A educação para uma sociedade cosmopolítica Education pour une société cosmopolitique José Manuel Carmo Ferreira (Universidade de Lisboa) Não sou perito em ciências da educação; pouco mais posso invocar do que a minha condição de docente ao longo de perto de quarenta anos, nomeadamente como professor de Ética, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, para procurar reflectir convosco, tomando como fio condutor a questão nuclear do presente Colóquio - Ética e Valores na Educação - enunciado que alude a um intrincado mundo de problemas, tão complexo e tão controverso quanto possível. Tentarei a abordagem do tema, efectuando aquele “passo à retaguarda" que é próprio dos filósofos, isto é, focando as razões de fundo e a força do implícito que percorre a experiência dos agentes do processo educativo, a configuração presente da realidade escolar, deixando a outros, mais competentes, o traçado empírico dos elementos que, no plano institucional, dão corpo a práticas e a técnicas, a decisões e orientações, a sonhos e a constrangimentos. A urgência e a perplexidade em encontrar um princípio de resposta para o questionamento da exigência ética no trabalho educativo, da justificação e da operacionalidade desta exigência arrancam da percepção de muitos modos atestada de uma desvalorização da Escola, de que a esta se arrisca a aparecer ou a ser vivida como um desvalor. A linguagem de "crise" com que se tenta dar voz a um sentimento generalizado de desconforto, de indefinição, de contradições e de impasses, testemunha-o bem. Não vale relativizar e anular na sua especificidade esta situação crítica, a dureza de uma experiência de todos os dias, submergindo na muito mais ampla crise da sociedade, ou da época, ou da cultura global, essa situação. A Escola não é só, nem sobretudo, um reflexo especular da vida social, mera receptividade passiva do meio. Ela possui uma fisionomia própria, tem uma entidade específica, uma função social única, e é isso que está principalmente em causa na turbulência actual, e é nesse estatuto fundador que se tem de procurar o impulso para encontrar uma justificação renovada e para passar a outra ordem de realidades e instalar uma forma de convivência, razoável do ponto de vista ético. A educação constitui-se num compromisso em permanente tensão entre o dever da memória, um património a transmitir, histórico e cultural na acepção mais abrangente, e uma dimensão prospectiva, a imaginação do futuro; ela é da ordem dos fins a propor e da invenção do sentido possível para a interconexão e para a interacção dos indivíduos. A educação tem de ser encarada como o esforço por enviar sondas vivas, não ao espaço extraterrestre, mas às fronteiras do porvir, como o trabalho de viabilizá-lo na responsabilidade e na satisfação do que mais importa aos seres humanos: uma existência digna, liberta de violências e de penúrias. A Escola foi, tem sido historicamente, com as limitações habituais em tudo o que é humano e os condicionamentos histórico-sociais inerentes, com as derivas de todos os regimes e de todos os sistemas, um lugar de identificação e de socialização dos indivíduos, e a educação, em tantas instâncias, sob diversíssimas formas e conteúdos, assume-se como um processo de construção da identidade pessoal e de reconhecimento inter-humano. Ora é justamente esta dupla dimensão, irrevogável se a Escola pretende subsistir na sua autenticidade de instituição de apoio ao crescimento humano, que está posta em questão. E não será com tecnologias de ensino e aprendizagem, nem com doutrinas redutoras e indigentes que recorrem a uma racionalidade utilitarista, funcionalista ou simplesmente operatória, muito menos com a transigência ou a demissão 24 perante os ídolos do presente, com a submissão sem critica aos poderes do dia, que a Escola cumprirá o que lhe compete, formar a inteligência e a sensibilidade para uma acrescida humanidade, na atenção e com o cuidado dos tempos que são os nossos; só então abrirá para uma razão sapiencial, respeitando o antigo aforismo que não perde validade – non schoae sed vira discimus - não aprendemos para a escola, mas para a vida. Conserva toda a pertinência a doutrina kantiana que estratifica em quatro níveis o processo educativo, não como fases a serem sucessivamente ultrapassadas, mas como aspectos diferenciados a manter sempre vigentes: disciplinar, cultivar, civilizar, moralizar. Disciplinar - a aprendizagem da força das coisas e do valor das codificações de ordem vária para permitir a comunicação com sentido, no esforço, a um tempo, de auto contenção e de autocontentamento pelo autodomínio conquistado, ou dito sob o modo