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Alfabetizar letrando: uma proposta de
aprendizagem da língua escrita
CENTRO DE PESQUISA E DESENVOLVIMENTO EM EDUCAÇÃO
Cláudia Janoski
Maria Cláudia Söndahl Rebellato
Maria Lúcia Castellano
Rosane de Mello Santo Nicola
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Apresentação
A crença na formação de professores, associada principalmente à sua
atividade cognitiva ou intelectual, não resulta positivamente se não forem considerados os saberes dos professores, produzidos socialmente.
TARDIF, 2002.
O Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Educação (CPDE), em cumprimento à missão de disponibilizar soluções educacionais que contribuam com
a sociedade, apresenta seu mais novo produto de apoio à formação contínua
dos docentes das escolas conveniadas ao Sistema de Ensino Dom Bosco — os
Cadernos do CPDE. Trata-se de Cadernos de produção científica desenvolvidos
nesta instituição, com o objetivo de subsidiar a reflexão dos educadores sobre
seu fazer pedagógico nas escolas, de forma que teoria e prática educacionais
interajam e se encontrem na construção legítima do conhecimento.
O primeiro Caderno, tratando do tema Alfabetizar letrando, surge justamente num momento em que intelectuais da educação brasileira discutem
na imprensa falada e escrita a questão teórico-prática dos métodos de alfabetização. Sem buscar uma posição dicotômica desta ou daquela natureza,
defende-se uma visão sistêmica, dinâmica e interativa de abordagem teóricometodológica, visto que assim é a língua — um sistema dinâmico de relações
socioverbais.
Essa polêmica em torno da temática da alfabetização e do letramento
não representa apenas aspectos metodológicos, mas concepções de linguagem, e, nesse sentido, é de extrema importância para a educação lingüística
dos educandos. Isso é o que tem estimulado a análise e a pesquisa realizadas
pelos profissionais da educação que atuam no Grupo Dom Bosco.
O Caderno resulta dessas reflexões, apresentadas pelas autoras no
Encontro Linguagem e Letramento, promovido em Santo André (SP), em 27
de maio de 2006. Torna-se, assim, um ato coletivo, um trabalho que envolve
múltiplas trocas pela necessidade de melhorar os modos de fazer e desenvolver
a docência.
Curitiba, 27 de maio de 2006.
Lucélia Secco
Diretora de Divisão Educacional da Editora Dom Bosco
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Alfabetizar letrando: uma
proposta de aprendizagem da
língua escrita
Cláudia Janoski
Maria Cláudia Söndahl Rebellato
Maria Lúcia Castellano
Rosane de Mello Santo Nicola
O presente estudo tem como foco a prática
alfabetizadora, visando a explicitar aspectos da noção
de letramento e, com isso, ampliar possibilidades de
discussão sobre o trabalho alfabetizador. Esta proposta de alfabetização pode enriquecer os modos de ver,
ouvir, falar e ler o espaço escolar, além de sugerir perguntas e soluções para aspectos dessa realidade.
Em razão da complexidade do tema, primeiramente, faz-se necessária uma reflexão sobre os conceitos de alfabetização, de letramento e suas relações
com as concepções de linguagem; em seguida, cabe
expor a importância do uso de material didático na alfabetização, suas possibilidades e limitações; paralelamente, há também o papel ou os papéis do professor,
o qual assume, dentre outras, uma função interacionista — a de interlocutor alfabetizador. Para fazer a
transposição teórico-prática, finaliza-se com um relato
de experiência de uma professora que elabora seu
pensar e sua prática sobre alfabetizar letrando.
Dessa forma, espera-se buscar possíveis respostas
para um desafio proposto por Soares (1998:59) — “como
alfabetizar, letrando?”
DISTINÇÃO ENTRE ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO
Ainda que alfabetização e letramento estejam
inevitavelmente ligados, é fundamental distinguir
esses termos, visto ser essa uma tendência entre os
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estudiosos da educação atual. Neste artigo, apresenta-se uma rápida abordagem sobre alguns aspectos
considerados relevantes para o trabalho alfabetizador.
Entende-se o conceito de alfabetização, em seu
sentido específico, como processo de aquisição do código escrito, isto é, do sistema convencional de uma
escrita alfabética e ortográfica. Dessa forma, o termo
alfabetização, etimologicamente, não ultrapassa o significado de apropriação do alfabeto, ou seja, do ensino
de habilidades de codificar a língua oral em língua
escrita (escrever) e de decodificar a língua escrita em
oral (ler). Tfouni (1997) corrobora com essa definição,
caracterizando alfabetização como a aquisição de habilidades para leitura e escrita, e como as chamadas
práticas de linguagem efetuadas pela escola, também
denominadas escolarização.
Assim, Soares (2005:15) alerta: “atribuir um
significado muito amplo ao processo de alfabetização
seria negar-lhe a especificidade, com reflexos indesejáveis na caracterização de sua natureza, na configuração das habilidades básicas de leitura e escrita, na
definição da competência em alfabetizar”. Depreendese daí que considerar a alfabetização um processo permanente que se estende por toda a vida é confundir
aquisição de língua com desenvolvimento de língua,
este sim, com certeza, ininterrupto.
A partir de 1985, essa distinção foi tornando-se
cada vez mais clara, concretizando-se nos distintos
sentidos existentes hoje entre alfabetização e letramento. Este último termo foi usado pela primeira vez
por Mary Kato, em 1986, no livro No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingüística, como tradução
do termo inglês literacy, que significa cultura escrita.
O termo letramento passou a ser retomado em publicações posteriores, com diferentes sentidos e, embora
os meios acadêmicos continuassem empregando-o
largamente, só recentemente esse termo foi dicionarizado (Dicionário Houaiss, 2001). Por outro lado, o adjetivo ‘letrado’ há muitos anos aparece nos dicionários
como o ‘indivíduo versado em letras, erudito’, o que
não representa o sentido dado ao termo ‘letrado’ sob a
concepção de letramento criada por Kato.
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O letramento pode então ser definido como o
conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos (Kleiman, 1997).
Soares (1998:72) também define:
“letramento é o que as pessoas fazem com
as habilidades de leitura e escrita, em um contexto específico, e como essas habilidades se relacionam com as necessidades, valores e práticas
sociais, ou seja, é o conjunto de práticas sociais
relacionadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social.”
