MULTICULTURALISMO E MEIO AMBIENTE – UMA PERSPECTIVA
EMANCIPATÓRIA E SOCIOAMBIENTAL DE DIREITOS COLETIVOS.
Letícia Borges da Silva - Mestranda em Direito Econômico e Social pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná (PUCPR), bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Ensino Superior (CAPES) e advogada. ([email protected])
Resumo
A diversidade cultural e a riqueza natural são profundamente marcantes nos países latinoamericanos, onde se tem uma variedade enorme de povos, associada a uma biodiversidade
igualmente ampla.
A Constituição Federal brasileira de 1988 reconhece e protege os direitos coletivos, entre
os quais estão o meio ambiente e o multiculturalismo.
Por toda a América Latina, houve a disseminação de constituições democráticas pós-períodos
ditatoriais, preocupadas com o reconhecimento de novos direitos, tais como, a diversidade
cultural e o meio ambiente.
As inovadoras constituições americanas reconhecem a sociodiversidade de nossos países:
Colômbia (1991); México (1992); Paraguai (1992); etc. Aos poucos, o direito foi se aproximando
da realidade e protegendo o multiculturalismo.
No plano internacional não foi diferente. A Agenda 21, Convenção sobre Diversidade
Biológica, e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), estão entre os
documentos mais importantes.
Gradativamente, o individualismo liberal se modifica para uma concepção coletiva e mais
comprometida com a justiça social. Os direitos coletivos culturais e ambientais, no entanto,
carecem ainda de maior efetivação. Talvez, uma das razões para isso seja justamente o fato de
que, ao serem efetivados, eles acabam por condicionar o exercício dos direitos individuais, tais
como, a propriedade. E assim, o direito, ainda muito preso às amarras liberais, cala-se, permanece
inerte, seja através da insuficiência dos instrumentos de efetivação ou da pura insensibilidade do
Poder Judiciário perante essas novas reivindicações sociais. Mas, na verdade, quando o direito
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age dessa forma, ele demonstra uma posição muito clara que é a minimização da proteção
constitucional, ou apenas a consagração de uma tutela formal, como fez no século XIX.
Por outro lado, na vida real, o multiculturalismo pulsa. Só no Brasil, são
aproximadamente 700.000 pessoas que integram 230 etnias indígenas, falando algo em torno de
180 línguas maternas, vivendo em 12% do território nacional, e que se acham presentes nos 6
maiores biomas brasileiros (FUNAI, 2006: www.funai.gov.br). Nesse panorama, ainda se
encontram as comunidades ribeirinhas, quilombolas, pescadores artesanais, seringueiros,
coletores de castanha... Uma diversidade sociocultural vastíssima.
Além disso, o Brasil e outros países latinos fazem parte do grupo dos países considerados
“megabiodiversos”, pela enorme variabilidade biológica presente em seus territórios.
A toda essa riqueza, cultural e natural, deve corresponder igual responsabilidade por sua
manutenção, visto que, não só as presentes, mas também as futuras gerações, têm direitos sobre
ela.
1. INTRODUÇÃO
Contemporaneamente, o direito vem sendo revisto, passando de uma concepção clássica,
individualista e liberal, para uma perspectiva supra-individual, na medida em que há o
fortalecimento e a consagração dos direitos coletivos perante a sociedade.
O poderio econômico transcendeu, passando do nível individual para atingir o âmbito de
toda uma coletividade. Sendo assim, surgem mecanismos capazes de tutelar os chamados
interesses difusos e coletivos, como forma, também, de reagir ao modo de produção capitalista
concentrador. Os direitos do consumidor, culturais e do meio ambiente são exemplos desses
direitos coletivos, ou seja, direitos supra-individuais.
Essa mudança de perspectiva que o direito vem enfrentando é um fenômeno que ocorreu
em todo o mundo, na medida em que as desigualdades sociais provocadas pelo liberalismo
econômico eram contestadas. Uma das conseqüências dessa nova postura foi a maior intervenção
do Estado na economia, com o surgimento do Estado-Providência ou do Bem-Estar Social.
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Acompanhando esta tendência, a Constituição Federal brasileira de 1988 representou um
grande passo no ordenamento jurídico nacional, devido ao seu caráter democrático e cidadão.
Trouxe inovações determinantes no tocante aos direitos sociais e coletivos.
A ascensão de uma nova ordem constitucional sofreu muita influência do que vinha
acontecendo no mundo, e, em especial, na América Latina, ou seja, a disseminação de várias
constituições democráticas pós-períodos ditatoriais, preocupadas com o reconhecimento de novos
direitos, tais como, a diversidade cultural e o meio ambiente.
As inovadoras constituições latino-americanas vão reconhecendo a sociodiversidade de
nossos países: a Colômbia protege sua diversidade étnica e cultural (1991); o México (1992)
assume que tem uma "composição pluricultural"; o Paraguai (1992) reconhece a existência dos
povos indígenas, e ainda, se declara como um país multicultural e bilíngüe. Aos poucos, o direito
foi se aproximando da realidade, reconhecendo e protegendo a diversidade cultural.
