A UNIVERSIDADE PÚBLICA NA CONTEMPORANEIDADE: CRISES,
CIRCUNSTÂNCIAS E ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA
Oriomar Skalinski Junior
1. INTRODUÇÃO
Pensar a universidade pública suas crises e seus desafios dentro do contexto neoliberal
contemporâneo nos parece um exercício, para além de legítimo, também fundamental a
todos aqueles que não desejam naufragar em meio a tempestade, oriunda do processo
de globalização, a que a universidade vem sendo submetida. A gradual e ininterrupta
descapitalização e as investidas com intenções privatizantes de que as instituições
públicas de ensino superior têm sido alvo, não são novidades e a cada dia ganham tons
mais drámaticos. Santos (2004), aponta para aqueles que acredita serem os maiores
desafios que se colocam para a universidade contemporânea, mais decisivamente,
para as universidades públicas; isto ao chamar a atenção para a necessidade do
enfrentamento das 3 principais crises que a cada dia tomam mais corpo no horizonte, a
saber, as crises de hegemonia, legitimidade, além da crise institucional que dá indícios
de minar as estruturas da universidade. A partir do que constatamos em Santos (1994),
não é equivocado dizer que os desafios colocados hoje para a universidade pública não
são assim tão diversos dos emergentes a uma década atrás, com certeza se tornaram
mais agudos em função da clara diminuição da prioridade dada a universidade como
bem público, contudo, não seria exagero dizer que a estrutura dos problemas é
essencialmente a mesma já há algum tempo. Assim, é salutar que problematizações
acerca destas questões ganhem corpo dentro do meio acadêmico, principalmente,
quando está posto em andamento pela administração federal um projeto de reforma
universitária.
2. OBJETIVOS
O presente texto tem como objetivos delimitar as principais crises vividas pela
universidade pública na contemporaneidade, demonstrar o quanto tais crises são
contingentes a atual configuração do capitalismo e, finalmente, esboçar idéias que
talvez possam colaborar na construção de estratégias de resistência frente à “invasão
neoliberal” a que universidade pública vem sendo submetida.
3. METODOLOGIA
Este trabalho tem caráter bibliográfico, tratando-se de pesquisa conceitual baseada em
levantamento de fontes e literatura de apoio. Os procedimentos realizados uma vez
concluída a seleção da literatura, foram os seguintes: leitura, coleção de dados, análise
e correlação dos dados obtidos a partir dos textos submetidos. No encaminhamento
das análises contemplamos as interações entre os elementos que compõem o
movimento do cenário contemporâneo, tomando-os sempre como inseridos dentro de
um contexto, jamais os analisando isoladamente. A partir deste pressuposto, buscamos
realizar a contextualização do objeto e delimitar suas contingências demonstrando suas
relações com as questões econômicas contemporâneas.
4. RESULTADOS
4.1. DELIMITANDO AS PRINCIPAIS CRISES
Para discutirmos a universidade contemporânea, achamos ser interessante retomar
algumas considerações levantadas por Boaventura de Souza Santos no ano de 1994,
ou seja, há mais de uma década atrás, onde apontou para aqueles que acreditava
serem os desafios que se colocavam para as universidades públicas, no final do século
XX. Santos (1994), chama a atenção para a necessidade do enfrentamento de 3
principais crises: a de hegemonia, a de legitimidade e a institucional.
