Entre o passado e o futuro
O relato de uma experiência de estágio supervisionado em psicologia num CAPS da
cidade do Recife
O presente trabalho se refere à discussão de nossa experiência de estágio supervisionado num
Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da Região Metropolitana do Recife. Durante
aproximadamente um ano de vivência nesta Unidade de Saúde, tivemos a oportunidade de
acompanhar o cotidiano deste serviço de atenção à saúde mental e, através do suporte teóricometodológico, construir um olhar crítico sobre o fazer psicológico dentro do contexto da
Saúde Pública e do Sistema Único de Saúde. Esse relatório traz as reflexões que a vivência de
estágio nos oportunizou e, mais do que a proximidade com a experiência da crise e do
sofrimento psíquico, objetiva abordar a influência das relações/condições de trabalho na
construção teórico-prática desse serviço e, conseqüentemente, nosso papel na promoção do
cuidado em saúde mental nesses serviços ditos substitutivos.
Palavras-chave: estágio; Centro de Atenção Psicossocial; Sistema Único de Saúde.
Entre o passado e o futuro
O relato de uma experiência de estágio supervisionado em psicologia num CAPS da
cidade do Recife
Autora: Suzana Santos Libardi
Professor orientador: Benedito Medrado-Dantas.
(não há professores da banca examinadora, colegiado do curso é que avalia)
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1. INTRODUÇÃO:
A constituição da Psicologia como profissão é considerada, historicamente, um fato recente
no Brasil e se formalizou com a Lei 4.119 de 1962 que dispõe sobre os cursos de formação
em psicologia e regulamenta a profissão do Psicólogo. Na concepção da função e dos locais
de atuação desse profissional a Lei transparece, a meu ver, o momento sócio-histórico da
construção identitária dessa profissão no país: a utilização de instrumentos quantitativos de
mensuração relacionados aos campos clássicos de atuação do profissional de Psicologia (a
saber: escola, hospital, organizações e consultórios clínicos). Durante uma determinada fase
do percurso de construção do saber/fazer Psi, esses campos representaram os investimentos de
caráter acadêmico e profissional da Psicologia, mas avaliamos que, atualmente, essa divisão
esquemática não contempla todas as formas/lugares de inserção desse profissional. O trabalho
na elaboração de Políticas Públicas e a atuação nos diferentes equipamentos do Sistema Único
de Saúde (SUS), por exemplo, são campos de inserção que, como tantos outros, não são
contemplados quando se caracteriza a Psicologia exclusivamente pela instituição onde ela se
insere (Psicologia Escolar para o trabalho desse profissional em escolas, por exemplo).
No campo de minha experiência de estágio (a atenção à saúde mental no contexto do SUS)
por sua vez, a Psicologia Clínica da qual lancei mão esteve diretamente conectada à
Abordagem Psicossocial, mas, por essa perspectiva teórica e pelo contexto onde se insere, seu
fazer cotidiano teve de ser consonante com os princípios do SUS, com uma atuação
interdisciplinar e em rede, com a desinstitucionalização da Loucura e, entre outros fatores,
com a concepção de “Clínica Ampliada” – como será discutido mais adiante.
Diante desse contexto, me lancei o desafio e nesse relatório apresento a síntese dessa
experiência que foi sistematizada nesse documento de forma individual, mas que será, a partir
de agora, narrada na primeira pessoa do plural porque se refere às atividades desenvolvidas
em conjunto com profissionais e usuários da instituição e reflexões e discussões elaboradas
em parceria com colegas de formação. Esse relatório, portanto, se refere prioritariamente a um
recorte de minha trajetória de formação que tive, desde o primeiro momento, contribuições de
muitas outras pessoas que serão simbolicamente representadas pelo “nós” implícito a todo
momento.
Cabe-nos explicitar que nosso relatório objetiva organizar nossa experiência de estágio e, de
maneira específica, descrever as atividades desenvolvidas articulando-as com nossa
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Abordagem teórico-metodológica e problematizar a nossa aproximação com a experiência da
Loucura vivida pelos usuários, bem como, a partir das contingências de nosso campo de
estágio, analisar a influência das relações e condições de trabalho sobre a atenção oferecida no
serviço e, consequentemente, na implementação dessa Política Pública.
2. ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA
Nosso relatório de estágio pretende trazer reflexões sobre nossa experiência do lidar com a
Loucura nos tempos atuais: a assistência oferecida pelos Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS), na cidade do Recife, como um dos serviços ditos substitutivos ao modelo de
Psiquiatria Clássica que foram propostos pelo movimento de Reforma da Psiquiatria no
Brasil. Diante desse momento histórico em que nos localizamos e que em muito nos
determina, avaliamos que uma breve retomada sobre a História da Loucura se apresenta
suficiente para localizar nosso campo de intervenção e, porque por vezes, termina por se
tornar um tanto repetitiva haja vista a grande quantidade de trabalhos que fazem esse mesmo
percurso. Acreditamos que nosso papel como atores sociais de nosso tempo é investir energia
na problematização dos discursos e práticas ditos antimanicomiais, não para desfazer
conquistas desse movimento, mas para sinalizar fraquezas, identificar desafios, contribuir
para seus avanços. Passemos primeiramente, portanto, à mencionada retomada histórica.
2.1. A Loucura na História
À época clássica, a Loucura não recebia atenção especializada e, juntamente com outras
´´mazelas sociais`` tinha na desrazão o único critério para justificar a clausura e o isolamento
(Amarante, 1995). Loucos, leprosos, prostitutas, ladrões, vagabundos, desordeiros - tudo que
àquela época era tido como “desprovido de racionalidade” - recebiam o mesmo ´´tratamento``
e as Santas Casas de Misericórdia e Hospitais Gerais foram as instituições que materializaram
tal mecanismo de isolamento social. Segundo Amarante (op.cit.), nessa fase não podemos
falar ainda em patologias ou qualquer outro componente que represente hoje o tratamento ao
louco, nem mesmo os mais arcaicos, a saber: compreensão de doença mental, conceito de
Hospital Psiquiátrico, medicalização, etc.
A nosso ver, concordamos com o autor sobre a não existência propriamente dita da psiquiatria
e do “doente mental” nessa fase da História, mas, certamente, podemos falar da construção de
uma dinâmica social de natureza excludente que não tinha dificuldade para identificar aqueles
que eram tidos como loucos. Foucault, citando Boissier de Sauvages, diz que “as pessoas de
razão sadia têm tamanha facilidade em reconhecê-lo [referindo-se ao louco] que mesmo os
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pastores sabem quais de suas ovelhas foram atingidas por semelhantes doenças” (Boissier de
Sauvages, 1772, p.33 citado por Foucault, 2005, p.181) e clarifica a concepção que se tinha de
Loucura a essa fase da História quando diz que “(...) Na própria medida em que não sabemos
onde começa a loucura, sabemos, através de um saber quase incontestável, o que é o louco”
(Foucalt, 2005, p.181).
Foi com a ferramenta da internação, na segunda metade do século XVIII, que a Loucura
começou a ser identificada por características específicas e passava a se diferenciar de “outras
mazelas sociais”. É aí que a alienação, segundo aquele primeiro autor, passou a ser critério
considerado capaz de distingui-la e, portanto, dar os primeiros passos para a construção de
quem era o louco, de qual forma a sociedade iria lidar com ele e, obviamente, a qual
saber/poder caberia, em nome de todos nós, executar a tarefa da exclusão.
A Loucura passou a ser concebida como uma doença de origem moral, e as contribuições de
Pinel representavam uma justificativa para que fosse atribuído ao isolamento um sentido
´´terapêutico``. A partir daí, foi possível a observação dos comportamentos dentro do
internamento, a reprodução e multiplicação destes, sua sistematização, até a concepção do que
compreendemos hoje por Sintomas da doença. Observamos que, enquanto a experiência
humana da Loucura vai sendo “organizada” e sistematizada, a instituição hospitalar
psiquiátrica se concretiza como o “locus de manifestação da verdadeira doença” (Amarante,
1995 ,p.26) e de reclusão moral. Pinel salta do modelo de casas de reclusão para a medicação
nos/dos hospitais a partir de um referencial biologista do séc.XIX.