A Constituição Federal de 1988 dedicou diversos dispositivos que vão além do mero
direito individual, consagrando a defesa dos direitos coletivos. Assim foi com o direito do
consumidor (art. 5º XXXII e art. 170, inc.V), com o direito ao meio ecologicamente equilibrado
(art. 225 e art. 170 inc. VI), com os direitos culturais (arts. 215 e 216), com os indígenas (arts.
231 e 232) dentre outros.
O sistema jurídico se deixa permear por inovadores conceitos, geradores de novos direitos
que foram, na verdade, frutos de muitas lutas sociais.
2. E O DIREITO MUDOU: DO INDIVIDUAL AO COLETIVO
No âmbito do ordenamento jurídico, tanto nacional como internacional, uma nova visão
surge, e passa a balizar o estabelecimento dos direitos coletivos. Dentro deste contexto, o meio
ambiente se destaca, por força das constatações de crise e da possibilidade de esgotamento dos
recursos naturais, o que viria a ameaçar, seriamente, o futuro da humanidade. Já o
multiculturalismo, representado pela presença de diversos povos, sejam eles indígenas ou
populações tradicionais (no Brasil, tem-se: quilombolas, pescadores artesanais, ribeirinhos,
coletores de castanha etc.), insere-se como uma das formas de manutenção e preservação da
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diversidade cultural e também biológica, visto que muito da biodiversidade preservada está
presente nos territórios ocupados por povos culturalmente diferenciados.
Quando a sociedade exigiu mudanças no status quo, ela afrontou o direito vigente, que
fora concebido de uma maneira individual e extremamente patrimonialista.
Por mais que tente ordenar, no afã de transformar todos os homens em seres livres e
iguais, isso não retrata a verdade fática, mesmo porque, não raras vezes, o próprio direito
funciona como obstáculo a essas transformações sociais.
Talvez não seja por outra razão que ele resista tanto em ceder, diante dos fatos que
demonstram uma realidade pluricultural e biodiversa, senão vejamos.
O direito clássico teve suas bases construídas na modernidade, e significou o revestimento
de um sistema econômico determinado: o liberalismo. A nova e poderosa ordem burguesa que se
instaurava, precisava de um direito forte que a sustentasse.
A sociedade saía da Idade Média, libertando-se das amarras feudais e costumeiras, para
ingressar num período moderno, baseado na propriedade privada e no trabalho assalariado e livre.
Essa história, que todos conhecemos bem, tem origem temporal e geográfica. “Estado e
direito modernos começam a surgir na Europa, lá por volta do século XIII, talvez antes,
teorizados a partir do século XVI...” (SOUZA FILHO, 2003: 16 – A Função...)
As transformações sociais por que passava a Europa e o fortalecimento político da
burguesia exigiam do direito uma resposta, ou seja, era preciso assegurar a estabilidade do
comércio nascente.
O direito de propriedade emerge como o mais importante direito na época. Ao Estado cabe
garanti-lo, regulando suas formas de aquisição e transmissão. A grande arte do governo estaria
em melhorar as terras e cultivá-las corretamente para produzir e vender. (LOCKE, 1994: 108)
Assim, o contrato ganha força, como o instrumento de legitimação e garantia do direito
de propriedade. Somente se discutia as condições de validade do contrato, não importando seu
conteúdo, efeitos e conseqüências para as partes; e, menos ainda, para a sociedade.
Os contratantes deveriam ser livres e iguais, para poderem celebrar um acordo válido.
Nesse sentido, os princípios de igualdade e liberdade assumiram vestes meramente formais,
falaciosas, e não refletiam a realidade dos fatos. Serviam apenas à retórica e ao discurso jurídico
do liberalismo.
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Liberdade e igualdade estavam garantidas pelo Estado, apenas enquanto requisitos da
propriedade privada e dos contratos que a legitimavam, sem qualquer preocupação comunitária
ou coletiva.
Do outro lado do mundo, nas terras americanas, aplicava-se os mesmos fundamentos do
direito pelos colonizadores, que simplesmente desconsideraram a diversidade sociocultural aqui
existente.
Com o passar do tempo, as relações sociais tornaram-se cada vez mais complexas. As
Duas Grandes Guerras Mundiais, o movimento dos trabalhadores, a crise ambiental e o domínio
da economia por grandes corporações trouxeram problemas que os princípios individualistas do
direito não mais serviam para atender às demandas da sociedade que se transformava.
A lógica preponderante não concebia um direito coletivo que não fosse, tão somente, a
soma de direitos individuais (como a pessoa jurídica e a massa falida, por exemplo). Os direitos
coletivos eram simplesmente invisíveis ao sistema; a racionalidade jurídica clássica não permitia
enxergar a coletividade como sujeito, como titular de direitos. (SOUZA FILHO, 1999: 307-314)
As lutas sociais ganharam espaço, deixaram o mundo dos sonhos para se tornarem
realidade nas leis e nas discussões jurídicas. Nessa perspectiva, surgem os novos direitos
coletivos, contrapondo-se ao direito individual clássico, e permitindo uma visão jurídica
diferenciada, realmente capaz de proporcionar emancipação e justiça social.