No que diz respeito à crise de hegemonia, Santos (1994) detecta a encruzilhada em
que a universidade desembocou por ocasião da emergência de uma demanda por
parte do mercado que redimensionava os requisitos humanos desejáveis para o
capitalismo que, sabidamente, passou a valorizar mais uma mão de obra detentora de
padrões culturais medianos e que tinha como escopo central de sua formação o
desempenho de funções eminentemente técnicas e/ou instrumentais, em detrimento de
uma formação mais completa e profunda que tem como ônus um maior investimento de
tempo e recursos para a devida qualificação. Ao ser confrontada com este novo
desafio, em função de tradicionalmente ter se dedicado à formação das elites, e por
conta disso ter priorizado a alta cultura, a universidade não desempenhou o papel
requisitado pelas demandas da lógica do capital. Isto somado ao fato de que, frente a
atual configuração das bases produtivas, não há vácuo que não venha a ser
prontamente preenchido, ocorreu como corolário direto desta demanda não atendida, o
florescimento de instituições, desvinculadas das universidades, que se dedicaram a
abastecer o mercado com o tipo de recurso humano por ele desejado e, também, com
pesquisas voltadas diretamente para o desenvolvimento de tecnologias que tivessem
como resultado produtos passíveis de comercialização. Assim, a universidade passou a
ter como sombra instituições, tanto estatais quanto privadas, que minaram sua
hegemonia, o que por definição, não nos parece algo mau, visto que o diálogo entre
institutos de pesquisa e de formação dotados de estatutos diferentes pode contribuir
para a polifonia do conhecimento, contudo, o caráter mais agudo da questão é que a
universidade foi colocada frente ao impasse de aproximar-se ou não do mercado e/ou
indústria; sua recusa parece implicar em sua progressiva descapitalização, enquanto
sua aproximação, leva ao afastamento de sua vocação de desenvolvimento de
pesquisas essenciais não passíveis de aplicação imediata o que, com efeito, trás sérias
dificuldades principalmente para as pesquisas dentro das ciências sociais e humanas.
Prosseguindo em nossa retomada de Santos (1994), agora nos focaremos no problema
da crise de legitimidade, o que a nós parece ser o mais grave dos conflitos por ele
levantados, uma vez que entendemos que a falência de uma instituição reside,
primordialmente, em sua falta de legitimação social. Como ocorre com qualquer
instituição, o que garante a manutenção da universidade é o fato de o corpo social dar
fé a mesma, ou seja, trata-se, essencialmente, da crença das demais instituições e
também das pessoas individualmente na capacidade daquela em contribuir para a
construção de um projeto de avanço social em alguma instância. Ao deixar de ser uma
instituição que centralizava totalmente a formação superior e a pesquisa, e frente à
constatação da não democratização de seu acesso, as universidades públicas por um
lado deixam de ser imprescindíveis ao mercado, visto que não são mais as únicas
instituições responsáveis pelos avanços em pesquisa, e também perdem sua
legitimidade junto às classes populares em função de não se prestarem a sua
formação.
A imobilidade da universidade pública frente esta situação, acabou por colaborar para a
proliferação das universidades privadas que açambarcam para si estudantes de classes
populares não admitidos na instituição pública, que empregam sua renda pagando
mensalidades na tentativa de alcançar alguma elevação sócio-econômica, e também
estudantes de um nível social mais elevado que da mesma forma não conseguiram
ingressar na instituição financiada pelo Estado. Esta circunstância, ainda conduziu a
abertura de espaço para que o financiamento público de instituições de ensino superior
fosse questionado, isto, muitas vezes a partir de argumentações simplistas como as de
que apenas pessoas abastadas estudavam na universidade pública e, portanto,
poderiam pagar mensalidades, o que desoneraria o Estado de suas obrigações neste
campo liberando-o para aplicar estes recursos em outra área “mais emergencial”. Este
tipo de proposição, infelizmente, ecoa principalmente junto às camadas mais populares
que acreditam que caso o Estado parasse de empregar dinheiro no ensino superior,
ensino ao qual seus filhos não têm acesso, poderia, por exemplo, destinar estas verbas
na melhoria da rede de amparo à saúde. É evidente que a questão é muito mais
complexa do que isto, mas a profusão deste tipo de idéia pode conduzir a criação de
um ambiente que leve as pessoas a anuir, mesmo que um tanto à revelia, a propostas
como a da privatização das universidades públicas. Em função de tudo isto, justifico
nosso pensamento de que a crise da legitimidade talvez seja a mais grave, e que só
pode ser superada a partir do estabelecimento de uma relação mais estreita com os
extra-muros, estabelecendo uma interatividade capaz de fazer reverberar as questões
concernentes à universidade no corpo social e vice-versa.
