MENU PRINCIPAL Alfabetizar letrando: uma proposta de aprendizagem da língua escrita CENTRO DE PESQUISA E DESENVOLVIMENTO EM EDUCAÇÃO Cláudia Janoski Maria Cláudia Söndahl Rebellato Maria Lúcia Castellano Rosane de Mello Santo Nicola MENU PRINCIPAL MENU PRINCIPAL Apresentação A crença na formação de professores, associada principalmente à sua atividade cognitiva ou intelectual, não resulta positivamente se não forem considerados os saberes dos professores, produzidos socialmente. TARDIF, 2002. O Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Educação (CPDE), em cumprimento à missão de disponibilizar soluções educacionais que contribuam com a sociedade, apresenta seu mais novo produto de apoio à formação contínua dos docentes das escolas conveniadas ao Sistema de Ensino Dom Bosco — os Cadernos do CPDE. Trata-se de Cadernos de produção científica desenvolvidos nesta instituição, com o objetivo de subsidiar a reflexão dos educadores sobre seu fazer pedagógico nas escolas, de forma que teoria e prática educacionais interajam e se encontrem na construção legítima do conhecimento. O primeiro Caderno, tratando do tema Alfabetizar letrando, surge justamente num momento em que intelectuais da educação brasileira discutem na imprensa falada e escrita a questão teórico-prática dos métodos de alfabetização. Sem buscar uma posição dicotômica desta ou daquela natureza, defende-se uma visão sistêmica, dinâmica e interativa de abordagem teóricometodológica, visto que assim é a língua — um sistema dinâmico de relações socioverbais. Essa polêmica em torno da temática da alfabetização e do letramento não representa apenas aspectos metodológicos, mas concepções de linguagem, e, nesse sentido, é de extrema importância para a educação lingüística dos educandos. Isso é o que tem estimulado a análise e a pesquisa realizadas pelos profissionais da educação que atuam no Grupo Dom Bosco. O Caderno resulta dessas reflexões, apresentadas pelas autoras no Encontro Linguagem e Letramento, promovido em Santo André (SP), em 27 de maio de 2006. Torna-se, assim, um ato coletivo, um trabalho que envolve múltiplas trocas pela necessidade de melhorar os modos de fazer e desenvolver a docência. Curitiba, 27 de maio de 2006. Lucélia Secco Diretora de Divisão Educacional da Editora Dom Bosco 3 MENU PRINCIPAL 4 MENU PRINCIPAL Alfabetizar letrando: uma proposta de aprendizagem da língua escrita Cláudia Janoski Maria Cláudia Söndahl Rebellato Maria Lúcia Castellano Rosane de Mello Santo Nicola O presente estudo tem como foco a prática alfabetizadora, visando a explicitar aspectos da noção de letramento e, com isso, ampliar possibilidades de discussão sobre o trabalho alfabetizador. Esta proposta de alfabetização pode enriquecer os modos de ver, ouvir, falar e ler o espaço escolar, além de sugerir perguntas e soluções para aspectos dessa realidade. Em razão da complexidade do tema, primeiramente, faz-se necessária uma reflexão sobre os conceitos de alfabetização, de letramento e suas relações com as concepções de linguagem; em seguida, cabe expor a importância do uso de material didático na alfabetização, suas possibilidades e limitações; paralelamente, há também o papel ou os papéis do professor, o qual assume, dentre outras, uma função interacionista — a de interlocutor alfabetizador. Para fazer a transposição teórico-prática, finaliza-se com um relato de experiência de uma professora que elabora seu pensar e sua prática sobre alfabetizar letrando. Dessa forma, espera-se buscar possíveis respostas para um desafio proposto por Soares (1998:59) — “como alfabetizar, letrando?” DISTINÇÃO ENTRE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO Ainda que alfabetização e letramento estejam inevitavelmente ligados, é fundamental distinguir esses termos, visto ser essa uma tendência entre os 5 MENU PRINCIPAL estudiosos da educação atual. Neste artigo, apresenta-se uma rápida abordagem sobre alguns aspectos considerados relevantes para o trabalho alfabetizador. Entende-se o conceito de alfabetização, em seu sentido específico, como processo de aquisição do código escrito, isto é, do sistema convencional de uma escrita alfabética e ortográfica. Dessa forma, o termo alfabetização, etimologicamente, não ultrapassa o significado de apropriação do alfabeto, ou seja, do ensino de habilidades de codificar a língua oral em língua escrita (escrever) e de decodificar a língua escrita em oral (ler). Tfouni (1997) corrobora com essa definição, caracterizando alfabetização como a aquisição de habilidades para leitura e escrita, e como as chamadas práticas de linguagem efetuadas pela escola, também denominadas escolarização. Assim, Soares (2005:15) alerta: “atribuir um significado muito amplo ao processo de alfabetização seria negar-lhe a especificidade, com reflexos indesejáveis na caracterização de sua natureza, na configuração das habilidades básicas de leitura e escrita, na definição da competência em alfabetizar”. Depreendese daí que considerar a alfabetização um processo permanente que se estende por toda a vida é confundir aquisição de língua com desenvolvimento de língua, este sim, com certeza, ininterrupto. A partir de 1985, essa distinção foi tornando-se cada vez mais clara, concretizando-se nos distintos sentidos existentes hoje entre alfabetização e letramento. Este último termo foi usado pela primeira vez por Mary Kato, em 1986, no livro No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingüística, como tradução do termo inglês literacy, que significa cultura escrita. O termo letramento passou a ser retomado em publicações posteriores, com diferentes sentidos e, embora os meios acadêmicos continuassem empregando-o largamente, só recentemente esse termo foi dicionarizado (Dicionário Houaiss, 2001). Por outro lado, o adjetivo ‘letrado’ há muitos anos aparece nos dicionários como o ‘indivíduo versado em letras, erudito’, o que não representa o sentido dado ao termo ‘letrado’ sob a concepção de letramento criada por Kato. 6 MENU PRINCIPAL O letramento pode então ser definido como o conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos (Kleiman, 1997). Soares (1998:72) também define: “letramento é o que as pessoas fazem com as habilidades de leitura e escrita, em um contexto específico, e como essas habilidades se relacionam com as necessidades, valores e práticas sociais, ou seja, é o conjunto de práticas sociais relacionadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social.” Portanto, letramento é apropriação da linguagem escrita, dos usos particulares da leitura e da escrita na sociedade, os quais dependem das experiências com a diversidade de textos produzidos em diferentes contextos de uso, com finalidades específicas e envolvendo interlocutores específicos. Por isso, o indivíduo letrado é aquele que passa a envolver-se nas práticas sociais, usando as habilidades de ler e escrever em benefício de formas de expressão e comunicação possíveis, reconhecidas, necessárias e legítimas em determinado contexto cultural. Em função disso, a utilização da escrita, em sala, precisa corresponder às formas pelas quais ela é utilizada verdadeiramente nas práticas sociais. Nessa perspectiva, a escola, muitas vezes, incorreu em graves falhas, como tomar esses dois processos — alfabetizar e letrar — de forma estanque e desarticulada, ou, pior, sobreposta, transformada em modismo por meio de práticas mecânicas que pretendem primeiro alfabetizar para depois letrar, ou, ainda, meramente proporcionar à criança os usos, considerando isso suficiente para alfabetizar. ALFABETIZAR LETRANDO Paralelamente a essa revolução conceitual ocorrida nos últimos vinte anos, encontra-se o desafio dos educadores em face do ensino da língua escrita: o alfabetizar letrando. 7 MENU PRINCIPAL Para entender essa proposta, é preciso antes entender em qual concepção de linguagem ela se baseia, pois, conforme se concebe a linguagem, assim se estrutura o ensino de língua. A língua se constitui como sistema (conjunto de regras e modos de funcionamento), mas também é atividade (conjunto aberto e múltiplo de práticas orais ou escritas, desenvolvidas por sujeitos historicamente situados). A alfabetização tradicional, por exemplo, é fruto da concepção de língua como código, sistema fixo, e, portanto, está desvinculada do texto com função social e voltada para um ensino fragmentado do trabalho com as unidades menores (letras, sílabas, palavras e textos estéreis de significados para as crianças). Por outro lado, buscando superar esses métodos tradicionais, muitos alfabetizadores voltaram-se para uma verdadeira ‘febre do texto’ (Klein, 2004), embora sem fundamentos que tomassem o texto como eixo do processo de ensino-aprendizagem da língua. O resultado foi um abandono do código e, paralelamente, um trabalho com o texto como mero pretexto para apresentar letras ou ensinar regras gramaticais. A proposta de alfabetizar letrando rompe definitivamente com a divisão entre o ‘momento de aprender’ e o ‘momento de fazer uso da aprendizagem’. Estudos lingüísticos propõem a articulação dinâmica e reversível entre ‘descobrir a escrita’ (conhecimento de suas funções e formas de manifestação), ‘aprender a escrita’ (compreensão de regras e modos de funcionamento) e ‘usar a escrita’ (cultivo de suas práticas a partir de um referencial culturalmente significativo para o sujeito). Dessa forma, faz-se a apropriação dialética dos dois pólos (sistema e atividade), contextualizando o trabalho simultâneo com textos e as unidades menores. No trabalho com os textos, estabelecemse as condições prévias para níveis mais elevados do letramento da criança, as habilidades de uso dos instrumentos de escrita e de manipular os suportes. Ao mesmo tempo, o domínio do sistema de escrita (alfabético com convenção ortográfica) ocorre por meio de jogos e do alfabeto móvel, por exemplo. Para 8 MENU PRINCIPAL tanto, é preciso que as práticas pedagógicas passem de iniciativas meramente instrucionais para intervenções educativas. É imprescindível que o alfabetizador compreenda a criança para com ela estabelecer uma relação dialógica, significativa e compromissada com a construção do conhecimento. A teoria da enunciação bakthiniana propõe o trabalho com gêneros textuais, sejam orais (recado, convite, entrevista, etc.), sejam escritos (adivinha, bilhete, legenda, fábula, etc.), permitindo a criação de situações reais de ensino, capazes de responder às razões da leitura e da escrita, e quebrando a artificialidade da alfabetização tradicional. Nessa teoria, entende-se gêneros textuais como formas socialmente realizadas e estabilizadas por sua circulação histórica e social. Assim, a aquisição da língua escrita estará atrelada à interação com o outro, às relações socioverbais. Esse é o compromisso do letramento na escola e, se ela não cumprir adequadamente sua função, não terá educação voltada para a construção da cidadania. Para isso, é preciso um ensino de língua que privilegie sua natureza funcional e interativa, que proponha práticas comunicativas para agir sobre o mundo e dizer o mundo. USO DO MATERIAL DIDÁTICO: POSSIBILIDADES E LIMITAÇÕES O que se pode esperar de um material didático? Trata-se de um suporte tecnológico que se destina por natureza ao letramento escolar das práticas sociais orais e escritas. Ele se constitui como mediador entre a produção científica e a escola. O professor, que também deve atuar como mediador, muitas vezes assume o papel de ‘aluno’ na interação com os materiais didáticos, que, por vezes, adquirem a função de responsáveis pela atualização docente. Bräkling, citada por Passos (2004:212), destaca o lugar que os materiais didáticos ocupam na prática docente: “por um lado, constitui-se referência organizadora do currículo escolar, selecionando conteúdos, determinando sua progressão, definindo estratégias de 9 MENU PRINCIPAL trabalho e metodologias de ensino; por outro, mostrase como referência teórica fundamental, indispensável e, por vezes, única, na tematização dos conhecimentos e (in)formação do professor sobre os aspectos da língua e da linguagem envolvidos em seu trabalho.” Sabe-se que um bom material didático pode ser um excelente instrumento de formação continuada do professor em serviço. As orientações metodológicas e as orientações ao professor dispostas nas páginas das atividades representam um rico material de formação, desde que respeitem seu interlocutor e não se banalizem, perdendo-se em orientações desnecessárias. A partir daí, é possível organizar uma gestão do trabalho docente voltada para o aperfeiçoamento em termos de formação e atingir um bom uso desse material didático; também é possível conduzir um processo de formação coletiva, objetivando um consenso. A equipe de docentes pode ter excelente nível, porém visões muito diferentes do processo de alfabetização. O uso de um material didático