significava o elemento eficaz para a moralização e controle do trabalhador urbano; já para os operários, ela representava uma questão de necessidade, sobretudo, de luta pelo direito de sobrevivência na cidade”. É na ideologia criada em torno da casa própria, alimentada pelo Estado em razão da preocupação com as revoltas populares, que se constrói o sonho da casa própria. A aquisição da casa própria assume um papel relevante em nossa sociedade, pois está fortemente ligada a aspectos culturais que legitimam essa dívida como prioritária e fundamental. Especialmente no Brasil há uma valorização na aquisição da propriedade, fruto de uma demanda histórica de exclusão do processo de urbanização, principalmente em relação à população de baixa renda. Em razão da função da propriedade está fortemente presente no imaginário coletivo brasileiro, sua aquisição por meio de financiamento assume status de comprometimento financeiro legitimado. A aquisição da casa própria também possui uma dimensão mais objetiva, ligada a sua mercadorização, ou seja, o sonho da casa própria tem que se deparar com a realidade em poder adquirir e ter acesso a uma moradia digna. Neste sentido, pretende-se ainda discutir as formas de utopia e distopia que marcam o espaço urbano montesclarense. Na vertente da utopia podemos incluir este imaginário da casa própria, a concessão de crédito e o ideal governamental de favorecer o acesso à moradia de forma satisfatória aos que dela necessitem. Na 1 Graduado em Direito – UNIMONTES. Mestrando em desenvolvimento social pela UNIMONTES. 2 Psicólogo/Psicanalista. Mestre em Desenvolvimento Social – PPGDS – UNIMONTES. 1 vertente da distopia, é tomado como exemplo o caso do bairro Cidade Conferência Cristo Rei, localizado na região leste de Montes Claros e foco de pesquisa realizada por Rodrigues (2014), enfocando as representações sociais que os moradores têm com relação à cidade e ao seu bairro de residência, onde se verifica que, mais do que desejo de participar dos programas sociais de habitação, os moradores desejam e demandam melhorias no entorno e maior reconhecimento social do bairro. Palavras-chave: casa própria, racionalidade, ideologia, utopia, distopia. ABSTRACT In this article we intend to discuss the meaning of home in the imagination of the low-income population and how that dream is faced with the reality as experienced and perceived by this class. The spread of the concept of home ownership was spread over many years and perpetuated for reasons of various orders, setting a causeway on the issue of ownership housing policy, and the space of the cities represented the place of conflict between the different classes and their different interests. According Carpintero (1997) "discourse of homeownership was something new, but not exclusive, of the ruling class. It also comes in this late 20's, the workers' districts, the instant that its residents are redefining their notions of city and housing". The author points out that the representation of home ownership for the different classes, "for the dominant sectors, homeownership meant the effective element for the moralization and control of urban workers; now for the workers, it represented a matter of necessity, especially fighting for the right to survive in the city". It is the ideology built around the home, nurtured by the state because of concerns about the popular uprisings that builds the dream of homeownership. The home ownership plays an important role in our society, since it is closely linked to cultural aspects that legitimize this debt as a priority and fundamental. Especially in Brazil there is a recovery in the acquisition of property, the result of a historical demand exclusion of the urbanization process, especially in relation to low-income population. Given the function of the property is strongly present in the Brazilian collective imagination, their acquisition through financing assumes status of legitimate financial commitment. The home ownership also has a more objective dimension, linked to its commodification; in other words, the dream of home ownership has to be faced with the reality in order to acquire and have access to decent housing. In this sense, we intend to further discuss ways of utopia and dystopia that mark montesclarense urban space. In terms of this imaginary utopia can include home ownership, lending and government ideal to promote access to housing satisfactorily to those who need it. In terms of dystopia, is