Revista Eletrônica Fundação Educacional São José 9ª Edição ISSN: 2178-3098 LITERATURA: SISTEMA OU CONTRASSISTEMA? Fabiana Pereira Costa Ramos Taurino1 Rúbia Christina Lopes Ribeiro2 RESUMO O presente artigo tem como objetivo refletir sobre a concepção de literatura como sistema. Para tanto, apoia-se especialmente em Antonio Candido, que assim a concebe a partir do Arcadismo. Aponta-se os marcos históricos decisivos no tocante a uma sistematização literária. Em contrapartida, levanta-se a reflexão sobre a irreverência da arte (e por extensão da literatura) como um contrassistema. Palavra-Chave: Antonio Candido; Crítica literária; Arte. ABSTRACT This article aims to reflect on the concept of literature as system. For both, based especially on Antonio Candido, who designs from Arcadismo. Pointed out the crucial landmarks for systematic literature. On the other hand, the reflection on the irreverence of the art (and by extension of literature) as a contrassistema. KeyWords: Antonio Candido; Literary criticism; Art. 1 Mestranda do Curso de Letras. Área de Concentração: Literatura Brasileira, Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora -CES-JF/MG. Endereço: Rua Lincon Barbosa de Castro-112-Bairro: Matadouro, Itaperuna-RJ, CEP:28300-000. Tel:022-99474031.E-mail: [email protected]. Artigos Originais 2 Mestranda do Curso de Letras. Área de Concentração: Literatura Brasileira, CES-JF/MG. Revista Eletrônica Fundação Educacional São José 9ª Edição ISSN: 2178-3098 Introdução Literatura é um processo de comunicação que funde os conceitos arte/linguagem formando um sistema de signos cuja matéria-prima é a palavra, expressa de tal forma que a distingue da linguagem natural. Na matéria literária há sempre a ocorrência de algum expediente estético, motivo que dificulta engendrar um conceito estável sobre ela. Literatura é um fenômeno que se descortina como uma instigação multifacetada num circuito aberto, complexo, oscilante e movimentado, um sistema que não se fecha em regras preditivas. A literatura como sistema, objeto do artigo em pauta, compilando autores e obras sob um viés cronológico, possibilita periodizar historicamente toda a produção literária de um povo. Sob essa perspectiva, questiona-se: até que ponto a literatura pode ser considerada como sistema, levando-se em conta, em especial, o ponto de vista de Candido, o qual, prioritariamente se apoia num corpus sólido de teóricos e críticos na sondagem dos textos? O trabalho em tela, além de pontuar na história o momento em que a literatura começa a ser entendida como sistema, objetiva salientar o olhar candidiano a esse respeito. 1. Pelos meandros da história No caso da literatura brasileira, observa-se que, do século XVI ao XVIII, o que se produziu foram obras avulsas que não se constituem um todo orgânico capaz de fixar tradição. Com o surgimento das academias pelo grupo mineiro, no Arcadismo (segunda metade do século XVIII, Século das Luzes), começa a ganhar corpo a literatura ocidental no Brasil, “estabelecendo-se, deste modo, uma tradição contínua de estilos, temas, formas e preocupações”. (CANDIDO, 1971, v. 1, p. 25). Surgem públicos consumidores de arte que contribuem para a consolidação do sistema literário, o qual se fortalece com o Romantismo, ganhando contornos locais. Em 1836, em Paris, Gonçalves de Magalhães funda a revista Niterói, onde estabelece as características da literatura brasileira, que fixam o sentimento de nação. É no século XIX, pois, que o estudo sistemático da literatura conquista seu espaço no meio científico. Os estudiosos seguiam uma linha evolutiva de tradição encaixando autores e obras em períodos pré-definidos, reconhecendo neles características de época; era uma crítica Revista Eletrônica Fundação Educacional São José 9ª Edição ISSN: 2178-3098 diacrônica que rejeitava quaisquer traços destoantes das características em vigência, acatando tão somente o historicismo e o psicologismo. Sob tal enfoque, compreendia-se a obra literária considerando-se sistematicamente dois aspectos decisivos na conjuntura de sua