possibilita um direcionamento comum, que requer um consenso possível, beneficiando, nesse caso, não só o aluno mas também a escola, que acaba por adotar uma concepção mais clara de ensino de língua, e a família, que passa a estar inserida no processo de forma ativa. No caso específico da proposta do material didático para a Educação Infantil desenvolvido pela Editora Dom Bosco, há instrumentos que proporcionam essa condição de porta-voz de uma proposta em que se alfabetiza letrando. O primeiro deles é a criação de personagens que evoluem, modificando suas características ao longo dos anos, tornando-se o ponto de partida para o desenvolvimento de todas as áreas. Por meio deles, pode-se explorar as relações sociais, afetivas e lúdicas, indispensáveis e partícipes dos processos voltados à linguagem oral, à leitura e à escrita. Trata-se de imagens concebidas para serem exploradas como linguagem, e não como meras ilustrações coladas aos textos. Isso revela a forte relação entre as estratégias editoriais e as didático-pedagógicas no material. 10 MENU PRINCIPAL Os conteúdos contextualizados às atividades sociais e aos interesses da criança propõem práticas que integram inúmeras áreas de conhecimento, orientando a elaboração das vivências por meio de registros das idéias, inicialmente por desenhos, avançando gradativamente para registros mais significativos e expressivos. A proposta de registro de algumas atividades que solicitam a participação dos pais ou familiares tem por objetivo criar um vínculo harmônico, em que o processo “a três mãos” se propõe eficaz, permitindo ao professor, ao aluno e à família uma parceria importante para os resultados almejados. O material gráfico da Educação Infantil apresenta-se como referência didática ao professor e instrumento de registros pertinentes ao que está sendo vivenciado e aprendido pela criança. Não se apresenta de forma auto-explicativa e sim como gerenciador de aprendizagem significativa. Sua proposta desafia a criança à pesquisa, às descobertas, à elaboração e organização de fatos e idéias, favorecendo a construção de sua autonomia. A clareza nas práticas desenvolvidas deve fazer parte do direcionamento realizado pelo professor em suas orientações, porém não deve ser impedimento ao intercâmbio de experiências, debates e construções coletivas de conhecimento por meio da introdução de outras práticas ajustadas a um grupo específico de crianças. O material oferece ainda, em sua proposta, diferentes oportunidades de aprendizagem, envolvendo a leitura e a escrita como objeto social do conhecimento, apresentando-se como constante promotor do letramento. Sugere seqüências didáticas bastante pertinentes e claras, buscando facilitar o trabalho alfabetizador, cabendo destacar, entretanto, que, como todo material didático, apresenta limitações ao promover o letramento. Isso porque esse recurso é um portador de gêneros textuais que, após reproduzidos nele, deixam automaticamente de ser originais para se tornarem simulações dos usos sociais. Uma capa de revista, por exemplo, é reproduzida para ser explorada em sala, mas fatalmente sofrerá alterações, 11 MENU PRINCIPAL como a redução do tamanho e o isolamento de todos os demais componentes que compõem efetivamente uma revista, caracterizando-a como suporte. Portanto, por mais que o material didático promova o trabalho com gêneros discursivos, compete ao professor não só levar à sala de aula livros, revistas, jornais e outros textos originais, para que a criança tenha acesso real aos gêneros, mas, principalmente, levar o aluno ao encontro dos textos nos locais originais onde cumprem seus papéis (placas de identificação, cartazes, murais, bancas de revistas, bibliotecas, bilheterias, secretarias, etc.). Portanto, alfabetizar letrando pressupõe levar a criança para além da sala de aula e, ao mesmo tempo, recolher para dentro da sala todo conhecimento que a criança traz de seu meio. Também se alfabetiza letrando quando se analisam os bilhetes, as figurinhas, as embalagens que acompanham o lanche, as instruções que chegam com as caixas de brinquedos e jogos, as fotos familiares, etc. O trabalho de planejar seqüências didáticas próprias também não pode ser esquecido pelo professor, visto que cada aprendiz tem sua própria história de aquisição e de reelaboração de hipóteses de leitura e escrita, e, por conseguinte, as intervenções docentes são muito próprias em cada sala, mais especificamente, para cada criança. Fica evidente que, por melhor que seja o material didático, o professor desempenha, dentre outros papéis, o de orientador e co-autor das atividades a serem realizadas pelas crianças nesse suporte. UMA REFLEXÃO SOBRE O PAPEL DO PROFESSOR ALFABETIZADOR No intuito de ampliar a reflexão sobre o papel atual do professor na prática alfabetizadora, faz-se necessário rever suas ações passadas, analisando os procedimentos do alfabetizador em diferentes épocas. Não se pretende aqui fazer uma análise histórica detalhada desse processo; a intenção é pontuar alguns momentos considerados relevantes para caracterizar a trajetória do trabalho alfabetizador. 12 MENU PRINCIPAL Primeiramente, pode-se dizer que, durante muito tempo, nas classes de alfabetização, o papel do professor consistiu exclusivamente em seguir uma cartilha, desrespeitando os conhecimentos prévios dos alunos bem como suas características individuais, e ministrando ‘com maestria’ o ensino das letras e famílias silábicas com fim em si mesmas. Nesse método tradicional, também era mais fácil avaliar o aluno: o professor preparava as provas selecionando as palavras já trabalhadas, conforme seqüência contemplada no livro de alfabetização. Para os pais, em casa, bastava retomar com as crianças as letras ensinadas na escola. A esse respeito, Cagliari (1998:65, 66) analisa: “O método das cartilhas não leva em consideração o processo de aprendizagem. Quando diz que faz a verificação da aprendizagem através de ditados, provas, etc., na verdade, está verificando não se o aluno aprendeu ou não, mas se o aluno sabe responder ao que o professor pergunta, reproduzir um modelo que lhe foi apresentado, demonstrar que o professor ensinou direito. O que se passa na mente do aluno e as razões pelas quais ele faz ou deixa de fazer algo são coisas que o método não permite que o aluno manifeste.” Os alunos que não aprendiam eram submetidos a repetições exaustivas. Se ainda assim não conseguissem aprender, sem