A última questão levantada por Souza (1994) é a da crise institucional, que, com
efeito, constitui-se como um importante impasse dentro da universidade. Novamente,
aqui nos defrontamos com uma disputa entre o caráter público e o privado que, não por
acaso, perpassa de alguma forma as 3 crises a que aqui fazemos referência. Tratamse, em linhas gerais, de conflitos oriundos da oposição entre a reivindicação de
autonomia por parte da universidade pública, contudo, sem que isso implique em eximir
o Estado do financiamento da mesma, e o processo de submissão da instituição a
critérios de avaliação pautados em lógicas mercadológicas que consideram como
parâmetro de avaliação da pertinência, ou não, da universidade categorias de análise
como produtividade e eficácia. Ou seja, temos um embate que talvez em última
instância diga respeito à submissão da universidade pública autônoma a uma lógica
peculiar às empresas privadas, em detrimento de análises que contemplem sua
participação junto à comunidade na construção de soluções para as questões
pertinentes a ambas. A proliferação de discursos que fazem apelo ao estabelecimento
de parcerias entre universidade e indústria, universidade e empresas prestadoras de
serviço, afim de que viabilize de modo independente recursos para sua manutenção,
não se constituem ao acaso. São resultado de todo um contexto do que talvez possa
ser chamada de privatização branca, que se daria via a descapitalização da
universidade por parte do Estado e a expansão do discurso das parcerias com
instituições privadas que, pouco a pouco, entrariam na instituição pública chegando a
um ponto em que talvez estes limites não pudessem mais ser claramente definidos.
Vale aquilatar que, por princípio, estas parcerias não se tratam de algo essencialmente
nocivo, uma vez que é salutar este estabelecimento de interações, contudo, este
processo enquanto possível saída para a descapitalização da universidade em função
do Estado repassar recursos insuficientes, trata-se de uma quimera, de uma miragem
no deserto em que a universidade pública se encontra. Portanto, concordamos com
Trindade (1999), quando salienta que a discussão sobre autonomia não pode limitar-se
a uma bandeira histórica acerca do caráter essencial da universidade, e sim, também
contemplar as estratégias do governo que são derivadas diretas de seus acordos com
agências internacionais.
4.2. PENSANDO A UNIVERSIDADE HOJE
Fizemos questão de em um primeiro momento pontuar e realizar algumas
problematizações acerca das 3 crises que, segundo Santos (1994), se colocavam para
a universidade há uma década atrás. Com isso, buscamos aumentar nosso “campo de
visão” da instituição, visto que entendemos que esta manobra nos possibilitaria um
referencial mais amplo no momento de discutir a situação da universidade na
atualidade. Talvez não nos equivoquemos se dissermos que os desafios postos hoje
não são assim tão diversos dos de uma década atrás, com certeza ganharam um tom
mais agudo em função da dramática diminuição da prioridade dada a universidade
como bem público, contudo, não seria exagero dizer que a estrutura dos problemas é
essencialmente a mesma. Santos (2004), fala de um agravamento das 3 crises por ele
apontadas 10 anos antes. Com relação à hegemonia, defende que a crescente
descaracterização intelectual da universidade levou a uma ainda maior perda de sua
posição enquanto referencial. No que diz respeito à legitimidade, a expansão das
instituições privadas conduziu a uma clara desvalorização dos diplomas universitários
que, em casos limite, praticamente podem ser comprados, sendo exigidas por parte dos
acadêmicos apenas uma freqüência sazonal. Ainda vale pontuar que as instituições
privadas de ensino superior acabaram por constituir-se em uma concorrência desleal
para com a universidade pública, visto que, para além de sua capitalização ser
realizada mediante a cobrança de mensalidades, também receberam um amplo
financiamento do Estado. Já a crise institucional da universidade na maioria dos países,
é entendida por Santos (2004) como “provocada ou induzida pela perda da prioridade
do bem público universitário nas políticas públicas e pela conseqüente secagem
financeira e descapitalização das universidades públicas” (p.13), o que, sabidamente,
também se tornou uma prática mais recorrente e ferrenha por parte do Estado.