interrogativo: como unir a submissão à regra com a faculdade de se servir da sua liberdade? Cultivar - o cerne propriamente dito da educação, a atingir pela arte e pela ciência, pela assimilação da experiência acumulada e pela aventura da descoberta dos fins irrecusáveis, cultura da destreza e da vontade, numa progressão que arranca do desenvolvimento das competências físicas e intelectuais, passa pela preparação para a cidadania e culmina na cultura do humano, da humanidade do homem, vencendo a preguiça, a ambição desmesurada, a sede de domínio e a inveja, tudo isto formas de exclusão e de falta de comparência a uma tarefa comum. Civilizar - reconciliar na paz a "sociabilidade insociável" do ser humano, as liberdades em conflito mútuo. Se apenas em sociedade o homem alcança a cultura, a guerra de todos contra todos só pode ser superada pela adesão sem reservas a um reconhecimento do direito de cada um e de todos, o direito da humanidade. Só então se abre o lugar que cada um tem de ocupar, sem crispação individualista como cidadão do mundo. Cabe assim à dimensão cosmopolítica um primado decisivo: unicamente uma educação cosmopolítica se torna capaz de conferir à disciplina um sentido não meramente negativo, de promover a cultura sem fronteiras de qualquer ordem e de satisfazer cumulativamente as exigências da moral e da razão. A moralidade que a Escola pode incrementar é a educação para a maioridade e para o assentimento à reivindicação legítima do outro, só atingível pela autonomia que não é a soberania do arbítrio, mas o encontro com o universal de si, um plano de comunicabilidade incondicional e irrestrita, o respeito pela lei que a todos obriga, gerada no interesse por si como capacidade de coincidir com o possível do ser humano, no ter de pensar por si e sempre de acordo consigo mesmo e, ao mesmo tempo, capaz de se colocar sempre no ponto de vista do outro. Tal autonomia, indissociavelmente autodeterminação e auto-finalização, implica a coragem de estar de pé e o exercício de uma razão comunicativa. A Escola só poderá ser uma lição de independência perante o que segrega, exclui e fragmenta se constituir ela mesma, no tecido de objectivos e de conteúdos que elabora bem como no relacionamento que institui, uma experiência ética, se tiver permanentemente como perspectiva o horizonte de uma humanidade a reconhecer e a realizar. Por conseguinte, na esfera educativa, a Ética não se pode reconduzir a um código de boas condutas, a um manual de instruções para um conveniente exercício das funções escolares; ela mantém o seu carácter essencial de significar a instalação, a um tempo prática, afectiva e racional, na realidade, princípio de orientação e justificação bem fundada da presença a situações de vida a carecer de sentido, protagonização da experiência na primeira pessoa, como cimento autobiográfico, na segunda pessoa como incitamento dialogal, e na terceira pessoa, como abertura, competente e generosa, às diferentes modalidades do social, nomeadamente, no plano institucional que garante a estabilidade e a continuidade da vida colectiva. Dito de outro modo, para nos socorrermos da síntese de P. Ricoeur, a 25 Ética leva consigo a convergência de três planos: o procurar viver bem, o direito de cada um ao seu projecto de vida, com e para o outro, na seriedade da diferença e na confiança de poder contar com ele e, por último, o terceiro plano, tão imprescindível como os anteriores, o elemento institucional, a necessidade de uma ordem comunitária que é mais do que a simples intersubjectividade: o espaço em que pode emergir a autonomia como afirmação de si e a responsabilidade como reivindicação do outro é um espaço estruturado e organizado politicamente. Justamente a Ética que importa à Escola não se contrai numa mera aplicação sectorial, mas reaparece por inteiro no projecto educativo: é como instituição que nela se inicia de forma peculiar a vida boa e conseguida e o sentido da responsabilidade. Ora é no cumprimento deste programa que irrompe, com aguda premência e algum dramatismo, a pergunta irrecusável: que fazer? E em nome de quê? Confrontamo-nos aqui com a " desautorização" das autoridades morais, das instâncias justificadoras do bem e do mal, com a perda de eficácia da sua função produtora de modelos, com a extrema dificuldade em estabelecer fundamentos para além de toda a discussão, com o conflito das interpretações do mundo e da vida e a necessidade de lhe retirar o potencial de agressividade e de exclusão, na pluralidade irredutível dos parâmetros que hoje comandam as razões do agir. A Escola não pode estar ausente no momento de encontrar resposta fundada para as