Portanto, letramento é apropriação da linguagem escrita, dos usos particulares da leitura e da
escrita na sociedade, os quais dependem das experiências com a diversidade de textos produzidos em
diferentes contextos de uso, com finalidades específicas e envolvendo interlocutores específicos. Por isso,
o indivíduo letrado é aquele que passa a envolver-se
nas práticas sociais, usando as habilidades de ler e escrever em benefício de formas de expressão e comunicação possíveis, reconhecidas, necessárias e legítimas
em determinado contexto cultural. Em função disso, a
utilização da escrita, em sala, precisa corresponder às
formas pelas quais ela é utilizada verdadeiramente nas
práticas sociais.
Nessa perspectiva, a escola, muitas vezes, incorreu em graves falhas, como tomar esses dois processos — alfabetizar e letrar — de forma estanque e
desarticulada, ou, pior, sobreposta, transformada em
modismo por meio de práticas mecânicas que pretendem primeiro alfabetizar para depois letrar, ou, ainda,
meramente proporcionar à criança os usos, considerando isso suficiente para alfabetizar.
ALFABETIZAR LETRANDO
Paralelamente a essa revolução conceitual ocorrida nos últimos vinte anos, encontra-se o desafio dos
educadores em face do ensino da língua escrita: o
alfabetizar letrando.
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Para entender essa proposta, é preciso antes
entender em qual concepção de linguagem ela se baseia, pois, conforme se concebe a linguagem, assim
se estrutura o ensino de língua. A língua se constitui
como sistema (conjunto de regras e modos de funcionamento), mas também é atividade (conjunto aberto
e múltiplo de práticas orais ou escritas, desenvolvidas
por sujeitos historicamente situados). A alfabetização
tradicional, por exemplo, é fruto da concepção de língua como código, sistema fixo, e, portanto, está desvinculada do texto com função social e voltada para
um ensino fragmentado do trabalho com as unidades
menores (letras, sílabas, palavras e textos estéreis de
significados para as crianças).
Por outro lado, buscando superar esses métodos
tradicionais, muitos alfabetizadores voltaram-se para
uma verdadeira ‘febre do texto’ (Klein, 2004), embora
sem fundamentos que tomassem o texto como eixo do
processo de ensino-aprendizagem da língua. O resultado foi um abandono do código e, paralelamente, um
trabalho com o texto como mero pretexto para apresentar letras ou ensinar regras gramaticais.
A proposta de alfabetizar letrando rompe definitivamente com a divisão entre o ‘momento de aprender’ e o ‘momento de fazer uso da aprendizagem’.
Estudos lingüísticos propõem a articulação dinâmica
e reversível entre ‘descobrir a escrita’ (conhecimento
de suas funções e formas de manifestação), ‘aprender
a escrita’ (compreensão de regras e modos de funcionamento) e ‘usar a escrita’ (cultivo de suas práticas
a partir de um referencial culturalmente significativo
para o sujeito).
Dessa forma, faz-se a apropriação dialética
dos dois pólos (sistema e atividade), contextualizando o trabalho simultâneo com textos e as unidades
menores. No trabalho com os textos, estabelecemse as condições prévias para níveis mais elevados
do letramento da criança, as habilidades de uso dos
instrumentos de escrita e de manipular os suportes.
Ao mesmo tempo, o domínio do sistema de escrita
(alfabético com convenção ortográfica) ocorre por
meio de jogos e do alfabeto móvel, por exemplo. Para
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tanto, é preciso que as práticas pedagógicas passem
de iniciativas meramente instrucionais para intervenções educativas. É imprescindível que o alfabetizador
compreenda a criança para com ela estabelecer uma
relação dialógica, significativa e compromissada com a
construção do conhecimento.
A teoria da enunciação bakthiniana propõe o
trabalho com gêneros textuais, sejam orais (recado,
convite, entrevista, etc.), sejam escritos (adivinha,
bilhete, legenda, fábula, etc.), permitindo a criação
de situações reais de ensino, capazes de responder
às razões da leitura e da escrita, e quebrando a artificialidade da alfabetização tradicional. Nessa teoria,
entende-se gêneros textuais como formas socialmente
realizadas e estabilizadas por sua circulação histórica
e social.
Assim, a aquisição da língua escrita estará atrelada à interação com o outro, às relações socioverbais.
Esse é o compromisso do letramento na escola e, se
ela não cumprir adequadamente sua função, não terá
educação voltada para a construção da cidadania. Para
isso, é preciso um ensino de língua que privilegie sua
natureza funcional e interativa, que proponha práticas comunicativas para agir sobre o mundo e dizer o
mundo.
USO DO MATERIAL DIDÁTICO:
POSSIBILIDADES E LIMITAÇÕES
O que se pode esperar de um material didático?
Trata-se de um suporte tecnológico que se destina por
natureza ao letramento escolar das práticas sociais
orais e escritas. Ele se constitui como mediador entre
a produção científica e a escola. O professor, que também deve atuar como mediador, muitas vezes assume
o papel de ‘aluno’ na interação com os materiais didáticos, que, por vezes, adquirem a função de responsáveis pela atualização docente. Bräkling, citada por
Passos (2004:212), destaca o lugar que os materiais
didáticos ocupam na prática docente:
“por um lado, constitui-se referência organizadora do currículo escolar, selecionando conteúdos, determinando sua progressão, definindo estratégias de
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trabalho e metodologias de ensino; por outro, mostrase como referência teórica fundamental, indispensável
e, por vezes, única, na tematização dos conhecimentos e (in)formação do professor sobre os aspectos da
língua e da linguagem envolvidos em seu trabalho.”
Sabe-se que um bom material didático pode ser
um excelente instrumento de formação continuada do
professor em serviço. As orientações metodológicas e
as orientações ao professor dispostas nas páginas das
atividades representam um rico material de formação,
desde que respeitem seu interlocutor e não se banalizem, perdendo-se em orientações desnecessárias.
A partir daí, é possível organizar uma gestão
do trabalho docente voltada para o aperfeiçoamento
em termos de formação e atingir um bom uso desse
material didático; também é possível conduzir um processo de formação coletiva, objetivando um consenso.
A equipe de docentes pode ter excelente nível, porém
visões muito diferentes do processo de alfabetização.
O uso de um material didático possibilita um direcionamento comum, que requer um consenso possível,
beneficiando, nesse caso, não só o aluno mas também
a escola, que acaba por adotar uma concepção mais
clara de ensino de língua, e a família, que passa a estar inserida no processo de forma ativa.
