Trabalho em transformação: dimensões de espaço e tempo no trabalho em casa
Autoria: Milena Puma, Ursula Wetzel
Resumo: O estudo de espaço e tempo no trabalho tem se destacado na medida em que
contratos de trabalho mais flexíveis se tornam mais comuns, impulsionados pelos avanços
tecnológicos recentes. O objetivo deste artigo foi investigar o processo atual de transformação
das questões de espaço e tempo quando o trabalho se desloca do ambiente da empresa para o
doméstico. Trata-se de compreender os efeitos provocados pela nova dinâmica em torno do
trabalhador frente a uma nova rotina que envolve outros atores e tem outro modo de operação.
O estudo é resultante de entrevistas em profundidade com quinze teletrabalhadores de
diversos setores, localizados no Rio de Janeiro. No presente artigo, o teletrabalho é definido
como o trabalho remunerado feito a partir da casa, seja em esquema híbrido, parte em casa e
parte no escritório; seja integralmente em casa; usando o suporte de algum tipo de tecnologia,
em nível básico ou avançado. Quanto ao espaço, os resultados ressaltaram a necessidade de
separar fisicamente as esferas do privado e do profissional, por mecanismos de regulação de
território. A pesquisa sugere também a necessidade de estabelecer rotinas e rituais de tempo,
bem como algum tipo de planejamento de atividades. Ainda se destacaram a grande
necessidade de negociação com os outros membros da casa, e uma necessidade de
desenvolver características pessoais como disciplina e organização.
INTRODUÇÃO
O espaço e o tempo são categorias básicas da existência humana. Vivemos necessariamente, e
ao mesmo tempo, em uma dada realidade espacial e temporal. Segundo vários autores
(HARVEY, 1993; HASSARD, 2001; DE MASI, 2003; SENNETT, 1999) a dinâmica da vida
na pós-modernidade tem alterado a forma pela qual experimentamos estas dimensões. O
campo da organização do trabalho, dadas as recentes mudanças, é área fértil para a
investigação destas mudanças. Um exemplo disso são os milhões de indivíduos no mundo
inteiro que exercem o teletrabalho, afastados das rotinas e espaços mais tradicionais que
caracterizaram o trabalho na era industrial.
A possibilidade de o trabalho perder suas vinculações espaciais e temporais veio a reboque de
uma transformação maior ocorrida no sistema capitalista. A história da sociedade capitalista é
também, segundo Harvey (1993), a das alterações nas dimensões de espaço e tempo na
atividade humana:
Como o capitalismo foi (e continua a ser) um modo de produção revolucionário em
que as práticas e processos materiais de reprodução social se encontram em
permanente mudança, segue que tanto as qualidades objetivas como os significados
do tempo e do espaço também se modificam (HARVEY, 1993, p. 189).
Dentre o conjunto de fatores que podem justificar as mudanças, atribui-se grande peso aos
avanços da área de Tecnologia de Informação, que trouxeram a possibilidade de estender o
período e ampliar o lugar em que é possível trabalhar. Se antes a concentração dos
empregados era a tônica do modelo produtivo, na nova configuração “o teletrabalho pósindustrial está novamente espalhando os operadores como na época rural, mas os mantém
coligados através das redes de informática” (DE MASI, 2003, p. 211).
Não há como fechar os olhos a todos os impactos que, em curto tempo, a tecnologia provocou
nas empresas e no dia-a-dia de todos nós. Agora, o trabalho pode ser feito nas 24 horas do dia
e em sete dias da semana, desde qualquer lugar. Nos locais de trabalho, estamos saindo do
1
espaço do telefone, fax, correio, fotocópias e reuniões frente a frente. Estamos
progressivamente adotando a mensagem gravada, o correio eletrônico, a videoconferência, os
cursos à distância e o trabalho remoto através do uso de ferramentas como a internet e a
intranet. Essas mudanças ressaltam a natureza subjetiva do tempo e do espaço e desafiam, nas
questões do trabalho, a visão tradicional do espaço físico do escritório, do tempo e das normas
de controle associadas às situações de copresença (KALLENBERG e EPSTEIN, 2001). O
fato é que o escritório formal e o horário rígido de trabalho - conhecido por ser bem
delimitado, de 8h às 17h, de segunda à sexta - estão deixando de ser regra para as
organizações.
Dentre as variantes ao esquema tradicional, encontra-se a possibilidade de se trabalhar em
casa. No entanto este formato do trabalho traz questões ainda pouco conhecidas, notadamente
no que concerne às dimensões de tempo e de espaço. No caso dos homens, esta parece ser
uma situação relevante para investigação, face às condições mais tradicionais do trabalho
masculino, normalmente desenvolvido no escritório ou na fábrica. É, portanto, objetivo desta
pesquisa investigar as questões relativas ao espaço e o tempo com que se deparam os homens
que trabalham em casa.
ESPAÇO
Segundo Kornberger e Clegg (2004), o espaço pode ser entendido como uma ausência de
presença, um vasto vazio, ou algo onde alguém pode se perder. O espaço pode ser
interpretado por números, e seus atributos podem ser: direção, área, forma, padrão ou volume.
No entanto, o espaço também pode ser explicado socialmente. Podemos perceber que a
relação entre espaço e contexto não é neutra, os espaços estão conectados refletindo, de
diferentes maneiras, outros espaços e tempos. Objetos decorativos e fotos são, por exemplo,
testemunhos desta relação. Queiroz (2004) considera que a natureza social do espaço significa
reconhecer, não somente as suas funções materiais, mas também valores ali inscritos e
reproduzidos. Ainda mais, o espaço pode ser considerado um “campo de acontecimentos”,
funcionando como um palco de atuação que se associa à vivência de experiências individuais
(QUEIROZ, 2004). Fischer (1997) ressalta o caráter indutor de comportamento que o
ambiente provoca nos indivíduos, como se houvesse uma interdependência entre ambiente e
comportamento. Assim, alguns lugares, como uma sala de aula, um cinema, um clube ou um
playground, teriam impacto no comportamento do indivíduo. Ou seja, nesses ambientes,
espera-se a priori um comportamento condizente com o lugar.
Na visão de Fisher (1997), uma marca do humano no espaço se expressa no conceito de
territorialidade, pelo fenômeno de criação de fronteiras, cujo objetivo é demonstrar controle e
propriedade do espaço. Quando as fronteiras de território são violadas, ocorrem manifestações
de defesa. Hall (1977) define o território como “uma expansão do organismo”. Em virtude
dessa concepção, é possível verificar que o ser humano cria extensões materiais para ocupar
determinado espaço, como deixar um objeto sobre uma cadeira para demonstrar que ela está
“ocupada”.
