1 Uma História da Mulher na Obra de Lygia Fagundes Telles Ilane Ferreira Cavalcante Doutoranda no programa de pós-graduação do Departamento de educação – UFRN Dr.a Maria Arisnete Câmara de Morais Orientadora e Coordenadora da Base de Pesquisa em Gênero e Práticas Culturais: abordagens históricas, educativas e literárias. Antes, a mulher era explicada pelo homem, disse a jovem personagem do meu romance ‘As Meninas’. Agora é a própria mulher que se desembrulha, se explica. Lygia Fagundes Telles Procurarei observar, neste trabalho, como está representado o perfil feminino em dois romances de Lygia Fagundes Telles: Verão no Aquário, de 1954 e As Meninas, de 1963. Até que ponto a autora representa o perfil feminino das décadas de 50 e 60, até que ponto ela os ultrapassa mostrando uma mulher além de seu tempo? Será fundamental nesse processo, o suporte teórico metodológico proposto pela Nova História Cultural, como explica Chartier: A história cultural , tal como a entendemos, tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler.1 Esse tipo de prática do estudo histórico permite observar as relações entre os diferentes grupos sociais, assim como, no interior de cada grupo, analisar sua concepcão de mundo, seus valores, seu domínio. É essa nova concepção de História que tem permitido a construção da história das minorias, entre elas, a da mulher. É observando tais pressupostos teóricos que, acredito, poderei analisar a presneça da mulher na obra de Lygia Fagundes Telles, assim como analisar o entrelaçamento entre história e literatura em seus romances. A escolha de Lygia Fagundes Telles se dá justamente por se tratar de uma escritora que atravessou desde os períodos mais revolucionários da luta feminista até seu amadurecimento atual e que busca lidar essencialmente com o universo feminino em sua obra. Uma de nossas mais importantes autoras contemporâneas, lygia Fagundes Telles abriu seu espaço na literatura ainda adolescente, em 1938, com a publicação de Porões e Sobrados, livro de contos cuja edição foi paga por seu pai e que já apresentava um conjunto de temas que seriam constatemente retomados pela autora em suas obras posteriores. Muitas foram as mudanças ocorridas no comportamento feminino já nas primeiras décadas do século XX. Sair sozinha para fazer compras ou viajar; ir à bailes; cortar os cabelos; encurtar as sais e “até” trabalhar. Essas mudanças deixavam perplexos os mais velhos e revoltados os mais tradicionalistas. Tais mulheres modernas eram vistas com receio e com alarme. Os periódicos da época demonstram tanto manifestações de horror em relação à nova mulher quanto conselhos comportamentais e até defesas veementes do novo comportamento. Mulheres pintoras, jornalistas, escritoras, despontam com força em nossa sociedade. Na Europa Isadora Duncan causa furor com seu balé moderno. Em 1917, Anita Malfatti 2 apresenta uma polêmica exposição em São Paulo, introduzindo a pintura de vanguarda no Brasil. No grupo de artistas responsáveis pelo Modernismo no Brasil não se pode deixar de citar Pagu - patrícia Galvão - misto de escritora e personalidade polêmica. Ao mesmo tempo em que esse intenso movimento de liberação se estabelece, um outro movimento, igualmente intenso, de retração se dá, ou seja, toda a sociedade se movimenta no sentido de manter o status quo, evitando a corrosão dos costumes que se creditava à liberação feminina. Homens e mulheres digladiam-se nos periódicos da época. Os primeiros conclamando às mulheres à sua responsabilidade de mantenedoras da ordem moral e familiar. As segundas acusando-os de serem eles os principais responsáveis pela corrosão da moral. O dever ser das mulheres brasileiras nas três primeiras décadas do século foi, assim, traçado por um preciso e vigoroso discurso ideológico, que reunia conservadores e diferentes matizes de reformistas e que acabou por deshumanizá-las como sujeitos históricos, ao mesmo tempo que cristalizava determinados tipos de comportamento convertendo-os em rígidos papéis sociais.2 Marido e mulher precisavam seguir os rígidos papéis determinados pela sociedade. A família, vista como uma reprodução microscópica do Estado, conta com um chefe, provedor, o pai e com uma ministra do interior, responsável pela ordem, pela