o menor constrangimento, reprovavam e repetiam toda aquela mesma seqüência no ano seguinte, e no outro, e no próximo, se fosse preciso. Um dia, após várias reprovações, num insight, o aluno, enfim, aprendia a ler e escrever, podendo então ser promovido para a série seguinte. Parecia que esse insight, arbitrariamente, não dependia de quaisquer interferências do professor, da família ou do convívio social do aluno, mas acontecia isoladamente, por acaso. Essa era uma época mais fácil de organizar a sala de aula, pois os alunos ficavam repetidas vezes reproduzindo palavras, fazendo da aprendizagem uma seqüência de coordenação motora e de respostas 13 MENU PRINCIPAL previsíveis. Com atividades assim o ambiente de ensino ficava silencioso e o controle da turma era mantido. Avaliando-se esse papel do professor, pode-se afirmar que era o de um seguidor passivo, seguidor de uma ‘receita infalível’ que servia para qualquer turma, para qualquer época e para qualquer aluno. Metodologicamente, o ensino da escola tradicional é autoritário e rígido, pois acredita que, se existe uma essência humana, o ensino pode ser igual para todos, numa ordem lógica e preestabelecida. Após as décadas de 1960 e 1970, com a disseminação de tecnologias de informação e de comunicação e o processo de globalização, surgiram novas linguagens. Estudiosos contemporâneos afirmam que essas transformações criam uma nova cultura e modificam as formas de produção e apropriação dos saberes. Portanto, os alunos já não eram mais os mesmos, e, nesse contexto, os professores precisaram adequar-se a um novo papel em sala de aula. Foi quando surgiram as teorias do construtivismo póspiagetiano, difundidas na área de alfabetização pela argentina Emilia Ferreiro, aluna de Jean Piaget, que expandiu as idéias de seu mestre para o campo da escrita e da leitura. Concluiu que a criança descobre as regras da língua escrita (ler da esquerda para a direita, entender que as letras reproduzem a fala) antes mesmo de ir à escola, e que grande parte das crianças se alfabetiza sozinha, se estiver imersa num ambiente alfabetizador. Ferreiro e Ana Teberosky descobriram que toda criança passa pelas mesmas fases ao aprender a ler e escrever, e que essas fases determinam o tipo de erro que cometem. Essas descobertas vêm revolucionando as formas mais tradicionais de alfabetização, baseadas em cartilhas que apresentam apenas fragmentos da língua escrita. Para se modernizarem, as escolas foram adaptando-se ao construtivismo, mas, infelizmente, faltou embasamento teórico para muitas delas. Nesse contexto, o papel do professor ficou em segundo plano, considerando que não precisava interferir no processo de alfabetização, e as aulas ficaram insipientes, sem intervenções diretas no processo da criança; isso porque 14 MENU PRINCIPAL o professor nessa fase não tinha clareza sobre como fazer o exercício da mediação e da intervenção que corresponde ao que, nessa teoria de aprendizagem, denominou-se valor pedagógico dos erros e da avaliação. Muitas escolas beiraram o caos e os alunos, passando o segundo semestre, ainda não pareciam interessados no processo de aquisição da leitura e escrita; e, numa tentativa de “salvar” o ano de alguns alunos, muitas professoras voltaram aos métodos tradicionais de alfabetização. Assim, o construtivismo ficou conhecido por alguns estudiosos como um processo de ensino que não deu certo. Foi essa a conseqüência da falta de orientação ao docente para que ele pudesse exercer seu papel mais importante — o de promotor da interação aluno / objeto de conhecimento. Esse papel requer que o docente encoraje o aluno através de atividades que neste causem desequilíbrio ou o coloquem em ação, não só apresentando conteúdo e atividades, mas questionando, interrogando e fazendo o aluno pensar por comparação, seriação, classificação, causalidade, reversibilidade, etc. No caso de alfabetizar letrando, que é a proposta de aprendizagem de Soares (2005) e permeia o material Dom Bosco, trata-se aí do resgate do papel do professor como mediador, recuperando sua figura de elo entre o educando e a matéria de conhecimento, interferindo no processo sem desviá-lo nem desvirtuálo. A interação aluno-conteúdo é um diálogo alunomundo mediado pelo professor e por outras pessoas. A mediação é um dos grandes conceitos de Vygotsky e foi elaborada no contexto sociohistórico, portanto pertence à crítica dialética. Nesse contexto, faz-se necessária uma retomada do papel do professor alfabetizador cujo desafio é letrar os alunos por meio do trabalho com atividades de leitura e escrita, executadas no plano da prática social, portanto em situação de dialogicidade; depois são internalizadas ou começam a ocorrer internamente e, posteriormente, são reconstruídas em nível mental 15 MENU PRINCIPAL (lógico). Esse processo interpessoal é transformado em processo intrapessoal; assim, o que era executado em nível social entre pessoas passa a ser executado no interior da pessoa, e essa passagem é o resultado de uma longa série de eventos ocorridos ao longo do desenvolvimento do indivíduo. Pretende-se, com isso, reafirmar algo que já foi citado neste artigo — o caráter individual de aquisição da língua escrita de cada criança, que terá de elaborar e reelaborar suas hipóteses a partir da interação com o outro. A criança constrói uma série de esquemas conceituais que não podem ser atribuídos apenas à influência do meio. São idéias próprias que ela testa e se refletem no nível das operações mentais. Enfim, é na cabeça da criança que se dá a alfabetização. Isso não significa, porém, que o professor não tenha que exercer um importante papel de mediador e intervir em suas hipóteses, fazendo-a refletir sobre seus usos de língua, mostrando-lhe o complexo sistema de convenções da língua escrita, que representa a especificidade do processo de alfabetização. Isso sem estressá-la com atividades repetitivas, pois alfabetizar não é repetir um modelo até que se aprenda o que ele quer dizer. Alfabetizar é compartilhar as dificuldades do aprendiz, analisá-las, entendê-las e sugerir alternativas e soluções. Por ser um processo multidimensional, complexo, a alfabetização tem sido vítima de abordagens simplistas e formalistas da didática instrumental, o que vem gerando frustrações e insegurança a muitos professores brasileiros, que não parecem dispor de autonomia para tomar decisões de intervenção com a criança, ou para avaliar suas