No caso específico da proposta do material didático para a Educação Infantil desenvolvido pela Editora
Dom Bosco, há instrumentos que proporcionam essa
condição de porta-voz de uma proposta em que se
alfabetiza letrando.
O primeiro deles é a criação de personagens
que evoluem, modificando suas características ao
longo dos anos, tornando-se o ponto de partida para
o desenvolvimento de todas as áreas. Por meio deles,
pode-se explorar as relações sociais, afetivas e lúdicas, indispensáveis e partícipes dos processos voltados à linguagem oral, à leitura e à escrita. Trata-se
de imagens concebidas para serem exploradas como
linguagem, e não como meras ilustrações coladas aos
textos. Isso revela a forte relação entre as estratégias
editoriais e as didático-pedagógicas no material.
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Os conteúdos contextualizados às atividades
sociais e aos interesses da criança propõem práticas
que integram inúmeras áreas de conhecimento, orientando a elaboração das vivências por meio de registros das idéias, inicialmente por desenhos, avançando
gradativamente para registros mais significativos e
expressivos.
A proposta de registro de algumas atividades
que solicitam a participação dos pais ou familiares
tem por objetivo criar um vínculo harmônico, em que
o processo “a três mãos” se propõe eficaz, permitindo
ao professor, ao aluno e à família uma parceria importante para os resultados almejados.
O material gráfico da Educação Infantil apresenta-se como referência didática ao professor e instrumento de registros pertinentes ao que está sendo
vivenciado e aprendido pela criança. Não se apresenta
de forma auto-explicativa e sim como gerenciador de
aprendizagem significativa. Sua proposta desafia a
criança à pesquisa, às descobertas, à elaboração e organização de fatos e idéias, favorecendo a construção
de sua autonomia. A clareza nas práticas desenvolvidas deve fazer parte do direcionamento realizado pelo
professor em suas orientações, porém não deve ser
impedimento ao intercâmbio de experiências, debates
e construções coletivas de conhecimento por meio da
introdução de outras práticas ajustadas a um grupo
específico de crianças.
O material oferece ainda, em sua proposta, diferentes oportunidades de aprendizagem, envolvendo
a leitura e a escrita como objeto social do conhecimento, apresentando-se como constante promotor
do letramento. Sugere seqüências didáticas bastante
pertinentes e claras, buscando facilitar o trabalho alfabetizador, cabendo destacar, entretanto, que, como
todo material didático, apresenta limitações ao promover o letramento. Isso porque esse recurso é um
portador de gêneros textuais que, após reproduzidos
nele, deixam automaticamente de ser originais para
se tornarem simulações dos usos sociais. Uma capa
de revista, por exemplo, é reproduzida para ser explorada em sala, mas fatalmente sofrerá alterações,
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como a redução do tamanho e o isolamento de todos
os demais componentes que compõem efetivamente
uma revista, caracterizando-a como suporte. Portanto,
por mais que o material didático promova o trabalho
com gêneros discursivos, compete ao professor não
só levar à sala de aula livros, revistas, jornais e outros
textos originais, para que a criança tenha acesso real
aos gêneros, mas, principalmente, levar o aluno ao
encontro dos textos nos locais originais onde cumprem
seus papéis (placas de identificação, cartazes, murais,
bancas de revistas, bibliotecas, bilheterias, secretarias,
etc.). Portanto, alfabetizar letrando pressupõe levar a
criança para além da sala de aula e, ao mesmo tempo,
recolher para dentro da sala todo conhecimento que a
criança traz de seu meio. Também se alfabetiza letrando quando se analisam os bilhetes, as figurinhas, as
embalagens que acompanham o lanche, as instruções
que chegam com as caixas de brinquedos e jogos, as
fotos familiares, etc.
O trabalho de planejar seqüências didáticas próprias também não pode ser esquecido pelo professor,
visto que cada aprendiz tem sua própria história de
aquisição e de reelaboração de hipóteses de leitura e
escrita, e, por conseguinte, as intervenções docentes
são muito próprias em cada sala, mais especificamente, para cada criança. Fica evidente que, por melhor
que seja o material didático, o professor desempenha,
dentre outros papéis, o de orientador e co-autor das
atividades a serem realizadas pelas crianças nesse
suporte.
UMA REFLEXÃO SOBRE O PAPEL DO
PROFESSOR ALFABETIZADOR
No intuito de ampliar a reflexão sobre o papel
atual do professor na prática alfabetizadora, faz-se
necessário rever suas ações passadas, analisando os
procedimentos do alfabetizador em diferentes épocas.
Não se pretende aqui fazer uma análise histórica detalhada desse processo; a intenção é pontuar alguns
momentos considerados relevantes para caracterizar a
trajetória do trabalho alfabetizador.
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Primeiramente, pode-se dizer que, durante
muito tempo, nas classes de alfabetização, o papel
do professor consistiu exclusivamente em seguir uma
cartilha, desrespeitando os conhecimentos prévios dos
alunos bem como suas características individuais, e
ministrando ‘com maestria’ o ensino das letras e famílias silábicas com fim em si mesmas.
Nesse método tradicional, também era mais
fácil avaliar o aluno: o professor preparava as provas
selecionando as palavras já trabalhadas, conforme
seqüência contemplada no livro de alfabetização. Para
os pais, em casa, bastava retomar com as crianças as
letras ensinadas na escola.
A esse respeito, Cagliari (1998:65, 66) analisa:
“O método das cartilhas não leva em consideração o processo de aprendizagem. Quando diz que
faz a verificação da aprendizagem através de ditados,
provas, etc., na verdade, está verificando não se o
aluno aprendeu ou não, mas se o aluno sabe responder ao que o professor pergunta, reproduzir um
modelo que lhe foi apresentado, demonstrar que o
professor ensinou direito. O que se passa na mente
do aluno e as razões pelas quais ele faz ou deixa de
fazer algo são coisas que o método não permite que o
aluno manifeste.”
Os alunos que não aprendiam eram submetidos
a repetições exaustivas. Se ainda assim não conseguissem aprender, sem o menor constrangimento,
reprovavam e repetiam toda aquela mesma seqüência
no ano seguinte, e no outro, e no próximo, se fosse
preciso.
