Uma função para a angústia na psicose? Fernando Del Guerra Prota 1ª Questão Nos vários trabalhos a respeito da angústia que têm circulado no âmbito da EBP, marcadamente os trabalhos da XI Jornada da EBP-MG – “Os destinos da angústia”, realizada em junho de 2005, vemos abordada de forma clara e contundente o avanço que Lacan faz a respeito do conceito de angústia diferenciando a angústia de castração formulada por Freud, da angústia como “sinal do Real”¹, como o afeto característico e marcante do encontro do sujeito com algo do Real, ganhando assim o estatuto de “afeto que não engana” A partir desta perspectiva um questionamento que fazia muito sentido, qual seja: existiria angústia na psicose, uma vez que o psicótico não está submetido à castração simbólica?, passa a não fazer mais sentido pois a resposta passa a ser uma só: Sim. Há angústia na psicose²׳³. Afinal o psicótico como qualquer outro, ou mais do que qualquer outro, vive a experiência de encontros com o Real. O estatuto da angústia na psicose coincidiria com a própria emergência do Real, como por exemplo nas alucinações verbais, que são o retorno no Real daquilo que foi foracluido do simbólico, ou ainda com a própria passagem ao ato, sendo angústia e passagem ao ato duas faces da mesma moeda. Entendo que a expressão “sinal do Real” deva ser entendida como o encontro de uma determinada estrutura com o impossível, o indizível e não sinal do próprio indizível, o que centra a questão sobre o sujeito desse encontro, pois de outra forma seria uma categoria inoperante. E para a psicanálise as categorias utilizadas precisam ser operatórias já que Lacan não propõe categorias propositivas sobre a “verdade das coisas”, como uma filosofia positiva sobre o mundo4. Sendo assim para apreendermos algo, principalmente sobre aquilo que tem raízes no Real, temos que seguir a “política lacaniana”5 e fazer a avaliação de suas consequências. Das consequências que tem para o sujeito a angústia resultante desse encontro com o Real. Extrai-se daí uma questão: Pensar a angústia como signo do encontro com o Real implica à ela o valor de um sinal, de sinalização, aviso, uma última tabuleta antes do abismo. Na neurose de fato observamos que a angústia coloca o sujeito a uma certa distância da experiência do Real, favorece uma tomada de perspectiva, introduz por exemplo entre o sujeito e o gozo do encontro com a morte uma distância, um hiato possibilitando ao sujeito ter espaço para manejos subjeitvos, sem desaparição da sua condição de sujeito por uma absorção num gozo mortífero, o que concluo das colocações de Miller na sua introdução ao seminário 10, onde localiza a angústia entre o desejo e o gozo. Haveria na angústia da psicose esta mesma função sinalizadora, de sinal de alerta para o sujeito? Ou seja, em muitos sujeitos comumente chamados de neuróticos a angústia tem uma função. Esta função da angustia refere-se claramente a uma insersão no funcionamento significante: Angústia fazendo signo de algo fora da cadeia significante que será colocado em relação a uma cadeia significante. A emergência desde afeto assim se dá numa posição de anterioridade com relação ao Real em jogo, tendo por consequencia o reenvio do sujeito para uma posição desejante, deslocando o lugar do objeto de gozo para o de causa de desejo6. Já na psicose temos a angústia aparecendo concomitantemente à emergência do Real. Assim na psicose a angústia poderia sinalizar algo? O sujeito psicótico poderia utilizá-la para se balizar em sua relação com os momentos de enfrentamento com a castração Real sem recursos? Qual a consequencia da angústia para o psicótico? Esquematicamente: Neurose: Sujeito – Angústia – Real Psicose: Sujeito – (Real-angústia) Minha hipótese é de que o psicótico não pode utilizar esta função da angústia para o seu savoir-faire e a diferença fundamental está nos termos tocar o Real, vislumbrar algo do Real, que utilizamos para os neuróticos e o introduzir-se no Real do psicótico. A diferença entre olhar de perto o abismo e estar nele. Tal diferenciação pode ter importância para a prática clínica com estes sujeitos mudando a escuta do que está em jogo. 2ª Questão A noção de temporalidade é basicamente uma noção simbólica. Ou seja: um elemento (unidade de tempo) que se define com relação ao outro elemento da cadeia e a um referencial externo que “conta a passagem do tempo”, mede a relação entre o elementos, mas ao mesmo tempo está imerso nos próprios efeitos da cadeia, nos