hipóteses e fazê-la avançar. Há um medo — ME (MA MI MO MU) DO (DA DE DI DU)! Medo de quê? Medo de não conseguir alfabetizar. Então, como forma de garantia, lançam para os alunos a silabação, método que já conhecem e lhes traz segurança. Há também o medo dos pais quando eles, na porta da sala, perguntam, questionam o trabalho. O professor então, sem garantias de resultado, volta rapidamente para os passos da cartilha tradicional. Medo 16 MENU PRINCIPAL de errar, errar no processo de aprendizagem, errar por não estar acostumado a mudar o foco, antes centrado no ensino e agora transferido para a aprendizagem que cada aluno consegue realizar. A autonomia para criar seqüências didáticas que respeitem o tempo e a elaboração, por parte da criança, exige conhecimentos específicos do docente para promover, por exemplo, maior nível de letramento. Tome-se, por exemplo, a habilidade de manipular suportes e instrumentos de escrita usuais na escola. Como trabalhar com as crianças para dar-lhes esse grau de letramento? O papel de mediador aqui requer alguém não só versado nas práticas sociais, mas também capaz de elaborar novas atividades em sala, superando o paradigma de alfabetização tradicional. Relacionam-se abaixo aspectos que podem sugerir exemplos dessas atividades: — levar a criança a observar como se dá a seqüenciação do texto nas páginas (frente e verso, página da esquerda e página da direita), a numeração das páginas e a localização da informação; — explorar como se dispõe o escrito na página (margens, parágrafos, espaçamentos, títulos e cabeçalhos); — explorar como se relacionam o escrito e as ilustrações; — mostrar como se encontra o nome de um livro e seu autor, a editora e a data da publicação; — explicar como se dá a integração da ilustração com o texto do material didático que a criança usa; — discutir com as crianças qual a melhor maneira de se dispor um texto num cartaz (tipo de letra, tamanho, material a ser usado, etc.). Essa nova forma de alfabetizar letrando requer do professor que ele perceba as necessidades de sistematizar o uso, refletindo com a criança sobre este, para garantir que ela saiba usar os objetos de escrita presentes na cultura escolar. Na verdade, o medo existe por não se saber como proceder. Buscam-se receitas, mas a má notícia 17 MENU PRINCIPAL é que elas não existem; e a boa notícia é que há indicações de caminhos, e que cada um poderá descobrir o seu. Sobre o medo de não conseguir alfabetizar, o professor pode perguntar-se: Os alunos são curiosos? Eles gostam de novidades? Eles gostam de participar? Eles gostam de compartilhar? Então, esse é o primeiro passo. É preciso transformar a sala de aula num espaço onde seja possível fazer descobertas, elaborar e aprender aquilo que é necessário. A esse respeito, Cagliari (1998:64, 65) orienta: “As crianças adoram aprender e, se dermos chances a elas, aprenderão seja o que for. [...] A escola não precisa se preocupar muito com a aprendizagem: isto as crianças farão por si. Precisa preocupar-se com dar chances às crianças para vivenciarem o que precisam aprender; sentirem que o que fazem é significativo e vale a pena ser feito. Sem esse interesse realmente sentido pelas crianças, as atividades da escola podem não passar de um jogo, de um brinquedo, de uma obrigação, que alguns podem realizar e, outros, inconformados, deixar de lado.” Permitir o erro não é deixá-lo sem corrigir, mas estabelecer com a criança uma correção textual-interativa, enxergar como uma oportunidade de aprendizagem, reconhecer na escrita não-convencional das crianças os caminhos que elas estão percorrendo para se apropriar da escrita. É proporcionar na sala de aula um espaço onde a pergunta seja estimulada e lembrar-se de que, para cada pergunta, quem a faz tem uma intenção de resposta. Ou seja, o aluno que pergunta sinaliza ao professor em que ponto ele está da aprendizagem e demonstra interesse pelo que está sendo ensinado. Abaurre (1988:14) aponta: “O grande desafio está em sermos capazes de interpretar todas as hipóteses que fazem as crianças no momento inicial da aquisição da escrita, para trabalhar a partir dessas hipóteses na busca da escrita convencional socialmente valorizada”. Além desse papel, é importante preservar a auto-estima principalmente daquelas crianças que 18 MENU PRINCIPAL ainda não fazem as conexões esperadas para sua faixa etária. Como? Aproveitando as sugestões de interação entre elas, pois, muitas vezes, as crianças aprendem com um colega o que o professor tentou explicar e não conseguiu. Nesse sentido, produções coletivas em pequenos grupos e em duplas compensadas (um aluno que sabe mais em conjunto com outro que sabe menos) dividem com o professor a tarefa que antes cabia somente a ele. Ao trabalhar com o(s) outro(s), as perguntas e respostas das crianças começam a ser compartilhadas, socializadas, neutralizando o papel de um professor-sabe-tudo, que passa agir como orientador e coordenador de ambientes de aprendizagens colaborativas. Também é fundamental que restrições e negações sejam seguidas por explicações. Uma criança precisa entender um não, precisa compreender, precisa refletir, enfim, precisa saber as razões e os motivos para o que lhe foi negado. Sobre essa forma de fazer acontecer o processo de aprendizagem, Cagliari aconselha (1998:66, 67): “Por outro lado, aquele aluno que tem seu espaço para revelar suas hipóteses, através de sua iniciativa, em trabalhos escolares, parece, no começo, em meio a um enorme caos. Mas, aos poucos, vai aprendendo a organizar seus conhecimentos e a adequá-los à realidade e, aos poucos, tudo vai achando seu lugar e sua razão de ser, de tal modo que esse aluno acaba aprendendo não só o que deve, em termos de conteúdo, mas também aprende a aprender: aprende como ele, do jeito que é, deve fazer para construir seus conhecimentos. A escola precisa se preocupar antes com a aquisição do processo de aprendizagem e depois com os resultados obtidos pelas crianças.” RELATO DE EXPERIÊNCIA Buscando evidenciar os aspectos práticos desta proposta, registra-se a seguir um relato de experiência e, no intuito de expressar exatamente o teor de relato pessoal, repleto de significações e subjetividade, manteve-se aqui o uso da primeira pessoa do discurso, que 19 MENU PRINCIPAL representa a professora alfabetizadora do Grupo Dom Bosco, relatando suas experiências com o material didático. Neste relato, minha intenção é contar