ID: 36413194
07-07-2011
Tiragem: 15000
Pág: 14
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Semanal
Área: 26,33 x 36,73 cm²
Âmbito: Regional
Corte: 1 de 3
Como vê a escolha do escritor Francisco José Viegas para
a secretaria de estado da Cultura, bem com a extinção deste Ministério?
A Cultura deveria ter um ministério porque tem outro peso no
contexto do Governo, do que uma
simples secretaria de Estado. Isto,
independentemente da eficácia e
do trabalho que se possa fazer e
estou convencido que o Francisco José Viegas o vai fazer. Conheço-o bem e tenho a maior estima
e as maiores expectativas em relação a ele. É um homem culto e
tem um conhecimento muito aprofundado do que se passa no País
e do que é necessário, em termos
culturais, e nos vários sectores,
como é o caso da criação. Governos como este (PSD e CDS), mais
à direita, normalmente restringem
a Cultura ao Património e à sua
preservação. Francisco José Viegas tem uma noção muito mais
aprofundada da Cultura, até porque ele próprio é um criador e um
excelente escritor e poeta. Portanto, no actual contexto, penso
que a sua escolha foi a mais acertada. Só que, independentemente do Francisco José Viegas e do
que ele possa fazer, o facto de ser
uma secretaria de estado e não
um Ministério simboliza a minoração que o actual primeiro ministro tem em relação à Cultura. O
outro dizia que quando ouvia falar
de cultura, puxava da pistola. Ultimamente, há por aí uns políticos,
e à direita isso é muito frequente, que quando ouvem falar de
cultura puxam da máquina de calcular. E uma máquina de calcular pode matar mais que uma pistola. De qualquer modo, tudo isto
são considerações aprioristicas, a
confirmar ou não pela prática.
Manuel António Pina, escritor
Uma máquina de
calcular pode matar
mais que uma pistola
Prémio Camões 2011, Manuel António Pina foi também
jornalista durante 30 anos. Daí o seu discurso escorreito
quando fala em ambiente concorrencial, quase demencial
entre jornalistas e órgãos de comunicação. Vê com muito
maus olhos a extinção do Ministério da Cultura e diz que
“há por aí uns políticos que, quando ouvem falar de Cultura, puxam pela máquina de calcular”
Textos: Graça Menitra Fotos: Ricardo Graça
O Sindicato Nacional do Ensino Superior diz ter expectativas positivas da actuação de
Nuno Crato como ministro da
Educação, do Ensino Superior
e da Ciência. Concorda?
Também tenho muitas expectativas no Nuno Crato mas suspeito que, provavelmente, ele não
possa fazer nada. Um ministro não
tem as mãos completamente livres.
O ministro é uma peça do ministério, pode definir políticas e prioridades, mas neste caso muitas
delas já estão definidas pela troika. Mesmo que não tivesse as mãos
presas pela troika e apesar da personalidade que tem, Nuno Crato
não poderia fazer tudo o que queria. Havia uma série de televisão
muito divertida, chamada
Sim, senhor ministro, que
dava uma ideia do mundo de quem manda nos
ministérios. O nosso Ministério da Educação está, há
muitos anos, nas mãos de
uma espécie de seita (e uso
a palavra até moderadamente), que é a seita das
ciências da educação. Uma série
de gente que retirou do estatuto
do ensino secundário a palavra
ensino, que fala em competências,
que tem aquele linguajar do eduquês e do aprender a aprender.
Tem dado o resultado que se vê.
A minha expectativa em relação
a Nuno Crato é porque ele é da
área das Ciências e muito particularmente de Matemática. Mas
além de ser tolhido pela troika,
vai ter que vencer muitos tolhimentos dessa gente das Ciências
da Educação que está instalada
há muitos anos no Ministério. As
Ciências da Educação têm muito
à dar à Educação, a questão é que
não se pode chegar ao passado e
cortar, pura e simplesmente, tudo
o que está para trás. As escolas
não podem deixar de servir para
ensinar ou para educar, no sentido literal da palavra. Depois há o
do facilitismo. Espero que sendo
ele cientista não trabalhe para as
estatísticas, como o fizeram muitos ministérios. Com a obsessão
dos resultados, contentaram-se
com o que aparece formulado em
papéis e estatísticas e não com a
materialidade desses resultados
ou com o que significam. A ideia
das Novas Oportunidades é excelente mas padece do mal terrível
de que aprender é fácil. E não é.