A proteção e o reconhecimento da diversidade cultural é, sem sombra de dúvidas, uma
face dessa mudança de enfoque do direito, passando do individual para o coletivo. Aliada a ela,
encontra-se a defesa do meio ambiente, também, como um direito de todos e o espaço de
realização de todas as culturas.
Toda essa riqueza somente poderá ser protegida dentro de uma visão coletiva do direito,
que permita às presentes e futuras gerações, ou seja, todos (ainda que nem existam) viverem
dignamente.
Nesse sentido (SOUZA FILHO, 2003/2004: 04)
“Estes novos direitos têm como principal característica o fato de sua
titularidade não ser individualizada, de não se ter ou não poder ter
clareza sobre ela. Não são frutos de uma relação jurídica precisa, mas
apenas de uma garantia genérica, que deve ser cumprida e que, no seu
cumprimento acaba por condicionar o exercício dos direitos individuais
tradicionais”.
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Os direitos coletivos ao multiculturalismo e ao meio ambiente, não raras vezes,
condicionam o exercício dos direitos individuais. Por isso, ainda que consagrados na legislação,
nem sempre são efetivados, pois desafiam frontalmente os direitos tradicionais e o capitalismo,
questionando e colocando-os à prova. A defesa desses direitos representa exigir mudanças para
concretizar os ideais da dignidade humana e da justiça social.
Para além da modernidade, o direito enfrenta agora uma nova crise: os embates de um
mundo pós-moderno.
Vive-se, contemporaneamente, numa sociedade tecnológica, empresarial e corporativa,
imersa em riscos e externalidades nunca antes computados. Ela é fortemente sustentada e
suportada pelas massas que a compõe. Dessa forma, o sujeito de direito se transforma. Não se
trata mais do ser humano, considerado individualmente, que apenas dotado dos atributos de
liberdade e igualdade, é capaz de neste novo mundo viver com dignidade.
Desta vez, é a humanidade, são as diversas camadas sociais, é o bem-estar de todos,
enfim, o interesse coletivo que está em jogo. Uma mudança social significativa.
As relações sociais provocam, constantemente, a mudança do direito. A pós-modernidade
caracteriza-se por um período de instabilidade. De um lado, está a necessária regulação; de outro,
e não menos importante, a emancipação social. (SANTOS, 1997: 245)
Grupos oprimidos e coletividades culturais minoritárias ganharam espaço no cenário
social e buscam sua autodeterminação, destacando-se das massas. O sistema capitalista tende a
homogeneizar a sociedade, desconsiderando as diferenças, para disseminar o consumo e ampliar
seus mercados.
Sendo assim, novas identidades culturais precisam do reconhecimento e da defesa de seus
interesses, para que possam manter vivas suas tradições, suas relações sociais e culturais, diante
do sistema econômico dominante. É preciso criar novas possibilidades democráticas, formas de
emancipação e cidadania, não apenas individuais, mas também coletivas.
3. PLURALISMO E DEMOCRACIA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
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Embora a tendência capitalista de homogeneização sociocultural tenha prevalecido em
algumas partes do mundo, ela não conseguiu abafar por completo as diferenças, e a “utopia
igualitária” (CITTADINO, 2000: 75) não logrou seu objetivo final, que na verdade, significava
uma imposição cultural.
Apesar de todo o esforço do poder dominador, a sociedade contemporânea é
essencialmente complexa e diversa. Sua compreensão implica na aceitação do pluralismo em
vários planos.
Constata-se a olhos nus, que a diversidade existe e sempre existiu em todos os setores,
quer da vida humana ou da natureza. São cinco raças humanas, de diferentes cores, que possuem
diferentes sentidos (visão, tato, olfato...) e se espalham por cinco grandes continentes, os quais
contêm uma infinidade de relações, baseadas em diferenças (religiões, climas, solos, idiomas,
animais, plantas, máquinas, ideologias, etc).
Por essa razão, conclui-se, que parece existir uma certa racionalidade no universo, que
tem por base uma diversidade intrínseca, contra a qual seria inútil lutar. Talvez seja por isso que o
mito da igualdade entre todos tenha falhado.
A diversidade, no entanto, nem sempre é aceita na sua plenitude. Principalmente, em se
tratando dos direitos culturais, percebe-se que as sociedades toleram a diferença, a existência do
“outro”, mas não o aceita verdadeiramente como ele é.
Dentro do espírito liberal de respeito e tolerância, em que o direito à liberdade e à
igualdade de todos perante a lei é meramente formal, há uma recusa em aceitar o outro por
completo. Nesse sentido, entendem alguns autores, que existe uma lógica de violência implícita
no seu aspecto político. (KOZICKI, 1993: 142)
Essa conjuntura gera a necessidade de estabilização, através de regras, convenções e atos
de poder, para que assim, o almejado controle social seja concretizado. Mas, efetivamente, essas
tensões existem, são fáticas, e, não raras vezes, elas se chocam em interesses, não somente
diversos, e sim, opostos.
Nessa seara, o Direito entra em cena, exercendo um duplo papel: o primeiro, de regulação
social ou resolução de conflitos; e o segundo, de possibilidade para a concretização de novas
reivindicações.