Os asilos pinelianos foram, apesar dos avanços que representavam para o saber/poder
psiquiátricos, muito criticados e as colônias de alienados apresentadas como modelo
alternativo para o reestabelecimento do mínimo de liberdade por que funcionava de maneira
semi-aberta. Mesmo assim, Amarante (1995) analisa que o modelo das Colônias vem para
atualizar o poder psiquiátrico e abafar as críticas que começam a eclodir - não mais se
diferenciando dos asilos a que vieram inicialmente reformar.
Ao longo da História, o modelo de atenção psiquiátrica vem, segundo Amarante (1995),
desenvolvendo-se cada vez mais a um estado de crise – tanto no que diz respeito às bases
teóricas desse campo do conhecimento, como também à eficácia prática de seu modelo de
intervenção. Segundo Arendt (1992), o estado de crise em relação a algum construto social
(no caso o modo de Psiquiatria Clássica) ocorre quando os Homens não obtém sucesso ou se
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negam a dar respostas e é, nesse lugar, que haverá ausência dessas respostas (nesse caso,
falamos da ineficácia dos métodos da Psiquiatria Clássica e da mudança do seu objetivo de
passar do tratamento da doença para a promoção de saúde mental). Dá-se então o
desmoronamento, a crise. É nesse estado que a crise possibilita que retomemos questões
mesmas e buscar, assim, respostas novas ou velhas. No caso da “crise da Psiquiatria
Clássica”, podemos dizer que o tratamento oferecido aos ditos loucos foi a questão retomada
e a proposta antimanicomial a resposta à crise que, naquele momento histórico, foi o novo –
visto que representava uma mudança radical na concepção e no lidar com a loucura.
Sobre o papel que as instituições psiquiátricas asilares desempenharam e a herança histórica
que nos deixaram, Amarante (1995) nos diz que “o que talvez sugira a confirmação de que
sua [referindo-se ao modelo clássico de psiquiatria] validação social está muito mais nos
efeitos de exclusão que opera, do que na possibilidade de atualizar-se como um modelo
pretensamente explicativo no campo da experimentação e tratamento das enfermidades
mentais” (op.cit., p.26). Dessa forma, podemos apreender que para além do tipo de tratamento
e do saber científico que legitimava(legitima) a prática médica clássica, ela estava(está) a
serviço, entre outras coisas, da exclusão social na medida em que se concretiza como um de
seus mecanismos.
A privação da liberdade a que os hospitais, asilos e colônias submetiam seus usuários, somado
aos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade que estavam em vigor, colaboraram para que
o período pós-guerra se constituísse como o momento sócio-histórico para a eclosão da
Reforma Psiquiátrica (Amarante, 1995). A crítica de que o confinamento desrespeita os
direitos dos sujeitos em situação de crise eclodiu reflexões que questionavam esse tipo de
modelo assistencial e a perspectiva psiquiátrica que a sustentava (sustenta). Temos, em
decorrência disso, o que se chama de ´´Psiquiatrias Reformadas`` que contribuíram de
diferentes maneiras para esse movimento de crítica ao poder/prática manicomiais; foram elas:
´´(...) a psicoterapia institucional e as comunidades terapêuticas, representando as reformas
restritas ao âmbito asilar; a psiquiatria de setor e a psiquiatria preventiva, representando um
nível de superação das reformas referidas ao espaço asilar(...)``(Amarante, 1995, p.27). Cada
uma dessas reformas problematizou até um dado alcance o tipo de tratamento, mas que, de
fato, só foram radicalmente criticados com a ruptura proposta pela Antipsiquiatria e as
experiências de Franco Basaglia na Itália, pois este não se restringiu apenas a humanizar as
relações dentro dos hospitais.
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O movimento da antipsiquiatria surgiu na Inglaterra da década de 60 e se concentrou muito
nas expressões da esquizofrenia porque é em torno desse transtorno que o tratamento
psiquiátrico clássico não dava respostas expressivas (Amarante, 1995). Dessa forma, a
Antipsiquiatria veio romper com aquilo que era (é) adotado como uma certeza: a loucura é um
estado de enfermidade mental de base biológica e que compõe o campo de
investigação/intervenção
da
medicina
psiquiátrica.
Esse
movimento
(curiosamente
desenvolvido, inicialmente, por um grupo de psiquiatras) desloca o foco da produção da
loucura dos cérebros dos indivíduos para a relação dos sujeitos sociais entre si e destes com as
instituições. A Loucura passou a ser concebida como uma produção social, um fato político
(op cit).