Aprender é penoso e não é uma
coisa necessariamente divertida.
Mesmo quando se tem prazer com
a aprendizagem, às vezes é penoso e doloroso. Com este tipo de
formação, criaram-se situações de
desigualdade escandalosas, em
relação às pessoas que frequentaram o ensino secundário. Com
as Novas Oportunidades tira-se o
12º ano com uma perna às costas.
Em termos gerais, o que acredita conseguir fazer este novo
governo por Portugal?
Excepto em relação a estes dois
ministérios, não tenho expectativa nenhuma. Depois do compromisso assumido com o FMI, Banco Central Europeu e União
Europeia, este governo vai ser
como qualquer outro. Vai ser um
simples feitor e um capataz desses nossos credores. Tenho as piores expectativas em relação a isso.
Mas a vinda do FMI não era
inevitável?
Acho que não. Foram feitas
muitas, muitas, muitas asneiras.
Os dois governos anteriores flutuaram acima da realidade e tentaram convencer os portugueses
de um mundo fantasioso. Houve
muita fantasia, muita incompetência e, sobretudo, muita propaganda. A ter de ser pedida ajuda
externa, já deveria ter sido há muito mais tempo. Teria sido em muito melhores condições, quer de
juros, quer de prazos e não seria
uma ajuda tão substancial. As
actuais condições impostas são
severíssimas.
O nosso Ministério da
Educação
está, há muitos anos, nas
mãos de uma
espécie de
seita
ID: 36413194
07-07-2011
Tiragem: 15000
Pág: 15
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Semanal
Área: 26,94 x 36,89 cm²
Âmbito: Regional
Corte: 2 de 3
A verdade tem muitas faces
É jurista de formação. A
(in)justiça incomoda-o?
Incomoda e muito. O que aconteceu agora com o CEJ é miserável e não é de agora, nem é pontual. É uma coisa estabelecida.
Não são os magistrados que fazem
as leis, são os políticos. E a grande culpa da situação da justiça em
Portugal é dos políticos. A reforma do Código Penal de 2007 foi,
assumidamente e de forma escandalosa, condicionada por um caso
concreto chamado Processo Casa
Pia. O próprio ministro Alberto
Costa chegou a dizer isso. Mas os
magistrados também têm muitas
culpas no cartório porque funcionam como uma corporação
fechada. Sei o que se passa no CEJ
porque acompanhei com proximidade um dos cursos anteriores
e posso dizer que este copianço é
muito frequente. E há outras coisas inaceitáveis, como bulling e
até furtos. E isso foi sempre lixo
varrido para debaixo do tapete. A
culpa não é do CEJ, nem sequer
da lei de estatuto ou de acesso ao
CEJ. A culpa é de pessoas concretas. Em Portugal, temos a tendência de responsabilizar muito
o sistema e de isentar as pessoas.
O particular faz as coisas e o geral
é que as paga. Ora as pessoas é
que têm culpa não é o sistema.
O que pensa do jornalismo
português?
Vejo a Sic Notícias e pouco
mais. Vejo mais informação pela
internet. Hoje há um clima na
comunicação social que tem que
ver com a cultura dos tempos, com
a ânsia de protagonismo e com
as condições laborais e a muita
precariedade em que se exerce a
profissão de jornalista. Há também uma concorrência muito severa pelas audiências, entre os órgãos
de informação e consequentes
recursos publicitários, que são
escassos. E uma perda de autonomia das redacções em relação
às administrações. O jornalismo
antes também não era o paraíso.
Dizia-se até que valia tudo menos
arrancar dentes. Mas agora até
arrancar dentes já vale. Não só na
concorrência entre os jornalistas
como entre os próprios jornais.
Esse mundo da precariedade laboral cria um ambiente concorrencial quase demencial e um caldo
de cultura para a delinquência
deontológica. Fazem-se coisas
completamente inaceitável do pon-
A concorrência é um veneno
estilado nas crianças
Estamos a formar bons adultos?
Há hoje uma inversão de valores que afecta muito as crianças.