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A sociedade plural não permite mais uma única voz, uma estrutura centralizada e
dominante.
Talvez, uma das principais conseqüências da derrota comunista, foi uma crença
superficial de que não é possível construir algo para além do capitalismo. O socialismo utópico
teve a missão e o mérito de desejar um mundo melhor, superar a razão do capital frio e
explorador. Então, ele foi derrotado, mas o capitalismo se reformula, socializa-se, um pouco que
seja.
Viu-se o surgimento do Estado-Providência, período que o sociólogo BOAVENTURA
DE SOUSA SANTOS (1997) chama de “a segunda fase do capitalismo” ou “capitalismo
organizado”. Em seqüência, num terceiro momento, que é o atual, ele vai se desorganizando,
enfrentando diversas e sucessivas crises, criando, assim, um campo fértil para o afloramento dos
movimentos sociais em busca da afirmação de novos direitos.
Vale ressaltar, entretanto, que por mais erros que tenham cometido os liberais, a
democracia triunfou junto com eles. E ela, certamente, é o palco onde, atualmente, se podem
sustentar idéias plurais. A democracia é o espaço que permite o debate para o seu próprio e
contínuo aperfeiçoamento.
Isto implica, entretanto, numa abertura total da democracia, que não pode mais se dar ao
luxo de encerrar-se na mera representatividade, baseada apenas no conquistado direito ao voto. É
preciso ir mais além, ou seja, necessário se faz radicalizar a democracia.
Nesse sentido (SANTOS, 1997: 270-271):
“O capitalismo não é criticável por não ser democrático, mas por não ser
suficientemente democrático (...) A renovação da teoria democrática assenta,
antes de mais, na formulação de critérios democráticos de participação
política que não confinem esta ao acto de votar. Implica, pois, uma articulação
entre democracia representativa e a democracia participativa. Para que tal
articulação seja possível é, contudo, necessário que o campo do político seja
radicalmente redefinido e ampliado.” (grifo nosso)
É preciso formar cidadãos não conformados, que se permitam agir em prol de direitos
supra-individuais, provocando assim, um pluralismo social realmente combativo. Antes de ser
visto como uma ameaça (MOUFFE, 1996: 23), ele deve ser entendido como a própria condição
de existência de uma democracia participativa. Combativo, no sentido de lutas emancipatórias,
que não cabem mais dentro da formatação capitalista, ocidental e pretensamente universalista.
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A América Latina corresponde a um celeiro para experiências democráticas e plurais,
tendo em vista sua rica miscigenação, ao lado de uma imensa natureza ainda preservada.
Sendo assim, percebe-se que as lutas democráticas podem ser aqui facilmente
coordenadas: os movimentos étnicos (indígenas, de afro-descendentes, etc) com o movimento
ambiental, dentre outros.
O direito, nesse contexto, começa a ser considerado como instrumento para a libertação, e
não somente ligado à função de conter os conflitos sociais.
Para isso, mais uma vez, é necessária a reformulação do sistema, no sentido de
proporcionar novas possibilidades democráticas. E, uma tentativa é, certamente, a visão do
direito a partir da perspectiva do pluralismo jurídico.
4. PLURALISMO JURÍDICO
“É necessária a adoção e o cumprimento de
políticas de pluralismo jurídico por parte do Estado
mediante as quais se reconheça plena vigência aos
sistemas de direito dos povos indígenas que coexistem
diferenciados do direito do Estado e se aplicam em
âmbitos determinados dentro do mesmo território.”
(Declaração de Jaltepec de Cadayoc, 1995, México)
A sociologia moderna atribui ao sistema jurídico a função de integração social que pode
ser cumprida através de dois dispositivos: a orientação do comportamento dos sujeitos e a
resolução de conflitos presentes entre pessoas e grupos (AMAYA, 2002, 49-62).
Com o surgimento do Estado Moderno, houve uma presunção de que caberia
exclusivamente ao direito a produção de normas. Conhecido como monismo jurídico, trata-se de
uma doutrina que não considera as demais formas de regulação social, as quais funcionariam
como instrumentos inibidores do monopólio do Estado sobre o direito.
Essa postura estatal, no entanto, não reflete a realidade. Ela ocorre no plano meramente
formal, e pode ser encarada como um problema efetivo frente à realidade social. O Estado, ainda
que queira, não é o único que cria normas para orientar as pessoas e resolver os litígios.
O mito do monismo jurídico nada mais é do que uma construção ideológica dos últimos
quatro séculos da História ocidental, visando impor a unicidade em detrimento da pluralidade
existente no plano fático, real (AMAYA, 2002: 63).
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Com o desenvolvimento capitalista em suas três fases, já mencionadas na perspectiva de
SANTOS, houve um aumento da conflituosidade social.
Isso acontece porque, na medida em que aumentam as desigualdades sociais, os abusos do
capital e do individualismo, crescem também, as demandas por direitos e justiça. Há uma
pulverização dos conflitos, que brotam aqui e ali; o Estado agiganta-se, mas não consegue uma
cobertura completa ou mesmo conter tal situação. A crença do monismo é desfeita e percebe-se
uma crise de regulação estatal. Há uma instabilidade na administração da justiça, gerada pela
incapacidade do aparato judicial, em dar conta da quantidade e da qualidade na solução dos
novos conflitos. O Poder Judiciário vai sendo reformado e reformulado...