Fala-se aqui, portanto, de uma concepção diferenciada de ser humano, relações sociais e
institucionais que critica profundamente a forma como o discurso científico constituiu a
psiquiatria como campo de saber (delegando-a uma série de poderes) e justificou (justifica) as
violações cometidas contra os direitos das pessoas ditas loucas. Para o movimento da
Antipsiquiatria interessava desfazer o lugar que aquela ciência ocupava (ocupa) na explicação
do fenômeno da Loucura, sua transformação em doença e métodos de tratamento.
Dentro da esfera de aplicação prática desse novo paradigma, a experiência italiana liderada
por Basaglia é uma referência mundial e para a Reforma Psiquiátrica Brasileira também. A
principal e mais difundida experiência basagliana se concretizou no manicômio de Gorizia
nos anos 60 e depois na cidade de Trieste em 70 e serviu de base para não mais pensarmos
num hospital humanizado, mas para repensar a existência desse Hospital e das organizações
das relações de poder entre médico e paciente e, mais especificamente, de submissão desse
segundo em relação àquele primeiro.
A contribuição italiana foi de grande relevância para a Reforma Psiquiátrica brasileira que
teve suas primeiras experiências na cidade de Santos, São Paulo (VIEIRA FILHO, 1998). A
partir daí os serviços criados para a nova ordem em saúde mental no âmbito da saúde pública
são os considerados substitutivos porque foram criados como modelos para substituir o
tratamento até então vigente (sob o modelo asilar, hospitalocêntrico, fundamentalmente
medicamentoso,
centrado
no
poder
médico
psiquiátrico)
e
contribuir
para
a
desinstitucionalização da Loucura. Por essa expressão compreende-se que (...)“o contexto da
desinstitucionalização não é unicamente entendido como descentralização e desospitalização
77
do atendimento em saúde mental, Mas, essencialmente um experiência de desconstrução do
saber e poder tradicional do clínico” (VIEIRA FILHO, 1998, p.37).
Sobre a distinção entre desinstitucionalização e desospitalização, Amarante (1995) diz que
“ (...) desinstitucionalizar não se restringe e nem muito menos se
confunde com desospitalizar, na medida em que desospitalizar
significa
apenas
identificar
transformação
com
extinção
de
organizações hospitalares/manicomiais. Enquanto desinstitucionalizar
significa entender instituição no sentido dinâmico e necessariamente
complexo das práticas e saberes que produzem determinadas formas
de perceber, entender e relacionar-se com os fenômenos sociais
históricos” (op.cit., p.49).
Dentro das relações de cuidado e atenção em saúde mental ‘desinstitucionalizantes‘ da
Loucura, os serviços substitutivos, entre eles os CAPS, se propõem a fazer uma clínica
Psicossocial e, portanto, a intervenção se dá não somente na esfera biológica - como
faziam/fazem os manicômios quando adotam exclusivamente a reclusão e o tratamento
medicamentoso como instrumentos terapêuticos.
2.2. A Clínica Psicossocial no CAPS
A partir da leitura crítica sobre a história da Loucura e adoção dos princípios e diretrizes da
Reforma Psiquiátrica, os CAPS se propõem a intervir no mecanismo social de produção da
Loucura. Segundo a cartilha elaborada pelo Ministério da Saúde intitulada “Clínica Ampliada,
Equipe de Referência e Projeto Terapêutico Singular” (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE,
2007), “(...) não são poucas as situações em que o adoecimento é causado ou agravado por
situações de dominação e injustiça social” (op.cit., p.13).
A despeito do termo “adoecimento” usado na citação para a clínica em saúde mental, é
refletida a perspectiva de ruptura com os modelos asilares/manicomiais e representa a clínica
que o CAPS deve intervir. Cabe à intervenção dos CAPS, percebendo o usuário como aquele
cidadão que tem, entre outras coisas, direito à saúde (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE,
1990), “(...) não assumir como normal estas situações [referindo-se àquelas situações de
dominação e injustiça social], principalmente quando comprometem o tratamento” (BRASIL,
MINSTÉRIO DA SAÚDE, 2007, p.14).
