Aporias do Real: uma inscrição da realidade na construção literária de
J.C.J., de Marcelino Freire
Maria do Carmo de Oliveira Moreira dos Santos
Eu precisava de alguém que me ouvisse. Mas que me
ouvisse sentindo cada palavra como um tiro ou uma facada.
Cada palavra e seu significado sangrento. (Ariano
Suassuna, no livro “Angu de Sangue”)
Resumo:
Este artigo examina a construção literária contemporânea, pautada no cotidiano, no
factual, tornando-se um espaço de discussão sobre a sociedade. Tece reflexões sobre o
caráter de referencialização ou desreferencialização do texto e seus efeitos no momento da
leitura, principalmente quanto aos desdobramentos das interpretações.
Palavras-chave: texto literário, referencialização, sociedade contemporânea,
exclusão social.
Enquanto fenômeno estético e cultural, a literatura de Marcelino Freire,
especificamente falando de Angu de sangue, põe em questão o lugar dessa escrita que
assume uma linguagem específica para tentar dar conta de um momento sócio/cultural
vivido pela sociedade brasileira. Momento em que o inchaço das grandes cidades faz surgir
Maria do Carmo de Oliveira M. dos Santos é Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa, pela PUC-Minas,
com o trabalho intitulado, “Imagens Urbanas: uma leitura dos signos da cidade contemporânea no
espaço narrativo de João Antônio e Luiz Ruffato”. Doutoranda em Literatura Brasileira, com o projeto de
tese “Carlos e Mário”: análise de suas correspondências sob a perspectiva do público e do privado”.
Pesquisadora do CNPQ com participação nos projetos de pesquisas, Lugares críticos: exclusão e
resistência na literatura latino- americana.(PUC-MINAS), Intelectuais e vida pública (UFMG)..
Coordenadora do projeto de pesquisa, “Imagens de nação: uma leitura das imagens de nação nas crônicas
de “Macaco Simão”. Projeto interdisciplinar Literatura/Jornalismo, financiado pela Coping – Centro
Universitário Newton Paiva. Atualmente, participa do Projeto de pesquisa, “Da rua: olhares sobre a história
da literatura brasileira”, pela PUC-MInas e é Profa. do Centro Universitário Newton Paiva.
novas formas de relações sociais, que culminam, mediante a uma série de problemas
ligados às questões de sobrevivência, em violências urbanas. Assim, dando vozes a
personagens socialmente excluídas, Freire abre o espaço da literatura para deixar falar esse
segmento social. O objetivo deste artigo é refletir sobre a produção literária que, a partir do
cotidiano de personagens das classes menos privilegiadas ou mais desprivilegiadas
(Rancière: 2004), instaura uma polêmica discussão sobre a relação entre o real e sua
representação na literatura contemporânea. Tomarei, pois, como objeto de análise o conto
J.C.J., retirado do livro Angu de sangue, de autoria de Marcelino Freire.
O referido conto trata da história de um menino de rua que assalta uma senhora no
sinal. O autor abre seu texto com uma frase que poderia ser lida como um mote ou mesmo
como um tópico frasal, marcando sua formação jornalística: “Adolesce o menino de rua.”