Marca-se o espaço pessoal como defesa de intimidade, a partir de fronteiras invisíveis do
“eu”. (SOMMER, 1973). Esse conceito de espaço pessoal refere-se não somente aos
processos por meio dos quais as pessoas marcam e personalizam os espaços que habitam, mas
também à zona emocionalmente carregada em torno do indivíduo. Em suma, o espaço pessoal
2
possui duas funções psicossociais: a de se constituir como um sistema de defesa e a de
regulação da intimidade (FISHER, 1997).
Segundo Fisher (1979) há que se diferenciar a forma visível – demarcação de território – e a
forma invisível – socialmente construída – de apropriação dos espaços. Para Sommer (1973),
a demarcação de território é conferida por meio de marcos visíveis estabelecidos através de
gestos, posturas ou escolhas – também visíveis – de um determinado local, o que revelaria um
sentido claro para os outros. Goffman apud Fischer (1997) divide o conceito de marcação de
território em três tipos: (i) a marcação no centro de um território, que indica que o espaço está
ocupado; (ii) a marcação entre dois espaços, funcionando como fronteira; e (iii) a colocação
estratégica de objetos daquele que ocupa o espaço, funcionando como uma marcação pessoal.
O uso e a proteção de certas zonas pode não ter caráter legal, mas ser simplesmente uma
apropriação, materializado por algum tipo de marcação. A apropriação do espaço é um
processo complexo de dominância do ambiente. Cada pessoa ou grupo pode identificar o uso
do espaço de determinada maneira e dar uma nova identidade a esse espaço, reservando-o
para novas atividades. De acordo com Fischer (1997) e Sommer (1973), a criação de
territórios aconteceria por três fatores: para reagir à presença de outros, para responder a
características do ambiente e para satisfazer necessidades emocionais.
A privacidade pode ser compreendida em termos de regulação de interações que levam em
conta os recursos do ambiente físico. A relação de troca daí advinda pode ser regulada com a
criação de artifícios - barreiras ou fronteiras - para dificultar ou limitar o acesso de outros. O
ocupante de determinado espaço pode, por exemplo, utilizar-se de uma porta e mantê-la
aberta ou fechada dependendo da sua disponibilidade. Essa porta teria, então, um caráter
simbólico que demonstraria quando uma pessoa quer, ou não, ser abordada (FISHER, 1997).
Estudos em empresas demonstraram, por exemplo, que o sentimento de privacidade está
relacionado à presença física de elementos como paredes, portas e divisórias.
TEMPO
Talvez a tese mais reconhecida sobre tempo - e espaço - no período Pós-industrial seja a da
“compressão de espaço e tempo” apontada por vários autores (HARVEY 1993; GIDDENS,
1991; BAUMAN, 2000). O mundo torna-se uma “aldeia global” graças aos avanços das
telecomunicações. Uma das conseqüências dessa constatação é o fato de produtos, pessoas e
lugares entrarem e saírem de cena cada vez mais rápido, uma vez que estão instantaneamente
expostos no mundo todo. Os horizontes temporais tornam-se cada vez mais curtos,
notadamente nas organizações. O lado negativo, apontado pelos autores, é a percepção de que
essa compressão, de tão intensa, gera muitos aspectos indesejáveis com os quais ainda não
sabemos como lidar.
Castells, em seu livro A Sociedade em Rede (1999), descreve as mudanças que estamos
vivendo: uma revolução que diz respeito às novas tecnologias de informação, à lógica das
redes e ao novo mundo da flexibilidade. Nessa vertente, o mundo capitalista estaria se
reestruturando, como network, em uma nova economia (a informacional), e em uma nova
cultura (a da realidade virtual). A produção é flexível e fragmentada, as bolsas de valores
circulam dinheiro e papel em escala mundial. Para o autor, a tecnologia em si não é capaz de
gerar nem de eliminar empregos; mas sim de transformar profundamente a natureza do
trabalho e a organização da produção.
3
Segundo Bauman (2000), uma das principais mudanças do conceito de tempo veio a reboque
dos avanços tecnológicos que acompanham o homem há séculos. O autor trata da
emancipação do tempo em relação ao espaço, a partir da ocasião do aparecimento dos
veículos motorizados. A velocidade do movimento, para Bauman, transforma a experiência
vivida do tempo e separa tempo e espaço; hoje o tempo pode ser transposto com rapidez
devido à invenções como o automóvel e o avião. O autor defende a passagem de uma
modernidade pesada (do hardware), para leve (do software). No universo do software, a
diferença do “muito longe” para o “aqui perto” praticamente desaparece. Nesta nova
modernidade, o tempo pode ser “transformado e manipulado – e o mais importante: feito mais
curto, menos custoso, e bastante mais produtivo” (BAUMAN, 2000, p. 173).
Alguns autores defendem uma transformação profunda na compreensão do tempo, e a
existência de uma mudança de paradigma acontecido no final do século XX, quando surgiu
um mundo da flexibilidade (VERGARA e VIEIRA, 2003). O excesso de efemeridade, de
fragmentação e de compressão de espaço e tempo da pós-modernidade rompe os significados
de continuidade na narrativa do tempo (ODIH, 2003). Para Sennett (1999), isso traz
implicações para a formação do caráter dos indivíduos que tendo que construir suas vidas a
partir de fragmentos, são impedidos de construir uma história pessoal coerente,
TEMPO, ORGANIZAÇÃO E TRABALHO
Apesar de a palavra tempo ser corriqueiramente citada no ambiente de trabalho e da
preocupação prática dos gerentes (BLUEDORN e DENHART, 1988), estudos sobre a
experiência temporal são, de acordo com Hassard (2001) raros na teoria de gestão, e a
dimensão qualitativa do tempo seria subestimada, tendo sido as suas evidências encontradas
somente em estudos etnográficos ocasionais (HASSARD, 2001). Pode-se, assim, imaginar
que o tempo do trabalho é um fenômeno muito mais rico do que tem sido retratado nas
concepções mais aceitas da sociologia industrial.
Segundo parte dos autores o tempo do trabalho estaria intimamente relacionado à
produtividade e poderia ser visto com um recurso a ser gerenciado de acordo com os objetivos
organizacionais. Se algumas empresas trabalham dentro do chamado “horário comercial”,
outras devem funcionar em horários irregulares, durante a noite ou mesmo 24 horas por dia,
como hospitais e departamentos de polícia (KALLENBERG e EPSTEIN, 2001). No entanto,
em ambos os tipos de organizações, o tempo é visto como um recurso escasso, a ser bem
administrado para se tornar um fator de competitividade na era da globalização (HASSARD,
2001; TONELLI, 2002).
