SEGURANÇA URBANA: AUTORIDADES E INEFICIÊNCIA -14 DAS DIFERENÇAS FORMAIS ENTRE URBANO E CAMPESINO Aristoteles Rodrigues Professor e Psicólogo, Mestre em Ciência da Religião. Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa” da UFJF. [email protected] É próprio do campesino deslumbrar-se, porque sua vida é simples, sempre igual. É próprio do urbano entediar-se, porque sua vida é agitada, rodeada de maravilhas. Quantos mortos são necessários para deslumbrar um urbano? E quantos o são, no caso de um campesino? A cidade é artificial, as emoções são moldadas no artificial. Nela, a morte de um filho é classificada de chocante, porque a cidade tem que oferecer o apoio à vida, enquanto seus moradores produzem coisas artificiais. Se houver mais de uma morte, o urbano poderá chegar ao paroxismo, por sentir o fato como inadmissível. O campo é natural, as emoções são moldadas no natural. Nele, a morte de um filho é encarada com a naturalidade do natural, que admite que tudo que nasce virá a morrer. Se houver mais de uma morte, o campesino poderá ficar triste, ou mesmo chocado, mas o fato continuará sendo natural. No campo, a picada de uma cobra. Na cidade, uma bala perdida. Ambos os eventos matam, mas a reação não é igual. Cobras não agridem, defendem-se: se esta agrediu, terá havido algum fenômeno que a retirou de seu habitat, que a pôs em estado de alerta. Balas não se perdem, são disparadas: se esta achou alguém, terá havido algum fenômeno que levou outrem a disparar a esmo. Temos então que os fenômenos são idênticos: na cidade, pessoas não disparam a esmo, balas têm destino, por suposto, até pela reflexão freudiana de que o organismo é econômico, não desperdiça gestos, pensamentos, afetos. Se disparou tolamente, estava fora de seu equilíbrio diuturno. No campo, alguém não fez o que deveria, ou fez o que não deveria, pois cobras buscam alimento em animais menores do que ela – questão de instinto de conservação, que a leva a fugir do perigo representado por volume muito maior do que o seu em outro animal. Se enfrentou, picou e fugiu, ou tentou fugir, estava fora de seu equilíbrio diuturno. No entanto, urbanos devem reservar seu espanto, seu deslumbramento para situações anômalas, atípicas, estranhas: não vale mulher barbada, não vale galinha com quatro pés, não vale nem mula sem cabeça, que não existe na cidade, só no campo e no Sítio do Picapau Amarelo; urbano não compra bondes, só campesinos, ou caipiras, faziam-no, quando havia bondes passíveis de venda. Logo, talvez só deva se espantar com, por exemplo, o afundamento da obra do Metrô, em São Paulo, porque a cidade é planejadora, calculadora, previsora. A obra do Metrô só comportará pequenos acidentes, nunca algo de vulto, como ocorreu na futura Estação Pinheiros, do de São Paulo. Ainda assim, autoridades policiais, autoridades dos executivos federal, estadual e municipal espantam-se com a bala perdida que mata o irmão da mulher que perdeu a filha, há poucas semanas, também vítima de uma bala dita perdida (não que o espanto seja muito grande ou duradouro; será esvaziado em poucos dias). Também se espantam. Tivessem tido suas emoções moldadas na roça, seu espanto seria compreensível: no campo, balas não se perdem. Se alguma se perdeu, é preciso averiguar imediatamente a origem, porque haverá alguém idiota o suficiente para desperdiçar material precioso – sem ironia. Na cidade, nos últimos anos, balas são perdidas todos os dias, mostrando que alguém não está fazendo o que deve, ou fez o que não deve, mesmo recebendo salário de boa qualidade para fazer o que deve. E por que os prejudicados, de qualquer categoria social ou econômica, ficam à espera de providência desses, que não estão fazendo o que devem, ou fazem o que não devem, mesmo recebendo salário de boa qualidade para fazer o que devem? Fossem campesinos e a dificuldade seria resolvida como resolveram o problema de Mussolini, Ceaucescu e família Romanoff, no estilo do que Veneza cunhou como “defenestração”, menos escandaloso do que aquelas resoluções, feitas a bala, que consistia em jogar os indesejáveis pela janela, no mar. Porque a cidade não tem cidadãos, tem roceiros em processo de transformação e não sendo mais campesinos, nem sendo ainda urbanos, estão perdidos, à espera do Messias, fenômeno que permite o crescimento de templos dedicados à Teologia da Prosperidade, idéia das mais antigas da humanidade, contemporânea dos primeiros livros da Bíblia, quando os judeus, para agradar seu deus vingativo e ciumento, queimavam o primeiro fruto e a primeira cria para comprá-lo, o que faria os próximos frutos e as próximas crias vingarem e deixarem-no rico. No fim, como disse alguém, “somos todos nós, falseando a voz, e a platéia chora, rindo”, na música “Ri”, que tem sua letra espalhada pela Internet, sem citar o nome do autor. _______________________________________