Um dia, após várias reprovações, num insight, o
aluno, enfim, aprendia a ler e escrever, podendo então
ser promovido para a série seguinte. Parecia que esse
insight, arbitrariamente, não dependia de quaisquer
interferências do professor, da família ou do convívio
social do aluno, mas acontecia isoladamente, por acaso.
Essa era uma época mais fácil de organizar a
sala de aula, pois os alunos ficavam repetidas vezes
reproduzindo palavras, fazendo da aprendizagem uma
seqüência de coordenação motora e de respostas
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previsíveis. Com atividades assim o ambiente de ensino
ficava silencioso e o controle da turma era mantido.
Avaliando-se esse papel do professor, pode-se
afirmar que era o de um seguidor passivo, seguidor de
uma ‘receita infalível’ que servia para qualquer turma,
para qualquer época e para qualquer aluno. Metodologicamente, o ensino da escola tradicional é autoritário
e rígido, pois acredita que, se existe uma essência
humana, o ensino pode ser igual para todos, numa
ordem lógica e preestabelecida.
Após as décadas de 1960 e 1970, com a disseminação de tecnologias de informação e de comunicação e o processo de globalização, surgiram novas
linguagens. Estudiosos contemporâneos afirmam
que essas transformações criam uma nova cultura
e modificam as formas de produção e apropriação
dos saberes. Portanto, os alunos já não eram mais
os mesmos, e, nesse contexto, os professores precisaram adequar-se a um novo papel em sala de aula.
Foi quando surgiram as teorias do construtivismo póspiagetiano, difundidas na área de alfabetização pela
argentina Emilia Ferreiro, aluna de Jean Piaget, que
expandiu as idéias de seu mestre para o campo da
escrita e da leitura. Concluiu que a criança descobre
as regras da língua escrita (ler da esquerda para a direita, entender que as letras reproduzem a fala) antes
mesmo de ir à escola, e que grande parte das crianças
se alfabetiza sozinha, se estiver imersa num ambiente
alfabetizador.
Ferreiro e Ana Teberosky descobriram que toda criança passa pelas mesmas fases ao aprender a ler e escrever,
e que essas fases determinam o tipo de erro que cometem.
Essas descobertas vêm revolucionando as formas mais
tradicionais de alfabetização, baseadas em cartilhas
que apresentam apenas fragmentos da língua escrita.
Para se modernizarem, as escolas foram adaptando-se ao construtivismo, mas, infelizmente, faltou
embasamento teórico para muitas delas. Nesse contexto, o papel do professor ficou em segundo plano,
considerando que não precisava interferir no processo
de alfabetização, e as aulas ficaram insipientes, sem intervenções diretas no processo da criança; isso porque
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o professor nessa fase não tinha clareza sobre como
fazer o exercício da mediação e da intervenção que
corresponde ao que, nessa teoria de aprendizagem,
denominou-se valor pedagógico dos erros e da avaliação.
Muitas escolas beiraram o caos e os alunos, passando o segundo semestre, ainda não pareciam interessados no processo de aquisição da leitura e escrita;
e, numa tentativa de “salvar” o ano de alguns alunos,
muitas professoras voltaram aos métodos tradicionais
de alfabetização.
Assim, o construtivismo ficou conhecido por
alguns estudiosos como um processo de ensino que
não deu certo. Foi essa a conseqüência da falta de
orientação ao docente para que ele pudesse exercer
seu papel mais importante — o de promotor da
interação aluno / objeto de conhecimento.
Esse papel requer que o docente encoraje o
aluno através de atividades que neste causem desequilíbrio ou o coloquem em ação, não só apresentando
conteúdo e atividades, mas questionando, interrogando e fazendo o aluno pensar por comparação, seriação, classificação, causalidade, reversibilidade, etc.
No caso de alfabetizar letrando, que é a proposta de aprendizagem de Soares (2005) e permeia o
material Dom Bosco, trata-se aí do resgate do papel
do professor como mediador, recuperando sua figura
de elo entre o educando e a matéria de conhecimento,
interferindo no processo sem desviá-lo nem desvirtuálo. A interação aluno-conteúdo é um diálogo alunomundo mediado pelo professor e por outras pessoas.
A mediação é um dos grandes conceitos de Vygotsky
e foi elaborada no contexto sociohistórico, portanto
pertence à crítica dialética.
Nesse contexto, faz-se necessária uma retomada do papel do professor alfabetizador cujo desafio é
letrar os alunos por meio do trabalho com atividades
de leitura e escrita, executadas no plano da prática social, portanto em situação de dialogicidade; depois são
internalizadas ou começam a ocorrer internamente e,
posteriormente, são reconstruídas em nível mental
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(lógico). Esse processo interpessoal é transformado
em processo intrapessoal; assim, o que era executado
em nível social entre pessoas passa a ser executado
no interior da pessoa, e essa passagem é o resultado de uma longa série de eventos ocorridos ao longo
do desenvolvimento do indivíduo. Pretende-se, com
isso, reafirmar algo que já foi citado neste artigo — o
caráter individual de aquisição da língua escrita de
cada criança, que terá de elaborar e reelaborar suas
hipóteses a partir da interação com o outro. A criança
constrói uma série de esquemas conceituais que não
podem ser atribuídos apenas à influência do meio. São
idéias próprias que ela testa e se refletem no nível
das operações mentais. Enfim, é na cabeça da criança
que se dá a alfabetização. Isso não significa, porém,
que o professor não tenha que exercer um importante
papel de mediador e intervir em suas hipóteses, fazendo-a refletir sobre seus usos de língua, mostrando-lhe o complexo sistema de convenções da língua
escrita, que representa a especificidade do processo
de alfabetização. Isso sem estressá-la com atividades
repetitivas, pois alfabetizar não é repetir um modelo
até que se aprenda o que ele quer dizer. Alfabetizar é
compartilhar as dificuldades do aprendiz, analisá-las,
entendê-las e sugerir alternativas e soluções.
Por ser um processo multidimensional, complexo, a alfabetização tem sido vítima de abordagens
simplistas e formalistas da didática instrumental, o
que vem gerando frustrações e insegurança a muitos
professores brasileiros, que não parecem dispor de
autonomia para tomar decisões de intervenção com
a criança, ou para avaliar suas hipóteses e fazê-la
avançar.
Há um medo — ME (MA MI MO MU) DO (DA DE
DI DU)! Medo de quê? Medo de não conseguir alfabetizar. Então, como forma de garantia, lançam para os
alunos a silabação, método que já conhecem e lhes
traz segurança.
