Os Poemas são as Crianças
MT Gregório Pereira de Queiroz1
“São as ilhas afortunadas,
São terras sem ter lugar...”
Fernando Pessoa
Resumo
Este
trabalho
traça
um
paralelo
entre
o
trabalho
musical
e
musicoterapêutico de Paul Nordoff e André Luiz Oliveira, mostrando sua
musicalidade em ação, primeiro musicando poemas, a predileção do
trabalho musical dos dois artistas, e depois “musicando as crianças”, no
trabalho musicoterapêutico com crianças autistas.
Palavras-chave: música, poesia, criação musical, improvisação clínicomusical com autistas.
Abstract
This article proposes a connection between the musical and the musictherapeutic work of Paul Nordoff and André Luiz Oliveira, showing their
musicality in action, firstly doing music with poems, the artists’ interest, and
then, “musicing” the children, in the therapeutic work with the autistic
population.
Keywords: music, poetry, musical creation, clinical-musical improvisation
with autistics.
Paul Nordoff era um artista, músico com sólida formação erudita e importante
carreira como concertista e compositor, muitos anos antes de se dedicar à terapêutica de
crianças autistas por meio da música. É conhecido que ele veio a se interessar pela
utilização da música no tratamento de crianças, a partir de seu encontro com Clive
Robbins na Sunfield Children’s Home, na Inglaterra, em 1959 (Robbins e Robbins,
1998, p. xvii).
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Gregório Pereira de Queiroz – Arquiteto, formado pela FAUUSP; especialista em Educação Musical
com área de concentração em Musicoterapia, pela Faculdade de Música Carlos Gomes; especialista em
Musicoterapia, pela Faculdade Paulista de Artes.
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Paul enquanto artista e compositor, antes de se tornar musicoterapeuta, musicava
poemas; colocava em música as palavras de versos pré-existentes à música. Segundo
Clive Robbins,
“Ele adorava escrever canções sobre poemas. Pegava um
poema e musicava. Nunca fazia o oposto. . . Eu estava neste
pequeno balcão, olhando para baixo e lá estava o piano e Paul.
Ele primeiro lia os poemas e depois tocava a música feita. Eu
nunca tinha visto um homem tão aberto e tão direto com o
público. E os poemas eram maravilhosos. Eram sobre a vida,
sentimentos, luta, amor, mistério e misticismo, mas lidos de uma
maneira especial. E aí ele tocava sua música e eu entendia a
liberdade dela: entendia porque a tinha feito; como as palavras e
a música se juntavam e o poder de expressão que saía delas.”
(Robbins, 2002)
Antes de se dedicar ao trabalho musicoterapêutico com crianças, Paul Nordoff
apreciava colocar seu conhecimento e habilidade musical, assim como sua musicalidade
inata, a serviço dessa arte delicada de colocar poemas em música, de extrair de um texto
artístico sua musicalidade, tornando-a aparente e visível em música. Musicar poemas
pressupõe reconhecer a dinâmica musical inerente ao poema e colocá-la em notas
musicais. É compor uma obra musical que traga à luz a musicalidade do poema.
Paul Nordoff teve especial predileção por musicar poemas do poeta
estadunidense Edward Estlin Cummings, conhecido pelo uso preciso da palavra em sua
espacialização escrita no papel, e um dos expoentes da moderna poesia do século XX.
Dentre eles, Nordoff musicou “Up into the silence”, “Doll’s boy’s asleep” e “(sitting in
a tree)” dentro do ciclo de canções que compôs: “Eight Songs to Poems by e e
cummings”.
Interessante que outro compositor que musicou poemas, e o fez com especial
maestria, Robert Schumann, e utilizou poemas dos melhores poetas de seu tempo,
também compôs música para crianças. Seja para elas tocarem ao piano, como no
“Álbum para a Juventude”, op. 68, mas muito particularmente na música que retrata o
universo da criança, as famosas “Cenas da Infância”, op. 15. Haverá alguma ligação
desconhecida entre esse anseio por musicar poesia e o de se dedicar musicalmente ao
universo infantil?
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André Luiz Oliveira, cineasta e musicista, teve por algum tempo a direção de
cinema como seu trabalho principal. Embora houvesse trabalhado como músico,
compondo, cantando e tocando, seu encontro fundamental com a música, e com sua
própria musicalidade, se deu ao musicar poemas do livro “Mensagem”, de Fernando
Pessoa, no ano de 1984. Primeiro, musicou uma série deles, e atualmente colocou em
música todos os 46 poemas curtos deste livro.
A partir de 2007, começa a atuar junto com Clarisse Prestes, especializanda em
Musicoterapia, atendendo crianças autistas. Por meio do contato com Clarisse, André
tomou contato com o uso da música em terapia e foi tomado pelo entusiasmo quanto às
possibilidades da música para o acesso, a comunicação e a comunhão com estas
crianças de difícil relação com o mundo à volta delas.
André Oliveira e Paul Nordoff têm significativos pontos em comum em suas
trajetórias: o gosto por musicar poemas, por colocar em música as palavras trabalhadas
poeticamente; a passagem de seu interesse, enquanto músicos, da criação e execução
musical para o uso clínico da música; e que esta passagem se deu por meio do contato
com um parceiro terapêutico, no cuidado com crianças especiais.