um pouco do meu dia-a-dia em sala de aula, descrever como tem sido trabalhar com as crianças, utilizando o material de Linguagem, com uma nova proposta, um novo encaminhamento para a aquisição da leitura e da escrita (alfabetizar letrando). Consciente de que tudo na vida evolui, muda, se renova, acolho a proposta de acompanhar essas mudanças também na escola, pois as necessidades das crianças que alfabetizávamos há cinco anos não são mais as mesmas das crianças de hoje. Acredito que seja primordial, então, mudar, pesquisar e buscar sempre novas formas de saber e de fazer saber, cada vez melhores e de maneira diferente, pois a repetição cansa, satura, e isso serve para tudo que fazemos. Acredito então que estamos no caminho certo, de crescimento, de renovação, de grandes pesquisas e embasamento teórico para uma prática coerente com a modernidade, não como modismo, mas como algo refletido e discutido, à luz de grandes pesquisadores e estudiosos. De acordo com esse novo encaminhamento, percebo que damos mais espaço para nossos alunos participarem ativamente do processo de construção do sistema representativo da escrita, cabendo ao professor intervir a todo o momento, de forma consciente, visando ao desenvolvimento das crianças. Sei que não é fácil realinhar nossa prática pedagógica às várias conclusões teóricas a que os pesquisadores chegam, porém é necessário. Então, à medida que estudamos e assimilamos novos conhecimentos, conseguimos reformular e renovar nossa prática, passando a compreender melhor as etapas iniciais da aquisição da escrita, atuando de forma mais crítica e coerente e respeitando as necessidades de nossos alunos. Não podemos nos colocar como simples observadores do que a criança produz graficamente, pois ela não conseguirá, sozinha, descobrir muitos dos aspectos convencionais da língua escrita. Também não devemos nos prender àquilo que consideramos 20 MENU PRINCIPAL correto, conforme padrão de julgamento adulto (preso ao tradicional). Devemos, sim, encontrar um meio termo para criar condições propícias para que a criança aprenda, estimulando sempre suas tentativas de expressão, atuando como seu interlocutor, criando um ambiente de descobertas e grandes conquistas. Para que essas mudanças ocorram adequadamente, precisamos estudar periodicamente, trocar experiências com colegas e coordenadores sobre nossas práticas, refletir e realinhar pontos positivos e negativos, questionar se realmente toda a mudança está surtindo resultados e quais resultados são esses. No começo, a criança não faz suas tentativas de escrita muito próximas às convenções da língua, mas, aos poucos, cria as condições necessárias e, com o nosso apoio, acaba estabelecendo relações de forma natural. Então, cabe a nós, professores, mediar e controlar esse processo evolutivo, valorizando, encorajando e sempre dando o suporte necessário às manifestações de expressão da criança, tendo claro que o erro faz parte da construção das hipóteses e de um “código” de comunicação através do qual podemos inferir o quanto essa criança está evoluindo. Podemos até mesmo dizer que o erro é o momento mais rico para nossa tomada de decisão. Ao percebêlo, passamos a ser interlocutores da criança à medida que procuramos saber e entender tudo o que ela quis representar ou escrever (do modo dela), e, gradativamente, podemos fornecer informações necessárias sobre a língua escrita. É como dar alimento à criança quando ela tem fome, e não a todo o momento, saturando-a de comida sem sabor. Todas essas mudanças geraram, acredito que não só em mim, mas em muitos profissionais, ansiedade, preocupação e expectativas sobre o resultado. Muitas vezes me perguntei: Como será que as crianças vão sistematizar o código escrito sem uma seqüência única determinada por nós? O que é alfabetizar, hoje? Como devo atuar em sala? O que fazer para que meus alunos descubram a escrita e aprendam a ler o mundo? Como organizar o ambiente e o espaço escolar para que tudo isso aconteça de forma natural? Dessas 21 MENU PRINCIPAL reflexões, ficou claro que primeiro eu deveria levar as crianças a se interessarem pela escrita, para depois, então, conduzi-las a se apropriarem do nosso sistema de escrita, que é alfabético-ortográfico, mostrandolhes como usar socialmente essa escrita, uma vez que não se escreve mais sem função social, e tudo deve ter significado. A criança deve conviver com práticas reais de leitura e escrita e estar sempre em contato com livros, jornais, revistas, enfim, com todo material de leitura que circula na escola, em casa e na sociedade de modo geral. Precisamos proporcionar aos nossos alunos o exercício dessas práticas de leitura e escrita, utilizando diferentes gêneros textuais, para que eles adquiram condições de agir sobre o mundo e dizer sobre esse mundo. Não se acredita mais apenas no treino para o domínio do código escrito — estatísticas comprovam a grande massa de analfabetos funcionais que as escolas têm formado. O Brasil ocupa uma das piores posições nesse aspecto, se comparado com outros países. O que se quer com a criança é que ela aprenda a pensar, organizando perguntas e respostas, argumentando e explicando suas idéias, que seja capaz de se expressar em diferentes situações com segurança e desenvoltura. Essas práticas estão muito presentes no material, pois todas as pesquisas solicitadas, para realização em casa ou feitas na escola, propõem o momento da oralidade, do relato do que cada um descobriu, onde descobriu, com quem o fez. Cabe-nos, então, constituir esse espaço, mediar e organizar as idéias. O que faço: peço que todos relatem ao grande grupo sua pesquisa e vou registrando no quadro as idéias principais, para, posteriormente, criar o texto coletivo e passá-lo para uma folha maior (papel bobina), que exponho na sala para as crianças lerem, sozinhas e comigo (para retomarmos o que pesquisamos), criando, assim, mais um ambiente alfabetizador, onde elas mais ou menos sabem o que está escrito naquele “amontoado” de letras. Uma vez que ajudam na construção do texto, elas vão fazendo suas relações e criando hipóteses para leitura e escrita. Minha atribuição nesse momento é de escriba, registrando e organizando as idéias das crianças e as minhas também. 