elaboração: de um lado, a psiquê do autor; de outro, fatores externos (sociais e históricos). Com os estudos linguísticos, entretanto, ainda no século XIX, emerge uma oposição a esse caráter sistemático, uma nova análise do objeto literário: a formalista, que, obviamente, não substitui a diacrônica e subjetivista análise, é apenas um inusitado método coexistindo com o tradicional. Os formalistas, por meio de um estudo sincrônico da variabilidade literária, avaliavam as obras valorizando a poética, tendo o texto como corpus exclusivo de pesquisa. Segundo esse postulado, é inadmissível avaliar todas as épocas pela mesma metodologia, uma vez que cada uma delas é um sistema singular. Somente a forma sofre metamorfose no processo literário, motivo pelo qual os gêneros não são constantes; e quando sua evolução se distancia para um polo oposto, é um agente de vanguarda que assinala determinado período. Acerca de aspectos extraliterários, como é o caso do meio/sociedade, o ponto de vista difere da corrente tradicional: a vida social, ainda que presente na obra, não se constitui fator de influência na psiquê do autor. Silvio Romero (fins do século XIX e primeira metade do século XX) assim se posiciona: aborda o objeto literário pela linha sociológica, desprezando a literária. Busca sustentação teórica na sociologia, uma ciência que, por certo, ampara subsidiariamente a análise, amplia o sentido da obra, mas que, para o entendimento dela, ter o texto como ponto de partida, poderia dar margem a distorções. Candido, em 1959, supera as concepções de Romero com a obra Formação da literatura brasileira. Ele parte da abordagem histórico-crítica e a ela incorpora mais elementos, da seguinte forma: pondera sobre as referências cronológicas e culturais do aparecimento dos estilos literários no Brasil (Arcadismo, século XVIII; Romantismo, século XIX) concomitantemente com a instauração de um sistema literário. Para realizar sua obra Formação da Literatura Brasileira, Antônio Cândido serviu-se de pressupostos universalistas particularistas, porque sentindo a influência do pensamento externo (europeu) percebeu também as particularidades de uma literatura surgida aqui e preocupada com a caracterização nacional, Antônio Cândido aponta o Romantismo como uma fase extremamente comprometida com uma busca de identidade nacional. Revista Eletrônica Fundação Educacional São José 9ª Edição ISSN: 2178-3098 (OLIVEIRA, 1988, p. 59). Os ensaios de Candido sobre o Romantismo no Brasil, acerca da vida literária, suas críticas literárias diversas, suas discussões sobre a vida política brasileira, seus trabalhos sobre pensadores sociais e políticos (Silvio Romero, Joaquim Nabuco, Manoel Bonfim, Euclides da Cunha, Fernando de Azevedo), suas inserções sobre o tema da educação e suas pesquisas acerca da cultura, da identidade e da sociabilidade, são de grande importância na busca de caminhos para executar um sistema de mudança social que pode ser analisado em seus textos ao longo da segunda metade do século XX. (REZENDE, 2007, p. 194). 2. Literatura como sistema: um olhar candidiano Para Candido, literatura é um sistema por ser um subsídio de constituição identitária e expressão de identidades de uma nação ou mesmo de uma região. Ele interpreta a literatura como sistema, ou seja, um evento de natureza sociológica, intimamente influenciada pelo contexto social onde fora gerada, e não como fenômeno pontual, fruto de individualidades imaginativas e solitárias (conforme os formalistas) ou reflexo mecânico da sociedade, isto é, retrato fidedigno do real (como queria Platão). Literatura, para Candido, é fenômeno complexo e singular no qual se refletem sociedade e cultura. Assim sistematiza os postulados medulares da literatura brasileira num momento de estabelecimento da nação: 1) O Brasil precisa ter uma literatura independente; 2) esta literatura recebe suas características do meio, das raças e dos costumes próprios do país; 3) os índios são os brasileiros mais lídimos, devendo-se investigar as suas características poéticas e tomá-las como tema; 