taken as an example the case of Cidade Conferência Cristo Rei neighborhood located in the eastern region of Montes Claros and focus of research by Rodrigues (2014), focusing on the social representations that residents have about the city and their district of residence, where it appears that more than desire to participate in the social housing programs, residents want and demand improvements in and around greater social recognition of the neighborhood. Keywords: own home, rationality, ideology, utopia, dystopia. INTRODUÇÃO O presente trabalho será desenvolvido tendo a construção do sonho da casa própria como objeto de análise. Especialmente no Brasil há uma valorização na aquisição da propriedade, fruto de uma demanda histórica de exclusão do processo de urbanização, principalmente em relação 2 à população de baixa renda. Em razão da função da propriedade está fortemente presente no imaginário coletivo brasileiro, sua aquisição por meio de financiamento assume status de comprometimento financeiro legitimado. Na primeira parte do texto busca-se estudar a questão da casa própria visando identificar se este desejo se enquadra na vertente da utopia ou da ideologia. Na segunda parte apresentam-se os principais aspectos históricos das políticas habitacionais brasileiras bem como as intencionalidades intricadas nas mesmas. Na terceira parte, apresentam se a ideia de uma racionalidade moderna que se faz aplicar ao âmbito da construção, da habitação e na última parte do texto, discute-se a ideia de distopia, articulando com um exemplo empírico, advindo da pesquisa de Rodrigues (2014). 1. Utopia ou ideologia da casa própria? Para responder ao questionamento é necessário o entendimento dos elementos que caracterizam a utopia e a ideologia. Segundo Sargent (2008) a utopia não pode ser entendida como algo perfeito e imutável, pois não é algo acabado, completo e sem possibilidade de modificação futura. A utopia seria uma esperança-desejo de uma vida melhor relacionada a determinado aspecto da experiência humana. Segundo Clayes e Sargent (1999) é geralmente uma projeção imaginativa, positiva ou negativa, de uma sociedade que é substancialmente diferente daquela em que o autor vive. A definição de utopia pode ter em conta três aspectos distintos: o conteúdo, a forma e a função. No que concerne ao conteúdo, de uma maneira geral, assume-se que a utopia deverá ser a descrição de uma sociedade melhor (ou, para outros comentadores de uma sociedade melhor ou pior) que a do seu leitor contemporâneo. Em relação à forma, Kumar (1999) define como uma ficção literária, geralmente um romance. Este género literário vem na tradição inaugurada pelo texto de More, e todos os textos subsequentes têm como referente esta tradição, recuperando elementos de outras formas de descrição de mundos melhores. Quanto à função, para Mannheim citado por Firmino (2006), a essência da utopia é a sua função transformativa, fomentadora do progresso da humanidade ou ao menos crítica da realidade. A utopia seria, portanto, a tentativa de divisar um conjunto de instituições políticas e sociais que regulem os conflitos de interesses pessoais e coletivos. 3 Já a ideologia, segundo Sargent (2008), refere-se, embora com algumas variações, a: um sistema de valores e crenças respeitantes às várias instituições e processos da sociedade que é aceite como fato ou verdade por um grupo de pessoas. Uma ideologia fornece ao crente uma imagem do mundo tal como ele é e como deveria ser, organizando a grande complexidade do mundo em algo de bastante simples e compreensível. Para Mannheim citado por Firmino (2006), a ideologia é composta por ideias políticas inspiradas e apoiadas pelo sistema, enquanto a utopia é composta pelas ideias que se lhe opõem e que o contestam. Percebe-se na delineação dos conceitos acima que a ideologia é representada por um conjunto de valores e crenças estabelecidos por instituições e processos da sociedade. Assim, a ideologia pode em nome de algo distorcer a utopia, insistindo na conformidade com um modelo, transformando-se num sistema de crenças, em vez de, como acontece na maioria dos casos, se assumir como a crítica do real através da imaginação de uma alternativa melhor (SARGENT, 2008). Nesse contexto, busca-se compreender se a construção do sonho da casa própria se enquadra mais na acepção da utopia ou da ideologia. Inicialmente cabe destacar que a necessidade da moradia não é o mesmo que a necessidade da casa própria. A moradia está relacionada