Há também o medo dos pais quando eles, na
porta da sala, perguntam, questionam o trabalho. O
professor então, sem garantias de resultado, volta rapidamente para os passos da cartilha tradicional. Medo
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de errar, errar no processo de aprendizagem, errar por
não estar acostumado a mudar o foco, antes centrado
no ensino e agora transferido para a aprendizagem
que cada aluno consegue realizar.
A autonomia para criar seqüências didáticas
que respeitem o tempo e a elaboração, por parte da
criança, exige conhecimentos específicos do docente
para promover, por exemplo, maior nível de letramento. Tome-se, por exemplo, a habilidade de manipular
suportes e instrumentos de escrita usuais na escola.
Como trabalhar com as crianças para dar-lhes esse
grau de letramento? O papel de mediador aqui requer alguém não só versado nas práticas sociais, mas
também capaz de elaborar novas atividades em sala,
superando o paradigma de alfabetização tradicional.
Relacionam-se abaixo aspectos que podem sugerir
exemplos dessas atividades:
— levar a criança a observar como se dá a seqüenciação do texto nas páginas (frente e verso,
página da esquerda e página da direita), a numeração das páginas e a localização da informação;
— explorar como se dispõe o escrito na página
(margens, parágrafos, espaçamentos, títulos e
cabeçalhos);
— explorar como se relacionam o escrito e as ilustrações;
— mostrar como se encontra o nome de um livro e
seu autor, a editora e a data da publicação;
— explicar como se dá a integração da ilustração com
o texto do material didático que a criança usa;
— discutir com as crianças qual a melhor maneira
de se dispor um texto num cartaz (tipo de letra,
tamanho, material a ser usado, etc.).
Essa nova forma de alfabetizar letrando requer
do professor que ele perceba as necessidades de sistematizar o uso, refletindo com a criança sobre este,
para garantir que ela saiba usar os objetos de escrita
presentes na cultura escolar.
Na verdade, o medo existe por não se saber
como proceder. Buscam-se receitas, mas a má notícia
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é que elas não existem; e a boa notícia é que há indicações de caminhos, e que cada um poderá descobrir
o seu.
Sobre o medo de não conseguir alfabetizar, o
professor pode perguntar-se: Os alunos são curiosos?
Eles gostam de novidades? Eles gostam de participar?
Eles gostam de compartilhar? Então, esse é o primeiro
passo. É preciso transformar a sala de aula num espaço onde seja possível fazer descobertas, elaborar e
aprender aquilo que é necessário.
A esse respeito, Cagliari (1998:64, 65) orienta:
“As crianças adoram aprender e, se dermos
chances a elas, aprenderão seja o que for. [...] A escola não precisa se preocupar muito com a aprendizagem: isto as crianças farão por si. Precisa preocupar-se
com dar chances às crianças para vivenciarem o que
precisam aprender; sentirem que o que fazem é significativo e vale a pena ser feito. Sem esse interesse
realmente sentido pelas crianças, as atividades da
escola podem não passar de um jogo, de um brinquedo, de uma obrigação, que alguns podem realizar e,
outros, inconformados, deixar de lado.”
Permitir o erro não é deixá-lo sem corrigir, mas
estabelecer com a criança uma correção textual-interativa, enxergar como uma oportunidade de aprendizagem, reconhecer na escrita não-convencional das
crianças os caminhos que elas estão percorrendo
para se apropriar da escrita. É proporcionar na sala
de aula um espaço onde a pergunta seja estimulada
e lembrar-se de que, para cada pergunta, quem a faz
tem uma intenção de resposta. Ou seja, o aluno que
pergunta sinaliza ao professor em que ponto ele está
da aprendizagem e demonstra interesse pelo que
está sendo ensinado. Abaurre (1988:14) aponta: “O
grande desafio está em sermos capazes de interpretar
todas as hipóteses que fazem as crianças no momento
inicial da aquisição da escrita, para trabalhar a partir
dessas hipóteses na busca da escrita convencional socialmente valorizada”.
Além desse papel, é importante preservar a
auto-estima principalmente daquelas crianças que
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ainda não fazem as conexões esperadas para sua faixa
etária. Como? Aproveitando as sugestões de interação
entre elas, pois, muitas vezes, as crianças aprendem
com um colega o que o professor tentou explicar e
não conseguiu. Nesse sentido, produções coletivas
em pequenos grupos e em duplas compensadas (um
aluno que sabe mais em conjunto com outro que sabe
menos) dividem com o professor a tarefa que antes
cabia somente a ele. Ao trabalhar com o(s) outro(s),
as perguntas e respostas das crianças começam a ser
compartilhadas, socializadas, neutralizando o papel de
um professor-sabe-tudo, que passa agir como orientador e coordenador de ambientes de aprendizagens
colaborativas.
Também é fundamental que restrições e negações sejam seguidas por explicações. Uma criança
precisa entender um não, precisa compreender, precisa refletir, enfim, precisa saber as razões e os motivos
para o que lhe foi negado. Sobre essa forma de fazer
acontecer o processo de aprendizagem, Cagliari aconselha (1998:66, 67):
“Por outro lado, aquele aluno que tem seu
espaço para revelar suas hipóteses, através de sua
iniciativa, em trabalhos escolares, parece, no começo,
em meio a um enorme caos. Mas, aos poucos, vai
aprendendo a organizar seus conhecimentos e a adequá-los à realidade e, aos poucos, tudo vai achando
seu lugar e sua razão de ser, de tal modo que esse
aluno acaba aprendendo não só o que deve, em termos de conteúdo, mas também aprende a aprender:
aprende como ele, do jeito que é, deve fazer para
construir seus conhecimentos. A escola precisa se
preocupar antes com a aquisição do processo de
aprendizagem e depois com os resultados obtidos
pelas crianças.”
RELATO DE EXPERIÊNCIA
Buscando evidenciar os aspectos práticos desta
proposta, registra-se a seguir um relato de experiência
e, no intuito de expressar exatamente o teor de relato
pessoal, repleto de significações e subjetividade, manteve-se aqui o uso da primeira pessoa do discurso, que
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representa a professora alfabetizadora do Grupo Dom
Bosco, relatando suas experiências com o material
didático.
Neste relato, minha intenção é contar um
pouco do meu dia-a-dia em sala de aula, descrever
como tem sido trabalhar com as crianças, utilizando o
material de Linguagem, com uma nova proposta, um
novo encaminhamento para a aquisição da leitura e da
escrita (alfabetizar letrando).
