SONHO E UTOPIA Quem está seguramente convencido de que 2+2=4, deve sua tranqüilidade ao fato de ignorar que está lidando com um sistema de notações, o sistema decimal, no seio do qual 4 objetos, somados dois a dois, têm sempre esta mesma notação. Mas se o sistema notacional for outro, por exemplo o binário, dos computadores, quatro objetos já não se representam mais pelos mesmos algarismos do sistema decimal e sim pelo número 100. Ha inúmeros sistemas notacionais, cada um com sua coerência interna. Cada sistema notacional descreve os fatos da realidade, os mesmos fatos, de uma forma diferente, o que não implica em alterar os fatos. Cada língua humana ‚ um sistema notacional gráfico e fonético, referido a objetos, a ações e a emoções do cotidiano. Por exemplo Janela, Window e Fenêtre são diferentes notações para um mesmo objeto, que não deixa de ser o que ‚ quando o nome pelo qual ‚ referido pertence a diferentes sistemas notacionais, línguas diversas. A famosa anedota que define o psicótico como aquele que sabe que dois mais dois são quatro mas não se conforma, deixa bem claro que falta ao psicótico um sistema notacional capaz de representar suas vivências exóticas, que expressas pelos termos do sistema notacional neurótico, comum, resultam extravagantes e incompreensíveis. Ainda hoje me lembro da expressão de terror e perplexidade de um paciente, que mandou me chamar … enfermaria. para eu lhe explicasse a expressão "bundas acéfalas", que não lhe saia da mente, gerava angústia e impedia o sono. Faltava-lhe um vocabulário capaz de nomear adequadamente as vivências psicóticas que o assaltavam. Os objetos as ações e as emoções humanas têm uma notação peculiar que os representa por diferentes palavras nas diferentes línguas humanas, sem que isto signifique que s¢ uma pode ser a correta. A representação dos fatos se distingue dos fatos, tanto quanto um mapa que representa um território se distingue do território, é só uma representação dele. Os sistemas notacionais são representações, e melhor dizendo, são interpretações de quem observa e descreve. Teorias são sistemas notacionais complexos que começam por descrever fatos, aparentemente, simples. Em seguida vão se agregando outras descrições de novos fatos e as teorias vão ficando cada vez mais abrangentes, até que se constroe uma imagem do mundo. Cada imagem de mundo, cada teoria, contem inevitavelmente uma imagem do homem como representação central. Se a teoria é religiosa o homem é tido por feito à imagem e semelhança de Deus e se a teoria é científica, é o inverso, Deus é antropomorficamente representado. Quando a imagem do mundo se completa é comum entre os humanos, confundir o mundo com a imagem que dele se construiu, o mapa com o território. Quando o mundo, isto é, quando o que acontece dentro do mundo, está suficientemente confundido com um sistema notacional que o representa, começa a intolerância para com os que não comungam do mesmo sistema notacional, a mesma teoria, o mesmo credo. O proselitismo vem em socorro dos que têm a esperança de converter os outros a um sistema notacional único, que agora quer ser exclusivo, e, ele só, verdadeiro. É crer ou morrer, como se fazia nos tempos da Inquisição, onde quem não adotasse o sistema notacional da Igreja Católica, sua concepção de mundo (o Geocentrismo ptolomaico), devia morrer e era morto, queimado em fogueiras. Galileu, como se sabe, que esposava o Heliocentrismo, escapou de ser morto porque mentiu perante o Tribunal da Santa Sé. A utopia católica não desconfiava de mentiras concordantes. Ha uma tendência humana de querer que ninguém difira, de procurar o semelhante, a outra metade que o mito do ser perfeito de Platão autorizava buscar. O amor tem seus mitos. A Homeopatia fundamenta seu sistema terapêutico na aplicação de substâncias tidas por produzir no paciente sintomas iguais aos que a enfermidade produziu. O mito de Narciso é um exemplo desta mesma tendência, que Caetano Veloso incluiu em seu excelente "Sampa": "Narciso acha feio tudo o que não é espelho". Até aí tudo bem. Mas a coisa não fica nestes limites. A tendência de procurar o semelhante termina por se converter num imperativo, de que resultam as tiranias: a da moda no campo da estética, a da religião no campo da ética, a tirania da escola no campo da ciência e a do partido no campo da política. É claro que as tiranias não mostram a sua verdadeira face. A estética afivela a máscara do "bom gosto" ou da "beleza", a ética fala em nome do "bem" ou da "salvação", a ciência fala em nome da "verdade" e da "perfeição técnica" e a política fala em nome da "justiça" ou da " igualdade". Ha um sonho em cada uma destas promessas da tirania, mas um sonho que não tem a evanescência dos