Fazendo esta breve retomada, não é sem pesar que notamos que o cenário tornou-se
ainda mais preocupante, uma vez que o que vemos é a transformação da educação
superior em uma mercadoria como outra qualquer dentro do comércio mundial de
serviços. Isto conduz, ainda mais decisivamente, a universidade a uma aproximação do
paradigma empresarial de gestão. A primeira conseqüência desta guinada é o sério
comprometimento da liberdade acadêmica em favor de um privilégio concedido a
estudos que se vinculem a indústria e ao mercado de serviços; e a segunda, é a
migração do poder dentro da universidade das mãos dos docentes para a dos
administradores e executivos, isto com o objetivo de implementar de modo imperativo
parcerias com o mercado. Se pensarmos em uma conseqüência acabada deste tipo de
projeto, provavelmente, chegaremos a conclusão de que este só pode conduzir a
concretização da privatização da universidade pública e o conseqüente fim do ensino
superior gratuito. Com isso, dá-se fim a uma importante instituição que, ao menos
teoricamente, seria capaz de promover a elevação sócio-econômica de pessoas
oriundas das camadas mais baixas da estratificação social. Frente ao imperativo do
pagamento por uma formação superior, cria-se mais um impedimento à possibilidade
de mobilidade social.
Um tema que ganha especial pertinência, ao colocarmos em debate este tipo de
temática, é a teoria do capital simbólico discutida por Bourdieu (1996). Este entende o
capital simbólico como sendo “uma propriedade qualquer (de qualquer tipo de capital,
físico, econômico, cultura, social), percebida pelos agentes sociais cujas categorias de
percepção são tais que eles podem entendê-las (percebê-las) e reconhecê-las,
atribuindo-lhes valor” (p.107). Inicialmente, este tipo de categoria dizia respeito
eminentemente à reputação e ao reconhecimento social atribuído a alguém ou algo
dentro de uma organização humana. Tratava-se, portanto, de uma representação que
um coletivo fazia de alguma coisa, isto a partir de categorias de percepção peculiares a
cada especificidade de grupamento social.
A partir da gradual concentração do poder no Estado, a legitimação do capital simbólico
deixou de ser algo que dizia respeito primordialmente à organização social e passou a
ser “objetivado, codificado, delegado e garantido pelo Estado, burocratizado”
(BOURDIEU, 1996, p. 112). O capital simbólico deixou de ser difuso, passou a ser
mediado por critérios objetivos e estabelecidos pelo Estado através de suas
instituições. Assim, por exemplo, quando um médico assina um atestado mobiliza “um
capital simbólico acumulado em toda a rede de relações de reconhecimento,
constitutivas do universo burocrático. Quem atesta o atestado? Aquele que assinou o
título que licencia para atestar” (BOURDIEU, 1996, p. 113). Dentro deste contexto, a
universidade aparece como uma das instâncias mais relevantes no que diz respeito à
legitimação simbólica, legitimação esta que tem comumente como corolário a
progressão sócio-econômica do legitimado. Assim, reafirmamos que ao se interditar
mais esta instância criadora de chances reais de elevação social, cria-se ainda mais um
obstáculo à ascensão das camadas mais pobres, tornando cada vez mais difícil a
possibilidade de um indivíduo “furar o pano”.
Outro ponto relevante no que diz respeito a discussão contemporânea acerca da
universidade, é a nítida transnacionalização desta instituição via neoliberalismo. Santos
(2004), ressalta que a transnacionalização se dá sob a égide da Organização Mundial
do Comércio no âmbito do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (GATS). Tratase do provimento de serviços de educação superior sem que haja obrigatoriamente a
presença física do “consumidor”, a partir da implantação das novas tecnologias de
comunicação. Cria-se assim, um mercado exportador/importador de produtos
universitários, o que tem sérias implicações uma vez que a princípio o serviço educativo
é considerado serviço público, regulado pelo Estado, contudo a criação deste mercado
educativo implica na submissão de suas regulamentações aos ditames da Organização
Mundial do Comércio (OMC).