Consciente de que tudo na vida evolui, muda,
se renova, acolho a proposta de acompanhar essas
mudanças também na escola, pois as necessidades
das crianças que alfabetizávamos há cinco anos não
são mais as mesmas das crianças de hoje. Acredito
que seja primordial, então, mudar, pesquisar e buscar
sempre novas formas de saber e de fazer saber, cada
vez melhores e de maneira diferente, pois a repetição
cansa, satura, e isso serve para tudo que fazemos.
Acredito então que estamos no caminho certo,
de crescimento, de renovação, de grandes pesquisas e
embasamento teórico para uma prática coerente com
a modernidade, não como modismo, mas como algo
refletido e discutido, à luz de grandes pesquisadores
e estudiosos. De acordo com esse novo encaminhamento, percebo que damos mais espaço para nossos
alunos participarem ativamente do processo de construção do sistema representativo da escrita, cabendo
ao professor intervir a todo o momento, de forma
consciente, visando ao desenvolvimento das crianças.
Sei que não é fácil realinhar nossa prática pedagógica às várias conclusões teóricas a que os pesquisadores chegam, porém é necessário. Então, à medida
que estudamos e assimilamos novos conhecimentos,
conseguimos reformular e renovar nossa prática,
passando a compreender melhor as etapas iniciais da
aquisição da escrita, atuando de forma mais crítica
e coerente e respeitando as necessidades de nossos
alunos. Não podemos nos colocar como simples observadores do que a criança produz graficamente,
pois ela não conseguirá, sozinha, descobrir muitos
dos aspectos convencionais da língua escrita. Também
não devemos nos prender àquilo que consideramos
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correto, conforme padrão de julgamento adulto (preso ao tradicional). Devemos, sim, encontrar um meio
termo para criar condições propícias para que a criança aprenda, estimulando sempre suas tentativas de
expressão, atuando como seu interlocutor, criando um
ambiente de descobertas e grandes conquistas.
Para que essas mudanças ocorram adequadamente, precisamos estudar periodicamente, trocar experiências com colegas e coordenadores sobre nossas
práticas, refletir e realinhar pontos positivos e negativos, questionar se realmente toda a mudança está
surtindo resultados e quais resultados são esses.
No começo, a criança não faz suas tentativas
de escrita muito próximas às convenções da língua,
mas, aos poucos, cria as condições necessárias e,
com o nosso apoio, acaba estabelecendo relações de
forma natural. Então, cabe a nós, professores, mediar
e controlar esse processo evolutivo, valorizando, encorajando e sempre dando o suporte necessário às
manifestações de expressão da criança, tendo claro
que o erro faz parte da construção das hipóteses e
de um “código” de comunicação através do qual podemos inferir o quanto essa criança está evoluindo.
Podemos até mesmo dizer que o erro é o momento
mais rico para nossa tomada de decisão. Ao percebêlo, passamos a ser interlocutores da criança à medida
que procuramos saber e entender tudo o que ela quis
representar ou escrever (do modo dela), e, gradativamente, podemos fornecer informações necessárias
sobre a língua escrita. É como dar alimento à criança
quando ela tem fome, e não a todo o momento, saturando-a de comida sem sabor.
Todas essas mudanças geraram, acredito que
não só em mim, mas em muitos profissionais, ansiedade, preocupação e expectativas sobre o resultado.
Muitas vezes me perguntei: Como será que as crianças
vão sistematizar o código escrito sem uma seqüência
única determinada por nós? O que é alfabetizar, hoje?
Como devo atuar em sala? O que fazer para que meus
alunos descubram a escrita e aprendam a ler o mundo? Como organizar o ambiente e o espaço escolar
para que tudo isso aconteça de forma natural? Dessas
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reflexões, ficou claro que primeiro eu deveria levar as
crianças a se interessarem pela escrita, para depois,
então, conduzi-las a se apropriarem do nosso sistema
de escrita, que é alfabético-ortográfico, mostrandolhes como usar socialmente essa escrita, uma vez que
não se escreve mais sem função social, e tudo deve ter
significado. A criança deve conviver com práticas reais
de leitura e escrita e estar sempre em contato com
livros, jornais, revistas, enfim, com todo material de
leitura que circula na escola, em casa e na sociedade
de modo geral. Precisamos proporcionar aos nossos
alunos o exercício dessas práticas de leitura e escrita,
utilizando diferentes gêneros textuais, para que eles
adquiram condições de agir sobre o mundo e dizer
sobre esse mundo. Não se acredita mais apenas no
treino para o domínio do código escrito — estatísticas
comprovam a grande massa de analfabetos funcionais
que as escolas têm formado. O Brasil ocupa uma das
piores posições nesse aspecto, se comparado com
outros países. O que se quer com a criança é que ela
aprenda a pensar, organizando perguntas e respostas, argumentando e explicando suas idéias, que seja
capaz de se expressar em diferentes situações com
segurança e desenvoltura.
Essas práticas estão muito presentes no material, pois todas as pesquisas solicitadas, para realização
em casa ou feitas na escola, propõem o momento da
oralidade, do relato do que cada um descobriu, onde
descobriu, com quem o fez. Cabe-nos, então, constituir
esse espaço, mediar e organizar as idéias. O que faço:
peço que todos relatem ao grande grupo sua pesquisa
e vou registrando no quadro as idéias principais, para,
posteriormente, criar o texto coletivo e passá-lo para
uma folha maior (papel bobina), que exponho na sala
para as crianças lerem, sozinhas e comigo (para retomarmos o que pesquisamos), criando, assim, mais um
ambiente alfabetizador, onde elas mais ou menos sabem o que está escrito naquele “amontoado” de letras.
Uma vez que ajudam na construção do texto, elas vão
fazendo suas relações e criando hipóteses para leitura
e escrita. Minha atribuição nesse momento é de escriba, registrando e organizando as idéias das crianças e
as minhas também.
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Logo que o ano começou, nos primeiros dias de
aula, percebi que as crianças também estavam ansiosas para fazer uso efetivo da leitura e escrita. Os olhinhos brilhavam e buscavam meios para ler e escrever.