saúde e pela união de todos. O papel da mulher seria mesmo o de ser submissa às ordens do homem. A divisão dos papéis era socialmente aceita e juridicamente estabelecida pelo código Civil de 1916, que abria possibilidades de espaço para a mulher no mercado de trabalho mas, paradoxalmente, mantinha sua posição de dependente do pai e do esposo. O fato é que numa sociedade como a brasileira, formada por uma grande maioria de pobres e analfabetos e com uma economia ainda em fase de desenvolvimento, o marido raramente conseguia o suficiente para preencher de forma ideal o papel de provedor. Os conflitos gerados dessa diáspora culminavam muitas vezes na violência doméstica sobre a mulher, na execração pública e até no suicídio do homem. O destino da mulher era tornar-se esposa e mãe. Toda a sociedade se mobilizava em função dessa perspectiva. Fotos, pinturas, periódicos, propagandas e livros didáticos, retratavam a mulher exercendo as funções domésticas. Sempre com um sorriso no rosto ela amamentava as crianças, servia o almoço para a família, ensinava a lição ao filho. Todo esse movimento em prol da manutenção da mulher no lar teve seu apogeu na década de 50 quando a noção de mulher mãe/dona-de-casa ficou definitivamente e ideologicamente condicionada pelos meios de comunicação e pela psicanálise. No sentido oposto, no entanto, as mulheres cada vez mais conscientes mantinham sua luta, mais organizada a cada dia, pela ampliação de um espaço seu no mundo exterior, ou seja, fora dos domínios do lar. É essa a mulher sobre a qual Lygia Fagundes Telles se debruça, até porque é essa a sua experiência como mulher. A estrutura familiar retratada por Lygia apresenta, portanto, um perfil moderno. Rompe com o moralismo social ao estabelecer a mulher não só como personagem principal, o que já era corrente, mas como chefe de família. Em Verão no Aquário Patrícia, a mãe de Raíza é escritora, e assim sustenta a família. É uma vida economicamente difícil. Aparte o 3 fato de que viver de escrever é realmente difícil para ambos os sexos, em qualquer sociedade, principalmente na realidade de um país de terceiro mundo. Desde cedo Patrícia parecia destoar do todo familiar. É o que podemos observar através da análise de sua irmã, Graciana: Patrícia é uma flor... Não se pode negar que teve certas ocasiões um comportamento meio esquisito. Quando se casou, por exemplo, já falei nisso, não? Nem sabíamos de nada quando veio anunciar que marcara o casamento para o próximo mês. Casamento com quem? Perguntou minha mãe no maior susto, sabíamos que ela se encontrava com Giancarlo mas como podíamos adivinhar que as coisas estavam nesse ponto? Papai quase teve um ataque. E mamãe começou a chorar, imagine, tudo assim tão inesperado, não usava uma filha anunciar o noivado desse jeito. Bem que papai quis consertar a situação pedindo a ela que esperasse um pouco até nos acostumarmos com a idéia, o moço é simpático, sem dúvida, Pat, mas é um estrangeiro. Você sabe perfeitamente que na nossa família as coisas são feitas num outro sistema, disse meu pai. Patrícia então examinou-o como examinou essa cortina e respondeu que já era hora de mudar esse sistema. 3 Os casamentos, apesar de não mais arranjados pelos pais, dependiam, muitas vezes de sua aprovação, e era senso comum acreditar-se que, casamento que os pais não aprovavam estava fadado ao fracasso. Geralmente a aprovação dependia de critérios que envolviam dificuldades financeiras, diferenças de classe, problemas familiares, preconceitos sociais. O casamento de Patrícia foi feito a revel da aprovação de seus pais, o que resultou numa relação frustrada, num eterno remoer de culpas, de acusações e de repreensões. O amor era considerado importante para a união conjugal, mas não o suficiente para garanti-la. Dificuldades financeiras, preconceitos sociais, eram algumas das barreiras reconhecidas e reforçadas contra as uniões fora dos padrões.4 O marido de Patrícia não possuía os critérios fundamentais para caracterizar o partido ideal. Era um estrangeiro, uma personalidade aparentemente frágil, sonhadora, vaga. Como farmacêutico não se comenta a sua competência, como comerciante fora um fracasso. Acabou por se refugiar no álcool diante das cobranças sociais e familiares. O estrangeiro. E ele não fora outra coisa em toda sua vida: um estrangeiro amedrontado, sem bagagem e sem ambição. Teria sido um bom farmacêutico? Provavelmente nem isso, era tão vago, tão sonhador, impossível imaginá-lo eficiente em meio dos boiões e pozinhos brancos. 