opções em confronto: por que é preferível a paz à violência? A liberdade à servidão? O que é justo ao que é injusto? A ciência à ignorância? A veracidade à dissimulação? A honestidade à corrupção? A cooperação à competição sem freios? A vida à morte? O ser ao não ser? Porquê o irrecusável e porquê o de todo inaceitável? Porquê eu e não o outro? Porquê o outro e não eu? Neste contexto, os valores designam o discernimento entre as opções a fazer, colocam-nos perante os termos da alternativa a adoptar, símbolos operatórios, indicadores da acção, tanto do que há a aceitar como do que há a recusar. Para condensar de um modo breve a situação presente, na sua indeterminação e ambiguidade, na complexidade dos factores e na dissonância de muitas vozes intervenientes, perspectivemos o que se afigura mais decisivo. Socorramo-nos para tal do dizer do Poeta que, com o seu dom divinatório, de ouvido colado à terra, surpreende os movimentos tectónicos das profundezas e vê a proximidade de um futuro, que é mais o nosso presente do que o dele: Ninguém sabe que coisa quer Ninguém conhece que alma tem Nem o que é mal nem o que é bem [ ... ] Tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso, nada é inteiro. (Fernando Pessoa, Mensagem) A fascinante clarividência do poeta reconduz-nos ao essencial da nossa actualidade problemática: a convergência até à coincidência entre uma crise de identidade - ninguém conhece que alma tem - e uma perturbadora indeterminação sem limites - ninguém sabe nem o que é mal nem o que é bem. Numa época de vários crepúsculos, em que a novidade é erigida em critério supremo de legitimidade, tudo tentando rasoirar no campo do adquirido, remetido para as trevas do anacrónico, - tudo é incerto e derradeiro - tempo em que impera uma lógica do transitório e do fragmentário num mundo de relações segmentárias - tudo é disperso, nada é inteiro. Reconhece-se assim uma opacidade pervasiva que esbate todas as relevâncias, que converte todos os critérios em opiniões, que converte todas as diferenças em equivalências, que faz crescer sem medida a perplexidade e a ambiguidade: nada surpreende, poucas coisas indignam, tudo parece legitimável. 26 Isto verifica-se na sociedade e isto acontece na Escola que parece suspensa à beira de uma tarefa impossível, a de educar. Às perguntas decisivas acerca do fim último da educação e de quem devem ser os seus destinatários, sobre quem está habilitado a identificar, determinar e ensinar a excelência, sobre que saberes são necessários para uma vida conseguida, que Ética e que valores propor, responde uma sociedade que prolonga a pluralidade em divergências insanáveis. Por sua vez os modelos sociais, culturais e éticos proporcionados pelos diferentes agentes de socialização, a Igreja e o Estado, a Escola e a Família perdem a eficácia no seu papel de integração e identificação, provocando a fragmentação crescente da experiência identitária, estreitando o seu horizonte e esbatendo qualquer demarcação entre o permitido e o interdito. Com o enfraquecimento dos fundamentos tradicionais e simbólicos da vida colectiva cresce, até ao insuportável, a vulnerabilidade, tanto psicológica como social, dos indivíduos. A ausência de reconhecimento do valor da norma e da lei enquanto vínculo e factor de igualdade, a diluição do seu poder de convicção tendem a instaurar um estado de anomia e o regime de um individualismo categorial em que o interesse particular e o bem privativo de indivíduos e de grupos se tomam na última referência legitimante. As relações de força e os poderes de facto emergem naturalmente como regulação efectiva da ordem de coexistência e princípio de justificação. O universal como horizonte, como aquilo que é comum a todos, de direito ou como possibilidade real, parece caducado ou como mera projecção ilusória, como imagem virtual insusceptível de efectividade. Como acordar no que deve ser ensinado e na maneira como isso deve ser ensinado? A que autoridade recorrer, sem o risco de uma imposição unilateral? As controvérsias que percorrem os debates em matéria de educação põem em jogo questões éticas fundamentais. Identificação e socialização, afirmação de si e atestação do outro, presença a si e reconhecimento do outro representam as operações essenciais da Escola, no âmbito que é o seu e segundo as modalidades que lhe são próprias, de uma perspectiva ética. É esse o valor Escola. É uma tarefa que lhe incumbe como instituição, na diferenciação e interconexão de papéis de alunos e de docentes, como comunidade, e não deixa de ser transversal às práticas teóricas e aos procedimentos técnicos que lhe são específicos. Não é algo que