NA ESCURIDÃO DA NOITE, A POTÊNCIA DO IMAGINÁRIO: UM FACHO DE LUZ1 Vanessa Solis Pereira2 Na escuridão da noite É no momento em que fazemos a experiência da noite sem limite que esta se converte em um lugar por excelência, exatamente em meio do qual estamos absolutamente, qualquer que seja o ponto do espaço em que nos encontremos. O momento em que fazemos a experiência da noite, na qual todos os objetos se esvanecem e perdem sua estabilidade visível, é quando a noite nos revela a importância dos objetos e sua fragilidade essencial, é dizer de sua vocação de perder-se para nós mesmos no instante em que nos são mais próximos (DIDI-HUBERMAN, 2006, p. 64, minha tradução). Noite. Escuridão. Uma cela. Dois homens. Há várias maneiras de se começar uma história. Uma delas pode ser fechando os olhos para poder ver o que se passa quando as cortinas de um tempo se abrem e a luz da tela em branco cintila um caminho ainda inóspito a ser desvendado. É, em um oscilar rítmico entre encontros e desencontros, ausências e presenças, vazios e preenchimentos, que uma experiência se dá e uma história se torna possível. É preciso fechar os olhos e navegar pela escuridão da noite para poder acessar o que está para além do que nos é visível e óbvio, inalcançável ao olho nu. Ler uma história como se olha para uma cena ainda 1 Análise do livro (do escritor Manuel Puig) e da adaptação fílmica (sob direção de Hector Babenco): “O beijo da mulher-aranha”. 2 Psicóloga, Mestre em Educação UFSM, Especializanda em Cinema UNIFRA, integrante do GEPEIS/UFSM. inacabada, na tentativa de se encontrar em um resto perdido entre lembranças e esquecimentos de um tempo que não vivemos. Foi assim que acompanhei o romance escrito pelo argentino Manuel Puig (1976), filmado pelo diretor Hector Babenco (1985): “O beijo da mulher-aranha”. Na completa escuridão! O romance conta a história do prisioneiro político de esquerda Valentín Arregui (Raul Julia) e de Luís Molina (William Hurt), um homossexual afeminado condenado por corromper menores. Os dois dividem uma cela numa prisão brasileira. Trata-se de uma narrativa linear, com características de um hipertexto: a narrativa dentro de outra narrativa, o filme dentro do filme, personagens dentro de personagens. O romance apresenta um ritmo alternado entre a realidade da cela, as lembranças compartilhadas e o imaginário produzido pelas histórias dos filmes contados por Molina à Valentin. Costa (1998) trabalha com o conceito de ficção do si mesmo, e o caracteriza como uma necessidade que todos têm de contar-se entre os semelhantes, implicando elementos tanto de identidade quanto de diferença. O estatuto de verdade que a psicanálise atribui à ficção se dá pelo deslizamento dessa para o ato enunciativo. Com isso o sujeito é na medida em que ele enuncia. O contar-se por meio da ficção, de certa forma, duplica a experiência na medida em que traz o que poderia ser único e singular para o campo da vivência compartilhada e, para tanto, torna-se indispensável o reconhecimento do outro, pois é esse testemunho que vai atestar o registro deste ato de criação. E em qualquer versão que venhamos a produzir, estamos tanto numa posição de domínio, de atividade, de interpretação, quanto na posição de dominados, de passividade, de algo que nos escapa. Na versão que produzimos podemos estar em qualquer personagem, ou mesmo nos detalhes, e geralmente é pela estética por onde transborda o excesso ou a falta (COSTA, 1998). O reinventar-se é o constante contar-se e recontar-se diversas vezes e de diversas maneiras, sendo todas elas versões possíveis e “verdadeiras”. A potência do imaginário Pois são muitas idas e vindas, freqüentes movimentos em espaços reduzidos de tempo e lugar, explorando intensamente o contraste entre os significantes: fora/dentro, luz/escuridão, liberdade/aprisionamento, nitidez/sombra, agressividade/delicadeza, racionalidade/sensibilidade, homem/mulher, vida e morte. Na narrativa fílmica a câmera vai se movimentando como se fosse o nosso próprio olho percorrendo todo o espaço físico reduzido da cela. Na narrativa literária este movimento não é descrito, porém o percebemos a partir dos diálogos, que são inquestionavelmente reduzidos também no espaço físico da página do livro; enquanto que as histórias dos filmes contadas por Molina são as que tomam