Na própria escola, há toda uma
cultura da competitividade, agressividade, ditas por algumas pessoas e repetidamente usadas na
televisão por economistas, como
se tivessem a falar de qualidades
moralmente elevadas. As crianças são muito condicionadas e
empurradas para terem boas notas,
serem competitivas e as melhores, para terem acesso ao curso
superior que querem. Em vez de
se desenvolvido nelas o espírito
solidário, de lealdade e de respeito mútuo. No liceu, era quase inaceitável, num exame, não
se ensinar alguém que não soubesse. Hoje não só não ajudam
como são até capazes de dar uma
resposta errada ao colega, porque é menos um concorrente.
Mesmo nos primeiros anos de
escolaridade, as crianças em vez
de serem companheiras e colegas são concorrentes. Isto é um
veneno estilado nas crianças e
na sociedade.
É mais difícil ser criança hoje
que há 60 anos?
Sempre foi muito difícil ser
criança. No meu tempo era muito difícil ser criança, em termos
económicos e culturais. A criança era entendida como um adulto em miniatura, até pela maneira autoritária como era estruturada
a família, sobre as ordens do pai,
do chefe absoluto. A criança não
tinha nenhuma autonomia nem
identidade. Os filhos, nos meios
rurais, mal começavam a ter corpo suficiente iam logo trabalhar.
Hoje já há noção (as Ciências da
Educação deram aí grande ajuda) que o trabalho infantil é moral
e legalmente inaceitável. Era muito fácil bater numa criança. Era
quase uma obrigação, tal como
bater na mulher. Era um sinal de
afecto. Abusar de crianças era a
coisa mais natural do Mundo.
Hoje, fala-se em pedofilia, mas
sabe-se lá o que se passava então.
Era muito mais penoso ser criança então que hoje. Mas quando
as medidas da Troika apertarem
e começar a haver fome, as crianças, os idosos e os animais serão
as grandes vítimas. São os mais
fracos e vulneráveis.
to de vista deontológico, como
não ouvir a outra parte, e não
levar à prática a noção de que a
verdade tem muitas faces.
E a memória? Ou a falta dela?
A falta de memória é outro
pecado mortal. Já vi notícias dadas
em manchetes de jornais, que já
o tinham sido há dois meses. Não
se relacionam umas coisas com
as outras. Veja-se o que se passou agora com Almerindo Marques, ao aparecer na empresa do
grupo BES, ligada às auto-estradas e às SCUTS, sem se relacionar com a notícia anterior. Depois
de uns meses antes ele ter feito
um negócio absolutamente ruinoso para as Estradas de Portugal, segundo um relatório do Tri-
Jurista,
jornalista,
escritor e
poeta
bunal de Contas, com essa mesma empresa, não vi nenhum jornal e muito menos televisões, a
relacionarem os assuntos. Dando-se uma notícia secamente hoje,
pode eliminar-se outra dada anteriormente. Não quero dizer que
seja sistemático, mas só muito
raramente se relacionam as notícias. Mesmo assim as televisões
privadas fazem mais estas ligações que a pública. Por isso é que
não acho mal nenhum que a televisão pública seja privatizada.
Claro que não se pode generalizar, porque ainda há espaços de
qualidade, seriedade e dignidade
no exercício da profissão dos jornalistas, em alguns blocos noticiosos das televisões e nos próprios jornais.
Após receber o Prémio Camões
2011, o município do Sabugal
(Guarda), onde nasceu em
1943 e viveu até aos 4 anos de
idade, não tardou em felicitálo. “Até me puseram uma placa na casa onde nasci. Agradame porque é uma forma de
reencontro com as minhas raízes”, diz Manuel António
Pina. Vive há 50 anos no Porto
mas manteve sempre a pronúncia da Beira Baixa, pelo contacto com os pais. Correu o
País, porque devido à profissão
do pai andava de terra em terra. Desde cedo se interessou
pela leitura e não descura o
facto de terem sido as filhas
que o motivaram para os contos infantis. Começou quando a
mais nova ainda não tinha nascido e a mais velha tinha uns
quatro anos. Licenciado em
Direito em Coimbra, foi jornalista do Jornal de Notícias
durante três décadas. É actualmente cronista no mesmo jornal e na revista Notícias Magazine. A sua obra é
principalmente constituída por
poesia e literatura infanto-juvenil. É ainda autor de peças de
teatro e de obras de ficção e
crónica, algumas adaptadas ao
cinema e TV e editadas em disco. A sua obra está traduzida
em França, Estados Unidos,
Espanha, Dinamarca, Alemanha, Países Baixos, Rússia,
Croácia e Bulgária.