De uma forma ou de outra o que conta nessa análise é o que se pode extrair desse
enunciado. Primeiramente, seria pertinente comentar a letra vermelha, dessa frase, que a faz
destacar das demais letras do texto. A escolha dessa cor não foi aleatória, uma vez que
existe uma predominância da cor vermelha nas ilustrações do livro. A analogia dessa cor
com a violência, passando pela sua referência à cor do sangue, faz com que o leitor seja
avisado sobre o que vai encontrar no restante do texto. Mas, percebe-se uma ambigüidade
já na abertura do conto, uma vez que a violência sugerida pelo enunciado pode ser
relacionada à violência do assalto que o menino vai praticar, e, também, à violência sofrida
por esse garoto pela sociedade que o ignora. “Adolesce o menino de rua”. Quanto ao
sentido dessa frase, a ambigüidade fica ainda mais reforçada, pois a palavra adolesce traz
em sua sonoridade uma semelhança com outra palavra adoece, aludindo à contaminação
do garoto por uma sociedade enferma em sua estrutura. O texto, então, exibe as patologias
sociais tanto no campo do enunciado como no da enunciação. Ainda corroborando a
menção às patologias sociais, o autor a seguir elabora, de maneira contundente, o seguinte
enunciado: “...o menino cheirado à cola, sem sapato e sujo. Droga mole. Amola, esmola
todo o dia todo santo carro.”(p.123). Freire se vale da construção literária para mostrar a
realidade desse segmento social. Nota-se que não é o menino cheirando cola e sim
“cheirado à cola”, dopado. Há nessa construção uma passividade, quando a pretensão é
retirar a voz ativa do verbo: impregnado da droga (cola de sapateiro, Tiner, drogas usadas
pelos meninos de rua????) “sem sapato e sujo”. As marcas de ironia desse enunciado são
muitas, deixando lacunas no texto. As insinuações do texto de fragmentos levam o leitor a
pensar na referencialidade do texto. Mesmo falando do real, a literatura não tem mais a
ilusão de dar conta desse “real”. Os contos de Freire trabalham com o factual, pois seus
relatos fazem parte do cotidiano das personagens citadinas, e representa as suas múltiplas
possibilidades. “Droga mole.”Amola, esmola...” No campo do enunciado sabe-se que o
narrador está se referindo ao menino, mas também poderia estar aludindo à droga (cola,
Tiner?). Tanto o menino quanto a cola ou o Tiner, para o autor implícito, são drogas moles.
Também ocorre o deslizamento de significado com a palavra “amola”. Amola o objeto que
o menino usa para assaltar, ou a presença do garoto nos sinais incomoda, “amola” as
pessoas? Na seqüência da análise, cita-se “... todo dia todo santo carro”. Nessa frase fica
nítido o trocadilho usado pelo autor, podendo ser interpretado como uma referência ao fato
de que não se pode dizer, como convencionalmente se diria, que o dia dos que esmolam
(amolam) possam ser chamados de “santo dia” e sim “santos” seriam os objetos, isto é,
carros ou os “donos” dos carros, referendando a sociedade do consumo, a sociedade
capitalista. O trabalho com a linguagem ─ uso da sonoridade, aliterações, contraposições,
metáforas e metonímias ─ faz desse texto ambíguo, enxuto, minimalista, um vasto campo
de sentidos, estrategicamente, trabalhados de maneira a se configurarem por suas muitas
significações. Muitas vezes, percebe-se que as lacunas desse texto estariam a mercê da
literatura realista contemporânea, que procura deixar que as imagens se projetem,
mostrando que o „real” é nada mais do que a construção da linguagem.
Pascoal Ferinaccio, em “A questão da representação e o romance brasileiro
contemporâneo”, faz uma reflexão sobre a representação da realidade nas produções
literárias, “como um meio de retorno às coisas” e à função social da literatura na cultura
brasileira contemporânea. Segundo Farinaccio, baseando-se na obra de Hans Ulrich
Grumbrecht (Modernização dos sentidos), o modo de produção das vanguardas esgotou e
não chocam mais a burguesia. Daí o surgimento de uma literatura, não “centrada na forma”,
mas uma linha literária realista que recupera a “função de representação” (p. 5). Para
Farinaccio, esse “novo realismo literário” voltou a apresentar mundos a seus leitores,
todavia sem o compromisso de serem fiéis a quaisquer referentes. O teórico faz alguns
questionamentos que seriam indagações dos estudiosos da literatura contemporânea, como
por exemplo: “O que teria provocado a emergência dessa literatura? Por que o resgate (...)
das funções da “representação do mundo” e da “função de sentido” na literatura? (p. 7).
Farinaccio parece reafirmar que o material lingüístico não pode evitar “os efeitos de
referencialidade”. (p.7). Seguindo esse raciocínio, Farinaccio diz que a palavra-chave para
caracterizar as produções culturais contemporâneas seria “desreferencialização” , isto é, a
relativização dos conceitos, antes “distinções dicotômicas”, como representação e referente,
superfície
e
profundidade,
materialidade
e
sentido
etc.