com a necessidade de habitar, ter um local como abrigo, espaço indispensável à proteção da intimidade, local onde grande parte da vivência humana acontece. Nesse aspecto, a ideia de que todos devem ter uma moradia é uma utopia, entendida aqui não na perspectiva de um sonho vão, mas na busca de adequar à realidade vivida à realidade almejada. Por outro lado, a necessidade da aquisição da casa própria se enquadra no conceito de ideologia, pois são os imperativos sociais e econômicos que norteiam a intenção de associar ao papel da casa a condição de casa própria. Assim, a política habitacional no Brasil é marcada por intervenções do Estado na habitação que foram e são mediadas pela ideologia da casa própria. Desde as primeiras intervenções do Estado brasileiro na questão habitacional, percebe-se a tentativa de concretização da ideologia da casa própria, conforme será visto a seguir. 4 2. A construção da ideologia da casa própria no Brasil. A relevância de se realizar um pequeno histórico da política habitacional no Brasil se relaciona a percepção de como a aquisição da casa própria foi adquirindo destaque até atingir o patamar de realização do sonho por parte da população brasileira. Do período colonial até a década de 20 o Brasil possuía uma economia agroexportadora, era prioritariamente rural e as cidades existentes eram meramente sedes da burocracia e, principalmente, do capital comercial, resumindo suas funções em realizar a ligação direta da produção agroexportadora à circulação internacional de mercadorias. (MOTA, 2010, p.35). Em relação as moradias, segundo Carpintéro (1997), a década de 20 representou iniciativas isoladas no campo da construção habitacional, principalmente para a população de baixa renda. Tais iniciativas ficavam sob a responsabilidade dos municípios, ou então, dos empresários e das construtoras particulares. O processo que consolidou a urbanização brasileira veio acompanhado da industrialização, com consequências para o modo de produção, para a relação do capital com os trabalhadores e com a ideia da moradia. Segundo Oliveira (2003) à medida que a urbanização avançava, à medida que as novas leis de mercado se impunham, o custo da reprodução da força de trabalho urbana passava a ter componentes cada vez mais urbanos: isto é, o custo de reprodução da força de trabalho também se mercantilizava e industrializava, transformavam- se em mercadorias. A partir de então, toda a política pública habitacional foi formulada com base na obtenção da propriedade e, consequentemente, na aquisição da habitação que passa a ser vista também como uma mercadoria. Assim, o Governo reforçava a ideologia criada em torno da casa própria através das políticas de financiamento habitacional, com dois principais objetivos. Primeiro, com o objetivo de aquietar a insatisfação social e manter a hegemonia das classes dominantes, desviando a classe trabalhadora de maiores lutas políticas e sindicais (ARAÚJO, 2008). Segundo, com o objetivo de moralização e controle do trabalhador urbano. Em relação ao objetivo de moralização, destaca-se a importância dos financiamentos da construção popular como um elemento eficaz no que se refere ao controle e disciplinarização do trabalhador fora da fábrica, conforme demonstra Carpintéro (1997) nos estudos do Boletim do Ministério do Trabalho na década de 30. Assim, o incentivo ao financiamento habitacional foi direcionado para a casa unifamiliar de periferia, escolhida em detrimnto dos cortiços 5 multifamiliares do centro, porque permitia segregar as classes, difundir a propriedade privada e evitar a contaminação dos trabalhadores com discursos socialistas; escolha também defendida pela igreja, preocupada com a promiscuidade nas habitações coletivas (SILVA, 2014). Nesse contexto, destacam-se as medidas de intervenção higienistas que, sob o discurso de cuidados com a saúde, expulsou os pobres dos centros urbanos para promover o embelezamento dos centros das cidades. Essas intervenções higienistas aprofundaram a segregação entre ricos e pobres no espaço da cidade: os ricos continuam a morar nos centros urbanos, agora renovados pela política de embelezamento, enquanto os pobres são “convidados” a morar em áreas distantes dos locais de trabalho, muitas vezes sem infraestrutura de água, luz e esgoto, tendo, em muitos casos, péssimas condições de transportes, que dificultam ainda mais o acesso aos distantes locais de trabalho (BONDUKI, 2004). Portanto, percebem-se as intencionalidades envolvidas na construção da ideologia da casa própria, tendo o ato de morar um contexto político, social, econômico, espacial, psicológico e de classe. É pela relação de sujeito-objeto tratada pelo prisma da interpretação que Waysbort (2000) realiza a partir das considerações de George Simmel, que se justifica a dinâmica do fetichismo que envolve a casa própria, onde abrigar-se passa a ser secundário e começa a imperar ter a moradia como sua propriedade, como forma de pertencer, de diminuir diferenças. Assim, a ideologia da casa própria perpetua até hoje como objeto de consumo, ficando a necessidade de morar alterada pela necessidade de obter. 