O Estado, pouco a pouco, perde a arrogância, ao invés de submeter decisões começa a
propor a cooperação da comunidade. Ele se retrai, reconhece formas de justiça não estatais, mas
as estabelece como meras competências, sem abrir mão da pretensão monista. Mas esta, a cada
dia, vai sucumbindo, e a realidade plural vem ganhando espaço.
O pluralismo jurídico, hoje, é reconhecido pelo conjunto de dinâmicas jurídicas distintas
daquelas provenientes do direito estatal, que com elas competem na função de regular a
sociedade. Dentro dessa noção, várias são as dinâmicas sociais de regulação existentes, e que
podem ser dividas nas seguintes relações (AMAYA, 2002: 53)
a) das comunidades tradicionais ;
b) das comunidades excluídas ou marginalizadas (favelas);
c) das sociedades que emergem como resultado da ação de novos movimentos sociais,
através de lutas localizadas (opção sexual, de gênero, raça, etc);
d) de casos que se apresentam em crises institucionais ou de violência permanente (como
ocorre, por exemplo, em relação às FARC – Forças Revolucionárias da Colômbia),
incluídos também, aqueles que são resultados do processo de globalização econômica.
Cada um destes tópicos, naturalmente, exige atenção especial, e seria possível discorrer a
respeito, no entanto, devido ao enfoque abordado no presente trabalho, vamos nos ater, por ora,
às relações travadas entre as comunidades tradicionais, em especial, as indígenas, através do
exercício do direito à diversidade cultural e ao meio ambiente, ecologicamente equilibrado, nos
territórios onde vivem.
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4.1 As comunidades tradicionais dos povos indígenas e o direito
As relações entre os “sistemas jurídicos das comunidades indígenas”, com o direito
“oficial” reinante nos países onde estão inseridas, talvez representem o primeiro caso onde se
chega a constatar e aceitar o conceito de pluralismo jurídico.
Não há como negar o fato de que tais comunidades não compartilham sequer das noções
de território, soberania, e, menos ainda, dos interesses nacionais (sejam eles sociais, individuais,
políticos, econômicos ou espirituais) relativos ao país de origem.
Tal situação pode ser explicada remontando-se ao período colonial.
As metrópoles, ao dominarem os povos, instauravam nas suas colônias o seu próprio
direito. Tinham por objetivo criar, nas terras de além-mar, uma sociedade à sua imagem e
semelhança, muito embora, como não podia deixar de ser, sua abrangência ficasse restrita aos
centros urbanos, gradualmente formados com predominância de súditos. Assim sendo,
comunidades nativas e/ou locais, em sua maioria, pacíficas, quando escapavam da dizimação,
permaneciam praticando seus costumes e mantinham suas próprias formas de regulação.
O caso mais conhecido é o da Índia (AMAYA, 2002: 54), onde conviviam o direito inglês
e as estruturas jurídicas dos povos nativos, que se integraram posteriormente. Com a
independência das colônias, a situação, a rigor, não sofre mudança para tais comunidades, visto
que o direito nacional ocupa o lugar do direito colonial.
Essa situação também pôde ser observada nos países latinos de colonização portuguesa e
espanhola, onde, ainda hoje, povos tradicionais coexistem paralelamente ao Estado formado.
Nunca é demais relembrar que as dimensões existenciais de quem vive nos centros
urbanos são, completamente, diversas de quem vive nas comunidades locais, não inseridas na
lógica da economia de mercado.
Nas comunidades tradicionais, o modo de produção é baseado no suprimento e na
satisfação das necessidades de todos - uma postura essencialmente coletiva. A utilização dos
recursos naturais se dá de uma forma consciente e sustentável, com um baixo grau de impacto
ambiental, e ainda, é orientada no sentido de evitar uma possível escassez.
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Já o modelo capitalista é calcado na acumulação de bens e no individualismo competitivo.
Parte-se da noção de que os seres humanos têm o direito de manipular a natureza em maior ou
menor grau, como desejarem. A natureza é meio, a humanidade, fim (GALTUNG, 1994: 25).
Além disso, as comunidades indígenas e locais orientam-se por princípios espirituais,
morais e éticos, através de uma visão holística, sem o cientificismo, a racionalidade ou o
particularismo ocidental.
Como não poderia deixar de ser, tudo isso levou, por óbvio, a uma construção jurídica
completamente diferente e que não depende da atuação estatal.
NORBERTO BOBBIO ao tratar das relações entre os ordenamentos jurídicos em geral,
menciona as tensões entre o Estado e os ordenamentos menores, e estabelece algumas soluções.