Para
lidar
com
a
desreferencialização e ainda concorrer com a mass mídia, as produções precisam “retomar
questões prementes, quais sejam, as relações econômicas, as relações sociais e
intersubjetivas, as relações de poder e as determinações históricas da cultura.”(p. 8). E é
exatamente isso que se pode detectar na construção literária de Angu de sangue: a evidente
proposta de questionar a realidade, mas que mostra o
trabalho com a linguagem, o
compromisso com a estética, corroborando que é possível unir, metalingüisticamente, a
estética, a crítica social e a crítica à sociedade. Assim pela análise, pode-se perceber a
riqueza deste enunciado: “E ele, J.C.J., sem piedade exposta, só ferida e crosta, encosta a
mão contra a cara dela, que já engole a fumaça e vota: em quem? Partido da situação não
toma.”(p.123).
Há muito que se analisar nesse excerto. Primeiramente, dever-se-ia
comentar o nome dado à personagem: J.C.J. Essas iniciais fazem alusão às iniciais da
inscrição na cruz do Cristo. JCRJ (Jesus Cristo Rei dos Judeus). Ao fazer essa analogia a
leitura conduz à interpretação de que o autor implícito está chamando a atenção do leitor
para o fato do garoto ser vítima de uma sociedade violenta, arrogante, com seus valores
equivocados. Como vítima, poder-se-ia pensá-lo, também, como mártir da história.
Também o uso das iniciais, em diálogo com a tarja preta, ilustração do conto, indicaria a
aproximação da
narrativa com um texto factual, em que a verdadeira identidade da
personagem precisa ser preservada, especialmente por se tratar de um garoto que ainda não
atingiu a maioridade. Logo a seguir, aparece a palavra piedade, que pelo Koogan Larousse,
significa “virtude que leva a render a Deus a honra que lhe é devida”. (p.667). O garoto
possui o nome que lembra o nome de Cristo, mas sem Sua virtude, expostas apenas “ferida
e crosta”. A personagem ao abordar a senhora, segundo as palavras do narrador, “ela vota”,
porém a lógica seria volta. Mas, a ironia aparece quando se pode fazer a associação do
termo votar à idéia da conquista da cidadania. Vale lembrar, nesse contexto, Nestor
Canclini (1995), que discute o conceito de cidadania. Para o teórico, na contemporaneidade,
o conceito de cidadão não se ligaria mais a aspectos como a conquista do voto. Partindo do
princípio de que todo cidadão brasileiro, sem distinção, possui o direito ao voto, a
contradição se instala, quando se percebe que esse cidadão não é reconhecido como tal,
pois é negligenciado pela sociedade e esquecido no que se refere a seus direitos. Para
Canclini, o indivíduo, na sociedade contemporânea, se torna mais ou menos cidadão de
acordo com sua capacidade de consumo. Nota-se que o trecho retirado do conto de Freire,
“Mesmo alguém assim, fininho, mesmo alguém assim desalguém. (p. 124)", poderia
ratificar o pensamento de Canclini. Seguindo essa linha de raciocínio, percebe-se que na
indagação : “vota: em quem?”, essa análise fica ainda mais ratificada, pois associa,
mediante ao jogo de palavras, as questões políticas ou as questões relacionadas aos
políticos, ao fato deles ignorarem esse segmento social que também é cidadão, eleitor.
Nesse contexto, o conto traz para sua superfície toda a ambigüidade e toda a tensão sobre
essas ironias da sociedade. Logo a seguir, o narrador completa dizendo que “Partido da
situação não toma.”(p.123). Vale como reflexão: a qual situação o narrador se refere?