3. Racionalidade moderna aplicada à construção A ciência moderna fundamentada no modelo de racionalidade passa por um salto qualitativo do conhecimento, direcionando o pensamento que era respaldado no senso comum (conhecimento não científico) para o científico. A racionalidade da ciência moderna aproxima-se de pressupostos exatos, quantitativos, sendo a ordem o foco para entender como as coisas funcionam e qual o seu fim diante das transformações sociais, através de técnicas rigorosas e objetivas, que explicam os fenômenos quantitativamente (BORGES, 2006). Esse movimento de racionalização acompanhou também o urbanismo moderno, trazendo mecanismos para responder aos problemas de salubridade nas cidades, à necessidade da produção de habitação em larga escala e de barateamento das construções. A organização 6 racional indica sempre o processo mais acertado de realizar determinado trabalho, isto é, pela forma simultaneamente mais simples, mais econômica e mais segura (Boletim do Ministério do Trabalho - 1935). Assim, a racionalidade ou funcionalidade na construção geraria habitações baratas e funcionais, produzidas em larga escala. Atende aos anseios do Estado e ao capital, dinamizando a economia através da construção civil. Para os urbanistas racionalistas ou funcionalistas como também eram conhecidos era fundamental uma rígida subordinação das partes ao todo, homogeneização do alto – é encarada como uma ferramenta para manutenção da ordem social, ao produzir o homem-tipo ideal (MEDEIROS, 2007, p.30). O ataque pelo alto pode-se dizer, comporta um projeto global, submetendo o território nacional a um ‘planejamento’ comandado pela industrialização. Dupla exigência, duplo postulado: o espaço inteiro deve ser planificado. As particularidades dos sítios e situações devem desaparecer face às exigências gerais, tecnicamente motivadas” (LEFEBVRE, 2002, p. 91). Carpintéro (1997) também destaca a racionalidade aplicada na arquitetura das casas populares, evitando toda superposição decorativa e fazendo dos próprios elementos estruturais do edifício os motivos de beleza arquitetônica. Procurava-se conhecer melhor os recursos dos materiais de construção para melhor controlar sua utilização. Em relação à moradia popular, também se registra a racionalidade aplicada à regulamentação e moralização do comportamento dos habitantes. Assim, destaca Carpintéro (1997) as práticas com relação à higiene, ao afastamento de pessoas estranhas no interior da casa, à separação de moças e rapazes, além de uma forte vigilância sobre o comportamento do marido, no final das jornadas de trabalho, foram atitudes consideradas importantes para a reputação e a dignidade da família trabalhadora. A moradia foi o palco de estudos e discussões dos cientistas a respeito da higiene e moral das famílias de baixa renda, sendo o espaço pensado de forma a favorecer o descanso entre uma e outra jornada de trabalho. Inúmeras críticas, conforme aponta Carpintéro (1997), foram feitas aos urbanistas racionalistas quanto a monotonia dos ambientes criados, o incentivo à rarefação das relações sociais, ao fato de colocarem as massas trabalhadoras em caixas, gaiolas, ou “maquinas de habitar”, com o intuito de uniformizar, controlar e homogeneizar. Nesse paradoxo de incentivar os sonhos e apresentar uma difícil realidade, Harvey (1998) afirma o capitalismo “produz de um lado, a sofisticação das necessidades e dos seus meios, e, de outro, uma bestial barbarização, uma completa, brutal e abstrata simplificação da necessidade’”, para 7 depois prosseguindo, afirmar que “o reforço do fetichismo surge da dinâmica da troca de mercado, onde a propaganda e a comercialização anulam todos os vestígios da produção em suas imagens. 