Carolina Cantarino
Baianas
do acarajé:
uma história
de resistência
O
ofício das baianas do acarajé é patrimônio cultural do Brasil. Quando anunciado,
equívocos em torno do “tombamento do
acarajé” e outros mal-entendidos esconderam a
valorização de uma profissão feminina historicamente presente no País: as baianas de tabuleiro.
O orgulho por esse reconhecimento podia ser
visto nos rostos das mulheres negras de novas
e antigas gerações presentes durante a cerimônia de diplomação de seu ofício, que aconteceu
no dia 15 de agosto de 2005, na sede do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan), em Salvador.
Sabores do Brasil
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Baiana. Fonte: O Rio antigo do fotógrafo Marc
Ferrez 3ª edição, 1989 Editora Ex Libris Ltda
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Textos do Brasil . Nº 13
Durante o evento, as baianas do acarajé
usaram suas roupas tradicionais, cuja peça mais
característica é a grande saia rodada, complementada por outros adereços como os chamados
panos da costa, o turbante na cabeça, a bata e os
colares com as cores dos seus orixás pessoais.
Nas ruas de Salvador, de outras cidades do estado da Bahia e, mais raramente, em outras regiões do País, as baianas tradicionais encontram-se
sempre acompanhadas por seus tabuleiros que
contêm não só o acarajé e seus possíveis complementos, como o vatapá e o camarão seco, mas
também outras “comidas de santo”: abará, lelê,
queijada, passarinha, bolo de estudante, cocada
branca e preta. Os tabuleiros de muitas baianas
soteropolitanas se sofisticaram: revestidos por
paredes de vidro, muitas vezes contêm caras panelas de alumínio junto às colheres de pau.
O acarajé, o principal atrativo no tabuleiro,
é um bolinho característico do candomblé. Acarajé é uma palavra composta da língua iorubá:
“acará” (bola de fogo) e “jé” (comer), ou seja,
“comer bola de fogo”. Sua origem é explicada
por um mito sobre a relação de Xangô com suas
esposas, Oxum e Iansã. O bolinho se tornou, assim, uma oferenda a esses orixás.
Mesmo ao ser vendido num contexto profano, o acarajé ainda é considerado, pelas baianas, como uma comida sagrada. Para elas, o bolinho de feijão-fradinho frito no azeite de dendê
não pode ser dissociado do candomblé. Por isso,
a sua receita, embora não seja secreta, não pode
ser modificada e deve ser preparada apenas pelos filhos-de-santo.
“Pode parecer que estamos dando importância maior ao acarajé do que ao ofício das
baianas do acarajé, mas este fato tem um sentido:
neste complexo cultural, o acarajé é o elemento
central. O ofício não teria a importância que tem
Sabores do Brasil
Mesmo ao ser vendido
num contexto profano,
o acarajé ainda é
considerado, pelas
baianas, como uma
comida sagrada. Para
elas, o bolinho de feijãofradinho frito no azeite
de dendê não pode ser
dissociado do candomblé.
se o acarajé fosse apenas um dos alimentos tradicionais”, afirma Roque Laraia, antropólogo da
Universidade de Brasília e membro do Conselho
Consultivo do Iphan, em seu parecer sobre a proposta de registro do ofício das baianas do acarajé.
O inventário que instruiu o processo de registro
foi realizado pelo Centro Nacional de Folclore e
Cultura Popular.
Raul Lody e Elizabeth de Castro Mendonça foram os antropólogos que realizaram a pesquisa que consistiu na realização de entrevistas;
levantamento bibliográfico; registros audiovisuais e, dentre outras coisas, visitas a pontos característicos de baianas do acarajé na cidade de
Salvador, tais como: Bonfim, Pelourinho, Barra,
Ondina, Rio Vermelho e Piatã. Brotas também foi
um dos bairros visitados devido à presença de
um “baiano de tabuleiro”, evangélico.
As baianas sofrem, cada vez mais, com a
concorrência da venda do acarajé em bares, supermercados e restaurantes, que divulgam o bolinho como fast-food. Essa apropriação do acarajé
contraria o seu universo cultural original e a sua
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Evento de registro do ofício de “Baiana do Acarajé” como patrimônio imaterial do Brasil. Fotos: Carolina Cantarino
venda como “bolinho de Jesus” pelos adeptos
de religiões evangélicas – que postam Bíblias em
seus tabuleiros – têm causado polêmica.