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Inserido dentro do SUS, o papel dos CAPS é de, em articulação com outras Unidades de
Saúde (US) e/ou equipamentos de outras Secretarias, cumprir sua responsabilidade sanitária,
ou seja, promover o cuidado e ser referência em saúde mental para a população residente
numa determinada área da cidade, num dado território – que no caso de nosso estágio, como
será retomado mais adiante, corresponde ao Distrito Sanitário V (DS V).
Dentro de um modelo de ação interdisciplinar e antimanicomial, desenvolver ações
intersetoriais com a Atenção Básica (AB) em saúde dentro ou fora de suas dependências para
a promoção da saúde e da cidadania desses sujeitos, seriam iniciativas que se aproximam
daquilo que o Lancetti (2006) denomina por CAPS Turbinado e, para tanto, os profissionais
devem adotar perfil “(...) polivalente que deve levar em consideração a mobilidade dos papéis
que assume (...) e a interdisciplinaridade do saber co-construído com diferentes atores sociais”
(VIEIRA FILHO, 1998, p. 37).
Para dar conta de seus objetivos, o CAPS adota metodologias consonantes com o modelo de
atenção de uma Clínica dita Ampliada que valoriza as ações que ofertam cuidado aos usuários
em crise, e pretende inserí-los (em substituição à exclusão) numa rede de relações
comunitárias/familiares/sociais, produzindo fins terapêuticos - benefícios clínicos referentes à
remissão dos sintomas psiquiátricos, melhor convívio com o transtorno psíquico, retomada de
seu projeto de vida, reorganização das relações familiares e comunitárias.
Dessa forma, a Abordagem Psicossocial busca conhecer o sofrimento psíquico dos sujeitos
em relação fundamental com o meio em que ele se insere. A nosso ver, essa concepção se
refere aos lugares que esses usuários vêm ocupando na estrutura de nossa organização social
e, a partir daí, quais as relações que vêm ameaçando a garantia de seus direitos, excluindo-os
(BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004), e contribuindo para a construção de “sua
loucura” (AMARANTE, 1995; BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2007; FOUCAULT,
2004).
De acordo com a Abordagem Psicossocial, esse caminho a fim de promover/assistir a saúde
mental pode ser percorrido através da utilização do instrumento de psicoterapia individual
(VIEIRA FILHO, 1998), mas, com o contexto do SUS e das limitações que os profissionais
de Psicologia lidam cotidianamente, ela não vem sendo institucionalmente adotada em todos
os CAPS na cidade do Recife. De acordo com a portaria n°336/2002 (BRASIL,
MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002) - que assegura alguns direitos das pessoas portadoras de
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transtorno mental e institui os CAPS e seus diferentes tipos e níveis de assistência-, a
psicoterapia individual está incluída como uma das atividades a serem oferecidas. Essa
afirmação, portanto, nos diz que: assim como tantas outras atividades listadas na portaria, elas
representam para nós um conjunto dos instrumentos que, regulamentados por esse
documento, devem ser oferecidos nos CAPS, mas na prática nem sempre o são em sua
totalidade.
Cabe lembrar, por outro lado, que os CAPS são, pela “natureza” de sua concepção, US que
estão inseridas na rede de equipamentos do SUS e, a exemplo de algumas policlínicas e
hospitais gerais que oferecem esse serviço, são referenciadas para o usuário beneficiar-se do
acompanhamento psicoterápico individual.
Atualmente os CAPS trabalham fundamentalmente com atividades em grupo que objetivam
desenvolver diferentes aspectos/habilidades/capacidades dos usuários e são conduzidas por
diferentes profissionais de sua equipe técnica – como serão exemplificados no capítulo da
descrição das Atividades Desenvolvidas. É através da troca de vivências e construção coletiva
de sentidos sobre a experiência (de exclusão) da Loucura que esses sujeitos podem
resignificar esses processos e investir em si através do seu “tratamento” (ZIMERMAN &
OSÓRIO, 1997).