5 A indefinição dos personagens masculinos, aliás, poderia ser determinada como uma categoria nos romances de Lygia Fagundes Telles. São fantasmas que se movimentam numa dimensão paralela à das personagens femininas, principalmente em seus sonhos, em suas lembranças, em seus delírios. Os homens, na obra de Lygia , comenta Lucas: Aparecem como signos designativos de função social ou de papel, como símbolos de poder, de riqueza ou de “status”. Não dispõem da vibração e das nuanças das personagens femininas.6 Em Verão no Aquário o pai de Raíza é uma lembrança, constante mas vaga e indefinida, surge-lhe sempre em sonhos com um indefectível cheiro de hortelã e o rosto transfigurado em rosa. O personagem que ela supõe amar, André, também é fluido - não 4 tem uma participação direta em sua vida, não sabe o que quer ser e depende de patrícia para sobreviver, ao achar que traiu sua confiança se suicida. Em As Meninas os homens surgem em raros momentos - memórias da infância, delírios amorosos, relações sexuais. Os homens que fizeram parte da vida de Ana Clara eam ou exploradores sexuais - dela e de sua mãe - como o Dr. Algodãozinho, ou amores regados a drogas e mergulhos no inconsciente. Lia remete sempre à figura paterna, mas novamente o pai está ausente, é impreciso. Seu amante está na cadeia e ela age na clandestinidade para libertá-lo. Lorena também apresenta o mesmo tipo de figuras masculinas ao seu redor - o irmão distante; o amante da mãe, a quem despreza; o amado que não aparece. A indefinição dos personagens masculino serve, talvez de contraponto que leve a uma maior afirmação do posicionamento da autora como preocupada em delimita os temas e os conflitos ligados ao universo feminino. Em meados da década de 60, mais de um século após o início dos movimentos de luta da mulher, é que se começa a desenhar, na maior parte dos países ocidentais, uma nova participação da mulher na sociedade. A pílula anticoncepcional teve aí um importante papel, além dos acontecimentos de Maio de 68 e dos movimentos feministas. Foi nesse período que começaram a despontar as idéias sobre a igualdade entre homens e mulheres. A liberalização da contracepção permite à mulher um maior domínio sobre sua principal função social, a procriação. É justamente nessa década que a pílula se populariza no Brasil. A presença da mulher no mercado de trabalho começa a se estabelecer e gera a modificação do direito privado e das atividades domésticas: Em todos estes processo, e particularmente na conquista de autonomia política e simbólica - o afirmar ‘nós, as mulheres’ - o feminismo, ou antes, os feminismos dos anos sessenta e setenta desempenharam um papel essencial, impondo a feminilidade como categoria fundamental da identificação política e organizando-se como espaço autônomo, onde podiam operar-se a sua desconstrução e a sua reconstrução. 7 Verão no Aquário, de 1964, narra um momento da história de Raíza, moça atormentada entre o amor e ódio pela mãe, representando duas gerações que se chocam por pertencerem a tempo diferentes, formas sociais diferentes. Cedo ela perdeu o pai e vive em uma casa acompanhada apenas da mãe, sempre trancada em seu escritório, a escrever, de uma tia solteirona e da empregada. Raíza não é uma mocinha comum. Seu comportamento contraria todas as regras morais da época. Se entrega aos prazeres do sexo e do álcool constantemente, além de experimentar drogas. Sua prima Marfa também age da mesma forma. Ambas não questionam sequer se sua atitude condiz com o modelo proposto na época. Talvez assim Lygia apresente um retrato muito mais sincero da sociedade do que o ideal exposto nos jornais e revistas para moças no período. Patrícia, a mãe de Raíza, escreve para manter a família, a literatura é para ela, portanto, principalmente um meio de subsistência. Nesse período ainda é muito forte a idéia do masculino/ superior versus o feminino/inferior, mesmo no campo da cultura. As mulheres artistas ainda têm muita dificuldade de se instalar e manter no panteão da cultura, poucas fazem parte do cânone. São categorizadas à parte, em segundo plano. A 5 partir dos anos 70 é que começa a haver uma tentativa da mulher de se fixar como sujeito pleno na elaboração da cultura, sem ter de renegar sua sexualidade. Pela primeira vez, o movimento social das mulheres tomou uma verdadeira dimensão cultural e as sua reivindicações culturais uma amplitude social. 