Tomar partido da situação seria o mesmo que questionar de que lado estaria o
narrador ou o leitor? A própria estruturação do texto é formada pelo dialogismo (Bakhtin,
1993), isto é, formada por um diálogo em que há um entrecruzamento de vozes, mesmo
que não perceptíveis pelo leitor desavisado. Articular essas vozes seria perceber, de
maneira mais complexa, o emaranhado da rede social. O narrador mostra as diversas
perspectivas do fato: “Ainda vê o menino na dobra da esquina. Ele corre, pequeno, já
sumindo. O que ele viu nela?” O verbo “vê” na terceira pessoa do singular, sem ser
precedido por um sujeito deixa em aberto sobre quem o narrador está falando. Quem vê?
Isso prova que as interpretações não se fecham, ao contrário, se abrem em múltiplas
leituras.
Quanto ao tempo de enunciação, a produção do conto se dá a partir do estratégico
arranjo do enunciado que remete ao instante captado, o do agora. De fato, está presente na
narrativa uma consciência altamente construída do autor, que se esconde nas vozes
narrativas, traduzindo as intrincadas relações sociais do mundo urbano. “Sozinha e Deus,
nos giros dos pneus” (124). (...) “Ela dona, sem dono.” (p. 125). Nestas frases, nota-se a
solidão das pessoas na grande metrópole. Diante do pressuposto de que a linguagem está
em constante ligação com um dado contexto sócio/tempo/cultural, constata-se que, ao tratar
das questões sociais que abarcam o espaço urbano, o narrador capta a miséria, a exploração,
o abandono, a corrupção, a solidão do homem na Babel contemporânea. Nessa perspectiva,
percebe-se o mundo contemporâneo, cada vez mais, abrigando um espaço de incertezas e
de inquietações. Espaço este traduzido pela literatura como um lugar propício para levantar
questionamentos, longe de se tornar um lugar de apaziguamento. A despeito dessa
literatura, vale citar Jaques Rancière, que em seu artigo, “A arte além da arte”, que diz:
“O que é novo e significativo, portanto, não é a vontade de uma arte que
saia de si mesma para agir diretamente no mundo. É a forma hoje
assumida por essa vontade, uma forma de assistência individual aos mais
desfavorecidos que tanto as vanguardas artísticas como os construtores do
socialismo rejeitavam até pouco tempo atrás. O sonho de uma arte que
construa as formas de uma vida nova tornou-se o projeto modesto de uma
arte relacional: arte que busca criar não mais obras, mas situações e
relações, e nas quais o artista, como diz o teórico francês dessa arte, presta
à sociedade “pequenos serviços” próprios a reparar “as falhas do vínculo
social” ( mais!-domingo, 24/10/2004 -p.3).
A inovação comentada por Ranciére aparece na configuração do conto. Assim,
parece que a arte, ou melhor, a literatura tem sido mobilizadora do sujeito social. A arte,
nesse contexto, deixa entrever sua proposta de adentrar a realidade, suscitando reflexões
sobre a violência, sobre a desigualdade e sobre a conseqüente perda da identidade do
sujeito no mundo contemporâneo. Pode-se observar isso através do seguinte enunciado,
retirado do conto JCJ: “Chega algum moço ao motor morto. O moço viu tudo do seu posto.
Gasolinou-se até ela”. (p.124). Primeiramente, pode-se comentar o pronome indefinido
“algum”, estrategicamente usado pelo autor para se referir ao anonimato das personagens.
Também reforça-se essa análise pela observação de que a única personagem do conto que
possui nome é o garoto, mesmo assim sabe-se apenas de suas iniciais. Seguindo a
construção desse enunciado, o leitor depara com outra elaboração curiosa: o moço chega
“ao motor morto”. Ou seria à personagem assaltada, já morta? Nesse trecho há um
prenúncio do desenrolar do conto. Além disso, a ironia do texto coloca a pessoa no mesmo
patamar dos objetos (carro). A seguir o narrador diz: “Gasolinou-se até ela”, os carros são
movidos à gasolina, não o ser humano. Porém, esse deslizamento do significante leva o
leitor a fazer a inferência de que o homem trabalha num posto de gasolina. Mas o mais
importante da estratégica construção frasal é perceber que existe aí uma referência à
coisificação do ser humano na sociedade contemporânea. Diante dessa leitura, o leitor vê,
indignado, o contexto social em que vive. Contexto esse em que sujeitos e objetos se
misturam e são tratados da mesma forma. A realidade cruel da sociedade é
metonimicamente representada pela figura do rapaz que trabalha no posto, pois esse moço
aproxima do carro não para socorrer a vítima e sim para aproveitar da ocasião e roubá-la.