No entanto, administrar o tempo de maneira otimizada parece não ser tarefa simples. Drucker
(1974) dedica grande parte de seu livro “O gerente eficaz” para demonstrar que os gerentes
desperdiçam grande quantidade de tempo com tarefas não relevantes. O bom gerente seria,
por conseguinte, aquele capaz de observar, controlar e consolidar o tempo: “o gerente eficaz,
portanto, sabe que, para controlar seu tempo, tem de saber onde ele é realmente empregado”
(p. 35).
De acordo com Ballard e Seilbold (2004), o grau de flexibilidade varia de acordo com a
natureza da tarefa a ser executada e seu prazo de entrega ou com normas e práticas
estabelecidas. Sennett (1999), por sua vez, usa a expressão “flexitempo” para denominar o
4
novo tempo que estamos vivenciando e que seria caracterizado pela flexibilidade de
comportamento
A questão da cultura de longas jornadas tem sido tema de interesse da literatura específica
(BASSO, 2003; SERVA e FERREIRA, 2004; SABELIS, 2001). De uma forma geral,
apontam para o fenômeno da intensificação do ritmo de trabalho, da dedicação excessiva, de
longas jornadas diárias, de quantidades crescentes de tarefas e da busca desenfreada por
resultados. A exigência de tamanho comprometimento com a organização fez com que se
formassem trabalhadores “viciados” em trabalho, os chamados workaholics (SERVA e
FERREIRA, 2004). Basso (2003) alerta que nos últimos 25 anos a sociedade ocidental viu um
acréscimo expressivo das horas de trabalho, que se tornaram longas, flexíveis e invasivas.
Capelli (1999) identificou um novo acordo entre patrões e empregados, pelo qual a empresa
“demanda muito dos empregados, mas oferece pouco em retorno” (1999, p.25). Sabelis
(2001) procura entender como executivos do topo CEO’s de empresas holandesas conseguem
“sobreviver” em um tempo organizacional que consideram acelerado e turbulento. Muitos
autores, então, questionam se a presente lógica da longa jornada é justa.
Na mesma vertente de preocupações, Westenholz (2006) indica que a fronteira entre horas de
trabalho e horas de lazer tornou-se mais tênue. Assim, as horas da esfera pessoal invadem as
de trabalho - como através de mais feriados, horários de almoço que se esticam ou licença
maternidade -, e as horas de trabalho invadem as de lazer com o trabalho a noite e em finais
de semana. De forma otimista, mas em posição contrária a de outros estudiosos, a
interpenetração das esferas do trabalho e do lazer permitiria, ao mesmo tempo, deixar as
pessoas tranqüilas - porque desenvolveriam um sistema de compensação de horas - e
estimular a ação, já que poderiam administrar o tempo a fim de concluir o que deve ser feito
(WESTENHOLZ, 2006).
Do ponto de vista da dinâmica organizacional, pode-se dizer que as percepções temporais nas
organizações são múltiplas e fragmentadas, variando de acordo com o grupo social, o trabalho
e a rotina. Segundo estudo conduzido por Silva e Wetzel (2004) em oito organizações
brasileiras que passaram por mudanças organizacionais, cada instituição possui a sua própria
maneira de estruturar e interpretar o tempo, e as normas são aplicáveis apenas a seus
membros. No entanto predomina a percepção de que as demandas das organizações se
sobrepõem àquelas dos grupos e dos indivíduos gerando um conjunto de pressões e de
angústias com as quais os empregados têm dificuldades de lidar. Resta, portanto, entender
como as demandas organizacionais e do trabalho se transferem para o trabalho em casa e
como afetam a dinâmica da vida doméstica.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Para se poder apreender adequadamente a experiência de espaço e tempo, adotou-se
uma metodologia qualitativa, por meio de quinze entrevistas em profundidade com homens,
teletrabalhadores de diferentes atividades: prestadores de serviços, consultores,
empreendedores, autônomos ou mesmo profissionais de carteira assinada. Todos os
entrevistados são moradores do Estado do Rio de Janeiro e com nível de educação superior.
Apesar de o tema “espaço e tempo” já vir sendo tratado na literatura, esta pesquisa aborda um
conjunto de indivíduos ainda pouco estudados.
5
Os sujeitos deste estudo trabalham em esquema remoto ou parcialmente remoto, desde a casa.
Dentre os entrevistados, alguns utilizam tecnologias sofisticadas como celulares que se
conectam à Internet, enquanto outros utilizam tecnologia menos avançada como o software
Word. No que se refere aos seus locais de trabalho foram entrevistados profissionais que
moram em espaços de tamanhos variados - desde grande casas até pequenos apartamentos - e
em situações familiares também diversas, como solteiros, casados sem filhos ou, ainda,
casados com filhos pequenos.
O tratamento dos dados iniciou-se com a transcrição das entrevistas, digitadas em documento
Word. A análise dos dados realizou-se em duas etapas. Primeiramente todas as entrevistas
foram lidas para que se pudesse apreender, de forma mais geral, as questões de espaço e
tempo presentes nos depoimentos, Em uma segunda etapa, procedeu-se à codificação das
entrevistas por meio do software Atlas/ti. Cabe lembrar que o objetivo deste tipo de pesquisa
não é estatístico, mas sim o de elucidar as questões que se revelam no trabalho masculino em
casa. Assim, a codificação permite distinguir aqueles temas e conceitos que mais se destacam
no corpus. (Creswell, 2003).
Segue-se quadro resumo das principais características dos entrevistados:
Quadro 1 – Principais características dos Entrevistados
Entrevistado:
E1
E2
E3
E4
E5
E6
E7
E8
E9
E10
E11
E12
E13
E14
E15
Área de Atuação:
Advogado
Escritor
Multinacional de Tecnologia
Consultor
Multinacional de Petróleo X
Relações Internacionais
Consultor
Técnico em projetos de som e iluminação
Perito Judicial e Professor
Empreendedor do Mercado Financeiro
Multinacional de Petróleo Y
Representante de vendas
Programador de Sistemas
Vendedor de Software
Área de educação
Esquema de trabalho:
Mora com:
100% casa
Esposa, filho e enteada
100% casa
Esposa
híbrido*
Esposa, filho e enteada
100% home office
Sozinho
híbrido
Esposa e 2 filhos
100% em casa
Esposa e filho-bebê
100% em casa
Esposa e filho
100% em casa
Sozinho
Em casa e na faculdade
Sozinho
100% em casa
Esposa e filhos
100% em casa
Esposa
100% em casa
Esposa
100% em casa
Esposa e filho-bebê
100% em casa
Esposa
Part time , híbrido
Esposa e filha
*híbrido: parte em casa e parte no escritório
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Espaço / Flexibilidade de espaço
Para o profissional que trabalha em casa, a flexibilidade de espaço – a facilidade de poder
trabalhar em qualquer lugar – pode ser considerada a vantagem mais marcante porque traz
qualidade de vida ao profissional. No teletrabalho, é possível escolher o espaço da casa onde se
vai trabalhar, ou ainda, escolher um espaço externo, como no caso de um dos entrevistados que
mora perto de um parque e vai, constantemente, trabalhar em meio à área arborizada. É comum,
também, serem aproveitados espaços variados como o de clubes - por ser um ambiente seguro e
tranqüilo durante a semana -, cafés e livrarias. As motivações para trabalhar em locais públicos
são basicamente quatro: (1) movimentação especial em casa, (2) necessidade de sair de casa por
6
se sentir aprisionado ou isolado, (3) comodidade de localização ou conveniência, ou (4) ainda
por uma simples busca por um lugar mais aprazível (satisfação e qualidade de vida).