8 A cultura explode nas ruas, distribuem-se panfletos, jornais, desenhos, grafite, canções e vídeos de afirmação individual e coletiva. Uma das principais expoentes dessa poesia marginal que se propaga nos anos 70 é a poetisa Ana Cristina César. Ela é autora, aliás, de um texto em que questiona a visão tacanha com que a maior parte da crítica e do público relacionavam, na época, mulher e literatura. - Faça uma enquete tipo Globo-Repórter. Saia à rua e pergunte aos pedestres: o que é poesia; o que é mulher; e mulher fazendo poesia, fala de quê. As respostas vão configurar o senso-comum do poético e do feminino. Surgirão algumas imagens que se convencionou chamar da natureza e considerar belas. O cancioneiro popular. Perfume, pérola, flor, madrugada, mar, estrela, orvalho, pólen, coração. Tépido, macio, sensível. E em aparente contradição: inatingível, inefável, profundo. A velha contradição que os românticos não conseguiram resolver. Mulher é inatingível e sensual ao mesmo tempo. Carne e luz. Poesia também. O poético e o feminino se identificam.9 A poesia de Ana C., como é mais conhecida, é prova irrefutável da mudança que se realizou nesse período na produção cultural feminina e que causou, necessariamente uma mudança na visão estabelecida da relação entre mulher e literatura. A construção de uma identidade finalmente valorizada passa pela invenção cultural, enquanto que o movimento social favorece o florescimento de novas obras. 10 Em As Meninas os fatores sócio/políticos afetam ainda mais evidentemente a vida das três personagens principais. Ana Clara, Lorena e Lia são três jovens que atravessam um momento particularmente difícil de sua história pessoal, como também da história social do país. As três vivem em um pensionato religioso, o lugar mais apropriado para moças de boa família, estudantes que vivem afastadas da família por razões diversas. Este romance veio à público em 1973, descreve, portanto, um período político bastante delicado, auge da ditadura militar no Brasil, que Lygia não se esquiva de apresentar, embora não o coloque como peça essencial da narrativa. Esses fatores são, no entanto, fundamentais na configuração da sociedade. As três meninas são estudantes universitárias, mas a única que ainda mantém um certo vínculo com o curso é Lorena, as outras duas trancaram matrícula, por motivos particulares. Lia acredita muito mais na luta política, Ana Clara já não acredita em mais nada. A Universidade está em greve, lembra Lorena a todo momento. Lia participa de um movimento de esquerda e vive às voltas com o medo, de ser presa, de perder seus amigos, seu amante, a liberdade. Ana Clara se envolve com um traficante de drogas e namora platonicamente um homem da alta sociedade em quem pretende dar um “golpe do baú”. O panorama apresentado envolve não só os aspectos políticos sociais como também os aspectos morais que regem a sociedade, aliás, principalmente estes. A hipocrisia e a falsa moral levam Ana Clara a mentir sobre suas origens para poder ser aceita na alta sociedade 6 e, ainda assim, ela se sente diminuída, inferiorizada. A única solução que ela pretende encontrar para lavar a lama que encobre suas origens é casar-se com um homem rico, sua ilusão tenta convencê-la de que vai conseguir isso, mas ela sabe que é impossível livrar-se de algo que está acima de tudo dentro dela. Através das drogas ela tenta fugir de si mesma e só se liberta na morte. O romance também deixa entrever as questões familiares que envolvem cada uma das meninas. Lia entra em choque com o futuro que os pais planejaram para ela, marido e filhos, muitos filhos. Esse é o principal fator que a faz sair de Salvador, onde nascera, para ir morar longe dos pais, num pensionato. Lorena tem uma relação difícil com sua mãe, com quem é aparentemente condescendente, mas a quem