Musicar poemas é diferente de escrever uma canção. A canção nasce letra e
música. Se não ao mesmo tempo, nascem uma para a outra, não importando a ordem em
que são feitas: se primeiro a música, para então compor uma letra para ela; ou se
primeiro a letra, para depois compor a música, que completará o fato de ser uma letra
nascida canção.
A canção nasce como um todo, mesmo que a feitura da letra e da música se
suceda no tempo.
Musicar poemas parte de algo já existente, o poema escrito, e que existe não para
ter relação com a música nem para ser adaptado ou transformado em outra obra
artística. O poema nasce para ser o poema que é.
Musicá-lo é dar a ele uma nova vida como obra de arte, uma vida que
originalmente não era a dele. Se no resultado final, em ambos os casos, temos canções
(isto é, música e palavra unidas indissociavelmente), o processo que levou a um e outro
caso são bastante diferentes.
Musicar um poema é trazer à luz a música, ou musicalidade, inerente ao poema;
é criar música a partir de um estímulo definido, o poema; estímulo este a ser respeitado
e honrado pela música. Esta não tem a liberdade da criação solta de uma canção
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qualquer2, mas tem o compromisso de dar voz à música contida no poema – ou, mais
precisamente, de dar voz a uma das talvez várias possibilidades musicais contidas no
poema. Em alguns casos, ainda, o musicista dará ao poema uma voz que não estava
inteiramente presente no poema, mas com a qual o poema ganha em sua própria poesia
e em música.
Este trabalho de trazer à música uma musicalidade inerente à obra poética em
pouco ou nada difere do trabalho de trazer à música a musicalidade de uma criança – e
junto com sua musicalidade, trazer à música e à vida muitos de seus potenciais antes
adormecidos – adormecidos por diversos motivos, dentre eles, em se tratando de
crianças especiais, sua própria condição física e psíquica.
Produzir música, improvisar e compor, a partir do estímulo que lhes é dado por
uma entidade viva, seja poema ou criança, é o ponto de convergência entre Paul Nordoff
e André Oliveira. Estes dois musicistas viram, nestas duas atividades, uma mesma
atividade: expressar música em nome de uma entidade viva que tocou profundamente
sua sensibilidade. Se na primeira etapa de seus trabalhos, enquanto musicistas, Nordoff
e Oliveira musicaram poemas, na segunda etapa, enquanto musicoterapeutas,
musicaram crianças. As crianças passaram a ser seus poemas inspiradores à música. As
crianças são os poemas.
O exercício de musicar poemas, ou alguma outra entidade cujo cerne contenha
musicalidade inerente, talvez seja um treino necessário para quem pretende se tornar
musicoterapeuta – em especial, dentro do espírito proposto pelo Músico-centramento.
Musicar poemas é um exercício no qual nossa musicalidade desempenha sua
capacidade de estabelecer relação com a musicalidade da outra entidade. Sendo o
poema uma entidade sem vida biológica, pode-se deixar de lado certos cuidados e
responsabilidades presentes quando nos relacionamentos com seres vivos. Isto facilita a
despreocupação com fatores outros e a concentração na questão central: a relação entre
as duas musicalidades, a do poema e a do musicista3. Este treino é particularmente
fecundo para quem irá trabalhar na interação entre musicalidades, como ocorre na
relação entre musicoterapeuta e paciente. Deveria constar da formação dos
musicoterapeutas, não apenas como um exercício de habilidade musical e verbal, mas
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Se é que há essa liberdade, realmente, para algum trabalho verdadeiramente artístico.
O poema, embora não seja um ser biologicamente vivo, contém certas características “vivas” inerentes à
obra de arte, como seu movimento interno orgânico e sua relação direta com a vida humana, sua
capacidade de articular a vida.
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principalmente pelo exercício de relação e pelo aprendizado de respeito à musicalidade
presente na entidade com a qual nos relacionamos musicalmente.
A música para um musicoterapeuta tem um sentido muito particular. Não se trata
apenas de diversão, muito menos de dever; não se trata de auto-expressão, mas de meio
de interação e comunhão; não se trata de requinte estético apenas, mas de humanismo
no seu sentido mais pleno.
Assim, mais do que apresentar execuções musicais bem feitas, ou esforços
musicais pungentes por parte daqueles para quem estes são particularmente difíceis, a
apresentação dos resultados de um musicoterapeuta ao trabalhar sua própria
musicalidade, como no presente caso da elaboração de canções sobre poemas, talvez
traga um novo sentido para a presença de uma performance musical em um evento
voltado ao desenvolvimento de nossa formação e profissão.
Referências Bibliográficas
ROBBINS, C. & ROBBINS, C. Healing Heritage: Paul Nordoff Exploring the Tonal
Language of Music. Gilsum: Barcelona Publisher, 1998.
ROBBINS, C. Entrevista com Clive Robbins. Revista Brasileira de Musicoterapia. Rio
de Janeiro: UBAM, nº 6 ano V, 2002.
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