4. A distopia no urbano moderno – o caso do “Feijão Semeado” em Montes Claros De acordo com Berriel (2005) a distopia nasce da utopia, sendo ambas expressões intrinsecamente ligadas. Para ele, há em toda utopia algo distópico, quer seja implícita ou explicitamente. E também em toda distopia há elementos utópicos. “A utopia pode ser distópica se não forem compartilhados os pressupostos essenciais, ou utópica a distopia, se a deformação caricatural da realidade não for aceita” (BERRIEL, 2005, p.26). Na distopia revela-se o medo da opressão totalizante e se constitui num oposto especular da utopia. Margareth Mead (citada por BERRIEL, 2005) afirma que há que se considerar a relatividade do par utopia-distopia, uma vez que o que pode ser considerado o paraíso para alguns se constitui num pesadelo para outrem. O sonho de um utópico gera o pesadelo da distopia. Num contexto relativo a estudos literários, Szachi (1972, citado por PAVLOSKI, 2005, p.43) apresenta a distopia como uma utopia negativa ou como uma forma complementar da classificação da utopia. Isto porque ambas são formas de “‘consaguinidade ideológica’ que as torna extensões de um mesmo posicionamento crítico e de um semelhante processo criativo. Nos dois tipos de produção ocorre a contraposição da realidade a alguma forma de ideal social com o objetivo de promover, no mínimo, uma reflexão sobre os elementos do universo experimental tidos como falhos”. Para além do maniqueísmo que impera, o conceito de distopia se torna mais complexo ao englobar facetas de utopia em seu cerne e aponta que, de fato, há uma impossibilidade em criar um modelo social que agrade ao ideal de todos ao mesmo tempo. Como foi visto, na vertente da utopia está o desejo de encontrar uma moradia e o ideal governamental de favorecer o acesso à moradia de forma satisfatória aos que dela necessitem, inserindo-se também a vertente da ideologia neste último caso. Para compreender a distopia, tomaremos como exemplo agora o caso do bairro Cidade Conferência Cristo Rei, localizado na região leste de Montes Claros e foco de pesquisa realizada por Rodrigues (2014), enfocando as representações sociais que os moradores têm com relação à cidade e ao seu bairro de residência. É verificado que, mais do que desejo de participar dos programas sociais de 8 habitação, os moradores desejam e demandam melhorias no entorno e maior reconhecimento social do bairro, ou seja, pautando-se em sua realidade cotidiana os moradores propõe uma outra utopia, ou uma distopia na qual a realidade que estão construindo seja valorizada em detrimento do ideal imposto pelo urbano e pelas políticas públicas de habitação. O trabalho de Rodrigues (2014) objetivou identificar e analisar as representações sociais que os moradores de um território estigmatizado têm com relação ao seu lugar de residência e às suas relações interpessoais. A pesquisa empírica foi realizada num bairro estigmatizado da cidade de Montes Claros, situada no estado de Minas Gerais, Brasil, chamado Cidade Conferência Cristo Rei. Montes Claros se caracteriza como cidade de porte médio, com uma população estimada em 385,9 mil habitantes em 2013, segundo IBGE, marcada por problemas próprios da industrialização-desindustrialização, êxodo rural, intenso crescimento urbano, sendo a cidade pólo, lugar central de uma região que passa por um processo de desenvolvimento e de mudanças estruturais. A pesquisa buscou conhecer uma determinada realidade e aprofundar-se tanto teórica quanto empiricamente e para isso foi escolhido o estudo de caso, por permitir maior aprofundamento dos temas em tela, haja vista os mesmos serem complexos: estigmatização territorial, desigualdades sociais, relações sociais de espaço e representações sociais são temas que cada qual exige um grande esforço empírico e teórico para serem esclarecidos. A primeira etapa da pesquisa exploratória consistiu na aplicação de 53 questionários na região central de Montes Claros, sendo que a amostra selecionada constituiu-se por 31 (58,49%) pessoas do sexo feminino e 21 (41,51%) do sexo masculino, sendo que as pessoas foram escolhidas aleatoriamente, não obedecendo a critérios pré-estabelecidos. Uma das questões apresentadas aos entrevistados no questionário consistiu em pedir-lhes que citassem o nome dos três piores bairros de Montes Claros, não lhes sendo fornecido nenhum critério no qual pudessem embasar sua escolha. As respostas surgiram praticamente de forma automática e os entrevistados não aparentaram dificuldades em responder à questão, cujo resultado pode ser visto a seguir: 9 Gráfico 1: Bairros assinalados