POR UMA PEDAGOGIA LITERÁRIA: LEITURA,
GÊNEROS DISCURSIVOS E PRÁTICAS METODOLÓGICAS
LUCIANA MENDES SANTOS
O mito da caixa de Pandora desvela a história da primeira mulher na terra. Depois do Titã Prometeu roubar a bênção do fogo dos
deuses e entregá-la aos homens, Zeus pediu para que Hefaísto (deus
das artes manuais) produzisse alguma coisa com graça e leveza que
despertasse o interesse de um homem. Assim, Pandora foi criada e
recebeu dos deuses vários atributos entre beleza e bondade. Zeus a
enviou como presente a Epimeteu, irmão de Prometeu. Mesmo advertido de que não era para receber presente de Zeus, Epimeteu casou-se com Pandora. Junto a ela, foi enviada uma caixa contendo
pragas para o corpo e mente, mas a mulher jamais poderia abri-la.
Nos planos de Zeus, a caixa deveria ser encontrada por Prometeu que
ao abrir a caixa disseminaria as pragas à humanidade e por esta seria
julgado culpado. Contudo, Pandora não se conteve, descumpriu a
promessa feita aos deuses e ao abrir a caixa ficou aterrorizada com o
que vira. Tentou cessar o mal que fizera fechando a tampa e lá dentro
ficou a esperança para confortar a humanidade nos seus reveses.
Apoiados na pujança da mitologia grega, pretendemos investigar a questão da teoria da literatura arrolada as suas práticas na sala
de aula. Seduzidos pela beleza do texto mitológico, traçaremos paralelos com a implementação de metodologias proficientes acerca do
ensino da literatura. Esta percorre caminhos cambiantes, envolventes
e misteriosos, desde a sua existência. Na tentativa de buscar compreendê-la, cada sociedade procurou (e procura) estudá-la ao seu modo,
por isso a História da Literatura está intrinsecamente ligada à história
da evolução humana. “Contar ou ouvir histórias deriva sua energia
altíssima da coluna dos seres humanos interligados através do tempo
e do espaço.” (Clarissa Pinkola Estes, 1994, p. 35)
Foi a curiosidade de Pandora que a fez abrir a caixa e é essa
mesma curiosidade que deve ser suscitada nos educandos para concretizar práticas leitoras efetivas. A caixa de Pandora e o texto literário têm muito em comum. Assim como a caixa libertou as pragas ,
um texto, quando não trabalhado corretamente e não despertado para
o interesse, também pode disseminar o mal-estar. Dentro dessa perspectiva, uniremos o Belo do texto literário às metodologias eficazes e
à interação de leitor-aluno na construção de uma Literatura aberta e
acessível.
ASPECTOS DA
LITERATURA
A literatura originou-se da palavra latina littera (letra), ou seja,
designava a arte que concerne às letras. Por isso, ela atendia qualquer obra escrita e assim, estava relacionada à instrução e à cultura.
Nesse sentido, foram construídos os primeiros alicerces literários
galgados na tradição da escrita, na aprendizagem e na formação cultural. Foi no século XVIII que o termo literatura passa a nomear o
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conjunto de obras com determinadas características estritamente
literárias.
Eagleton (2003), realizou produtivo caminho para demonstrar
como cada sociedade, em determinada época produz a literatura ao
seu modo e, dessa forma, criam-se diferentes percursos para conceituá-la. O autor apontou que a definição dos formalistas russos para o
fenômeno literário como “uma violência organizada contra a fala
comum” (Jakobson apud Eagleton, op. cit., p. 3). Os formalistas
recusaram a premissa obscura que estava veiculada à obra literária.
Observando a literatura na ótica da lingüística, esses estudiosos asseguraram que se tratava de uma organização particular da linguagem,
um fato material. “Era feita de palavras, não de objetos ou sentimentos.” (Eagleton, op. cit., p. 3).
A linguagem literária torna-se estranha por ser justamente “deformada”, ou melhor, como a fala do cotidiano é simplificada e mais
reduzida, ao depararmos com os artifícios com os quais a literatura se
constrói, perdemos o rumo daquilo que nos é familiar.