A possibilidade de variar, entretanto, não significa um número infinito de alternativas. As
entrevistas indicam certo padrão de comportamento com opção por um conjunto limitado de
opções. São escolhidos, normalmente, locais conhecidos, que trazem alguma vantagem
específica, como um lugar tranqüilo e perto de casa, o que leva sugere a busca por um
sentimento de segurança. Só o lugar já conhecido e já explorado, torna o tempo ali despendido,
confortável, como se já “fosse de casa”.
Esse deslocamento do trabalho para dentro da casa provoca alterações tanto na vida
profissional quanto na vida pessoal do indivíduo. Os relatos indicam que, enquanto alguns
lidam de maneira positiva com o novo espaço de trabalho, outros, após tentativas frustradas,
estão prontos para sair da casa numa tentativa de isolar definitivamente as esferas pessoal e
profissional. Um dos casos mais bem sucedidos de trabalho em casa diz respeito a um
profissional da área financeira que montou um escritório na garagem de casa com uma
entrada própria, separada da casa. Pelo fato de a casa ser de esquina, a entrada do escritório
fica em uma rua, enquanto a da casa fica em outra. A separação também é visível nas duas
campainhas: uma com o nome da empresa e a outra com o número da casa. A disposição
física, neste caso (espaço isolado da casa, sem janelas), inibe a presença de familiares e
facilita um comportamento de alta concentração, confirmando que o design do espaço afeta na
qualidade do trabalho. É importante observar que essa facilidade de morar em uma casa com
tal disponibilidade de espaço é privilégio de poucos.
A maioria dos entrevistados faz questão de demarcar seu território de trabalho e atribui o
sucesso do trabalho em casa a uma clara separação do espaço de trabalho do da casa. De fato,
estudos de diferentes autores (ARDREY, 1966; LORENZ, 1970; HALL, 1977; FISCHER,
1997) apontam para a centralidade da noção de território. O território significaria um
mecanismo regulador de fronteiras. Treze entrevistados ressaltaram que ter um cômodo da
casa reservado para o trabalho – mesmo em um apartamento pequeno - é a maneira mais
usada para separar o trabalho, indicando uma demarcação de território, conforme já
identificado por Fischer (1997):
“Tem que separar casa de trabalho. Um quarto dedicado a isso é o ideal. Pro
trabalho em si acho que não precisa ser necessariamente grande, até porque eu
trabalho num quartinho bem pequeno, mas tem que separar” (E11 –Multinacional
de Petróleo Y).
Apesar de ser comum separar um quarto exclusivamente para o trabalho, é comum também o
profissional se espalhar pela casa e mudar de ambiente conforme a sua vontade. Isso foi
percebido em profissionais que moram sozinhos ou em quem passa o dia em casa sozinho,
enquanto a mulher trabalha fora. Um deles afirma que gosta de mudar de ambiente e se cansa
de ficar o dia inteiro no mesmo local. Assim, ao longo do dia vai mudando de cômodo da
casa.
Essa variação de espaço dentro da casa pode ser interpretada como uma variante do
profissional que sai de casa para trabalhar fora, ou seja, é um desejo de variar de ambiente.
Outro exemplo de mobilidade na casa vem de um profissional que costumava circular pela
casa com o laptop mas que mudou de hábitos depois da “chegada do bebê”. A instalação de
7
um computador e de um telefone fixo fez com que ele ficasse “fixo” no mesmo ambiente e se
concentrasse mais – segundo a sua opinião.
Tão comum como separar um quarto para o trabalho é a utilização da porta como um
mecanismo de isolamento. A porta fechada é um símbolo: uma barreira física que indica que
o indivíduo não quer ser interrompido. A necessidade de separação talvez indique uma
necessidade de criar estados mentais diferentes. Um quarto montado com todos os elementos
de escritório e sem os elementos da casa que distraem, podem facilitar as características de
concentração, foco, disciplina.
Parece ser unanimidade de que não “dá certo” trabalhar e dormir no mesmo quarto. Tal
incapacidade de trabalhar e de dormir no mesmo está relacionada com o caráter indutor de
comportamento do espaço, conforme apontado por Fischer (1997). O ambiente do quarto é,
para a maioria dos entrevistados, o mais íntimo. Um dos entrevistados afirma que o quarto é
de natureza “sagrada”; um ambiente onde os elementos de trabalho não entram de nenhuma
maneira, o que denota uma separação ao inverso, é o espaço pessoal que fica separado: “O
quarto é sagrado. Não pode equipamento, nem material, nada... é o lugar da casa que eu
consegui isolar.” (E8 – Técnico em projetos de som e iluminação). É curioso também
imaginar que se, até pouco tempo atrás, o trabalho não invadia a casa - de natureza privada e
exclusiva da família-, hoje, trata-se de fazer com que o trabalho não invada o quarto.
Outro ponto refere-se à perigosa proximidade dos elementos da casa com o dia-a-dia de
trabalho. No ambiente da casa não existe distância física que separe o trabalho do lazer, logo
parece ser ainda mais importante que se crie algum mecanismo mental de separação. O espaço
da casa caracteriza-se por ser rico em opções de dispersão como a cama, a televisão e a
geladeira. Por isso o espaço de trabalho tende a ser organizado sem esses elementos,
justamente para facilitar a concentração no trabalho.
A separação entre o espaço pessoal e o profissional é particularmente importante nos casos
em que o profissional recebe clientes em casa, embora esta não seja uma prática comum nos
casos pesquisados. Apenas um deles montou uma estrutura adequada para receber clientes. O
mais comum é os dois territórios não se misturarem e as reuniões serem marcadas em um
local público. É possível, também, perceber a existência de uma hierarquia invisível na hora
de definir quem tem permissão para entrar na casa, como se existisse um código de acesso.