Especialmente, em relação aos grupos étnicos com costumes, civilização e histórias muito
diferentes das do resto da comunidade nacional, o autor determina duas posturas que podem ser
adotadas pelo Estado:
“a primeira requer, frente ao ordenamento menor, o procedimento que
chamamos de recusa, isto é, o do desconhecimento das regras próprias do
grupo étnico e da substituição violenta pelas normas já em vigor no
ordenamento estatal; a segunda poderá ser realizada através do processo de
reenvio, isto é, atribuindo-se às normas, provavelmente a um grupo de
normas, formadas integralmente no ordenamento menor, a mesma validade das
normas próprias do ordenamento estatal, como se aquelas fossem idênticas a
estas.” (BOBBIO, 1994: 172)
No entanto, a posição do Estado, em geral, continua BOBBIO - é a da indiferença. Em
outras palavras, tais ordenamentos têm suas regras, mas o Estado não as reconhece, ou não lhes
dá nenhuma proteção para coexistirem, e, por vezes, ocorrem conflitos entre ambos
ordenamentos.
Até a década de 50 e 60, aproximadamente, as políticas de desenvolvimento de vários
países se encaixavam num conceito de modernidade, comprometido com a abolição e repressão
total de outros sistemas de direito e autoridades diferentes das estatais (HOEKEMA, 2002: 6398).
O Estado era concebido como liberal, unitário e monocultural, baseado no princípio de
direitos iguais para indivíduos iguais. E, nessa perspectiva, somente eram aplaudidas e
fomentadas as práticas culturais num sentido meramente folclórico, ou seja, sempre quando não
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interferiam em relevantes conceitos, tais como, direito e Estado. “Na América Latina as políticas
em relação aos povos indígenas eram de integração, quer dizer, a situação de indígena deveria
ser provisória” (SOUZA FILHO, 2003:79 – Multiculturalismo) .
Essa concepção foi e vem sendo, gradativamente, desconstruída. Vários fatores incidiram
para a eliminação deste conceito integracionista. A “modernidade” de agora (pós-modernidade),
salvo em alguns países de orientação obstinada e estritamente neoliberal, reconhece que não se
pode avançar sem a cooperação genuína dos elementos que compõem a sociedade civil.
As organizações indígenas, especificamente, passaram a reivindicar uma melhor
qualidade de vida, a demarcação de seus territórios, o respeito à sua cultura, língua e tradições.
Ademais, vêm defendendo seu desenvolvimento econômico autônomo e sustentável, programas
de bem-estar social e possibilidades efetivas de manutenção de suas estruturas, como
possibilidade para a preservação cultural.
No Brasil, as organizações indigenistas começaram a se formar a partir da década de 70,
e, com a redemocratização do País, aumentaram significativamente em força e em tamanho,
incrementando a participação indígena na vida política nacional1.
O tratamento estatal meramente assistencialista, de cima para baixo, não satisfazia as
necessidades desses povos, que cansaram de ser tidos como pertencentes a uma cultura inferior,
transitória ou tendente a acabar. Em algumas ocasiões, inclusive, foram legalmente considerados
como incapazes2.
Uma das principais vitórias indígenas foi verem consagrados constitucionalmente alguns
de seus direitos3. Por exemplo, a Constituição brasileira de 1988 representa um marco jurídico no
cenário nacional e regional, abrindo espaço para a preservação cultural indígena, ao mencionar no
art. 231 que: “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à
União demarcá-las , proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
As vitórias merecem destaque, no entanto, é inegável que ainda há muito para se avançar
no estabelecimento de um sistema capaz de abarcar novas formas de estruturação jurídica e
social, para a afirmação efetiva do direito à diferença cultural e à autodeterminação.
O direito consuetudinário das comunidades indígenas corresponde a um genuíno conjunto
de regras que regem a vida e as relações dos povos, suas autoridades constituídas e normas,
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fazendo-se respeitar pelo costume, buscando evitar que alguém perturbe a ordem estabelecida e a
vida pacífica da comunidade, ou ainda, que venha a causar prejuízos materiais. Dentro desse
espectro reside um dinamismo constante que permite a invenção de novas formas de coordenação
e liderança, ao passo que estas comunidades evoluem no tempo e no espaço.
Há uma direção comportamental de seus membros e uma divisão de competência entre as
autoridades tradicionais. Portanto, há uma perceptível estrutura jurídica social. Mais que um
costume ou tradição, é preciso que o Estado reconheça e aceite plenamente o direito indígena ou
tradicional como direito que é.
Essa é a posição mais aceita atualmente em algumas convenções internacionais que tratam
dos direitos dos povos indígenas, tais como a Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT). Ainda assim, são políticas de mera compensação pelas desvantagens sofridas
por grupos indígenas, não representando a aplicação de um pluralismo jurídico mais maduro.
Isso não significa que não tenham importância, muito pelo contrário, têm sua validade na
medida em que representam algumas das conquistas no caminho de luta pelos direitos indígenas.
Entretanto, faz-se necessário e urgente continuar na busca por uma autonomia comunitária mais
ampla.
Não parece sensato que o direito estatal tenha a faculdade de determinar, unilateralmente,
a legitimidade e o âmbito dos demais sistemas de direitos, como os indígenas. Ele aceita a
validade das normas de outros ordenamentos ou, como BOBBIO escreveu, de “ordenamentos
menores”, tendo por fonte, as comunidades especiais que, como tais, representam uma parte
diferenciada, mas também constitutiva da sociedade como um todo. Portanto, elas têm
capacidade para determinar seu direito, e este deve ser reconhecido como parte integrante da
ordem jurídica nacional.