4) além do índio, são critérios de identificação nacional a descrição da natureza e dos costumes; 5) a religião não é característica nacional, mas é elemento indispensável da nossa literatura; 6) é preciso reconhecer a existência de uma literatura brasileira no passado e determinar quais os escritores que anunciaram as correntes atuais. (CANDIDO, 1971, v. 2, p. 329-330). Seguindo esse ponto de vista, pode-se afirmar que o Arcadismo foi a semente da literatura brasileira que germinou e se encorpou no Romantismo como manifestação da realidade local e que se consolidou com Machado de Assis, em fins do século XIX. Machado soube pinçar conscientemente, aqui e ali, dos antecedentes o melhor para a tessitura de sua obra. Revista Eletrônica Fundação Educacional São José 9ª Edição ISSN: 2178-3098 Convém lembrar que, anterior à Independência, na Era Colonial, as capitanias hereditárias não se relacionavam como um todo articulado. As diferenças regionais e as dificuldades de transações entre elas impossibilitavam a formação de uma identidade nacional, a consciência do nativismo, a unidade, o imaginário coletivo consistente. Em suas pesquisas, Candido observa a presença de um movimento dialético de continuidade e ruptura entre o Arcadismo (uma perspectiva mais cosmopolita) e o Romantismo (uma tendência a especificidades locais). Assim procede o crítico, determinado a engendrar uma literatura, de fato, brasileira, fundamentada na constituição de uma nação, de modo a discriminar “manifestações literárias, de literatura propriamente dita, considerada aqui um sistema de obras ligadas por denominadores comuns...” (CANDIDO, 1971, v. 1, p. 23). Os denominadores comuns a que o crítico remete incluem “além das características internas (língua, temas imagens), certos elementos de natureza social e psíquica, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico de civilização”. (CANDIDO, 1971, v. 2, p. 117). Candido distingue três conjuntos de elementos na literatura como sistema simbólico, a saber: o de produtores literários, o de receptores e o mecanismo transmissor (ou a linguagem traduzida em estilos). A obra literária, portanto, [...] não é uma estrutura estática, simetricamente elaborada e fechada, na realidade é o oposto. Por isso, os elementos de uma obra não podem ser vistos numa relação de soma ou igualdade, mas numa correlação que promove a integridade responsável pelo sucesso do trabalho artístico. Por se tratar de um “ser vivo”, dinâmico, na obra literária sempre haverá violações, que devem ser vistas como equivalências de uma unidade já designada no texto. Essas violações nada subtraem ao material final, são elas que evitam aspectos negativos, como os automatismos e o pronto reconhecimento. Os conflitos também são importantes na construção da obra, pois se uma obra se populariza, serão esses os elementos que se renovarão para que a arte se revolucione. O resultado desse trabalho com a linguagem é um texto com função literária (ou poética, ou estética) que, só depois de analisado, poderá dar lugar ao estudo das subsidiárias ou dos “traços secundários” englobados pela função verbal — (ou referencial já que diluída nos referentes). Mas, para fazer esse caminho é fundamental observar mais de perto o sistema literário. (ALMEIDA, 2006, p. 101). A crítica a partir de Candido se preocupa com fatores intervenientes na constituição da obra, incluindo-se aí o social, que pode ou não ser o deflagrador ou o elemento essencial do Revista Eletrônica Fundação Educacional São José 9ª Edição ISSN: 2178-3098 valor estético. Interessam-lhe todos os elementos que se tecem para a formação do conjunto. Nesse caso, a dimensão social passa a ser um fator de arte. Quando isto se dá, ocorre o paradoxo assinalado inicialmente: o externo se torna interno e a crítica deixa de ser sociológica, para ser apenas crítica. O elemento social se torna um dos muitos que interferem na economia do livro, ao lado dos psicológicos, religiosos, linguísticos e outros. Neste nível de análise, em que a estrutura constitui o ponto de referência, as divisões