Parece que foram as mãos de Hefaísto, ainda sujas com resquícios de Pandora, que esculpiram a literatura. Esta seduz e atordoa
quem se aproxima dela. Contudo, é esse atordoamento, esse estranhamento que nos faz ter conhecimento dessa outra forma de expressar o mundo.
Por ter de lutar com a linguagem de forma mais trabalhosa, mais
autoconsciente do que o usual, o mundo que essa linguagem encerra é renovado de forma intensa. (Eagleton, 2003, p. 3)
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Na evolução da conceitualização da literatura, o aspecto material desse tipo de texto foi acrescido de outros saberes e o contexto
de produção também foram levados em consideração. Desse modo, o
texto literário é uma mensagem
Que depende de múltiplos códigos culturais não-literários que atuam (...) numa dada época e numa dada sociedade. Entre esses
códigos, avulta os códigos das ideologias, que definiremos, em
sentido amplo, como a conotação final da totalidade das conotações do sinal ou do contexto do sinal. (Silva, 1976, p. 35)
Porém, é preciso reconhecer que para se produzir um texto literário é necessário ir além do repertório de conhecimento acerca da
linguagem, faz-se necessário possuir os conhecimentos intrínsecos à
produção de uma obra literária.
A criação literária não se realiza num universo adâmico, sob o sino de uma espontaneidade e de um primitivismo absolutos, em
que apenas figurariam como fatores necessários um instrumento
lingüístico e um designo expressivo. A criação literária perfaz-se
no seio de uma tradição técnico-literária e histórico-cultural, cujos valores e cujas forças o escritor não pode desconhecer, quer
para os aceitar e revitalizar,quer para os negar, os contestar, os alterar mais ou menos substancialmente. (Silva, 1976, p. 35)
A questão da linguagem é muito importante porque perpassa
pela trajetória dessa arte. Mas, ao isolar esse aspecto do texto literário, é desprezado todo o trabalho da criação literária.
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O discurso proveniente dessa área é fundamentalmente plurissignificativo e é por esta razão que é capaz de abraçar todas as funções da linguagem a seu favor.
Porque ela encena a linguagem, em vez de, simplesmente, utilizala, a literatura engrena o saber no rolamento da reflexividade infinita... (Barthes, 1978, p. 19)
A LEITURA DO DISCURSO LITERÁRIO
Ao se propor um trabalho com literatura, é
preciso garantir acima de tudo a possibilidade de um contato contínuo com o texto; é
preciso se preocupar antes com o estabelecimento e manutenção de um corpo-a-corpo
saudável com o texto-condição essencial para que se dê a leitura. (Maria Thereza Fra-
ga Rocco)
Chenouf (1993) apresentou no seu seminário várias condições
importantes para que um sujeito se torne um leitor. A primeira delas
consiste na premissa de que desde criança devemos ser testemunhas
do ato de ler. Dentro dessa perspectiva, apreenderíamos o conceito
fundamental da leitura que é, de acordo com Coracini (2002), um
processo discursivo no qual o leitor entra em se encontra com e interage com o texto (esse conceito de texto foi elaborado por A. Schaff
e o considera como objeto de mediação entre dois sujeitos, que corresponde a relação leitor-autor) atribuindo-lhe sentidos.
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Para construir a interpretação de um discurso literário deverá
ser levado em conta o seu caráter plurissignificativo. Ao se confrontar esse texto, o leitor compreenderá que a tarefa de atribuir sentido a
esse discurso será uma condição sine qua non para concretizar esse
intento. Contudo, num sentido mais acadêmico, o conceito de leitura
varia para “a construção de um aparato teórico-metodológico de
aproximação de um texto”. (Orlandi, 1996, p. 7).