22 MENU PRINCIPAL Logo que o ano começou, nos primeiros dias de aula, percebi que as crianças também estavam ansiosas para fazer uso efetivo da leitura e escrita. Os olhinhos brilhavam e buscavam meios para ler e escrever. As primeiras tentativas de escrita foram difíceis, pois elas a todo o momento falavam: “Como escreve? Eu não sei, me ajude”. Nessa hora percebi que precisava ajudá-las criando algo que facilitasse essas tentativas de produções espontâneas e minhas orientações sobre a escrita e leitura das palavras deveriam ser simples. Então, fomos construindo, à medida que a turma sentia necessidade, as famílias silábicas. Inicialmente, cada criança recortou e colou uma letra e, ao final, fixamos todo o alfabeto na parede. No final da aula, realizávamos leitura em voz alta, formávamos palavras, relacionávamos com os nomes das crianças da turma e fazíamos brincadeiras. Com isso, notei que rapidamente elas passaram a perceber melhor as relações que envolviam a escrita das palavras, desafiando-se cada vez mais em suas tentativas de escrita espontânea. Observei, também, que ficaram mais confiantes e autônomas, tendo, diante de si, um suporte de letras que elas sabiam serem necessárias para a escrita. Passou a ser freqüente as crianças pararem diante desse alfabeto para me questionarem sobre suas escolhas. Ali, eu (e muitas vezes outras crianças que se antecipavam a mim as conduzia a refletirem sobre as palavras da língua, levando-as a observarem as repetições de letras, as combinações possíveis, as quantidades, as semelhanças entre as partes orais e escritas, os pedaços iguais e os diferentes, etc. Cito alguns exemplos de atividades do material didático que favoreceram esse trabalho: — escrita do nome MOSQUITO, texto de Cecília Meireles presente no material didático; — escrita do nome da professora; — o que minha professora faz. Em muitas das atividades realizadas no início, eu era a escriba das crianças, como aconteceu no álbum de rimas dos nomes de cada um da turma. As crianças e eu construímos a rima; eu escrevia no quadro a rima 23 MENU PRINCIPAL que cada criança deveria copiar. Como estávamos trabalhando várias atividades com os nomes das crianças da turma, montei em sala um quadro de pregas onde as crianças passaram a guardar os crachás com o nome. Criamos, assim, mais um elemento para leitura, pois todos os dias as crianças observavam quem estava faltando e identificavam os nomes dos amigos, facilitando com isso a realização de várias atividades solicitadas no material, as quais eles conseguiam fazer, de forma autônoma e independente, sem que eu escrevesse no quadro. São exemplos dessas atividades: — corrida dos nomes; — bingo dos nomes; — o nome da professora; — agenda telefônica. Aos poucos, as crianças foram se sentindo mais confiantes, pois estavam conseguindo fazer algumas atividades de escrita “sozinhas”, e, de minha parte, observava as relações que faziam, ajudando-as e orientando-as sempre que necessário, procurando, a partir de suas produções, montar e desmontar palavras, para analisar, comparar e classificar, resolvendo situações de dificuldade em que se encontravam para escrever. Assim, havia uma finalidade comunicativa real e imediata. Então passei a ler com a turma tudo o que escrevia no quadro, sempre solicitando a ajuda das crianças na escrita, como também passamos a criar textos coletivos a partir de várias atividades do material, como a centopéia, a dobradura da baleia, uma atividade de condutas e o aniversário de nossa Cidade; enfim, tudo passou a ser motivo para escrevermos e colocarmos exposto na sala, sempre criando um mural novo, aliás, uma novidade que as crianças correm contar aos pais. Com isso, as visitas dos pais à sala de aula tornou-se habitual, o que serviu para eles compreenderem melhor como acontecem as atividades na escola. Gostaria de salientar que a mudança ocorrida no material de Linguagem também influencia o encaminhamento metodológico de todas as demais ativida- 24 MENU PRINCIPAL des — Matemática, Condutas Psicomotoras, Descobertas Sociocientíficas. Em todas as atividades, exploro a expressão oral e escrita. Foi o que aconteceu com uma atividade de Matemática — a agenda telefônica, quando criei com as crianças uma agenda completa com os telefones de todos os amigos da sala. Usamos o alfabeto móvel, montamos a seqüência, uma letra em cada folha, e as crianças buscavam os telefones dos amigos (conforme a letra inicial) que fixei nos crachás no quadro de pregas. Foi uma atividade produtiva, repleta de significado para elas e com grande função social de comunicação; representou o fechamento do primeiro bimestre. Os jogos do material também me ajudaram bastante no encaminhamento das atividades, pois, brincando, as crianças mostravam tanto o que já conseguiam fazer quanto o que ainda precisavam de ajuda (orientação). Sempre retomava os jogos, então disponibilizei em sala várias caixas para guardá-los e, ao final da aula, tínhamos o momento das brincadeiras livres. Ampliei um jogo da memória, buscando brincar com todos para observar de perto as relações que cada um fazia durante a leitura das palavras, fazendo intervenções sempre que necessário. Para o jogo dos jeitos (sentimentos) e das caretas, preparei uma caixa de televisão montando um cenário para apresentações. Virou um teatro de fantoches, e a todo momento as crianças se organizavam para fazer apresentações, propondo quem seria a platéia, quem criaria a história, e assim por diante. Apareceu até quem ia filmar e fotografar, enfim, mais um momento prazeroso para se expressar. Com toda essa mudança no encaminhamento do processo de aquisição do código escrito, percebi que deveria explicar mais detalhadamente aos pais como estávamos trabalhando em sala. Aproveitei a reunião bimestral não só para relatar algumas experiências, como também para explicar a importância da lição de casa, principalmente em relação às pesquisas, pois essas atividades serviam para um momento de descobertas e de relato (oralidade), em que as crianças, ao 25 MENU PRINCIPAL chegarem à escola, teriam de fazer, contando ao grupo o que pesquisaram. Esclareci que o resgate de conteúdos prévios e a contribuição com novos dados e curiosidades sobre o assunto são elementos fundamentais para a construção de textos significativos. A criança percebe que o que ela falou está sendo registrado. E isso é muito diferente de fazer cópia de palavras isoladas. Orientei que nesse momento em que eles relatam eu sou a escriba, organizando as descobertas e registrando-as no quadro para, depois, registrar em papel bobina e expor na sala para leitura. Continuei explicando