pouco importam, pois tudo se transforma, para o crítico, em fermento orgânico de que resultou a diversidade coesa do todo. (CANDIDO, 2006, p. 17). A despeito de a literatura ser um sistema plurideterminado que dialoga com outras áreas do saber (subsistemas), para Almeida (2006, p. 97), “não é a realidade e nem objetiva sê-la, ao contrário, ela é um sistema regido por leis próprias, porém que se alimenta de uma realidade, sem, por isso, submeter-se a ela”. A literatura consoante Candido é sistema por estar envolta numa organicidade: autor/obra/público – uma tríade dinâmica e histórica, um sistema literário pelo qual se pauta avançando, dessa forma, os conceitos e as teorias literárias. Trata-se, portanto, de um sistema vivo, pois precisa da interação entre os elementos da tríade. O autor dá o passo inicial, é o inventor; a obra surge; o público a recebe e a modifica. Tanto na expressão como na recepção a arte é social. A atividade do artista estimula a diferenciação de grupos; a criação de obras modifica os recursos de comunicação expressiva; as obras delimitam e organizam o público. Vendo os problemas sob esta dupla perspectiva, percebe-se o movimento dialético que engloba a arte e a sociedade num vasto sistema solidário de influências recíprocas. (CANDIDO, 2006, p. 34). Por certo, o aspecto social, o externo, tem o seu papel na concepção criativa, mas não chega ao ponto de ser fator decisivo; ele pode ou não exercer influência no processo criativo, ser um elemento formal, sem, contudo, se configurar como traço peculiar do autor. Considerações finais Na concepção de literatura como sistema, amiúde desvios sucedem-se que nada mais são do que a originalidade na arte, que pressiona o cânone instaurado até que ele perde sua eficácia cedendo espaço para outro cânone. Dessa forma se explica a preponderância da emoção sobre a razão no Romantismo, que fora combatida pelo Realismo passando a Revista Eletrônica Fundação Educacional São José 9ª Edição ISSN: 2178-3098 predominar a razão sobre a emoção e que mais tarde, com o Modernismo, predominou a função metalinguística. É sabido, contudo, que em qualquer texto literário a função poética é a preponderante e a que perdura enquanto construção formal: arte e linguagem – uma linguagem singular, que possui um sistema inusitado de transmissão de mensagens, tão particular que seria estranho se usado em outras circunstâncias. Outrossim, é preciso atentar-se para o fato de que literatura não é sistema independente, tampouco uma contingência pontual e individualizada do surgimento de uma obra ou outra; é um fenômeno em rede, um evento de natureza sociológica, entrelaçado a subsistemas (cultura social), que parte do micro (objeto literário) ao macrossistema (Literatura). Ela tem função construtiva (a partir da combinação artística de componentes linguísticos) e uma função verbal (dar conta dos fatos sociais). Ambas as funções em interação conferem à literatura contornos complexos e híbridos, que embaraçam o estabelecimento de conceitos a seu respeito. Em suma, a reflexão: se literatura é arte, e toda arte é ousada, irreverente, inovadora e desmistificadora do convencional, não seria improcedente considerá-la como sistema, organizada em torno de um mesmo objetivo? Não seria a literatura, prioritariamente, um contrassistema? Referências ALMEIDA, Geruza Zelnyz de. O uni(verso) literário: literatura como sistema. In Revista Trama, v. 2, n. 4, 2º semestre de 2006, p.97-108;semestral. CANDIDO, Antonio. A formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 4. ed. São Paulo: Martins, 1971, 2 v. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9. ed. Rio de janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. OLIVEIRA, Marly Amarilha de. A História da literatura brasileira que lemos e ensinamos. Perspectiva. Florianópolis, jan./jun. 1988, p. 49-65. REZENDE, Maria José de. A análise de Antônio Cândido: O papel das idéias e do pensamento no processo de geração da mudança social no Brasil. In Conta Moebio 29. Universidad de Chile, Santiago, Chile, 2007, p. 194-210.