“Se você tem uma religião que é contrária
ao candomblé, por que vender acarajé e não qualquer outro quitute?” indaga Dona Dica diante do
seu tabuleiro no Largo Quincas Berro D’Água,
no Pelourinho, ressaltando que o acarajé, para a
maioria das baianas de tabuleiro, filhas-de-santo, é indissociável do candomblé. Essa indistinção não deixa de ser, também, uma estratégia de
diferenciação de seus produtos, num contexto de
concorrência cada mais acirrada que é Salvador,
uma cidade que atrai muitos turistas por ser con120
siderada como o locus de africanismos no Brasil,
a partir dos quais uma inegável comercialização
da cultura negra tem se constituído.
Mas se para essas baianas as mudanças em
relação ao aspecto religioso são inaceitáveis, outras transformações são bem-vindas. “No passado era muito ruim porque a gente tinha que descascar o feijão e quebrá-lo na pedra. Hoje em dia
não se tem esse sofrimento porque as meninas
usam o moinho elétrico ou mesmo o liqüidificador”. Essa é a opinião de Arlinda Pinto Nery, que
trabalhou com seu tabuleiro durante mais de 50
anos e aprendeu o ofício com sua mãe.
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Dona Arlinda faz parte da Associação das
Baianas de Acarajé e Mingau do estado da Bahia
que existe há 14 anos e conta com dois mil associados entre baianas e baianos do acarajé e vendedores de outros tipos de comida como mingau, pamonha e cuscuz. O trabalho da associação
é voltado para a profissionalização da atividade,
que já conta com um selo de qualidade: por meio
de parcerias com o Sebrae e o Senac, os associados têm acesso a cursos sobre manipulação de
alimentos, normas de higiene e sobre finanças,
para que possam administrar melhor os seus ganhos.
As mulheres de tabuleiro de ontem e
de hoje
A comercialização do acarajé tem início
ainda no período da escravidão com as chamadas escravas de ganho que trabalhavam nas ruas
para as suas senhoras (geralmente pequenas proprietárias empobrecidas), desempenhando diversas atividades, entre elas, a venda de quitutes
nos seus tabuleiros. Ainda na costa ocidental da
África, as mulheres já praticavam um comércio
ambulante de produtos comestíveis, o que lhes
conferia autonomia em relação aos homens e
muitas vezes o papel de provedoras de suas famílias.
O comércio de rua nas cidades brasileiras
permitiu às mulheres escravas ir além da prestação de serviços aos seus senhores: elas garantiam, muitas vezes, o sustento de suas próprias
famílias, foram importantes para a constituição
de laços comunitários entre os escravos urbanos
e também para a criação das irmandades religiosas e do candomblé. Muitas filhas-de-santo começaram a vender acarajé para poder cumprir
com suas obrigações religiosas que precisavam
ser renovadas periodicamente.
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Devido a essa liberdade de movimento é
que as escravas de tabuleiro eram vistas como
elementos perigosos, tornando-se, por isso, alvos
de posturas e leis repressivas.
A venda do acarajé permaneceu como uma
atividade econômica relevante para muitas mulheres mesmo com o fim da escravidão. Hoje em
dia, atrás das baianas existem famílias inteiras
dependendo dos seus tabuleiros: 70% das mulheres pertencentes à Associação das Baianas de
Acarajé e Mingau do estado da Bahia são chefes
de família. A rotina dessas mulheres é caracterizada pela compra dos ingredientes necessários
para o preparo do acarajé, um trabalho diário e
árduo: precisam levantar cedo, ir à feira, buscar
produtos de qualidade a preços acessíveis. O preço do camarão e do azeite-de-dendê são os que
mais variam. Muitas ainda enfrentam problemas
para adquirir tabuleiros novos ou mesmo para
guardá-los, deixando-os, muitas vezes, na praia.
“Às vezes nos sentimos órfãs porque trabalhamos sozinhas com nosso tabuleiro, de sol a
sol, expostas ao frio, ao calor e mesmo à violência.
Mas somos mulheres negras e perseverantes: se
não vendemos hoje, venderemos amanhã. Somos
um símbolo de resistência desde a escravidão”,
lembra Maria Lêda Marques, presidente da Associação que, juntamente com o terreiro Ilê Axé
Opô Afonjá e o Centro de Estudos Afro-Orientais
da Universidade Federal da Bahia, fizeram o pedido de registro junto ao Iphan.
Carolina Cantarino
Antropóloga e pesquisadora do Laboratório de Estudos
Avançados em Jornalismo (Labjor) da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp).
Artigo originariamente publicado na Patrimônio –
Revista Eletrônica do Iphan (ISSN: 1809-3965).
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