Em realidade, segundo a concepção generalizada, o ensino superior,
como todo serviço educativo, é considerado como um serviço público
que, soberanamente, os governos podem, se lhes parece conveniente,
delegar a grupos comunitários ou particulares, mas sempre dentro de
um quadro e de uma legislação nacional que mantenha o caráter de
serviço público. A OMC faz o que os franceses denominam um
<<raccourci>>, tomam um atalho, e conclui, através de um sofisma que
nem mesmo é explicado, que, a partir do momento que instituições
particulares são admitidas como provedoras de ensino, este é
comercial, aplicando-se, pois a ele, as regras da OMC (DIAS, 2002,
p.6).
Dias (2002), dando prosseguimento a suas considerações chega a um ponto ainda
mais grave no que diz respeito a sujeição da educação superior aos desígnios da OMC.
E, de fato, caso queiramos interpretar o que está preparando a OMC,
vamos concluir que, aceita esta decisão, um Estado-membro desta
organização que não respeite, por exemplo, a obrigação e facilitar o
reconhecimento de diplomas estrangeiros que tenham condições de
satisfazer as exigências de fundo (normes de fond) corre o risco de ser
convocado perante a ORD - Organe de Règlement dês Différends - da
OMC por discriminação ou pelo exercício de uma restrição disfarçada
ao comércio de serviços ( p. 12).
O meio universitário pode assim ser tratado, como fica transparente na citação acima,
como um meio de circulação de produtos. Deixam-se de se considerar dentro desta
lógica, toda e qualquer questão relacionada ao comprometimento social que a
universidade não pode deixar de contemplar em seu estatuto.
Com certeza o quadro em que a universidade pública se encontra não é dos mais
animadores, mas a rendição não é imperativa. Apesar da ampla tentativa de incorporar
a universidade pública aos meios privados, a criação de linhas de fuga ainda é possível,
talvez, sob o eixo fundamental da criação de um projeto de país ao qual a universidade
possa se associar, e assumir sua responsabilidade social sem que isso implique na
restrição de sua autonomia. Isto pode parecer algo muito distante, contudo, vale
aquilatar, que o próprio Estado contempla, em sua estrutura e em seu capital humano
contradições imanentes às postas no social, há, portanto, uma energia latente que
talvez possa ser catalisada. Bourdieu (1998), ao tratar do que usou chamar de a mão
esquerda e a mão direita do Estado exemplifica bem o tipo de contradição existente no
interior da máquina estatal, bem como, aponta para as implicações derivadas deste
embate. Ao se referir aos dois conceitos acima mencionados, Bourdieu faz referência
as diferenças existentes entre uma espécie de pequena nobreza e de grande nobreza
presentes no Estado. A mão esquerda, seria composta pelos trabalhadores sociais que,
segundo o autor, são uma espécie de vestígio das lutas sociais do passado que
sobreviveram no Estado. Assim, profissões como as de assistentes sociais,
educadores, professores, por exemplo, constituiriam esta ala que, apesar de fazer parte
do corpo estatal, também sofreria sobremaneira o impacto da contradição e da
crescente turbulência social. No outro extremo estaria a mão direita, que diz respeito
aos burocratas envolvidos nas Finanças, que, portanto, teriam a chave do cofre e
destinariam recursos conforme as diretrizes adotadas pelo Estado, a saber, atualmente,
preponderantemente diretrizes neoliberais. Isto, conforme Bourdieu (1998), implica no
fato de o Estado estar gradualmente se retirando de setores, que tradicionalmente
eram de sua responsabilidade, levando a um crescente agravamento das condições de
vida das camadas menos favorecidas economicamente. Ou seja, o Estado retira-se e
deixa nada em seu lugar, ou melhor, deixa um sistema público sucateado e a iniciativa
privada que, com efeito, não dá assistência àqueles que não tiverem condições de
arcar com os custos.