Ainda com Chenouf, temos outra condição não menos importante para se construir como sujeito-leitor: a familiarização com todos os tipos de escrita, ou seja, estabelecer competência sociocomunicativa desse indivíduo. Essa competência textual aprimora as estratégias para a escolha de um gênero discursivo mais apropriado para a
sua prática dialógica (Bakhtin). Conseqüentemente, ao entrar em
conhecimento com um determinado tipo de texto, realizam-se pontes
para a construção da capacidade de interpretar.
a boa leitura é aquela que, depois de terminada, gera
conhecimentos, propõe atitudes e analisa valores, aguçando,
adensando, refinando os modos de perceber e sentir a vida por
parte do leitor. (Silva, 1995, p. 6)
Segundo Koch (2002, p. 55) “o ensino dos gêneros seria, pois,
a forma concreta de dar poder de atuação aos educadores e, por decorrência, aos educandos”. O trabalho com a diversidade de textos é
justificado pela necessidade de promoção das capacidades dos alunos, atendendo à demanda e os desafios presentes na sociedade em
geral por que “fruto do trabalho coletivo, os gêneros contribuem para
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ordenar
e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia”
(Marcuschi, 2002, p. 21). Sendo assim,
A leitura literária convive com inúmeros outros tipos de leitura,
entre elas aquelas voltadas para as necessidades práticas da vida
cotidiana como ler bilhetes, cartas, manifestos, artigos, notícias,
etc., mas ela instaura um tipo de pacto com o leitor que a distância das outras práticas sociais letradas. (Machado, 2002, p. 71)
Porém, o trabalho com os gêneros discursivos suscita uma didática específica porque esse tema requer investigação profunda
acerca da articulação dessas diversas práticas linguajeiras.
Machado (2002), apresenta um conceito interessante (desenvolvido por Graça Paulino, membro do grupo de pesquisas de Literatura Infantil e Juvenil) para engendrar as práticas leitoras desses
diversos tipos de texto. A autora desvela o letramento literário .
Primeiramente
O conceito de letramento começou a ser usado nos meios acadêmicos numa tentativa de separar os estudos sobre o ‘impacto social da escrita’ (Kleiman, 1991) dos estudos sobre a alfabetização,cujas conotações escolares destacam as competências individuais no uso e na prática da escrita. (Kleiman, 1995, p. 15-6)
A leitura e a escrita seriam vistas como práticas de inserção
social. Como prática, elas exigem trocas de experiência constantemente. Por isso, o letramento literário abre caminhos para trilharmos
outras trajetórias para o ensino de literatura. Concebendo o texto
literário como um dos vários tipos de textos, torna-se eficaz para o
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aluno que ele entrará em contanto com apenas um desses gêneros
discursivos. Assim, ele perceberá a diferença entre esses textos e,
talvez, se interesse mais na investigação dessas minúcias distintivas.
O poder referido pela Koch é o poder que não pode ser retirado. Consiste na reflexão e na capacidade de dominar a situação que
só o conhecimento fornece. Por isso, leitura é poder.
Com isso seria relevante interrogar porque algumas interpretações de alunos sobre determinado texto geralmente não são aceitas e
não autorizadas. Chartier (1996, p. 21) enfatiza que:
Nas sociedades tradicionais, os leitores formados pela instituição
devem ser confrontados com aqueles que conquistaram o escrito
com grande luta e cuja competência, se não é certificada e
controlada pelos letrados, corre sempre o risco de produzir
leituras fora das normas, improváveis ou rebeldes.
Essa postura autoritária do educador revela uma violência
simbólica acerca da compreensão e da explicação dos seus alunos.
Quando o sujeito não encontra espaço para desvelar o seu discurso, a
sua história de leitura é rejeitada e o seu repertório de conhecimento
é considerado como descabido.
Ricoeur, observou na Teoria da Interpretação (1976), aspectos da compreensão e da explicação que o leitor produz ao entrar em
contato com o texto. A interpretação é um caso particular da compreensão aplicada às práticas escritas da vida. Cabe à explicação exteriorizar o evento a partir dos códigos gerativos da literatura. Como o
discurso literário é algo complexo, abre-se um leque de pluralidade
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de significações, mas é o sujeito-agente (sujeito heterogêneo e incompleto por isso se mobiliza para aproximar-se do outro, que também é incompleto, na esperança e com o desejo (impossível) de encontrar a fonte restauradora da totalidade) que elabora mecanismos
para se aproximar e construir sentidos para o texto.