verdadeiros processos oníricos, de que o sonhador desperta, para viver um novo dia, sem poder fazer a previsão de seu próximo sonho. O sistema notacional dos sonhos carece de organização lógica e por isso se presta mais e melhor ao "palpite do bicho" ou … interpretação do psicanalista. As utopias também são sonhos, mas são sonhos que nos sonham e dos quais não é fácil acordar porque não é dormindo que as sonhamos. As vezes duram um século, às vezes mais e às vezes menos. Leva tempo, mesmo depois de já se terem esboroado, descrer de uma utopia. Quem consegue enterrar seus mortos sem um penoso velório, ao longo do qual crer e não crer na morte do morto são momentos que se alternam dentro da gente? Chega-se às vezes a ter a impressão de que o cadáver respirou ou mexeu discretamente um dedo. O sistema notacional das utopias tem uma estrutura lógica e se presta à confusão do fato com o sistema notacional que o interpreta e a um só tempo o descreve. Lembro-me de um churrasco a que compareceram vários amigos e colegas de diferentes escolas, religiões e credos políticos. Na ocasião, por coincidência, a utopia comunista vergava ao peso dos pecados de que ela pretendia livrar a humanidade, pela instalação de um regime que se propunha corrigir as desgraças humanas pela modificação das relações de produção. Disse que a utopia vergava, mas teria sido melhor ter dito que um "efeito dominó" derrubava o regime em todas as Repúblicas Socialistas Soviéticas, peça por peça. Um dos amigos, que acabava de chegar, dirigiuse a mim e lançou uma proclamação enfática : - o comunismo não morreu! Ocorreu-me citar o episódio para exemplificar o quanto é difícil suportar o desmoronamento de um sistema notacional. O que não havia morrido, em verdade, não era o comunismo, mas os problemas humanos que ele acreditava poder resolver. Não deixa de ser difícil, e menos ainda doloroso, perder os sonhos que nos sonham, as utopias, e sentir-se, de repente, naquela terrível situação que Carlos Drumond de Andrade descreve em seu poema José:" ... a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia, e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora José?" As utopias do capitalismo sustentam-se na UTI de um sem número de slogans, dos quais me ocorre, no momento, citar um que todo mundo acha engraçado: "é melhor chorar dentro de uma Mercedes que dentro de um Fusca". O culto da riqueza é uma utopia que data do início dos tempos. O rico tem uma platéia cativa que atravessa a barreira das gerações, estribada nos contos de fada e na ilusão partilhada de que para ser feliz basta ser rico e é necessário sê-lo. Quem ficou rico sabe que isto não é assim, mas não passa recibo neste amargo reconhecimento, porque dedicou toda sua vida ao acúmulo de bens por preços inconfessáveis, ou pelo culto de uma utopia de que não consegue se livrar. Quem herdou imagina-se dispensado destas reflexões como se o desfrute de uma ou de múltiplas heranças não pudesse se conceituar como receptação geracional. A riqueza é uma obesidade social que decorre de uma acumulação desnecessária e transbordante de gordura monetária e patrimonial. Mas, contrariamente à obesidade metabólica, que é inestética e publicamente apedrejada, a obesidade social é aplaudida e publicamente laureada. No mundo capitalista a obesidade financeira é representada como indicador de saúde social, como se pudesse sê-lo. A unidade celular da obesidade financeira, a moeda, converteu-se no fetiche dos fetiches. Mas se a riqueza, como o sabem os ricos, não garante a felicidade com que todos sonhamos, porque é que a lona do circo do mundo capitalista não cede ao peso de suas insconsistências, tal como ocorreu à lona do Circo de Moscou? A resposta não é simples e não se pode ficar seguro de tê-la respondido, mesmo depois de tê-lo feito. Poucos se convencem,(mesmo os que citam) da afirmação de Cristo de que o reino dos céus não é dos ricos. E uma das razäes dessa descrença reside em que lhes parece factível criar o reino dos céus dentro dos limites garantidos pela gravidade terrestre. Para dar corpo concreto a esta representação constroe-se um cenário que contem as arvores frutíferas do paraíso e mais: a banheira de hidromassagem, o clima ameno, a piscina termo ajustada, o som estereofônico e de alta fidelidade, e a vigilância video-garantida. Ha condomínios assim. Nos "resorts" das promessas paradisíacas oferece-se também um cassino onde a expectativa de ficar rico fecha o circulo vicioso de ganhar, no "paraíso" o dinheiro de que se precisa para viver nele, sem ter que suar pelo sustento da vida. A utopia do paraíso alicerçado na riqueza tomou o lugar das utopias religiosas que se sustentavam na oração, nos sacrifícios rituais e nas renuncias. Mas