Emparedados pelo economismo estreito e de curto alcance da visãode-mundo-FMI, que também faz (e fará) tantos estragos nas relações
Norte-Sul, todos esses semi-habilitados em matéria de economia
evitam, evidentemente, levar em conta os custos reais, a curto e
sobretudo a longo prazo, da miséria material e moral que é a única
conseqüência certa da Realpolitik economicamente legitimada:
delinqüência, criminalidade, alcoolismo, acidentes de trânsito etc. Mais
uma vez, a mão direita, obcecada com a questão do equilíbrio
financeiro, ignora o que faz a mão esquerda, confrontada com as
conseqüências sociais freqüentemente muito dispendiosas das
“economias orçamentárias” (BOURDIEU, 1998, p. 14).
Vemos com isso, que a questão da universidade pública não é uma exceção, na
verdade trata-se de apenas mais uma reverberação de todo um sistema que opera
dentro de uma lógica no mínimo perversa. Talvez um possível caminho de luta, possa
ser favorecido pelo fato de a mão esquerda do Estado, da qual a universidade faz
parte, ainda deter algum poder dentro do campo simbólico e político o que lhe fornece
algumas armas na luta por um redimensionamento de suas relações e influências.
5. CONCLUSÕES
A despeito das peculiaridades concernentes a questão da universidade, pode-se falar
em uma perda generalizada de prioridade das políticas sociais de educação, saúde,
previdência, como corolário do modelo de desenvolvimento econômico neoliberal
(SANTOS, 2004). O que pode ser constatado no corpo social, de acordo com Bourdieu
(1998), é uma espécie de mal estar coletivo derivado das contradições que a cada dia
ganham um caráter mais dramático.Uma fragmentação progressiva se instaura em
vários níveis como o da produção na indústria, no mercado, na organização da classe
operária, no sujeito e no discurso político, além de na própria atividade política. Ou seja,
o modo como esta sendo organizado o trabalho atualmente e concomitantemente o
mercado, vem construindo uma escalada da fragmentação do social conduzindo os
indivíduos ao niilismo e a inatividade política. Dentro deste espaço, paulatinamente,
foram se erigindo concepções relativistas, fragmentárias e descrentes na possibilidade
da constituição de um estado de bem estar social sólido, o que na verdade é uma
demonstração da crise cultural contemporânea que, evidentemente, reverbera na
universidade.
Santos (2004), escreve que através das políticas neoliberais que contemplam as
instituições de ensino superior, pode-se claramente perceber a difusão da idéia de que
a universidade pública é irreformável e, que, portanto, o fato de perder sua prioridade
enquanto bem público seria perfeitamente justificável. Especificamente no Brasil, esta
situação é ainda mais agravada por conta da clara ausência de um projeto de país, o
que colabora para o ostracismo social da universidade pública e a impele para uma
espécie de “geléia geral” de instituições que progressivamente vão caindo no
descrédito público.
Em síntese, cabe à universidade em contraposição a esta
circunstância, a edificação de um discurso realista e capaz de mobilizar o desejo de
lutar pelo bem público, isto sem incorrer em proposições simplistas que levam a
mistificações. Para não cair nesta armadilha, o principal caminho de luta é, para além
do fortalecimento de sua legitimação junto ao social, o da sofisticação de argumentos,
sem isto, nos parece ser impossível levar adiante uma luta vencedora em nome da
universidade enquanto bem público.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOURDIEU, Pierre. Espíritos de Estado: gênese e estrutura do campo burocrático. In:
_____. Razões Práticas sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus: 1996.
_____. A mão esquerda e a mão direita do Estado. In: _____. Contrafogos: táticas
para enfrentara invasão neoliberal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
DIAS, Marco Antônio R. Educação superior: bem público ou serviço comercial
regulamentado pela OMC. In: Reunião de Reitores de Universidades Públicas Iberoamericanas. Porto Alegre, 2002.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Da idéia de universidade à universidade de idéias. In:
_____. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. Porto:
Afrontamento, 1994.
_____.A universidade no século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória
da Universidade. São Paulo: Cortez, 2004.
TRINDADE, Hélgio. As universidades frente à estratégia do governo. In: _____ (org.).
Universidade em ruínas na República dos professores. P
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