maior parte do espaço, se ampliam, se estendem quase para fora da página amarelada. Na verdade, se estendem até mesmo para as notas de rodapé. Isto confunde o leitor, ou melhor, o transtorna, pois assim como Valentin, somos completamente seduzidos por Molina, envolvidos em sua teia narrativa, ficando extremamente ansiosos pelo final do filme que só vem na noite seguinte. Uma alusão clara às Mil e Uma Noites3, em que Xerazade conta uma história inacabada todas as noites ao seu esposo, o rei Xariar, para poder manter-se viva. O narrador do romance está/faz-se ausente, empresta voz e cede lugar às personagens que parecem ter vida própria. Ele não se mostra nem de fora, nas inúmeras, longas e insistentes notas de rodapé na obra literária, notas essas que se reduzem à estudos e teorias psicanalíticas sobre a homossexualidade. Por que o escritor destinou tanto espaço para elas? Seria uma preocupação com o contexto social da época, uma forma de problematizar o preconceito à 3 As “Mil e Uma Noites” trata-se de uma coleção de histórias e contos populares originárias do Oriente Médio e do sul da Ásia, compiladas em língua árabe a partir do século IX. Os contos estão organizados como uma série de histórias em cadeia narrados por "Xerazade", esposa do rei Xariar. Este rei, louco por haver sido traído por sua primeira esposa, desposa uma noiva diferente todas as noites, mandando-as matar na manhã seguinte. Xerazade consegue escapar a esse destino contando histórias maravilhosas sobre diversos temas que captam a curiosidade do rei. Ao amanhecer, Xerazade interrompe cada conto para continuá-lo na noite seguinte, o que a mantém viva ao longo de várias noites ao fim das quais o rei já se arrependeu de seu comportamento e desistiu de executá-la. homossexualidade, de denunciar como os homossexuais estavam sendo tratados, como objetos de estudos, como anormais? Pensei também que ele poderia estar sendo generoso com o personagem do Molina. Da mesma forma como foi também com o leitor quando terminava de contar a história do filme narrado por Molina em nota de rodapé, mesmo que, por motivos quaisquer (ou o Valentin não gostava do filme ou queria dormir), a história fosse interrompida definitivamente no romance, como se a sobrevivência do leitor também dependesse desse fim. O diretor do filme foi especialmente cuidadoso com os diálogos das personagens na sua adaptação da obra, de modo a não comprometer a singularidade da narrativa, o que me fez atentar ainda mais para o papel fundamental da palavra que se colocava em ato como pulsão de vida. Foi também fiel ao argumento, inclusive à intensidade das reações dos personagens, muito bem trabalhadas na atuação dos atores, na medida exata para marcar a diferença na sua potência. Pois ele a marcou justamente para acompanhar sensivelmente o processo do encontro entre as duas personagens com posturas e visões de mundo completamente distintas, que precisavam, obrigatoriamente, compartilhar de um espaço comum e restrito, a cela. Fomos testemunhas de um encontro no qual a delicadeza, o cuidado e a sensibilidade dividiram lugar com a agressividade, a racionalidade e o rancor, como os dois lados de uma mesma moeda. Extremada diferença que separa, distancia e interrompe vidas, desta vez unindo-as, tornando-as únicas. O viajante vem de longe para interromper a comodidade do habitual e do acostumado, para produzir a diferença entre o que se é (e agora se está deixando de ser, porque começou a ser estranho e insuportável, radicalmente alheio), e o que se vem a ser (LARROSA, 2005, p. 59). Larrosa (2002) nos apresenta a noção de experiência como sendo algo que possa nos tocar, nos atravessar, e que diz de uma descontinuidade de um processo, de um gesto de interrupção que exige uma parada para pensar, para olhar, para escutar, para ir mais devagar... E é disto mesmo que se trata aqui, de uma parada para sentir, para suspender a opinião, o juízo, a vontade, o automatismo da ação, podendo demorar-se nos detalhes, aprender a lentidão, a calar, a ter paciência, a dar-se tempo e espaço e a cultivar a arte do encontro. Fomos levados a acompanhar a tessitura de uma relação em que as palavras foram aos poucos tomando fôlego e restituindo nacos de vida, perdidos ainda em “liberdade”, na experiência de um aprisionamento muito maior e anterior