Não são todos os que são convidados para entrar no espaço da casa, mesmo que reservado ao
trabalho.
A presença da família força a separação do espaço de trabalho como forma de evitar conflitos
com o tempo e o espaço dos demais. A intenção do profissional é sempre aumentar a
separação entre o espaço de trabalho e de lazer; é o contrário do conceito de paisagem - áreas
mais amplas, baias e divisórias mais baixas - que vêm tomando conta das organizações
(FISCHER, 1997). A definição rígida do espaço do escritório na casa é uma estratégia
adotada para que a rotina doméstica não se sobreponha à do trabalho. Entre aqueles que têm
maior dificuldade em se isolar da casa, encontra-se a metáfora do “arame farpado” e do
“campo minado” para indicar que um trabalhador só consegue se isolar do dia-a-dia da casa
por meio de estratégias mais agressivas. Essa representação apresentou-se, para alguns
entrevistados, como a única solução possível:
“Se eu morasse numa casa num condomínio aqui, que no terreno da casa eu
construísse um escritório lá no fundo, a uns 300 metros de distância, com cerca de
8
arame farpado, elétrica, campo minado, entendeu? Assim funcionaria.” (E1 –
Advogado)
“Aqui eu não tenho isso, porque essa mesa tá mal organizada. De repente eu devia
passar um arame farpado na metade... É uma mesa só, grande, e a gente divide a
mesa; então eu sinto falta desse espaço de fazer bagunça.” (E2 – Escritor)
No que se refere à decoração do espaço, muitos citaram que o ambiente de trabalho tem de ser
agradável, pois contribui para o conforto e para a funcionalidade. É freqüente que deixem o
espaço com sua “cara”, mas enquanto alguns decoram o cômodo com jeito de escritório,
outros optam pela estratégia inversa. Um dos profissionais que mora com a esposa, que
trabalha fora, gosta especialmente de decorar a casa e cuida da estética do lugar comprando
artesanato brasileiro; como a casa é pequena, costuma mudar os móveis e objetos de lugar.
Ele considera todo o espaço da casa como espaço de trabalho e acredita que ocorre, sim, uma
inversão de papéis com a mulher, já que ele se encarrega de decorar o ambiente. Mas fica
claro que esse ponto não é unânime: decorar o ambiente não é importante para muitos.
A questão do tamanho da casa é um fator que influencia na qualidade do trabalho em casa,
por dois motivos. Em primeiro lugar, vimos que a maioria dos profissionais que vai trabalhar
em casa trata de acomodar o escritório em um cômodo da casa. Assim, ter um espaço, um
cômodo reservado para o trabalho, é a primeira tentativa de isolar casa e trabalho. Em
segundo lugar, o tamanho da casa também é relevante por possibilitar que o profissional
caminhe mais ao longo do dia. Enquanto alguns entrevistados afirmaram que trabalham no
pequeno quarto de trabalho sem problemas, outros declaram que não ser possível não sentir
incômodo em um quarto pequeno demais. Baines e Gelder (2003) já haviam alertado para as
dificuldades enfrentadas pelo teletrabalhador que vive em casa pequena. Segundo os autores,
a negociação com os outros membros da família sobre a utilização do espaço torna-se ainda
mais difícil, pois passa a interferir no cotidiano de quem habita a casa. Não obstante, os
entrevistados declararam que o tamanho da casa não é tão relevante quanto a separação dos
espaços.
O tempo flexível do teletrabalho
A flexibilidade de administrar o tempo livremente é vista como uma vantagem do profissional
que exerce o teletrabalho. Organizar o dia da melhor forma possível, evitar o horário de
engarrafamento, ver uma partida de tênis de manhã, receber parentes de outras cidades ou até
trabalhar em casa no domingo, foram exemplos citados pelos entrevistados como pontos
positivos da flexibilização do tempo no trabalho. A possibilidade de inverter a ordem das
atividades sem a necessidade de dar explicações é vista com uma das principais vantagens. A
palavra “liberdade”, muito citada pelos entrevistados, já indica um diferencial positivo. A
palavra “luxo” também aparece com o mesmo sentido:
“Pessoas que têm filhos se dão ao luxo de uma tarde por semana saírem cedo pra
poder aproveitar com os filhos” (E6 - Relações Internacionais);
“Eu posso me dar o luxo de estar no clube e, de repente, sou chamado para uma
telecom e faço telecom do clube.” (E5 - Multinacional de Petróleo X);
“Posso me dar ao luxo de quarta feira fazer outra coisa. O que eu quiser.” (E8
Técnico em projetos de som e iluminação)
9
O luxo pode estar relacionado com o elevado status social dos entrevistados. O luxo nos
relatos parece estar relacionado a tudo aquilo que é escasso e privilégio de poucos. No
mercado do trabalho de hoje, em que a maioria está vivendo uma dedicação excessiva à
empresa, com jornadas estendidas, administrar seu tempo é visto como algo raro.
Detectou-se que a vantagem em administrar o próprio tempo traz – assim como na questão do
espaço – benefícios que não são contados na remuneração salarial. A eliminação dos tempos
de almoço ou de deslocamento, por exemplo, permitiram que o executivo tivesse tempo para
se dedicar a alguma atividade física; 14 dos entrevistados dizem que praticam regularmente e
afirmam sentir o ganho em saúde.
Os relatos mostram que as facilidades para administrar o horário e os deveres profissionais
não são usadas de maneira aleatória, mas, sim, com parcimônia. Por exemplo, dois
entrevistados relataram que acordaram mais cedo para adiantar o trabalho e poder conceder a
entrevista em pleno horário comercial. A prudência dos profissionais nesse sentido condiz
com uma postura profissional de seriedade e com o senso de responsabilidade relatado como
condição para o sucesso do trabalho em casa.
No entanto, a flexibilidade em excesso é vista como desvantagem, quando se leva em conta
que o trabalho no escritório desempenha um papel de organização da rotina diária. Se esse
papel se desfaz com o teletrabalho, e o profissional não consegue organizar o seu dia, ele se
perde no tempo e sente falta da estruturação da rotina de trabalho. Assim, em alguns casos, a
vantagem do tempo flexível também se torna desvantagem.
O fim das fronteiras e a necessidade de ritualização
Os profissionais reconhecem que as fronteiras são tênues e podem se desfazer de um
momento para o outro. Isso acontece com certa freqüência, e é fácil de perceber como no caso
do representante de vendas. Ele pode estar passeando em um shopping com a família no final
de semana e ver um produto que seria ótimo comercializar e logo tirar uma foto para começar
o processo de importação mais tarde. Como a fronteira é frágil, faz de tudo para não deixar
transparecer que está trabalhando em um momento de lazer.