O caráter dialógico (VIEIRA FILHO, 1998) que a Abordagem Psicossocial preconiza para a
relação do profissional de saúde com o usuário é, inserido ou não num processo psicoterápico
individual, outro conceito fundamental porque “(...) o que se almeja é uma dialógica
permanente onde o saber do cliente não deve ser sufocado pelo do profissional e que uma
síntese dialética seja possível” (op.cit., p.41) para a construção de uma parceria entre usuário1serviços de saúde-família-comunidade na concepção e encaminhamento do Projeto
Terapêutico Singular (PTS)2 daquele primeiro ator social, o dito louco.
Compreendemos que o trabalho do profissional de Psicologia no CAPS se direciona ao
cuidado dos usuários enquanto sujeitos sociais (Barus-Michel, 2004) e, em mesma
1
Na Abordagem Psicossocial, a contratualidade (Saraceno, 1999) é um conceito fundamental para que
se dê qualquer processo terapêutico: o usuário precisa estar disposto a investir na transformação de sua forma de
estar no mundo/se organizar psiquicamente; e dessa forma, se valoriza a autonomia e estimula o exercício da
cidadania do usuário.
2
Por PTS compreendemos “(...) um conjunto de propostas de condutas terapêuticas articuladas, para um
sujeito individual ou coletivo, resultado da discussão coletiva de uma equipe interdisciplinar, com apoio
matricial se necessário. (...) No fundo é uma variação da discussão de ‘caso clínico’” (BRASIL, MINISTÉRIO
DA SAÚDE, 2007, p.40).
10
1
importância, à transformação da cultura de institucionalização da Loucura. Por isso nos
dedicamos a observar e vivenciar em nosso estágio a Abordagem Psicossocial e o olhar
clínico sobre os processos institucionais de circulação do poder nas relações interpessoais
(Foucault, 1979) – pois acreditamos que na medida em que as relações de trabalho não forem
consonantes com a visão de mundo e os princípios antimanicomiais, o CAPS permanecerá, a
partir dessas relações, institucionalizando a loucura porque “(...) a resposta terapêutica é
influenciada pelo contexto institucional” (VIEIRA FILHO, 1998, p.41).
3. ATIVIDADES DESENVOLVIDAS
3.1. Apresentação do local e condições nas quais a atividade de estágio aconteceu
Antes de descrevermos as atividades desenvolvidas no estágio, faz-se necessário a
caracterização do CAPS e do “serviço” de Psicologia oferecido na instituição. Localizada
num determinado Distrito Sanitário3 da Cidade do Recife, essa US é, na média complexidade,
uma das referências em atenção e cuidado à saúde mental para 16 bairros e, aproximadamente
260 mil habitantes da região – o equivalente a pouco mais de 17% do total da população do
Recife (RECIFE, 2006).
Segundo o Projeto Terapêutico4 do CAPS, sua intervenção é dividida em três grandes eixos:
Assistência à pessoa com transtorno psíquico em momento de crise e/ou com necessidade e
suporte especializado; Ação Avançada em saúde mental junto às equipes de AB do Programa
de Saúde da Família e de Agentes Comunitários de Saúde e o acompanhamento à
Residência Terapêutica5. Através dessas três esferas de intervenção é que o serviço poderá,
em articulação com outros equipamentos da rede de saúde e de apoio social do DS, elaborar
estratégias concretas de inserção social do cidadão em crise psíquica em sua comunidade.
Para que essa missão se concretize, a equipe de técnicos do CAPS é composta, atualmente,
por um total de seis profissionais de nível superior ligados diretamente à assistência – entre
psicólogas, terapeutas ocupacionais, enfermeiras, médicos psiquiatras6 e assistentes sociais -,
3
Para efeito de planejamento e gestão, a Cidade do Recife é dividida em seis Regiões PolíticoAdministrativas (RPA´s). Na área da saúde, as RPA´s correspondem aos Distritos Sanitários (DS´s) – sendo que
cada uma se subdivide em outras três micro-regiões – que concretizam, a nível municipal, o princípio e diretriz
do SUS da descentralização das ações de atenção à saúde (BRASIL, 1990).
4
Documento elaborado em 2004 por toda a equipe de técnicos do serviço e sistematiza a proposta de
intervenção desse CAPS e que, em nossa primeira parte do estágio, estava sendo rediscutido e reelaborado
coletivamente.
5
Modalidade de cuidado às pessoas com longa história de internação psiquiátrica.