Sendo assim, busca-se a “simultaneidade igualitária” (HOEKEMA, 2002: 71) de todos os
sistemas de direito. O direito indígena não complementa; ele substitui o direito estatal nas esferas
sociais em que prevalece a sua aplicabilidade.
Dentro
da
vivência
jurídica
positivista,
construída
artificialmente
até
a
contemporaneidade, em que o direito é muito mais visto como instrumento de dominação do que
de libertação, é bem provável pensar-se que essa estrutura poderá representar um retrocesso na
evolução política de uma nação. Soberania, governo e território, certamente se vêem ameaçados.
14
Mas, devemos considerar que está, no mínimo, encerrando (se não está encerrado), o projeto de
construção de uma sociedade homogênea, que tanto pregou o capitalismo. Os povos indígenas
não têm por objetivo separar-se geograficamente. Eles não almejam a criação de um outro país.
Uma nação, em especial, latino-americana, não se formará solidamente buscando o
monopólio cultural, e sim, dando lugar à inquietante pluralidade, trazendo-a do plano fático para
realizá-la, sobretudo, no campo jurídico.
E, para que este pilar seja erguido, é preciso que os conceitos de autodeterminação e
direitos humanos sejam reconsiderados sob uma nova ótica.
4.2 Releitura do princípio da autodeterminação dos povos e os direitos humanos para os
povos indígenas
Diante da consolidação do termo “Povos Indígenas” no contexto mundial4, é possível
sustentar, também, que a eles é cabível o direito à autodeterminação.
Por certo, deve-se levar em consideração, mais uma vez, a ressalva do art. 1º.3 da
Convenção 169, ou seja, é aceito o uso da expressão, desde que esta interpretação não venha a
representar soberania política, no intuita de querer segregar os povos indígenas do resto da
comunidade nacional.
Os arts. 1os, do Pacto de Direitos Civis e Políticos e do Pacto de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais mencionam: “Todos os povos têm direito à autodeterminação. Em virtude
desse direito determinam livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu
desenvolvimento econômico, social e cultural”.
Segundo MAGDALENA GÓMEZ (1995), como esses pactos estabelecem direitos
humanos, pode-se dizer que o direito à autodeterminação é também um direito humano.
A mesma autora aponta para o problema de se considerar os direitos humanos como
sendo de exercício tão somente individual, e os direitos dos povos indígenas serem coletivos.
Os direitos individuais são aqueles que se exercem independentemente da sociedade, e
são inerentes a toda pessoa humana sem qualquer distinção de raça, gênero, língua ou religião,
como por exemplo, o direito à vida e à liberdade de expressão, que são considerados direitos
universais.
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Já os direitos coletivos realizam-se no seio de uma comunidade, não existem sozinhos,
nem podem ser exercidos individualmente. Eles dependem da coletividade, como um todo, para
se concretizarem. São aqueles direitos indispensáveis para que os povos subsistam, como o
direito ao território, ao uso da língua, à cultura própria, o direito de se autogovernarem ou
praticarem suas próprias normas de organização e controle.
Considera-se que quando os direitos indígenas coletivos não são respeitados, torna-se
muito difícil que os direitos humanos de cada integrante sejam efetivados (GÓMEZ, 1995: 56). A
dignidade humana desses povos somente será atingida se permitirem que eles sejam quem
realmente eles são.
Assim, podemos perceber o quão importante será a abertura da amplitude dos direitos
humanos para abranger, também, os direitos coletivos e, dentre eles, o da a autodeterminação.
Com isso, o exercício dos direitos indígenas, ou seja, da diversidade cultural, poderá deixar de ser
um sonho. Além disso, será também um caminhar para a instauração efetiva do pluralismo
jurídico, o que, longe de apenas vir a beneficiar os indígenas, representará um amadurecimento
jurídico importante para a conquista dos novos direitos supra-individuais no contexto latinoamericano.
5. O ENTRELAÇAMENTO DOS DIREITOS AO MULTICULTURALISMO E AO MEIO
AMBIENTE
O panorama de uma sociedade plural e democrática permite que diversos segmentos
encontrem os seus espaços na forma de lutas emancipatórias, e não há como negar que o direito
representa um norte para tais lutas. Mas, para a concretização desses novos ideais, muitas vezes, é
preciso a articulação política entre eles, como inclusive propôs CHANTAL MOUFFE (1996: 33).
Essa união de movimentos faz com que as minorias ganhem mais força e se organizem, o
permitindo que suas vozes sejam mais facilmente ouvidas. O capital é organizado globalmente e
a esfera econômica manifesta-se sob variadas formas de dominação intercontinentais, sendo
portanto necessária uma sólida coordenação do movimento social ao redor de todo o mundo.
Um exemplo dessa articulação conjunta é a união dos movimentos social e ambiental. Por
mais que possa parecer premeditada, não foi assim que tudo começou.
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No engajamento pela luta do reconhecimento dos direitos dos povos culturalmente
diferenciados, como os indígenas, veio à tona a existência de um importante componente: o meio
ambiente que lhes cercava – um requisito para a existência da diversidade cultural.