que o registro dessas pesquisas deveria ser simples, para que a criança conseguisse falar à turma realmente tudo o que descobriu. Senti a necessidade de falar que cada criança tem seu ritmo no processo e que caberia a nós ajudá-la e compreendê-la, sempre valorizando seus progressos. Hoje, planejar as seqüências didáticas para o trabalho em sala de aula passou a ser um momento de pesquisa, de leitura, pois sempre estou em busca de estratégias originais e criativas que facilitem o processo, tornando-o mais significativo, produtivo e inovador. Percebi com toda essa mudança que meus alunos estão com os olhinhos atentos e brilhando para todo tipo de informação, seja ela verbal ou não, como também menos ansiosos com o processo; como eles dizem: “É errando que se aprende”. Também fiquei surpresa com a rápida evolução que esse encaminhamento impõe ao meu trabalho, pois quem determina o ritmo é a criança. Tive de me habituar com a idéia de que não teria mais todo mundo fazendo a mesma coisa ao mesmo tempo, o que me era permitido quando trabalhava com cópias, seqüências silábicas e exercícios preestabelecidos. Agora, a avaliação tem novo significado, pois serve, de fato, para me alertar a todo momento sobre cada uma das crianças e direcionar meu trabalho não somente para aquelas que ainda necessitam de maior orientação mas também para aquelas que já foram muito além. A sala tornouse um ambiente muito colaborativo e as produções das crianças são algo de que elas têm grande orgulho. E, obviamente, eu também. 26 MENU PRINCIPAL CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo buscou descrever o que é e como se realiza a proposta de alfabetizar letrando, que, conforme Soares, significa orientar a criança para que aprenda a ler e a escrever, levando-a a conviver com práticas reais de leitura e de escrita: substituindo as tradicionais e artificiais cartilhas por livros, revistas, jornais, enfim, pelo material de leitura que circula na escola e na sociedade, e criando situações que tornem necessárias e significativas as práticas de produção de textos. Sobre o relato da professora, é possível perceber a necessidade de sistematizar o processo de alfabetizar, porém num contexto real e imediato de produção de textos escritos. A reflexão sobre rimas, por exemplo, permite contar, segmentar, observar, isto é, fazer reflexões oralmente e usando as formas escritas das palavras. Nada disso, contudo, está descolado das práticas sociais de uso da escrita, pois as crianças estão num contexto de produção de um álbum de rimas. Assim, a prática alfabetizadora considera o texto como primeiro objeto de estudo a ser trabalhado em sala de aula, destacando-se como ponto de partida e como ponto de chegada, ou seja, o ensino das letras, sílabas e frases partiu dele. Deve-se ressaltar que cabe à escola e aos professores alfabetizadores analisarem, para cada realidade, quais serão as condições garantidoras dessas aprendizagens, considerando-se as experiências prévias das crianças com a escolarização e seu nível de letramento, ou seja, sua familiaridade com a cultura escrita. A esses profissionais cabem perguntas como: Quem são as crianças que temos este ano? Como trabalhar acreditando que toda criança pode aprender a ler e escrever? Que intervenções são necessárias para dar condições às crianças deste ano o acesso às atividades propostas no material didático? 27 MENU PRINCIPAL Autoras Rosane de Mello Santo Nicola — mestre em Educação, graduada em Letras (UFPR) e especialista em Gestão de Pessoas (FAE); professora da PUC-PR e Faculdade Dom Bosco; coordenadora e professora de cursos de especialização em Desenvolvimento Editorial e Lingüística Aplicada ao Ensino; autora de livros didáticos de Ensino Fundamental e Médio; coordenadora científica do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Educação (CPDE) e do Setor de Desenvolvimento e Capacitação em Tecnologias Educacionais do Grupo Dom Bosco. Maria Lúcia G. G. Castellano — diretora do Centro de Educação Infantil do Grupo Dom Bosco, em Curitiba; psicóloga pela Universidade Tuiuti (PR), especialista em Educação Infantil, Psicomotricidade e Educação Infantil; autora da coleção de Educação Infantil Dom Bosco. Maria Cláudia Söndahl Rebellato — graduada em Pedagogia (UFPR), pós-graduada em Alfabetização pela Universidade Tuiuti (PR); psicodramista pela Contexto de Curitiba; co-autora do livro Lições Curitibanas, material de alfabetização da Prefeitura Municipal de Curitiba; autora de material didático de Português, 1a série do Ensino Fundamental, da Editora Dom Bosco; atuou 23 anos como professora-regente e coordenadora pedagógica de Ensino Fundamental; pesquisadora do CPDE na Editora Dom Bosco. Cláudia Moraes Ormeneze Janoski — graduada em Pedagogia com habilitação em Educação Infantil (UFPR); pós-graduada em Educação e Interdisciplinaridade e Ensino Superior pela Faculdade Espírita; 15 anos de experiência em sala de aula com turmas de Jardim II (crianças de 4 a 5 anos) e Jardim III (crianças de 5 a 6 anos); professora da Educação Infantil no Colégio Dom Bosco de Curitiba. 28 MENU PRINCIPAL Referências ABAURRE, M. B.; CAGLIARI, L. C. Textos espontâneos na 1ª série: evidência da utilização, pela criança, de sua percepção fonética da fala para representar e segmentar a escrita. Cadernos Cedes. São Paulo: Cortez, 1988. CAGLIARI, L. C. A respeito de alguns fatos do ensino e da aprendizagem da leitura e da escrita pelas crianças na alfabetização. In: Alfabetização e letramento: perspectivas lingüísticas. ROJO, R. (Org.), Campinas: Mercado das Letras, 1998. KLEIMAN, A. B. (Org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado das Letras, 1995. KLEIN, L. Alfabetização e letramento: considerações sobre a prática pedagógica no ensino de língua. In: ROMANOWSKI, J.; MARTINS, P.; JUNQUEIRA, S. (Orgs.). Conhecimento local e conhecimento universal: a aula, aulas nas ciências naturais e exatas, aulas nas letras e artes. v. 3. Curitiba: Champagnat, 2004. PASSOS, M. Resenha de livro didático de língua portuguesa: letramento e cultura da escrita. In: Revista Portuguesa de Educação. n. 2, v. 17, Braga: Universidade do Minho. 2004. SOARES, M. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2005. TFOUNI, L. V. Letramento e alfabetização. São Paulo: Cortez, 1997. 29 MENU PRINCIPAL Anotações 30 MENU PRINCIPAL Anotações 31 MENU PRINCIPAL www.dombosco.com.br SERIEDADE • COMPETÊNCIA • CONSCIÊNCIA • DEDICAÇÃO