As primeiras tentativas de escrita foram difíceis, pois
elas a todo o momento falavam: “Como escreve? Eu
não sei, me ajude”. Nessa hora percebi que precisava
ajudá-las criando algo que facilitasse essas tentativas
de produções espontâneas e minhas orientações sobre
a escrita e leitura das palavras deveriam ser simples.
Então, fomos construindo, à medida que a turma sentia necessidade, as famílias silábicas. Inicialmente, cada criança recortou e colou uma letra e, ao
final, fixamos todo o alfabeto na parede. No final da
aula, realizávamos leitura em voz alta, formávamos
palavras, relacionávamos com os nomes das crianças
da turma e fazíamos brincadeiras. Com isso, notei
que rapidamente elas passaram a perceber melhor as
relações que envolviam a escrita das palavras, desafiando-se cada vez mais em suas tentativas de escrita
espontânea. Observei, também, que ficaram mais confiantes e autônomas, tendo, diante de si, um suporte
de letras que elas sabiam serem necessárias para a
escrita. Passou a ser freqüente as crianças pararem
diante desse alfabeto para me questionarem sobre
suas escolhas. Ali, eu (e muitas vezes outras crianças
que se antecipavam a mim as conduzia a refletirem
sobre as palavras da língua, levando-as a observarem
as repetições de letras, as combinações possíveis, as
quantidades, as semelhanças entre as partes orais e
escritas, os pedaços iguais e os diferentes, etc. Cito
alguns exemplos de atividades do material didático
que favoreceram esse trabalho:
— escrita do nome MOSQUITO, texto de Cecília
Meireles presente no material didático;
— escrita do nome da professora;
— o que minha professora faz.
Em muitas das atividades realizadas no início, eu
era a escriba das crianças, como aconteceu no álbum
de rimas dos nomes de cada um da turma. As crianças
e eu construímos a rima; eu escrevia no quadro a rima
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que cada criança deveria copiar.
Como estávamos trabalhando várias atividades
com os nomes das crianças da turma, montei em sala
um quadro de pregas onde as crianças passaram a
guardar os crachás com o nome. Criamos, assim,
mais um elemento para leitura, pois todos os dias as
crianças observavam quem estava faltando e identificavam os nomes dos amigos, facilitando com isso a
realização de várias atividades solicitadas no material,
as quais eles conseguiam fazer, de forma autônoma e
independente, sem que eu escrevesse no quadro. São
exemplos dessas atividades:
— corrida dos nomes;
— bingo dos nomes;
— o nome da professora;
— agenda telefônica.
Aos poucos, as crianças foram se sentindo mais
confiantes, pois estavam conseguindo fazer algumas
atividades de escrita “sozinhas”, e, de minha parte,
observava as relações que faziam, ajudando-as e
orientando-as sempre que necessário, procurando, a
partir de suas produções, montar e desmontar palavras, para analisar, comparar e classificar, resolvendo
situações de dificuldade em que se encontravam para
escrever. Assim, havia uma finalidade comunicativa
real e imediata.
Então passei a ler com a turma tudo o que escrevia no quadro, sempre solicitando a ajuda das crianças
na escrita, como também passamos a criar textos coletivos a partir de várias atividades do material, como
a centopéia, a dobradura da baleia, uma atividade de
condutas e o aniversário de nossa Cidade; enfim, tudo
passou a ser motivo para escrevermos e colocarmos
exposto na sala, sempre criando um mural novo, aliás,
uma novidade que as crianças correm contar aos pais.
Com isso, as visitas dos pais à sala de aula tornou-se
habitual, o que serviu para eles compreenderem melhor como acontecem as atividades na escola.
Gostaria de salientar que a mudança ocorrida no
material de Linguagem também influencia o encaminhamento metodológico de todas as demais ativida-
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des — Matemática, Condutas Psicomotoras, Descobertas Sociocientíficas. Em todas as atividades, exploro a
expressão oral e escrita. Foi o que aconteceu com uma
atividade de Matemática — a agenda telefônica, quando criei com as crianças uma agenda completa com
os telefones de todos os amigos da sala. Usamos o
alfabeto móvel, montamos a seqüência, uma letra em
cada folha, e as crianças buscavam os telefones dos
amigos (conforme a letra inicial) que fixei nos crachás
no quadro de pregas. Foi uma atividade produtiva,
repleta de significado para elas e com grande função
social de comunicação; representou o fechamento do
primeiro bimestre.
Os jogos do material também me ajudaram
bastante no encaminhamento das atividades, pois,
brincando, as crianças mostravam tanto o que já
conseguiam fazer quanto o que ainda precisavam de
ajuda (orientação). Sempre retomava os jogos, então
disponibilizei em sala várias caixas para guardá-los e,
ao final da aula, tínhamos o momento das brincadeiras
livres.
Ampliei um jogo da memória, buscando brincar
com todos para observar de perto as relações que
cada um fazia durante a leitura das palavras, fazendo
intervenções sempre que necessário. Para o jogo dos
jeitos (sentimentos) e das caretas, preparei uma caixa
de televisão montando um cenário para apresentações. Virou um teatro de fantoches, e a todo momento
as crianças se organizavam para fazer apresentações,
propondo quem seria a platéia, quem criaria a história, e assim por diante. Apareceu até quem ia filmar
e fotografar, enfim, mais um momento prazeroso para
se expressar.
Com toda essa mudança no encaminhamento
do processo de aquisição do código escrito, percebi
que deveria explicar mais detalhadamente aos pais
como estávamos trabalhando em sala. Aproveitei a reunião bimestral não só para relatar algumas experiências,
como também para explicar a importância da lição de
casa, principalmente em relação às pesquisas, pois
essas atividades serviam para um momento de descobertas e de relato (oralidade), em que as crianças, ao
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chegarem à escola, teriam de fazer, contando ao grupo
o que pesquisaram. Esclareci que o resgate de conteúdos prévios e a contribuição com novos dados e curiosidades sobre o assunto são elementos fundamentais
para a construção de textos significativos. A criança
percebe que o que ela falou está sendo registrado.
E isso é muito diferente de fazer cópia de palavras
isoladas. Orientei que nesse momento em que eles
relatam eu sou a escriba, organizando as descobertas
e registrando-as no quadro para, depois, registrar em
papel bobina e expor na sala para leitura. Continuei
explicando que o registro dessas pesquisas deveria ser
simples, para que a criança conseguisse falar à turma
realmente tudo o que descobriu. Senti a necessidade
de falar que cada criança tem seu ritmo no processo e
que caberia a nós ajudá-la e compreendê-la, sempre
valorizando seus progressos.