evita constantemente. A mãe de Lorena, extremamente rica, se vê às voltas com amantes mais novos a quem sustenta com carros e dinheiro, pretende com eles preencher suas carências afetivas, mas se sente cada vez mais solitária afastada, inclusive, da própria filha. Minha filhinha querida. Tão pura, tão honesta e sensível. Tão fina. Não é por ser minha filha, mas sei que é difícil encontrar uma menina assim. Quando fiz essa loucura de me casar outra vez, quando me apaixonei por esse homem que me tem feito chorar lágrimas de sangue, perguntei a ela, qual é a sua opinião, filhinha. Então ela tomou minhas mãos entre as suas e com aquela doçura que você conhece respondeu, o que mãezinha fizer está bem feito. Não sabe nem a metade do que tem me acontecido, não quero que se machuque , que sofra.11 A mais difícil relação, no entanto, se dá entre Ana Clara e a sua mãe, ou melhor, a memória de sua mãe, a quem não perdoa por não ter se valorizado ou lucrado com os amantes que tivera, deixando-se destruir por eles. A carinha tão sem dinheiro contando o dinheiro que nunca dava pra nada. “Não dá”- ela dizia. Nunca dava porque era uma tonta que não cobrava de ninguém. Não dá ela repetia mostrando o dinheirinho que não dava embolado na mão. Mas dar mesmo até que ela deu bastante. Pra meu gosto até que ela deu demais. Uma corja de piolhentos pedindo e ela dando12 Ana Clara não quer perceber que está seguindo o mesmo caminho. Ela se deixa usar desde sua infância tanto que o sexo para ela vem sem desejo, mesmo com o homem que ama e de quem espera um filho. O espaço destinado à mulher na sociedade, o espaço privado, estabeleceu-se como categoria recorrente em sua literatura chegando mesmo a ser considerado uma forma de diferenciação - esse espaço foge às vezes do universo físico para adentrar no mundo psicológico como é o caso de grande parte das obras de Clarice Lispector. Curiosamente, com a quebra de valores realizada pela História Cultural, no sentido de valorizar o que antes não existia enquanto categoria histórica, ocasiona um paradoxo: o privado, categoria de acesso à história da vida comum e cotidiana, torna-se público, ou como coloca Bhabha: Os recessos do espaço doméstico tornam-se os lugares das invasões mais intrincadas da história. Nesse deslocamento, as fronteiras entre casa e mundo se confundem e, estranhamente, o privado e o público tornam-se parte um do outro, forçando sobre nós uma visão que é tão dividida quanto desnorteadora.13 7 O ambiente descrito nos romances de Lygia Fagundes Telles é sempre de interior, o aquário de Raíza, o sótão, o quarto, os quartos em que faz amor com seus amantes, o quarto de André, o quarto de tia Graciana, o quarto de Lorena, o quarto de Ana Clara, principalmente a cama. Sempre um quarto, local de maior intimidade da casa, local onde se escondem os segredos, local que penetramos para compreender melhor o íntimo das personagens. Além do quarto poucas cenas de salas e cozinhas. O mundo exterior é visto a maioria das vezes através de uma janela, elemento de ligação com a realidade, mas também de proteção. Poucas são as cenas de exterior, como a chuva em que se banha Raíza na morte de André, chuva que lhe lava as dores, a alma, os medos e a prepara para a vida. Ou as saídas de Lia, que surge no jardim do pensionato ou na rua, para logo entrar em um quarto. Fugindo do sol de verão, do calor, do real. O espaço privado, onde se situam a maioria das cenas das personagens de Lygia nestes dois romances, demonstra a preocupação da autora em esclarecer que aquele momento da vida de seus personagens é de revolução íntima, e que é preciso, primeiro a tomada de consciência pessoal para que, a partir daí, se lute para modificar o outro, o mundo. Neste lugar próprio flutua como que um perfume secreto, que fala do tempo perdido, do tempo que jamais voltará, que fala também de um outro tempo que ainda virá, um dia, quem sabe.14 Por isso, sair do espaço da casa materna, ou da casa da família, é fragmentar-se, desestruturar-se. Assim encontra-se Raíza, de Verão no Aquário, a sonhar repetitivamente com suas raízes, ou com seu chão, a antiga casa familiar, onde podia agarrar-se e manter-se firme, dona de seu passado, presente e futuro. Quando não está a sonhar, percorrendo