efeitos do tempo. A dificuldade dos sujeitos psicóticos com o simbólico devido a foraclusão, ao fato de não fazerem-se representar enquanto sujeitos pela cadeia significante, levando a dificuldades de amarrações, de construção de pontos de estofo, não levaria o sujeito a uma relação com o tempo diferenciada, uma vez que esta é uma noção com funcionamento absolutamente significante? A psicose parece-me colocar questão ao funcionamento do tempo lógico introduzido por Lacan caracterizado pelo instante de ver, tempo de elaborar e momento de concluir7. O retorno no Real daquilo que foi forcluido assim como a passagem ao ato (que não seja conclusão de um delírio) não se caracterizam como um momento de concluir sem passagem pelo instante de ver e tempo de elaborar? Penso que sim. Na conversação de Arcachon, Hervé Castanet chamou de permanente presente uma alteração da vivência do psicótico com relação ao tempo8, a qual chamarei de eterno presente, para fazer referência ao eterno retorno de Nietche. Penso a ocorrência de um eterno presente em duas vertentes: do sentido e do gozo. O sentimento de eterno presente se manifesta com relação ao sentido, como no caso descrito por Castanet, como a necessidade constante de asseguramento do sentido das palavras como se o sujeito tivesse que refundar as bases do pensamento todo o tempo, como ele nos mostra. Não havendo um estofo seguro para o simbólico que possa se fixar no “já aprendido”, “já sabido”, é preciso retomar incessantemente os passos da construção do pensamento, como num caso por mim atendido onde não era possível terminar provas escolares uma vez que a cada questão ao invés de utilizar dos teoremas matemáticos estabelecidos era necessário reconstruir toda a lógica constitutiva da matemática. No âmbito do gozo, podemos pensar na percepção de uma experiência de gozo experimentada no passado constantemente vivida como se fosse hoje. Sem dúvida toda revivescência fantasmática, onde o sujeito experimentou se colocar como objeto para o gozo do Outro, tem a experimentação da temporalidade alterada, “como se tivesse acontecido ontem”. Porém quão angustiante não seria ter esta vivência constantemente no dia a dia? Nos sujeitos psicóticos ditos clássicos, em verdade, não se vê tal experimentação diária. Ao contrário em muitos casos a experimentação de qualquer tipo de afeto se encontra ausente, ou seja, o conhecido embotamento afetivo classificado pela psiquiatria como parte dos sintomas negativos da esquizofrenia. De tempos em tempos, quando de um surto, onde o que foi foracluido retorna no Real, experimentam novamente uma intensa angústia relativa a este reencontro. Porém cada vez mais recebese no consultório casos onde a vivência da angústia é intensa, diária, maçante, remetendo a um congelamento na posição subjetiva de objeto para gozo do Outro que é vivida como se tal situação estivesse ocorrendo em um eterno presente. São casos de sintomatologias floridas e diversas que frequentemente recebem o título de “Borderlines” pela psiquiatria baseada no DSM IV, e que com o ensino de Lacan podemos considerar como inclassificáves ou no bojo das psicoses. A implicação destes dois fatores da psicose: angústia como correlato da passagem ao ato, como emergência concomitante ou pós encontro com o Real e diferentes vivências da temporalidade, com o eterno presente, encaminham um questionamento sobre a função da angústia na psicose. Para aprofundar este questionamento recorro a um caso clínico. Caso clínico Marcela apresenta um quadro clínico que facilmente seria diagnosticado como Transtorno de Personalidade Borderline pela psiquiatria baseada em classificações como o DSM-IV. E realmente foi assim diagnosticada por vários psiquiatras pelos quais já havia passado e em duas internações em hospital dia, chegando a meu consultório com a identificação “Eu sou Borderline”, identificação altamente reforçada pela mãe que via neste diagnóstico a criação de um sentido que a eximia de culpas. Porém tal identificação em nenhum momento promovia estabilização do caso que pudesse estancar as inúmeras passagens ao ato, fornecendo um lugar no Outro que a apaziguasse. Pelo contrário, esta abordagem que excluia e segregava a função sujeito, parecia favorecer que ela se reintegrasse enquanto tal pela via da passagem ao ato. Marcela tem seu primeiro momento de crise manifesta aos dezesseis anos desenvolvendo um quadro de anorexia, chegando a perder trinta quilos, sendo que anteriormente