Estamos rodeados de monstros
por todos os lados
Quais são os seus principais
medos?
O meu maior medo é medo de
ter medo. Há um poema de Alexandre O'Neill que diz: “penso no
que o medo vai ter e tenho medo
que é justamente o que o medo
quer”. A nossa vida pessoal e social
está rodeada de monstros por todos
os lados, dentro e fora de nós. Por
isso temos boas razões para ter
medo. Se não tivermos medo, das
duas uma: ou somos insensíveis
(cegos, surdos e mudos) ou temerários. Insensíveis para aquilo que
nos rodeia e para o nosso próprio
interior. Ter medo é natural. Coragem não é não ter medo. Coragem
é ter medo mas ser capaz de vencê-lo, enfrentá-lo e conviver com
ele, sem ser dominado. E há várias
formas de lidar com o medo: fugindo, evitando-o, torneando-o. No
meu caso escrevi, sempre escrevi
muito. Escrever é uma forma de
lidar com o medo. A arte, o pensamento, a filosofia, as religiões (eu
sou ateu) são tudo formas de lidar
com o medo. Cada um arranja a
que é mais apropriada à sua maneira de ser. E em cada momento da
vida. Temos fantasmas, medo da
origem, do antes, do depois, da morte, do amor, do futuro, do próprio
presente. A vida é assim mesmo.
Na Ípsilon refere o facto da
sua mulher dizer que se põe em
bicos dos pés sem necessidade.
É uma pessoa excessivamente
humilde?
Não sou nada humilde. Sou é
muito exigente em relação àquilo
que faço. Costumo dizer que o mínimo que nos é exigido é o máximo
de que somos capazes de dar. Em
todas as coisas na vida. Essa é uma
das minhas grandes convicções. E
somos sempre capazes de dar mais.
Aprendi com a experiência que
quem está contente consigo mesmo ou com alguma coisa que fez,
contenta-se com muito pouco. Independentemente do que tenha feito. O que fiz de bom ou mau, pouco ou muito, acho que posso sempre
fazer melhor. Não é por isso uma
questão de humildade mas de orgulho. A minha mulher é uma crítica, porque às vezes deixo-me embalar por facilidades. O nosso espírito
crítico também adormece, também
se cansa e às vezes também se envaidece. Um livro que publiquei, no
ano passado, de contos de Natal,
chamado O cavalinho de pau do
Menino Jesus e outros contos de
Natal, foi corrigido completamente porque a minha mulher dizia que
tinha coisas de mau gosto. Ela é
muito terra a terra.
Já recebeu inúmeros prémios.
Eles mudam a forma como se
vê?
Os prémios não me adormecem, antes pelo contrário. Não
deixo de ser menos exigente por
causa disso. Quando era jovem,
queria transformar o mundo e
mudar a vida. Agora com o tempo já desisti disso. Não consigo
fazer nada para mudar o mundo. Neste momento, a minha preocupação é que o mundo não me
mude a mim e esforço-me ao
máximo para que isso não aconteça. Por muito simpáticos que
sejam os prémios, até porque são
uma forma de reconhecimento e
todos gostamos de ser amados,
são acontecimentos mundanos.
Tendo o projecto de vida de que
o mundo não me mude a mim,
também não é um prémio que
me vai mudar.I
07-07-2011
GRANDE ENTREVISTA
Pág: 1
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Âmbito: Regional
Corte: 3 de 3
RICARDO GRAÇA
ID: 36413194
Tiragem: 15000
MANUEL PINA, prémio Camões 2011
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Uma máquina de calcular pode matar mais
que uma pistola
O Ministério da Educação está há muitos anos
nas mãos de uma espécie de seita
Quem está contente consigo mesmo
contenta-se com muito pouco
PÁGS. 14 E 15
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Uma máquina de calcular pode matar mais que uma pistola