“Você pode estar no seu momento de lazer e tirar uma foto pensando no trabalho?
Posso. Aí eu tiro [o celular] escondido pra minha mulher não ver. Não que ela
reclame, mas é chato, significa que minha cabeça não está ali, isso é ruim.” (E12 Representante de vendas).
Alguns entrevistados percebem que o profissional que trabalha em uma empresa tem uma
realidade oposta: uma rotina em que é mais fácil separar fisicamente e mentalmente casa e
trabalho. O espaço físico do escritório guarda o computador com todos os arquivos de
trabalho e quando o funcionário sair da empresa, será o exato momento em que o trabalho
acaba. Isso pode não ser verdadeiro, mas é assim imaginado por um dos entrevistados.
“O cara que trabalha em casa não vira a noite, acabou o horário, ele volta pra casa
e desliga ‘plin’. Ele desliga. Ficou lá na mesa dele do escritório, o computador
dele no escritório, o arquivo dele no escritório, ‘tá lá o trabalho.” (E2 - Escritor).
A idéia de ritual também surgiu, ao longo dos depoimentos, a reboque de uma metáfora que
indica o momento quando ocorre a separação dos papéis do homem. Para alguns profissionais,
na parte da manhã, diariamente, acontece uma espécie de ritual de passagem: é o momento em
10
que o homem tira o pijama - que representa a casa - e veste a roupa com a qual vai passar o
dia trabalhando. A metáfora do pijama – também relacionada ao corpo - surgiu naturalmente
em diversas ocasiões e representa, claramente, uma necessidade de ritualização.
É importante ressaltar que nem todos criam um ritual, assim como nem todos criam uma
rotina. Ritual e rotina são elementos que auxiliam a organização da vida e o equilíbrio entre
vida pessoal e profissional. O ritual, para alguns, é um elemento necessário para o bem-estar,
e é explicado pelos próprios entrevistados que citam expressões como “entrar no clima” ou
“desassociar”. Em outras palavras, o ritual serve para deslocar as relações sociais do contexto
da casa e da família para encaixar o conceito das novas relações sociais que se estabelecem no
trabalho: “O pijama é como se fosse um símbolo: alguma coisa que você saiu da sua cama, e
você vai trabalhar, você tem que trocar”. (E6 - Relações Internacionais). A metáfora de
pijama parece confirmar a hipótese de que existem mapas mentais cognitivos que ajudam o
ser humano a se localizar no tempo e no espaço. Uma roupa adequada ajuda o executivo a
lembrar que está trabalhando, que deve se disciplinar e manter o foco. A sensação de se vestir
de maneira apropriada pode produzir um impacto psicológico capaz de afetar na
produtividade do profissional.
Mudança de paradigma: o trabalho não é mais orientado por tempo
Para os profissionais que trabalham a partir da casa, e são executivos de empresas, a relação
de troca com a companhia não acontece mais pelo parâmetro de troca de salário por horas
cumpridas. Não é preciso entregar um timesheet detalhado: é fundamental entregar resultados.
Esses profissionais têm uma relação de absoluta confiança com o chefe e comprometem-se
com a entrega das tarefas. Conforme indicado pela literatura (KAUFMANSCARBOROUGH, 2006), o resultado muitas vezes é exigido pela empresa com uma data
marcada. No tempo estipulado, o profissional tem de cumprir a sua tarefa – não importando o
número de horas trabalhadas em cada dia ou qual foi o horário em que a atividade se
desenvolveu, o que para alguns chega a ser cruel. “Você é avaliado pelo seu resultado. É o
que a organização quer. Se você tem resultado, você serve; se não tem, está fora.” (E1 –
Advogado). No caso do perito judicial que trabalha com o tempo da Justiça, seu interesse em
terminar um caso deve-se ao fato de que a remuneração só vem depois de concluído o caso.
Por seu turno, o executivo da multinacional de tecnologia percebe de maneira clara a mudança
de paradigma. Para ele, o modelo que ainda está vigente – de contrato por horas – é
questionável, e a tendência do futuro é a medição por resultados.
“Essa questão você está engessando uma pessoa, de 09 às 05 da tarde, dentro de
um espaço físico, vem início do século XX, quando estavam se montando as
fábricas, o pessoal da Ford etc. Hoje em dia, com a revolução da informação, esse
paradigma morreu. Como você mede o quanto o cara trabalhou? É diferente. Eu
acho que a tendência é medir por resultado.” (E3 – Multinacional de Tecnologia)
Dinâmica temporal do trabalho: planejamento, rotina, produtividade, concentração e
disciplina
Para quase todos os entrevistados existe um mecanismo de estruturação da semana ou do dia
seguinte de trabalho. O planejamento das atividades sempre ocorre, mas alguns preferem
planejar diariamente, enquanto outros planejam a semana ou o mês. Essa questão do
planejamento depende do tipo de trabalho, já que alguns eventos de trabalho são marcados
com meses de antecedência. Ter uma data limite estipulada para a entrega de um trabalho
força o profissional a organizar seu tempo e a pensar como irá se planejar para estar com o
trabalho em dia na data marcada.
11
Os profissionais apresentam sempre um padrão de comportamento, uma rotina em que se
sentem seguros e confortáveis. O entrevistado E5 monta uma rotina em que está, em boa parte
do horário comercial, disponível, mas abre um espaço do dia para estar com os filhos,
retomando mais tarde o trabalho, para não deixar tarefas acumuladas. Tal comportamento
indica certa flexibilidade de tempo – apesar de a mesma ser limitada.
“Quando eu vou na empresa eu tento sair de lá umas 6 horas, chego em casa, fico
com meus filhos, eles dormem e tal, e vou até 11 horas, meia noite vendo emails.” (E5 – Multinacional de Petróleo X)
A rotina é vista por todos como necessária, mas deixá-la e mudar um pouco o dia-a-dia
também faz bem. Esse domínio da agenda, ou seja, a facilidade de escolher a ordem das
atividades sem precisar dar explicações a terceiros, é vista, por muitos entrevistados, como a
principal vantagem sobre o profissional de escritório: “Eu coloco horário, até para ter o prazer
de trocar o horário (E7 - Consultor). A palavra “prazer” utilizada neste discurso está de
acordo com os conceitos de “luxo” e “liberdade” vistos na questão de flexibilidade de tempo.
Se a rotina é importante, a possibilidade concreta de mudá-la, sem dar maiores explicações a
um chefe, é a grande vantagem.