a esse da prisão/cela, o da censura e o do preconceito em uma sociedade extremamente resistente às diferenças, um lugar comum entre eles: sobreviventes de um tempo. Os diálogos, mais ainda, as palavras, trouxeram a vida para onde apenas havia corpos aprisionados e inertes, sem voz, sem saídas. Afinal o Molina estava certo! Essas eram as suas mais valiosas ferramentas disponíveis naquele espaço/tempo, o corpo e a palavra. Não tinham mais nada com o que contar, apenas (com) as histórias. É como se o corpo fosse sendo bordeado por palavras, trabalhado artesanalmente na travessia corpo-palavra-vida. Larrosa (2002) afirma que o sujeito da experiência é aquele que se expõe, que se coloca em risco e se mostra vulnerável, independentemente da forma como se põe, ou como se opõe, ou como se impõe, o importante é o ato de colocar-se, de se expor. E quem se expõe se “dá a ver”, existe, é. Portanto, não há dúvidas de que se está ali, como se passivos de si mesmos, em um ato permissivo de se deixar tocar, deixando-se atravessar pelas coisas e, para que isso aconteça, é preciso de entrega. E a entrega, como nos diz Larrosa, não diz de atividade. A experiência é um passo, uma passagem, uma viagem. Contém o “ex” do exterior, do exílio, do estranho, do estrangeiro. Contém o “per” de percurso, do “passar através”, em uma travessia na qual o sujeito se prova e se ensaia a si mesmo. No periri (de experiri), o periculum, o perigo, o risco. Portanto, a experiência é uma aventura, e por se tratar de uma aventura não é normatizada por objetivos prévios e não possui garantias à priori, mas coloca em jogo o sujeito sem identidade real ou ideal, capaz de assumir a irrealidade de sua própria representação e submetê-la a um movimento incessante e contínuo de desconstrução e construção; um sujeito que já não se vê como uma substância dada, mas como forma a compor, em constante transformação e reinvenção de si (LARROSA, 2005). Fazer de sua vida uma obra de arte pode ser fazer de suas próprias versões espaços múltiplos que possam conter na sua complexa teia uma ética de um fazer, de um fazer de si e com o outro e para o outro. Um facho de luz Luz e liberdade? Escuridão e aprisionamento? A sombra da luz e o desenho do pássaro “livre”, que abrem a primeira cena do filme, compõem na parede da cela a denúncia de que isso se faz, ao mesmo tempo, ausente e presente na narrativa. Ou seja, apesar deles estarem presos na escuridão e no isolamento da cela, a luz e a liberdade se fazem presentes pela imaginação, através das imagens produzidas pelos filmes contados por Molina e o relato das lembranças compartilhadas pelos dois. Com o decorrer da narrativa, à medida que vão se estreitando os laços, os personagens vão ganhando mais vida e passam a estar menos solitários na escuridão da cela. Aos poucos a luz vai entrando em cena como se fosse mais um personagem do romance. Ela chega discretamente e vai inundando a cela... Um amarelo envelhecido, resquício de um sol, contorna os dois sentados ao chão conversando, lado a lado, como se fosse um grande refletor amarelo. E o que era no início do filme apenas uma sombra de luz vai se esparramando lentamente até o ponto em que os dias começam a ser mais freqüentes e a durar mais. A luz já não mais se esconde. Mas manifesta dores e amores. O que se podia “ver com os olhos” é que Luis Molina e Valentin Arregui, quando estavam juntos naquela pequena e úmida cela, pareciam ser as únicas pessoas da Terra, sobreviventes dos seus próprios medos, em busca de fachos de luz. Porém, quando a luz deixou escapar a noite e tornou-se toda, quando a liberdade veio disfarçada de contentamento, quando o lugar comum que dizia daquele encontro foi interrompido pela realidade externa àquela cela, pelas multidões da vida, ficamos apenas com o resto de uma bela experiência. No final, morremos todos! De amor! Referências COSTA, Ana Maria M. A ficção do si mesmo: interpretação e ato em psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998. DIDI-HUBERMAN, George. Lo que vemos, lo que nos mira. Buenos Aires: Ediciones Manatial, 2006. LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, jan-abr, número 019, Associação Nacional de PósGraduação e Pesquisa em Educação - ANPED. São Paulo, 2002. _____. Nietzsche & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.