requeira uma disciplina particular ou momentos isolados; é antes um processo que transcorre em todas as actividades, na organização do espaço e no preenchimento do tempo, na exemplaridade docente e na convivialidade dos alunos. Trata-se de um exercício permanente a merecer cuidado, reflexão e autocrítica. Mas, em rigor, identidade e socialidade não são momentos justapostos ou sucessivos de uma neutralidade recíproca. A identidade é um processo de invenção de si como protagonista da sua própria vida, como reivindicação da possibilidade de ser o autor da sua biografia e não simplesmente o actor em representação ou o mero agente de funções que lhe são impostas. Supõe, para ser viável, modos especiais de estruturar a relação consigo mesmo, a percepção, consciência ou sentimento, dos seus poderes e dos seus limites, dos seus direitos e daquilo que tem a seu cargo, da autoria do realizado ou da oportunidade concedida, a memória e o projecto. São modalidades determinantes da qualidade essa presença a si a auto-estima, a auto-confiança e o auto-respeito. É aqui que se expõe toda a vulnerabilidade do indivíduo, o lugar das mais fundas feridas que se podem infligir à sua capacidade de ser e de se relacionar, a ameaça de desagregação pessoal e social, a impotência para realizar o seu projecto de vida. E a Escola é uma oportunidade privilegiada e insubstituível do acesso construtivo e pacífico a si, como é também ocasião de desestruturação e de inconsistência na formação de si, e isto não diz respeito unicamente à formação dos alunos, porque a identidade é, para todos, um processo sem termo certo. 27 A relação de auto-estima designa o reconhecimento do seu próprio valor, a consciência da sua concepção do bem e o carácter de justificação e pertinência do seu projecto de vida; a auto-confiança alude a uma forma de convicção de base de que as suas necessidades e aspirações, as suas faculdades e as suas aquisições, as suas motivações e as suas competências são legítimas e valiosas, correspondendo, com verdade ao seu desígnio pessoal de realização; o auto-respeito, condição de integridade pessoal na relação prática consigo mesmo, consiste na consciência da capacidade de discernir o bem do mal e de agir em conformidade, afirmando o valor da sua própria faculdade de ajuizamento na condução coerente da vida. Esta relação identitária não consiste num complexo jogo de espelhos, numa estéril reduplicação narcísica: na relação de si a si, os outros interferem de modo necessário, são condição radical de possibilidade de acesso a si, e isso numa dupla posição, quer no plano da intersubjectividade, de sujeito a sujeito, de pessoa a pessoa, quer pela mediação das instituições, formas organizadas, social e historicamente estabilizadas, de ordenamento e produtividade da coexistência dos indivíduos. Incumbe à Escola, como espaço e tempo de convivência e como instituição educativa, com um mandato social e político, realizar essa dupla tarefa de reconhecimento, viabilizando a identidade como construção de si e a socialização como tomar posição e ter voz nos trabalhos comuns. O reconhecimento supõe a contenção do individualismo, suportado pela alucinação da insularidade e do solipsismo; supõe ainda a vitória sobre uma concepção abstracta da liberdade que se pretende posse privada e excludente, começo absoluto que pode a cada momento começar do nada, ignorando a história em que se implanta, e que intenta uma simetria total, quando tanto a família como a escola e como a ciência são, no seu dinamismo criativo, de uma radical e irredutível assimetria. O reconhecimento que sintetiza a identificação e a socialização revela-se como a relação verdadeira e livre por excelência, pois a autonomia autêntica transporta em si a pertença e a medida da liberdade é a comunidade que consegue instaurar. Quando Kant perspectiva o ponto de chegada do processo educativo, no plano individual como no plano colectivo, à constituição de uma sociedade cosmopolítica, uma situação universal de coexistência pacífica, mais um ideal histórico concreto do que ficção utópica, aponta como uma das suas condições de realização, a hospitalidade: a essência desta é o acolhimento da imensa diversidade humana bem como a rejeição da ideia de que há fronteiras intransponíveis e culturas incomunicáveis. A hospitalidade aparece deste modo como a pedagogia do reconhecimento. No mais fundo da sua natureza, a Escola é uma instituição de hospitalidade: dos saberes, das práticas, das pessoas; nela ocorre a educação do acolhimento, da receptividade à diferença, à novidade e à irredutível diversidade das pessoas. É este o seu modo essencial de valer. 28