o sótão da antiga casa, Raíza está em seu quarto, ou no apartamento do amante, ou no quarto da tia Graciana. Sempre num espaço interior, doméstico, de intimidade. Lorena, Lia e Ana Clara, personagens de As Meninas, também se apresentam assim, desestruturadas. Mas o pensionato serve de ligação e proximidade, se não com a família, entre si. Cada quarto, no entanto, é próprio e representativo da personalidade que nele habita. O quarto de Lorena, tons pastéis, lembra sua virgindade além de sua condição social. É Mieux, o amante de sua mãe, quem o decora e é justamente por causa dele que Lorena decide se afastar de casa. Quero este banheiro todo cor-de-rosa, é importante que ela se sinta num ninho quando se despir para o banho - disse ele atirando a ponta do cigarro no vaso rachado. Bateu a porta atrás de si e cheirou o lenço: Este quarto imagino amarelo bem claro, tenho o papel de parede, a cama dourada ali naquele canto. A estante e a mesa naquela parede. Neste espaço, o armário embutido. Ali a minigeladeira e o barzinho, hein, Loreninha? 15 O quarto de Ana Clara, em contrapartida, não chega a ser descrito em sua totalidade, tomamos ciência de alguns objetos, e móveis, principalmente a cama, onde passa grande parte de seu tempo com Max, o namorado. Mas é um quarto extremamente desordenado, apresentando fielmente a personalidade de sua dona, em distúrbio. É Lorena quem o descreve: Um monte de roupa suja embolada debaixo da cama. As jóias, verdadeiras e falsas, espalhadas por toda parte. Um longo de cetim verde num cabide dependurado na porta do armário. O caos dos sapatos 8 escapando por entre a fresta do gavetão. A caixa de maquilagem esvaziada na cama, devia estar procurando alguma coisa que não encontrou. Nas paredes, retratos seus e de ‘very imporntant persons’. 16 Lia, que está em pleno movimento, de partida sempre, nunca se apresenta em seu quarto, mas no da amiga, Lorena, onde destoa pela força de sua personalidade, pela rebeldia de sua aparência. O espanto de Lia quando chegou de sandálias franciscanas, a sacola de juta dependurada no ombro, só mais tarde comprou a de couro na feira. ‘Genial, entende. Genial’, repetiu examinando os objetos de toalete no banheiro.17 Lia destoa do cuidados de Lorena com a casa, destoa dos móveis, do requinte e do excesso de limpeza e arrumação de sua amiga. Ela certamente combina mais com o ambiente do esconderijo onde se esconde um jovem aspirante à militância. Na saleta de teto baixo frouxamente iluminada havia duas pequenas mesas velhíssimas, uma antiga máquina de escrever e algumas cadeiras de palha. Duas tinham o assento furado. No chão, uma pilha de pastas e jornais com uma trouxa de roupa em cima. Amarrados por uma cordinha, dois travesseiros e um cobertor. O chão enegrecido, queimado por pontas de cigarro, fora varrido conforme indicava o cesto transbordando de lixo, com a vassoura plantada no meio. Espetado no cabo da vassoura mastro, um rolo de papel higiênico. 18 A experiência de Lygia como leitora também se revela em seus textos. A todo momento nos deparamos com referências de leituras da autora que guiam a nós, leitores nas possibilidades de interpretação do texto. A nossa sociedade mede a realidade, se aproxima dela e a intermedia pela leitura. Jornais, revistas, publicidade, literatura. O processo de comunicação humana é uma verdadeira “epopéia do olho”. De fato, a atividade apresenta, ao contrário, todos os traços de uma produção silenciosa: flutuação através da página, metamorfose do texto pelo olho que viaja, improvisação e expectação de significados induzidos de certas palavras, intersecções de espaços escritos, dança efêmera. 19 Lygia tem consciência de que o texto é essa tessitura que mistura experiência vivida, ou seja, memória da experiência, influências de autores lidos, ou memória da leitura, e invenção, criação do próprio autor. Sobre algumas das influências em sua formação de leitora, quais autores seria suas “almas gêmeas”, Lygia afirma: Eu gosto muito de Edgar Allan Poe, dos contos de James Joyce, de Oscar Wilde, Henr James, D. H. Lawrence. É difícil lembrar de todos. Jorge Luis Borges, William Faulkner e, claro, Machado de Assis.20 Essas e outras influências, aliadas à sua própria criação fazem surgir diante de nós personagens recheadas de referências, adaptadas ao seu tempo, como as constantes referências d’As Meninas à Che Guevara,21 que chegam a imaginar um diálogo com ele, sobre o livro que Lia começara a escrever. “Que ciudad é esa? “ ele perguntaria na maior perpleidade. ‘Tercer mundo?’