era obesa. Passa a viver um “lado negro”: envolvimento com drogas, álcool, vida sexual conturbada envolvendo-se com vários parceiros, fugas de casa indo morar com “turma da pesada” e ainda vários episódios de auto-agressão em que cortava o próprio braço. Marcela apresentava ainda constantemente sensação de presença de espíritos, cheiros estranhos, visões de monstros e pessoas mortas. Se do ponto de vista de uma certa psiquiatria pode-se classificar Marcela como Borderline, pode-se entretanto verificar que ela está “Borderline”, está no limite, na borda, em vários outros aspectos: Socialmente borderline, financeiramente borderline, estrutura famíliar borderline, educacionalmente borderline. Tal desamparo do Outro social parece fazer parte da lógica social atual e constitui parte da angústia de nosso tempo, a angústia do sujeito “pós-histórico” que tem cada vez menos welfare state para protegê-lo, cada vez menos segurança de alojamento no Outro, onde se reconhece o estatuto do sujeito traumatizado9. Como comenta Erique Laurent: “Estamos todos prestes a nos considerarmos pós-trumatizados”10. Esta localização do sujeito nas franjas do simbólico, nas bordas daquilo que poderia fazer laço social, faz permanecer num horizonte sempre próximo do sujeito, a angústia como marca da invasão do gozo do Outro, da possibilidade sempre presente de tornar-se objeto de gozo do Outro, o que ela vivencia na relação direta com outro materno ou paterno ou ainda com alucinações visuais de espíritos, passando por sensações corporais de desrealização, cortes nos braços, repulsas alimentares e anorexias breves. Uma miscelânia de sintomas relativos a incorporações e rejeições ao Outro, evidenciando as dificuldades de simbolização. Retomando a questão da função da angústia na psicose e os elementos em investigação: função sinalizadora da angústia e eterno presente, é marcante neste caso a presença maciça da angústia constantemente na vida de Marcela. Angústia que remete a presença eternizada do tio que abusou dela enquanto criança. Presença em que nada afetou a realidade da morte deste tio. Sua vivência de objeto resto, usado, não encontra nenhuma dialética nem possibilidade de se fixar como memória, mesmo que como memória viva. Ela torna a acontecer diariamente de inúmeras formas. Uma vez mergulhada na angústia constantemente, como poderia a angústia ter uma função de sinalização? Um sinal requer necessariamente uma diferença, uma marca sinalizadora. A questão que se coloca para o analista na condução deste tratamento é como seria possível este sujeito construir algo que viesse a circuscrever a angústia, a parcializá-la e colocá-la em relação a uma cadeia significante de modo que pudesse ser manejada pelo sujeito? Que pudesse levar talvez a construção de um saber-fazer com isto que não se deixa incorporar na ordem fálica? Vai tomando relevância sutilmente, progressivamente, na análise de Marcela, sua relação com o objeto voz. Se em qualquer análise trata-se de dar um lugar de fala ao sujeito, aqui trata- se ainda de dar voz a angústia. Marcela relata que na infância quase não falava e que o Pai tomava a voz sempre que ela era demandada a se colocar, falando por ela. Traz três cenas onde reteve a fala quando poderia ter endereçado uma demanda, um grito, que atingisse o Outro, para que este pudesse vir ampará-la. Desde então já não acreditava no amparo do Outro? Na primeira cena ela é muito pequena e está em casa com uma babá quando cai uma estante sobre ela. Ela fica sob os objetos e não consegue chamar por ajuda, fica ali parada até que a vejam. Na segunda cena um carro passa sobre seu pé e ela não emite nenhum som demorando para os pais perceberem que ela estava com o pé quebrado. Na terceira cena ela, já com dez anos, é abusada sexualmente por um tio e não consegue gritar para pedir ajuda. Esta cena remete a uma anterior onde ela acorda com o pai que, dormindo na mesma cama que ela, acaricia seus seios. Desde o início do tratamento a terceira cena, a cena do estupro, tomava conta de sua fala encobrindo as cenas anteriores, ressaltando e privilegiando a reação de intenso ódio por ter sido tomada nesta posição de objeto de gozo, interrompendo o relato da sequência das cenas, e é exatamente a sequência que traz à tona e evidencia, ressalta, a referência ao objeto voz. Entretanto ele aparece enquanto retido, enquanto pura ausência, puro não endereçamento a um Outro que pudesse decodificar o grito, permanecendo como um