Hoje, planejar as seqüências didáticas para o
trabalho em sala de aula passou a ser um momento
de pesquisa, de leitura, pois sempre estou em busca de
estratégias originais e criativas que facilitem o processo,
tornando-o mais significativo, produtivo e inovador.
Percebi com toda essa mudança que meus alunos estão com os olhinhos atentos e brilhando para
todo tipo de informação, seja ela verbal ou não, como
também menos ansiosos com o processo; como eles
dizem: “É errando que se aprende”. Também fiquei
surpresa com a rápida evolução que esse encaminhamento impõe ao meu trabalho, pois quem determina
o ritmo é a criança. Tive de me habituar com a idéia
de que não teria mais todo mundo fazendo a mesma coisa ao mesmo tempo, o que me era permitido
quando trabalhava com cópias, seqüências silábicas
e exercícios preestabelecidos. Agora, a avaliação tem
novo significado, pois serve, de fato, para me alertar
a todo momento sobre cada uma das crianças e direcionar meu trabalho não somente para aquelas que
ainda necessitam de maior orientação mas também
para aquelas que já foram muito além. A sala tornouse um ambiente muito colaborativo e as produções das
crianças são algo de que elas têm grande orgulho. E,
obviamente, eu também.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo buscou descrever o que é e como
se realiza a proposta de alfabetizar letrando, que,
conforme Soares, significa orientar a criança para que
aprenda a ler e a escrever, levando-a a conviver com
práticas reais de leitura e de escrita: substituindo as
tradicionais e artificiais cartilhas por livros, revistas, jornais, enfim, pelo material de leitura que circula na escola
e na sociedade, e criando situações que tornem necessárias e significativas as práticas de produção de textos.
Sobre o relato da professora, é possível perceber a necessidade de sistematizar o processo de
alfabetizar, porém num contexto real e imediato de
produção de textos escritos. A reflexão sobre rimas,
por exemplo, permite contar, segmentar, observar, isto
é, fazer reflexões oralmente e usando as formas escritas das palavras. Nada disso, contudo, está descolado
das práticas sociais de uso da escrita, pois as crianças
estão num contexto de produção de um álbum de rimas. Assim, a prática alfabetizadora considera o texto
como primeiro objeto de estudo a ser trabalhado em
sala de aula, destacando-se como ponto de partida e
como ponto de chegada, ou seja, o ensino das letras,
sílabas e frases partiu dele.
Deve-se ressaltar que cabe à escola e aos professores alfabetizadores analisarem, para cada realidade, quais serão as condições garantidoras dessas
aprendizagens, considerando-se as experiências prévias das crianças com a escolarização e seu nível de
letramento, ou seja, sua familiaridade com a cultura
escrita. A esses profissionais cabem perguntas como:
Quem são as crianças que temos este ano? Como trabalhar acreditando que toda criança pode aprender a
ler e escrever? Que intervenções são necessárias para
dar condições às crianças deste ano o acesso às atividades propostas no material didático?
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Autoras
Rosane de Mello Santo Nicola — mestre em Educação, graduada em
Letras (UFPR) e especialista em Gestão de Pessoas (FAE); professora da
PUC-PR e Faculdade Dom Bosco; coordenadora e professora de cursos
de especialização em Desenvolvimento Editorial e Lingüística Aplicada ao
Ensino; autora de livros didáticos de Ensino Fundamental e Médio; coordenadora científica do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Educação (CPDE) e do Setor de Desenvolvimento e Capacitação em Tecnologias
Educacionais do Grupo Dom Bosco.
Maria Lúcia G. G. Castellano — diretora do Centro de Educação Infantil do Grupo Dom Bosco, em Curitiba; psicóloga pela Universidade Tuiuti
(PR), especialista em Educação Infantil, Psicomotricidade e Educação Infantil; autora da coleção de Educação Infantil Dom Bosco.
Maria Cláudia Söndahl Rebellato — graduada em Pedagogia (UFPR),
pós-graduada em Alfabetização pela Universidade Tuiuti (PR); psicodramista pela Contexto de Curitiba; co-autora do livro Lições Curitibanas,
material de alfabetização da Prefeitura Municipal de Curitiba; autora de
material didático de Português, 1a série do Ensino Fundamental, da Editora
Dom Bosco; atuou 23 anos como professora-regente e coordenadora pedagógica de Ensino Fundamental; pesquisadora do CPDE na Editora Dom
Bosco.
Cláudia Moraes Ormeneze Janoski — graduada em Pedagogia com
habilitação em Educação Infantil (UFPR); pós-graduada em Educação e
Interdisciplinaridade e Ensino Superior pela Faculdade Espírita; 15 anos de
experiência em sala de aula com turmas de Jardim II (crianças de 4 a 5
anos) e Jardim III (crianças de 5 a 6 anos); professora da Educação Infantil
no Colégio Dom Bosco de Curitiba.
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Referências
ABAURRE, M. B.; CAGLIARI, L. C. Textos espontâneos na 1ª série: evidência
da utilização, pela criança, de sua percepção fonética da fala para representar
e segmentar a escrita. Cadernos Cedes. São Paulo: Cortez, 1988.
CAGLIARI, L. C. A respeito de alguns fatos do ensino e da aprendizagem da
leitura e da escrita pelas crianças na alfabetização. In: Alfabetização e letramento: perspectivas lingüísticas. ROJO, R. (Org.), Campinas: Mercado das
Letras, 1998.
KLEIMAN, A. B. (Org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado das Letras, 1995.
KLEIN, L. Alfabetização e letramento: considerações sobre a prática pedagógica no ensino de língua. In: ROMANOWSKI, J.; MARTINS, P.; JUNQUEIRA, S.
(Orgs.). Conhecimento local e conhecimento universal: a aula, aulas nas
ciências naturais e exatas, aulas nas letras e artes. v. 3. Curitiba: Champagnat,
2004.
PASSOS, M. Resenha de livro didático de língua portuguesa: letramento e cultura da escrita. In: Revista Portuguesa de Educação. n. 2, v. 17, Braga:
Universidade do Minho. 2004.
SOARES, M. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2005.
TFOUNI, L. V. Letramento e alfabetização. São Paulo: Cortez, 1997.
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Anotações
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SERIEDADE • COMPETÊNCIA • CONSCIÊNCIA • DEDICAÇÃO
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