. Terceiro Mundo. ‘Y huele a duazno?’ Na opinião de Lia de Melo Shultz, cheira. Ele então fecharia os olhos e sorriria um sorriso onde era a boca. ‘Estoy bien listo com esas mis discípulas!’ 22 9 As críticas de Lia a Proust, que considera um autor de grã-finos e, portanto, incompatível com os ideais da comunista militante, que, entretanto não se privara de lê-lo. Assim como as referências à Sartre e a Simone de Beauvoir. Não se pode esquecer a profunda influência que o existencialismo exerceu no pensamento dos intelectuais brasileiros nesse período. Esse são apenas alguns dos elementos que nos revelam a configuração histórica e social através das referências de leitura. As personagens de Lygia tem sempre uma citação a fazer, ou uma opinião a emitir sobre um determinado livro, estilo literário ou autor, não importa a sua condição social. Ana Clara, por exemplo, que pela própria condição de vida deveria ser a menos culta das três meninas, sabe distinguir Chopin e Mozart; Van Gogh e Hieronimus Bosch; assim como cita Kafka e Herman Hesse. Evidentemente seu conhecimento artístico é inferior ao de Lorena, e menos profundo, mas percebe-se que ela leu e conhece muitos dos autores que cita. Além disso, as meninas do romance fazem citações em Latim, criticam a visão dos intelectuais, aludem à educação, ouvem de Jimi Hendrix a Bach e são capazes de críticas bastante concernentes sobre as artes em geral. São mulheres de uma evidente superioridade intelectual. Não têm medo de dizer e viver o que pensam e pagam caro pelos seus atos. Pagam por que estão em processo e buscam sem saber exatamente o quê. Caminham rompendo barreiras, abrindo veredas e não imaginam onde vão chegar. E assim é que se pode reconhecer a mulher na escrita de Lygia. Essa é a intenção formadora de seu texto. A busca de uma tradição feminina que construa a história e a identidade da mulher. Essas mulheres de hoje, do nosso tempo, cobram de si mesmas um aprendizado e um percurso de auto-descoberta que é também a descoberta do mundo. Ocupando um lugar todo seu na história, no espaço social e no espaço da cultura. Notas e Referências Bibliográficas 1 CHARTIER, Roger. A história cultural – entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990, p. 16/17. MALUF, Marina e MOTT, Lúcia. Recônditos do mundo feminino. Apud: SEVCENKO, Nicolau (Org.) História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 370/371. 3 TELLES, Lygia Fagundes. Verão no aquário. 11ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 33. 4 BASSANEZI, apud PRIORI, Mary del. (Org.) História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, p. 618. 5 TELLES, Lygia Fagundes. Op. Cit., p. 33 6 LUCAS, Fábio. A ficção giratória de Lygia Fagundes Telles. In: Cult. Ano II, nº 23, Junho de 1999. 7 THÉBAUD, Françoise. (Org.) História ocidental das mulheres Vl. 5 – o d’rvulo XX. Porto/São Paulo: EBRADIL/ Edições Alumbramento, 1991, p. 19/20. 8 Idem, p. 354. 9 CÉSAR, Ana Cristina. Literatura e Mulher: essa palavra de luxo. Revista Almanaque, nº10, s/d, p. 32. 10 THÉBAUD, Françoise. Op. Cit., p. 354. 11 TELLES, Lygia Fagundes. As Meninas. 32ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 58. 12 Idem, p. 34. 13 BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: UFMG, 1998, p.30. 14 CERTEAU, Michael de. Invenção do cotidiano. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 49. 15 TELLES, Op. Cit., p. 22. 16 Idem, p. 65. 17 Idem, p. 59. 18 Idem, p. 123. 2 10 19 CERTEAU, Michael de. Op. Cit., p. 49. Entrevista feita a Lygia Fagundes Telles por um grupo de escritores e críticos literários para a Revista Cadernos de Literatura, p. 30. 20 21 Che Guevara tornou-se símbolo do movimento revolucionário que caraceriza as décadas de 60 e 70, sendo elevado à condição de mito e ídolo da juventude depois de sua morte e até hoje. Referência obrigatória, portanto, sobre a época em questão, assim como ao pensamento comunista. 22 TELLES, Lygia Fagundes. Op. Cit., p. 9.