vazio que lhe aperta o peito e a faz vociferar, gritar uma raiva imensa deste tio, deste pai, ou de qualquer um que ocupe o lugar de “abusador”. Vociferar que não alivia sua angústia uma vez que são duas faces do mesmo fenômeno. Diferencio aqui então a inclusão do objeto voz naquilo que seria da ordem da fala que pode articular desejo e objeto fazendo laço com o Outro e aquilo que seria da ordem do vociferar como passagem ao ato, como o golpear o outro do psicótico, o Kakon, que reencontra seu objeto íntimo no exterior ao golpeá-lo, o objeto que ele próprio é para o Outro11. Marcela concretiza o objeto que é para o Outro vociferando, fazendo-se voz que golpeia o Outro. Nestas três cenas fundamentais trazidas por Marcela tratam-se de contingências que incidem sobre o sujeito que se vê privado, ou se priva, da possibilidade de recorrer ao Outro. Ela retém o grito que então inscreve aí uma marca; a marca da angústia, da possibilidade do encontro com um Real sem recursos. O objeto voz que do lado do Outro poderia ser destacado barrando este Outro ao mesmo tempo se tornando causa de desejo, é retido mantendo o Outro pleno, gozador, e o objeto que poderia ser de causa de desejo, se mantém como objeto de gozo e angústia. Como diz Miller citando Lacan: a angústia aparece quando a falta vem a faltar e temos objeto em demasia. Entretanto Miller ainda coloca que a função da angústia é exatamente transformar o objeto de gozo em objeto causa do desejo, instaurando a falta que barra o gozo do sujeito. Quando há objeto em demasia levando a um gozo maciço com apagamento da função sujeito, a própria angustia vem a reinstaurar um novo lugar para o objeto, um lugar de causa. Na psicose parece não haver essa função de extração do objeto pela angústia, o que mobiliza o sujeito a tentar fazê-lo através da passagem ao ato, por vezes até de mutilação, como aconteceu algumas vezes no presente caso, porém sem grande gravidade. O presente caso exemplifica pois que essa função da angústia não se aplica à psicose Neste caso de psicose, a angústia é aquela do sujeito que carrega em si, no seu ser, o objeto de gozo do Outro (que por vezes Marcela nomeará como uma “fumaça” ou “algodão” no seu tórax). A angústia como afeto específico que marca a aparição de um gozo avassalador não amarrado, não elementarizado, não parcializado como o objeto a. Angustia na qual está mergulhada e não tem a função para ela de lhe sinalizar a emergência de algo; é a própria emergência do seu Real, presentificado eternamente. Após a emergência do objeto de angústia (voz) na fala endereçada ao analista durante as sessões, Marcela decide entrar para um coral amador com possibilidade de se tornar profissional. Tal iniciativa me parece ser uma tentativa criativa de dar um novo destino a este objeto voz retido, que assumido pelo sujeito pode tomar uma nova dimensão, a dimensão da bela voz. Voz que pode ser colocada em circuito de endereçamento ao Outro através da arte e virtualmente causar admiração, interesse, desejo. Possibilidade de poder se relacionar com o desejo de um Outro barrado e não apenas com a vontade de gozo do Outro. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA: 1. Miller, J-A. Introdução à leitura do Seminário da Angústia de Jaques Lacan, in Opçao Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise Nº 43, Maio de 2005, pg. 43. 2. Barreto, F.P. A angústia na Psicose, in Broxura da XI Jornada da EBP-MG (junho de 2005) 3. Beneti, A. A angústia na Psicose, in Boletim da XI Jornada da EBP-MG – Destinos da angústia. Edição 07- 17/05/2005 – Circulação interna à EBP-MG. 4. Bairrão, J.F.M.H. O impossível sujeito,Volume II: Implicações do tratamento do inconsciente. São Paulo: Ed. Rossari, 2004. 5. Miller, J-A. Politique Lacanienne (1997 – 1998), Rue Huysmans, collection éditée par l’ECF. Paris, 2001. 6. Miller, J-A. Introdução à leitura do Seminário da Angústia de Jaques Lacan, in Opçao Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise Nº 43, Maio de 2005, pg. 41 7. Lacan, J. O seminário livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1998. Pg. 42 8. Castanet, H. Um sujeito no nevoeiro, in Os casos raros, inclassificáveis da clínica psicanalítica – A conversação de Arcachon. Coleção da Bibloteca Freudiana Brasileira. São Paulo, 1998. Pg, 19. 9. Laurent, E. Há algo de novo nas psicoses. In: Curinga / EBP-MG, nº 14. Belo Horizonte. Abr.2000. Pg. 161. 10. Idem. Pg. 161 11. Beneti, A. Kakon e passagem ao ato na psicose.