A concentração exigida no trabalho em casa foi uma das questões levantadas nas entrevistas e
diz respeito à natureza do trabalho executado. Um dos entrevistados apontou diferenças entre
trabalhos manuais e trabalhos intelectuais. Seria mais difícil para os que fazem trabalhos mais
intelectuais pararem e retomarem o trabalho a cada instante. A palavra “disciplina” foi uma
das mais utilizadas pelos entrevistados. É unânime a afirmação de que é necessário ter uma
boa dose de disciplina para se adequar ao trabalho a partir da casa.
Dos três profissionais que não se adaptaram ao conforto no trabalho em casa, dois
apresentaram como problema a falta de disciplina com os horários causando dificuldades para
regular o sono. Outro profissional que não se adaptou ao trabalho na casa (E1) teve
dificuldades com o dia-a-dia da casa e com as interrupções provocadas pelos membros da
família. Foi recorrente a comparação entre a produtividade e a concentração possível no
escritório e na casa. Os depoimentos indicam que a produtividade na casa é maior do que a no
escritório, o que está de acordo com a literatura, segunda a qual, em casa, haveria menos
interrupções e distrações. (APGAR, 2001; MANN e HOLDSWORTH, 2000). Foi recorrente a
citação dos chamados “tempos mortos” na empresa, definidos como tempos perdidos com
atividades corriqueiras que não agregam valor à atividade final.
Das rotinas diárias, a verificação da correspondência eletrônica surge como uma das mais
constantes. Cada entrevistado encontra uma forma para lidar com esta tarefa. O entrevistado
E4, por exemplo, deixa o e-mail fora do ar e só confere a sua “caixa de entrada” três vezes ao
dia. Ele acredita que se for urgente, o telefone resolverá a questão. Há também cuidados com
o horário de envio da correspondência o que sinaliza a percepção de quem trabalha em casa
deve cuidar de aspectos relativos à imagem profissional. O entrevistado E7, um consultor da
área de petróleo, evita enviar um e-mail de trabalho às 23h30min para um cliente, pois
imagina que isso poderia passar a impressão de que não é um bom consultor, ou que não
trabalha durante o dia.
12
O tempo instável do emprego formal
Um ponto levantado pelos entrevistados é o fim do emprego formal. A experiência de que a
estabilidade do emprego chegou ao fim, foi visto de perto pelos entrevistados. Muitos
viveram um pedaço de sua vida profissional sob o lema de “vestir a camisa”, ou seja,
dedicando-se à empresa como se fosse algo pessoal talvez tão importante quanto a própria
família e agora percebem que vivem em outra realidade. Alguns dos entrevistados claramente
preferem o mundo da estabilidade e das carreiras sólidas do passado. “Quem não quer ficar
dez, quinze anos em uma empresa, construir uma carreira sólida em uma empresa? Quem não
quer fincar suas raízes?” (E1 – Advogado).
Os entrevistados indicam que as mudanças do mundo de estabilidade para o de alta
rotatividade no trabalho vieram em conseqüência de transformações que ocorreram tanto com
o profissional quanto com a empresa. Pelo lado do profissional existiria uma busca de
realização, de satisfação e de crescimento. Pelo lado da empresa, o aumento da
competitividade e da pressão por manter custos baixos exigiria uma equipe “enxuta”, nem que
isso significasse troca de pessoal. Outro entrevistado destaca o crescimento do
empreendedorismo por necessidade como uma solução para o trabalhador que não encontra
mais emprego no mercado de trabalho
Tecnologia
Quando o contato físico e o trabalho cara-a-cara deixam de acontecer, uma das alternativas é
substituí-lo por outras técnicas como conference calls, ou chats de computador. A
possibilidade de trabalhar em outro ambiente que não o escritório formal pode ser
representado pelo caso extremo do entrevistado E13, empreendedor da área de sistemas, que
trabalha há anos com um funcionário em outra cidade, mas nunca precisou encontrá-lo
pessoalmente. O lap top e a rede wireless foram citados como as ferramentas que permitiram
que o trabalho fosse executado livremente no espaço:
“O lap top é o escritório portátil. Qualquer lugar pode ser meu escritório... O lap
top pra mim foi espetacular. Eu acho que muda a forma de você se relacionar com
esse trabalho físico. De escrever para o computador. Você pode fazer isso de
qualquer lugar. Você não está mais preso em casa ou no escritório.” (E2 Escritor)
No entanto, essas tecnologias, apesar de visivelmente vantajosas, muitas vezes são vistas com
desconfiança pelos profissionais. Parece existir um consenso entre os pesquisados de que deve
haver um controle saudável do tempo. As facilidades de comunicação podem, na verdade,
representar uma armadilha para o teletrabalhador. Na atualidade, a portabilidade dos novos
meios de comunicação permite estar em constante acesso à informação e em contato com a
empresa. Essa facilidade extrema de acesso é o fator que permite que o trabalho passe a ser
feito em qualquer tempo, ou em qualquer local.
Enquanto alguns perceberem o impacto negativo de estarem sempre acessíveis, outros ainda
não se deram conta, de maneira tão clara, dos impactos que isso gera na sua vida como um
todo. Alguns depoimentos apontam para a direção contrária – são mais otimistas e acreditam
que, no futuro, a tendência é trabalhar menos. Apesar das aparentes contradições nos
depoimentos, é inegável que os avanços tecnológicos provocaram uma grande mudança na
dinâmica temporal do trabalho. As informações passaram a circular com mais velocidade, e o
profissional teve de aprender a lidar com essa nova realidade. Um dos desafios do
profissional que trabalha desde a casa – e não precisa se deslocar de volta – é reconhecer o
13
momento de parar. Muitos apresentaram tendências de se tornarem workaholics. Confirma-se,
portanto, o que parte da literatura já indica sobre o excesso de dedicação ao trabalho.
Conclusões
Uma das mudanças que desponta na atualidade diz respeito à descentralização do trabalho em
torno da empresa. O trabalho não mais se encontra preso a um espaço fixo e tampouco a um
horário determinado. Este trabalho de natureza mais fluida permite que novos arranjos
temporais e espaciais sejam estabelecidos, trazendo novas implicações para o trabalhador,
para a empresa e para a sociedade como um todo.
Entre os modelos de teletrabalho, identificaram-se duas opções com relação ao tempo: a do
profissional que trabalha 100% em casa e a do modelo híbrido em que o profissional opta por
trabalhar no escritório formal – a empresa tem um espaço físico na mesma cidade - ou em
outro local, conforme lhe for ou parecer mais conveniente naquele momento.
