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Aborto ilegal, uma forma de
feminicídio?
A verdade encoberta pela hipocrisia é que o aborto inseguro e a clandestinidade são
fatores de morbidade e de mortalidade materna no país
POR JOSÉ GOMES TEMPORÃO E LENA LAVINAS
21/03/2015 0:00
As contradições presentes no campo da
regulamentação dos direitos individuais e
sociais e a ampliação de iniciativas que ferem os
princípios dos direitos humanos mostram­se
ainda mais exacerbadas quando o tema diz
respeito às mulheres.
O Congresso acaba de aprovar a Lei 8.305, que
tipifica o crime de feminicídio. Significa dizer
que a antiga reivindicação do movimento de
mulheres e feministas foi, finalmente, validada
pela sociedade brasileira. Quando mulheres são
assassinadas por serem mulheres, configura­se
crime hediondo, a partir de agora inafiançável.
Portanto, aqui há o que comemorar!
Por outro lado, a cada dois dias morre no Brasil
uma mulher vítima de abortamento. O que
pensar quando um médico, desrespeitando o
código de ética ao qual prestou juramento,
infringe a lei que estabelece que toda mulher em
processo de abortamento deve ser atendida e
acolhida com respeito e humanidade? Essa é a
postura indutora da morte de mulheres que
ousaram contestar um destino definido por
outros — sem sequer o benefício da empatia que
deve sustentar o cuidado em saúde. Essa
postura, que leva mulheres a morrer apenas por
serem mulheres, não significaria uma prática
deliberada de extermínio daquelas que ousaram
contestar seu destino de mulher?
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A ONU já recomendou que fosse revista a
legislação que criminaliza o aborto no Brasil e
em outros países latino­americanos, por ser
absolutamente incompatível com o direito à
vida, à dignidade e à segurança das mulheres.
Existem cerca de 30 projetos de lei no
Congresso, contrários à descriminalização do
aborto, com o intuito de aumentar a punição
das mulheres ou mesmo proibir os casos hoje
acolhidos na lei. Diante do não acesso a
métodos seguros de interrupção da gravidez em
prazo recomendado inclusive pelo Conselho
Federal de Medicina (até 12 semanas), muitas
mulheres já buscam outros países para praticar
um aborto seguro. Estamos voltando a uma
situação que prevalecia na Europa dos anos 60,
quando somente alguns poucos países tinham
legalizada a prática.
A criminalização do aborto no Brasil não
impede que ele seja realizado e não reduz a sua
incidência, mas impede que os casos sejam
devidamente notificados e aumenta o risco para
a saúde e a vida das mulheres, sobretudo das
negras e mais pobres. A Pesquisa Nacional de
Aborto (PNA) de 2009 mostrou que uma em
cada cinco mulheres até os 40 anos já fez pelo
menos um aborto. Em metade dos casos,
utilizaram medicamentos para a indução do
último aborto. Em cerca da metade desses,
houve internação pós­aborto.
Enquanto o debate se mantém restrito ao
âmbito religioso, moral e filosófico, o Sistema
Único de Saúde atende a mais de 220 mil
mulheres por ano em razão de complicações
oriundas de curetagens pós­aborto, sejam elas
resultantes de abortos espontâneos ou
inseguros.
A verdade encoberta pela hipocrisia é que o
aborto inseguro e a clandestinidade são fatores
de morbidade e de mortalidade materna no país
entre adolescentes e jovens, de todas as raças e
etnias, atingindo, sobretudo, aquelas em
situação de pobreza. Não fosse crime no Brasil,
médicos e hospitais fariam o procedimento com
tranquilidade e mulheres pobres teriam acesso a
um serviço seguro, longe de métodos cruéis que,
quando não matam, deixam sequelas
irreversíveis, físicas e psíquicas.
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Ademais, aumenta também a desinformação.
Métodos simples, baratos e seguros já estão
disponíveis em muitos países, mas não entre
nós. Todos os dias, a imprensa divulga, com
alarde, notícias sobre o comércio ilegal de
drogas abortivas, fechamento de clínicas e
prisão de profissionais de saúde envolvidos
nesses processos. Todos os que estudam o tema
sabem que essas medidas são absolutamente
inócuas e que o aborto continua sendo praticado
em larga escala neste país, que parece ter
optado por fechar os olhos para essa grave
questão de saúde pública e de cerceamento a
um direito individual das mulheres. Até
quando?
José Gomes Temporão é sanitarista e foi
ministro da Saúde; Lena Lavinas é professora
do Instituto de Economia da UFRJ
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