Por outro lado, com a intensificação do pensamento voltado para a preservação ambiental,
que ganhou relevância a partir dos anos 70, percebeu-se que, muito da natureza ainda preservada
no Planeta, devia-se ao estilo de vida tradicional e ao modo de produção diferenciado das
populações indígenas e locais (populações tradicionais). Fato este corroborado pela análise de
fotos aéreas de reservas indígenas, comprovando-se a imensa riqueza natural que ainda se faz
presente em seus territórios. Tanto é que os instrumentos internacionais de proteção ambiental
começam a demonstrar a preocupação com os povos indígenas, como fez a Agenda 21 (capítulo
26) e a Convenção sobre Diversidade Biológica (art. 8j).
Dessa forma, as lutas emancipatórias se integraram, pois a defesa da manutenção da
sociodiversidade vê-se fortemente atrelada à preservação ambiental em suas terras, considerando
que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é condição para a manutenção da cultura e da
qualidade de vida das populações tradicionais. Daí, pode-se afirmar que o direito à diversidade
cultural está intimamente relacionado à preservação da natureza, para a garantia do sustento das
presentes e futuras gerações.
A defesa dos povos indígenas e comunidades tradicionais estão irremediavelmente
entrelaçadas com a preservação ecológica em suas terras e também no entorno delas. Isso porque
a cultura é dependente do ambiente natural que os cercam.
Este é o motivo que fez a Constituição brasileira reconhecer em seu art. 231 § 1º que:
“São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos
recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e
cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.” (grifo nosso)
Como bem resume o incansável estudioso: “as questões ambientais e culturais se
misturavam de forma célere, na compreensão de que a cultura não subsiste num ambiente hostil,
e não há nada melhor para preservar o ambiente do que uma cultura a ele adequada”. (SOUZA
FILHO, 2003:25 – Introdução)
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Vale ressaltar por fim, que a proteção ambiental que se defende em terras indígenas e de
outras populações culturalmente diferenciadas, também se faz em prol da humanidade,
independente da cultura a que se pertença. Os benefícios oriundos da manutenção do equilíbrio
ambiental e da diversidade biológica se estendem a todas as gerações, presentes e futuras, através
da estabilização dos ciclos biológicos, dos serviços ambientais e da fabricação de remédios e
outros produtos derivados da biodiversidade.
6. CONCLUSÃO
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado está entre as principais
reivindicações dos movimentos sociais dos últimos tempos, e representa uma importante arma na
luta pela criação de uma sociedade plural, mais justa e solidária. Por confrontar o pensamento
liberal clássico de exploração dos recursos naturais, alia-se, constantemente, às demandas por
novos direitos sociais, tais como os direitos culturais. Unidos, visam contrapor-se ao estado de
coisas atual, e surge a concepção dos novos direitos socioambientais. O meio ambiente não se
delimita em rígidas fronteiras; ele não separa ou oprime culturas diferentes, corresponde a um
bem de todos.
Os direitos socioambientais são bens ou interesses essenciais para a manutenção da vida
de todas as espécies (biodiversidade – ou diversidade biológica) e de todas as culturas humanas
(sociodiversidade).
No Brasil e em praticamente toda a América Latina existe uma imensa concentração de
biodiversidade, em paralelo com, centenas de povos diferentes. Riqueza esta constantemente
ameaçada e que precisa ser reconhecida e protegida efetivamente.
A luta por esse novo direito inscreve-se numa dimensão coletiva, baseada no pluralismo,
na tolerância, nos valores culturais locais, no multiculturalismo, e também, rompe com a lógica
excludente do Estado Moderno e com a pretensão de um direito único que, nitidamente, serve ao
sistema econômico dominante.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
18
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Pluralismo Jurídico e Alternatividad Judicial, núm. 26-27. Colômbia, Institulo Latinoamericano
de Serviços Legais Alternativos.
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Brasília.
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Organización Internacional del Trabajo, 2 ed, México, Instituto Nacional Indigenista.
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Vozes.
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3ed, São Paulo, Cortez.
19
Souza Filho, Carlos Frederico Marés, 2003/2004, As mudanças do Estado Contemporâneo: as
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apresentado ao Programa Institucional de Bolsas para a Iniciação Científica, Curitiba, Pontifícia
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Brasil socioambiental, Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor.
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Reconhecer para libertar,vol 3, Rio de janeiro, Civilização Brasileira.
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Sentidos da democracia: políticas do dissenso e hegemonia global, 2ed, São Paulo, Vozes.
Notas
1
Dados gentilmente cedidos pelo Advogado Indigenista brasileiro Paulo Celso de Oliveira Pankararu.
Haja vista o Código Civil brasileiro de 1916 no seu art. 6º, inc. III, que previa o silvícola como incapaz e o art. 16
do Código Penal do Estado de Michoacán no México, que previa ser indígena e analfabeto como causas de
inimputabilidade.
3
Constituições da Colômbia (art.171); Argentina (art. 75, inc.XII); Bolívia (art. 171), dentre outras.
4
Trazido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
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multiculturalismo e meio ambiente – uma perspectiva