a riqueza não é um puro deleite. O sistema notacional que a descreve não informa que o medo de perder o que se tem contrabalança o sabor da posse. Os ricos se sentem minados pela desconfiança de que seus amigos estão mais movidos pela ambição que pela amizade. Desconfiam do amor porque ele pode esconder a cobiça e não conseguem acreditar no desprendimento pela radical circunstância de estarem muito mais prendidos ao que possuem do que ao amor. Obrigam-se a viver uma vida onde as melhores e mais apreciadas qualidades humanas não inspiram confiança. A segurança pessoal tem que ser garantida por uma guarda privada, que por conhecer bem os seus hábitos termina por assalta-los ou por passar informações a assaltantes. Quando o seqüestro os ameaça de perder algo que vale mais que o dinheiro descobrem que o que vale é a vida. Mas a esta altura a utopia da riqueza já contaminou os seqüestradores e já instalou o "efeito Orloff": o seqüestrador de hoje é o seqüestrado de amanhã. A proverbial avareza dos ricos é bem uma medida da tortura de gastar o que têm e da necessidade de ganhar sempre mais porque quanto mais se tem mais cresce o temor da perda e maior é a insegurança. Para mitigar a insegurança é preciso ganhar mais, fazer novos investimentos e correr novos riscos, que se derem certo trarão a utópica tranqüilidade do paraíso. Como nunca se chega ao último degrau desta escada uma segunda geração recebe das mãos da primeira o bastão da utopia. Mas a essência da riqueza não reside no seu desfrute, perturbado por todas estas angústias. A essência da riqueza está mais em proibir os outros de ter acesso a ela. Quem não conhece o muro alto das casas milionárias e o preço alto dos clubes privés? Os aviões de vôo internacional são maquetes dinâmicas da estratificação social que nos define. Quem voa de "classe turista" (doce eufemismo) sabe o que é espremer-se numa poltrona à qual falta o espaço excedente das poltronas da primeira e da classe executiva. Sabe também que não adianta apertar o botão para chamar a aeromoça porque ela não virá. Quem vai de primeira não tem tempo de alcançar o botão para chamar a aeromoça porque pintam duas quando o braço alcança a altura da cabeça. E tome brinde: chocolate, perfume, sapatilhas, papel de cartas, envelope, esferográfica, cartão postal, uma taça de champanhe e a indefectível pergunta: Salmão ou Caviar? A aeromoça tem os canapés das duas iguarias em salvas de prata. Antes de que seja poss¡vel articular uma resposta, a aeromoça ao lado dispara: Whisky ou Champanhe? Lembro-me de que "docemente constrangido" "fui obrigado" a viajar de primeira classe, num desses dias em que a confusão das empresas aéreas as obriga a todo tipo de concessões. Já na primeira classe eu me levantei e me aproximei da escada que levava ao primeiro andar de um Jumbo, para conhecer. Uma aeromoça voou em minha direção para proibir-me a pequena excursão, mas teve o cuidado de perguntar primeiro onde eu estava sentado. Apontei-lhe o meu lugar na primeira classe e seu rosto se transformou num sorriso de consentimento. Não fosse eu estar na primeira classe e meu passeio teria sido proibido, porque a primeira classe ‚ um lugar sagradamente interditado a quem voa de "turista" ou de "executivo". A riqueza não garante o céu, já o sabemos, não garante a felicidade, mas faculta criar a ilusão de que minha posição é boa porque ha alguém interditado. Como posso ser insensível ao mal estar de outro se é esse mal estar que, por contraste, me define como melhor que ele? Como posso deixar de ser sensível a esse mal estar, se no reconhecimento da diferença reside o gozo da riqueza? A capacidade de dizer não ao outro e de proibi-lo serve para definir a riqueza e o poder. No fundo a riqueza e o poder se confundem porque um é afluente do outro e ambos desaguam no mar da utopia. O mundo socialista trocou a riqueza pelo poder. Quem tinha o poder se permitia os mesmos desmandos dos que, no mundo capitalista, tinham o dinheiro. Coincidentemente, no mundo capitalista quem rasga dinheiro é doido, no mundo socialista quem contestava o regime era internado. É como se a loucura estivesse na contestação da utopia e não na utopia. Não mudou a natureza intrínseca do processo, mudou a moeda. A lona do circo capitalista também cai, mas como o sistema não é coletivista a queda é intervalar. A frequência com que se desmoronam as utopias é diretamente proporcional à ilusão que está contida no sistema notacional, na teoria que descreve o homem e o mundo. *Analista Didata, Ex-Presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. Vice Presidente da Sociedade Brasileira de Vitimologia. Utopia Título original: Sonho e Utopia. Publicado no JB em:20/07/91 Entre o Sonho e a Utopia