De acordo com Geraldi (Op. cit.), esse sujeito é construído a
partir das ações mobilizadas com , sobre e da linguagem. Esse mesmo sujeito é capaz de avaliar, convencer, persuadir agenciando os
recursos da própria linguagem. Ele também pode recriar “novos recursos expressivos a partir daqueles já existentes” (Id. ibid., p. 21) e
através das suas escolhas discursivas, linguajeiras podemos verificar “o estilo de pensamento socialmente condicionado, incluindo
ideologias e utopias, que internalizamos nos processos interativos”
(Id. ibid.). Todas essas articulações são realizadas na interpretação
textual. Contudo,
O texto apresenta um campo limitado de construções possíveis. A
lógica da validação permite-nos girar entre os dois limites do
dogmatismo e do cepticismo. (Ricouer, 1976, p. 91)
Fiorin (2002) compreende que um texto admite mais de uma
leitura e não qualquer leitura. As leituras são produzidas a partir das
possibilidades e sinalizações inseridas no próprio texto. “assim, as
várias leituras não se fazem a partir do arbítrio do leitor, mas das
virtualidades significativas presentes no texto” (Id. ibid., p. 81).
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Essas linhas cambiantes tornam-se um tormento para os educadores que somente conseguem ler sob um único ponto-de-vista: o
seu. Mas, “cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir dos
pés onde os pés pisam.” (Boff, 1997, p. 9). Nesse sentido, novas
pedagogias leitoras e literárias devem ser utilizadas para que haja
uma escuta sensível dos repertórios e competências dos sujeitosalunos.
O primeiro passo seria desmistificar o caráter obscuro que a literatura obteve (obtém): o caráter de mistério e de transcendência,
refletir esse sujeito-aluno que está inserido numa sociedade capitalista e reformular metodologias galgadas na “Literatura como museu
imaginário, repertório de valores;’ belas artes”. (Fontes, 1999, p.
149).
Possuir o conhecimento dos procedimentos de leitura e compreender de que forma isso ocorre (os fatores psicolingüísticos e
interacionistas) são instrumentos necessários para suscitar o gosto
pela leitura. Esse gosto é aqui observado não como algo metafísico,
mas como um elemento condutor para a eficácia do desenvolvimento da interpretação , pois “o prazer não significa facilidade, ele é
trabalho e procura a construção” (Id. ibid., p . 154) não só para os
textos literários porque todo e qualquer texto pressupõe estratégias
necessárias para o seu entendimento. Para isso, o professor deverá
fazer o uso
de materiais autênticos que exponham os alunos a uma variedade
de exemplos práticos da língua escrita e oral, de preferência inter-
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relacionados com as outras matérias do currículo e capazes de
ressaltar a importância de receber e transmitir informações pelo
uso da língua. (Totis, 1991, p. 36)
A leitura e a escrita são práticas sociais e quando se entra em
contato com os textos utilizados nessa sociedade, compreende-se o
sentido dessas práticas. Com o texto literário não é diferente, mas
quando ocorre a leitura desse texto outras estratégias são utilizadas
para que haja a investigação dos aspectos caracterizadores dessa
linguagem (com as suas figuras, seu simbolismo). É percebendo
como e por quê a literatura é considerada complexa que se produz o
conhecimento dessa especificidade. Nesse momento, ocorre a experiência estética, o prazer do texto. Segundo Jauss (1979, p. 76):
Este interesse estético se explica de forma mais simples pelo fato
de que o sujeito, enquanto utiliza sua liberdade de tomada de posição perante ao objeto estético irreal, é capaz de gozar tanto o
objeto, cada vez mais explorado por seu próprio prazer, quanto
seu próprio eu, que nesta atividade, se sente libertado de sua existência cotidiana.
A escrita literária possui especificidades, mas como qualquer
comunicação escrita é “frágil, pois o receptor não partilha a situação
do locutor.” (Mangueneau, 1996, p. 31). E é essa uma das particularidades do discurso literário: a ambigüidade que faz com que as leituras passem a ser desenvolvidas social e historicamente já que “a obra
pode circular em tempos e lugares muito afastados dos da sua produção. (Id. ibid.).
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Assim, acreditamos que a literatura é capaz de despertar a criticidade no indivíduo. Ela é um saber, um conhecimento e deve ser
tratada como tal. De acordo com Barthes (1978), as palavras saber e
sabor têm a mesma base etimológica e a partir disso, concordamos
que, envolvendo o leitor no seu mundo imaginário e mítico, a prática
literária desenvolve a competência do sujeito de interpretar a si
mesmo, o outro e o mundo.
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