“O moço já foi invadindo o braço no seu assento, o bafo da bolsa abrindo, levou seu
dinheiro e documento”. (125). Impera-se, desse modo, a barbárie. Não existe o sentimento
de solidariedade, e cada um tenta tirar proveito das situações. No conto há claramente uma
desumanização do homem, anunciada por diversas passagens e tudo isso se torna alimento
para a criação artística daqueles que têm o olhar astuto para o cenário urbano. Karl Erik
Schollhammer, em “Os cenários urbanos da violência na literatura brasileira”, denomina
essa exposição da realidade brasileira, na literatura, como “transrealismo”.
“Nessa perspectiva, o autor urbano se inscreve numa ambição mais ampla, em
que procura um transrealismo - expressão do real além da realidade - que dê
conta de uma nova experiência social urbana e, para esse fim , precisa revitalizar
a linguagem poética, transgredindo as barreiras proibitivas da significação. É
importante ressaltar que as metrópoles brasileiras oferecem excelentes cenários
para a encenação desta procura, pois a realidade proibida e excluída é flagrada a
olho nu, bem como a linguagem coloquial e subjetiva que interagem com ela são
permanentemente interpeladas, tanto pela ordem discursiva, social e reguladora
quanto pelo impacto não discursivo da violência, da miséria e da morte”. ( p.
249).
O “transrealismo, então, seria uma estratégia usada pela literatura de ao transgredir
“os limites da representação” tenta expressar a realidade, daí o efeito despretensioso de
“mostrar”, porém desmascarando a realidade. Desse modo, a violência se inscreve no plano
enunciativo e a narrativa fragmentada, cheia de lacunas, mas, contraditoriamente, farta de
imagens, se instaura de maneira diferente: é o dizer, sem dizer...exibe-se e se insinua. Os
deslizes aparecem e, muitas vezes, o texto muda de perspectiva e passa a relatar o fato
sobre o outro foco, como acontece na seqüência do conto J.C.J. O desenlace é a morte da
personagem, narrada sob a própria perspectiva. Paradoxalmente, agora com a vida já
esvanecendo e com a aproximação da morte, as máscaras sociais da personagem vão
caindo, máscaras usadas para encenar a multiplicidade de papéis por ela desempenhados:
profissional, familiar, de status sociais, culturais etc. O texto mostra como essas diversas
facetas fazem-nos esquecer dos nossos desejos, moldando-nos ao que pressupomos o que
de nós deseja a sociedade. Temos de alcançar a todo o custo o sucesso profissional, temos
de atender às necessidades de consumo exigidas pelo mundo capitalista, temos de nos
parecer realizados, felizes, bem sucedidos. Para tal, perdemos a autonomia, o direito a
escolhas, conseqüentemente, a liberdade, instalando-se a frustração, o medo, a insegurança.
Tudo isso se escancara, quando a personagem alucinadamente na hora da morte se
dá conta de que não questionou em vida essa entrega frenética à manutenção das máscaras.
Ao
contrário,
tornou-se
escrava
delas,
sem
criticá-las,
sem
questioná-las.
Contraditoriamente, a reflexão vem através das lembranças do cotidiano, do dia-a-dia, do
que poderia ter feito, enfim do simples. Até os sabores da infância vêm. Todos os
pensamentos se tornam alucinantes, misturando passado, presente, futuro. Do passado,
sonhos adiados (“Arnaldinho, quero um filho teu”); do presente, o habitual, o corriqueiro;
do futuro, um porvir que lhe escapa, o que já não pode mais se realizar (“Arnaldinho,
esqueça”), pois a morte já se aproxima.