pela amostra como os piores de Montes Claros Fonte: Banco de dados resultante da aplicação de questionários na área central de Montes Claros, jun./jul.2013. Foram citados 48 bairros diferentes, sendo que além destes bairros apresentados no Gráfico 1, há ainda mais 10 bairros que foram citados 2 vezes cada um (Alterosa, Independência, Canelas, Major Prates, Nova Suíça, Vila Mauriceia, JK, Vila Castelo Branco, Santa Cecília, Vila Atlântida) e 23 bairros, que foram citados apenas uma vez (Conjunto Zé Carlos de Lima, Ciro dos Anjos, Vera Cruz, Monte Carmelo, Santa Laura, Alto São João, Clarice Ataíde, Vila Regina, Vargem Grande, Conjunto Joaquim Costa, São Geraldo II, Alice Maia, Maracanã, Dr. João Alves, Centro, Vila Sion, Nova Morada, Vila Camilo Prates, Santo Antônio I, Vila Real, Vila Tupã, Santo Amaro, Mangues). O bairro Cidade Conferência Cristo Rei, que é o foco desta pesquisa, foi assinalado 31 vezes, ou seja, 31 pessoas da amostra consideram-no como um dos piores bairros de Montes Claros. Tal valor corresponde a uma porcentagem de 58,49% dos entrevistados. Dentre os moradores que consideram o Cidade Conferência Cristo Rei como o pior bairro (31 entrevistados = 100%), 58,06% (18 pessoas) o colocaram em 1º lugar como o pior, 22,58% (7 pessoas) o colocaram em 2º lugar e 19,36% (6 pessoas) o colocaram em terceiro lugar. Tomando como base o total de respostas apresentadas para a questão (N = 159), uma vez que foi pedido aos entrevistados que citassem os 3 piores bairros de Montes Claros, as 31 respostas 10 correspondem a 19,5% do total, sendo que o segundo bairro mais votado, o Chiquinho Guimarães, corresponde a 9,43%, ou seja, aproximadamente 10% menos que o Cidade Cristo Rei. Em relação ao terceiro colocado, o bairro Santos Reis, que obteve 6,92% das respostas, há uma diferença de mais de 12%. Em entrevista aos moradores, estes assinalaram uma série de aspectos negativos no bairro e que vão de encontro aos ideais utópicos e também aos ideológicos que marcam a historicidade das políticas habitacionais brasileiras: os moradores sofrem forte estigma devido ao local de residência (conforme visto no Gráfico 1, acima) em diversos âmbitos (escola, trabalho, atendimentos na rede de saúde, em situações da vida diária tais como compras, dentre outros); o bairro é marcado por uma série de privações, sobretudo concentradas na ausência de limpeza urbana e opções de lazer e um aspecto característico do bairro é o controle realizado pelo tráfico juntamente com os embates com a polícia. Diante deste panorama, os moradores se mantêm “fiéis” aos vínculos interpessoais construídos no bairro e a história singular de cada família, recusando-se a mudar para condomínios populares ou conjuntos habitacionais, como já lhe foi sugerido. Este caso do Cidade Conferência Cristo Rei mescla tanto os aspectos da ideologia quanto da utopia/distopia. Ideologia no sentido de que, os que lá residem buscam de fato a casa própria e se fazem semelhantes a muitos que também compartilham tal desejo e vemos as políticas habitacionais sendo ofertadas neste sentido. Na vertente da utopia, percebemos que o vínculo que criaram com o seu lugar está associado a uma ideia de moradia, de afeto, de convivência, de estar junto, de família, dentre outros. E na vertente da distopia, vemos toda uma serie de negatividade que marca este panorama e se opõe tanto à ideologia quanto à utopia. Mostra ainda o quão intricados estão estes três conceitos. CONCLUSÃO O presente trabalho foi desenvolvido tendo a construção do sonho da casa própria como objeto de análise, onde se buscou mostrar desde aspectos conceituais (utopia/distopia/ideologia), históricos (breve história de políticas habitacionais no Brasil) até aspectos empíricos (resumo de pesquisa). 11 No Brasil, em uma racionalidade moderna, percebe-se um ideal de valorização de propriedade, juntamente com um ideal de urbanização. Há que se observar ainda que o desejo de moradia passa a ser comum a boa parcela da população, sendo que este pode muitas vezes ser colocado em prática mediante situações que colocarão as famílias em dívida. Ao apresentarmos o exemplo do Cidade Conferência Cristo Rei objetivou-se mostrar que há de fato os discursos da utopia, da distopia e da ideologia marcando a racionalidade moderna no campo da construção/habitação. E mais ainda, que é possível fazer uma análise do contemporâneo tomando tais conceitos por base. REFERÊNCIAS: ARAÚJO, A.C.S. 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