Esta pesquisa constata que, quando o trabalho se muda do escritório para a casa, ocorre uma
ruptura nas dinâmicas de espaço e tempo. Tal fato, na maioria das vezes, abre novas
oportunidades para o desenvolvimento do ser humano com possibilidades reais de ganho de
qualidade de vida. Entretanto, as mudanças têm potencialidades contraditórias, que podem ter
conseqüências tanto benéficas como prejudiciais para os diversos atores envolvidos no
processo. De fato, tanto casos bem sucedidos como malsucedidos de trabalho em casa foram
encontrados nas entrevistas. O leque de estratégias encontradas para harmonizar a situação do
trabalho em casa tem como eixo central a necessidade de separar física e mentalmente as
esferas do privado e do profissional através de mecanismos de regulação de território e da
adoção de rotinas e rituais de tempo. Inclui, também, a necessidade de negociação com os
outros membros da casa para que as fronteiras entre casa e trabalho sejam compreendidas e
respeitadas; e uma necessidade de desenvolver hábitos pessoais conducentes à disciplina e à
organização.
Muitos entrevistados declaram serem mais produtivos do que seus colegas de escritório, o que
não significa que trabalhem menos horas. O hábito da longa jornada parece estar relacionado
a uma questão de valorização social do trabalho intenso, ao prazer intrínseco de trabalhar na
sua atividade ou, ainda, à remuneração. No entanto, os entrevistados utilizam com freqüência
os termos luxo e liberdade. Segundo eles, o seu privilégio constitui-se da liberdade de
manipular seus compromissos, buscando respeitar e atender suas necessidades pessoais e
familiares. Possivelmente o termo luxo indique que a vantagem da flexibilidade seja
privilégio de poucos e, por isso, cria-se um símbolo de status. A pesquisa conclui que, se o
luxo das classes aristocráticas, do clero e da burguesia de outros tempos era não trabalhar;
hoje, o luxo dos profissionais gabaritados, é a possibilidade de ser o dono de sua agenda.
É importante ressaltar que os avanços tecnológicos ligados à comunicação e à portabilidade
da informação oferecem, para o trabalhador intelectual, a possibilidade do trabalho remoto em
qualquer horário. Os valores sociais predominantes, no entanto, ainda remetem para o homem
no trabalho fora de casa, com dinâmicas espaciais e temporais bem definidas. Essas
mudanças, ainda em curso, provocam o que alguns antropólogos chamam de cultural gap, que
se constitui de um período de tempo frequentemente muito longo, por vezes muitas gerações,
até que o cérebro de cada indivíduo se reprograme e passe a incorpora-las – mesmo as
claramente positivas – transformando-as em hábito social (DE MASI, 2003).
14
Alertamos, no entanto, para o fato de que não se sabe se as configurações presentes hoje - em
termos de trabalho, casa, e tecnologia - serão as mesmas daqui a 10 anos. Este trabalho tratou
apenas de obter um retrato deste momento de mudança. Novas e surpreendentes
configurações podem surgir, ao final desta transição para um trabalho ainda mais flexível.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
APGAR, M. O local de trabalho alternativo: Mudando onde e como as pessoas trabalham. In:
Trabalho e vida pessoal. Harvard Business Review, 2001.
BAINES, S.; GELDER, U. What is family friendly about the workplace in the home? New
Technology, Work and Employment, v. 18, i. 3, 2003, p. 223-233.
BALLARD, D.; SEIBOLD, D. Organizational Membres’ Communication and Temporal
Experience. Communication Research, v. 31, i. 2, 2004, p. 135-172.
BASSO, P. Modern times, ancient hours. Working lives in the twenty-first century.
London, New York: Verso, 2003.
BAUMAN, Z. Time and Space reunited. Time and Society. v. 9, issue 2, 2000, p. 171-185.
CAPPELLI, P. The new deal at work. Boston, MA: Harvard Business School Press, 1999.
CASTELLS, M. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
DE MASI, D. A sociedade pós-industrial. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 1999.
_________. Criatividade e grupos criativos. Rio de Janeiro: Sextante, 2003.
DRUCKER, P. O gerente eficaz. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1974.
FRANCIS, S.; ROBERTSON, I. Time-related individual differences. Time and Society, v. 8,
issue 2, 1999, p. 273-292.
FISCHER, G. Individuals and Environment: A Psychosocial Approach to Workspace.
Berlin: De Gruyter, 1997.
GIDDENS, A. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991.
HALL, E. The Dance of Life. New York: Anchor Books Editions, 1983.
HARVEY, D. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1993.
HASSARD, J. Imagens do Tempo no Trabalho e na Organização. In: Caldas, M, Fachin, R. e
Fischer, T. (org.) Handbook de Estudos Organizacionais, v. 2. São Paulo: Atlas, 2001.
KORNBERGER, M.; CLEGG, S. Bringing Space Back In: Organizing the Generative
Building. Organization Studies. v. 25, n. 7, p. 1095–1114, 2004.
MANN, S.; HOLDSWORTH, L. The psychological impact of teleworking: stress, emotions
and health. In: New Technology, Work and Employment, v. 18, n.3, 2000.
ODIH, P. Gender, Work and Organization in the time/space economy of ‘just-in-time’ labour.
Time & Society, v. 12, n. 2, p. 293-314, 2003.
QUEIROZ, A. Influências do Layout de Escritórios: privacidade e territorialidade na ótica do
usuário de espaços modificados. Anais do XXVIII ENANPAD, Curitiba/PR, 2004.
SABELIS, I. Time Management. Paradoxes and patterns. Time & Society, v. 10, n. 2, p. 387400, 2001.
SENNETT, R. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Record, 1999.
SERVA, M.; FERREIRA, J. O fenômeno workaholic na gestão de empresas. Anais do
XXVIII ENANPAD, Curitiba/PR, 2004.
SILVA, J.R.; WETZEL, U. Configurações de Tempo e a Tentativa de Adaptação dos
Indivíduos às Mudanças Organizacionais. Anais do XXVIII ENANPAD, Curitiba/PR, 2004.
SOMMER, R. Espaço Pessoal. São Paulo: EPU, 1973.
TONELLI, M.J. Produção de sentidos: tempo e velocidade nas organizações. Anais do III
ENEO, Recife/PE, 2002.
VERGARA, S.; VIEIRA, M. Sobre a Dimensão Tempo-Espaço na Análise Organizacional,
RAE – Revista de Administração de Empresas. São Paulo, v. 9, n. 2, 2005, p. 103-119.
15
WESTENHOLZ, A. Identity, Times and Work. Time & Society, v. 15, n. 1, 2006, p. 33-55.
16
Download

1 Trabalho em transformação: dimensões de espaço e