“A vida esmola, mas não amola”(p.126). Assim, o narrador de J.C.J. termina seu
relato. Afinal o que se poderia dizer dos textos que se propõem falar da realidade do mundo
em que vivemos? A recorrência dessa literatura poderia ser classificada como “Paixão pelo
real”, apropriando do termo usado por Slavoj Zizec, em “Bem-vindos ao deserto do Real”?
Para o autor, uma das manifestações dessa paixão seria a experiência da transgressão,
manifestada na figura da violência política, na sexualidade sado masoquista, nos
movimentos terroristas, nos trabalhos sujos que vão contra princípios morais etc. e que de
certa forma estão sendo questionados pela literatura contemporânea. Ou poder-se-ia usar o
termo usado por Jaques Rancière, explicando essas produções como, “Uma obsessão pelo
real”. Para Rancière, “A obsessão pelo real assume várias formas. Pode ser a preocupação
em testemunhar o estado do mundo por meio da objetividade da máquina fotográfica, que
nos restitui exatamente os cenários da vida ordinária em tempos de globalização.”(mais!
24/10/2004. p. 3.).
Portanto, o que se tentou com essa análise foi observar o caráter de
“desreferencialização”
da
literatura
contemporânea.
Isto
é:
“o
paradigma
de
„desreferencialização‟ da experiência cultural contemporânea mantém-se, igualmente, o
esvaziamento da função social da literatura. (p. 7). Retoma aqui o termo usado por
Farinaccio, por achá-lo interessante para analisar os textos literários que aí circulam. O que
se pode aproveitar do texto do teórico seria o fato da literatura dita pós-moderna voltar a
tratar do “real”, mas sabendo que a representação da realidade não é a realidade em si.
Apenas diz dela, uma vez que o formador de linguagem , como denomina Nietzsche, nunca
capta a coisa em si, mas tão somente as relações das coisas ao homem. Segundo Farinaccio,
“A literatura não consiste no resgate lingüístico de uma verdade pré-formada nas coisas e
nas relações sociais”. Daí o fato dessa literatura usar com demasia, os deslizes dos
significados, a ambigüidade, a mobilidade textual e especialmente a possibilidade de fazer
ver os fatos por diversas perspectivas. Em J.C.J, essa fluidez textual aparece ainda mais
“ornada” pela fragmentação do texto. A incompletude das frases, metalingüsticamente,
trata da impossibilidade da linguagem de dizer tudo, trata da “certeza” “derridiana no que
diz respeito às certezas desaparecidas”.(p.10). Indaga-se ao raciocínio de Farinaccio uma
constatação a que se pode chegar, a partir das análises de diversas literaturas dentro dessa
linha de que trata este ensaio. Refere-se, aqui, à “desreferencialização”. Se se percebe,
como foi mostrado acima, uma contundente crítica social, não se pode afirmar um
afastamento do “real” pela simples exposição dos fatos. Isso fica corroborado pela sensação
causada no leitor no momento da leitura desses textos. O sentimento que se desponta pode
ser descrito como algo que incomoda. Tal qual a constatação de que se refere à realidade
cotidiana, e que ao falar dela, através do texto que a exibe, coloca-a em cheque, mesmo
sem defender pensamentos ideológicos. Mesmo sem a proposta de carregar bandeira, como
na modernidade. O próprio texto ao trazer para a superfície as contradições, as mazelas da
sociedade, exibindo-as de forma exaustiva, causa-nos um desconforto, levando-nos ao
sentimento de impotência e à descrença pela possibilidade de redenção. A narrativa de
J.C.J. estampa a nossa impotência diante da perversidade do mundo, da ausência do estado,
do descuido com o outro. Tira-nos da zona de conforto de ignorar o que acontece à nossa
volta e isso pode ser compreendido como um meio de se repensar a realidade.
Abstract:
This article examines the contemporary literary construction, based on daily life, the facts, and
becomes a forum for discussion on society. It proposes reflections about the characteristics of
"referencialização" or "desreferencialização" of the text and its effects on reading, especially regarding the
multiple interpretations.
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E3 LET 11. APORIAS DO REAL