6
Vale à pena ressaltar a ausência do profissional de psiquiatria durante toda a primeira metade do
estágio. Durante esse período as gerências do CAPS se articulavam provisoriamente com profissionais de outras
11
1
cinco de nível médio e três de nível elementar. Esses dois últimos se dedicam ao cuidado da
infra-estrutura da unidade e de sua porção administrativa e toda essa equipe é coordenada por
três gerências – administrativa, clínica e geral. Cada um desses profissionais de nível superior
é responsável pela condução de algumas das atividades individuais (acolhimento/triagem,
atendimentos individuais, atendimentos à família) e coletivas (realização de diferentes tipos
de grupos, oficinas ou atividades lúdicas) desenvolvidas no serviço que objetivam fins
terapêuticos. Dessa forma, avaliamos que não podemos nos referir ao nosso estágio como
uma experiência dentro do “serviço de psicologia do CAPS”, mas sim dentro de uma
instituição de atenção à saúde mental do SUS que deve funcionar de maneira interdisciplinar.
Isso não significa dizer, entretanto, que o profissional de psicologia e, consequentemente o
nosso estágio, é de igual atuação à quaisquer outras especialidades técnicas da equipe. Essa,
na maioria das vezes, é, a nosso ver, uma forma equivocada de referir-se às práticas
interdisciplinares.
Para nós7, a interdisciplinaridade, mais do que uma metodologia de trabalho, representa uma
escolha política e ideológica que, em consonância com os valores da Reforma Psiquiátrica,
vem destituir a idéia de sobreposição de um saber sobre o outro, vem construir
cotidianamente os sentidos de uma práxis horizontal em substituição à vertical (SPINK,
2003). Trabalhar interdisciplinarmente, pelo menos no campo do ideal, significa estar aberto
às contribuições de outras áreas de saber (sistematizado ou não) para, através da troca entre
diversos campos, promover uma atenção integral aos sujeitos sociais em crise. Dessa forma,
portanto, o psicólogo dentro dessa instituição executa atividades que, por exemplo, são
também desenvolvidas pela terapeuta ocupacional ou enfermeira, mas o manejo, o fazer e a
escuta serão sempre “psicológicos” - já que o conhecimento que embasa tais ações e o olhar
do profissional são relacionados à Psicologia.
O cenário físico onde a experiência de estágio se desenvolveu foi uma casa alugada pela
Prefeitura da Cidade do Recife (PCR) desde 2004 que garante, mesmo que de maneira
insatisfatória, a infra-estrutura mínima para o desenvolvimento de todas as atividades
oferecidas. Contamos com: um quarto de descanso com 4 camas, três banheiros para usuários,
um banheiro para os técnicos e estagiários, uma sala para a equipe técnica, uma sala das
gerências, uma sala de atendimento individual, três salas para realização de grupos, uma
US para suprir tal demanda mas não pudemos deixar de registrar as conseqüências negativas que ocorreram em
relação ao serviço como um todo e, principalmente, aos usuários.
7
Fortemente inspirados por Ana Elizabeth (psicóloga do Centro de Pesquisa em Psicanálise e
Linguagem - CPPL) em palestra promovida na primeira metade do estágio pelo Departamento de psicologia
desta Universidade.
12
1
recepção, dois terraços, uma piscina (que permaneceu
todo o tempo desativada), uma
farmácia, uma serigrafia, um quintal grande com várias árvores, uma cozinha e uma sala de
estar com televisão. Apesar de ser uma casa grande, o fato de ser um ambiente bastante
escuro, com pouca iluminação natural e ventilação, termina por não conseguir se concretizar
como um espaço agradável de permanecer só um turno, por exemplo. Na tentativa de superar
essas dificuldades, é utilizado o espaço externo (que nos referimos como o quintal da casa)
que oferta um ambiente bem mais propício a quaisquer atividades, mas, por outro lado, não dá
conta de toda a demanda do serviço.
Toda essa estrutura é disponibilizada, atualmente, a um total de aproximadamente 70 usuários
que se distribuem de acordo com o perfil sintomatológico e sua situação existencial do
usuário em duas8 modalidades terapêuticas (ou tipos de cuidado):
- Intensiva: acolhe os usuários que se localizam num estado de sofrimento mais agudo e que,
por diversos fatores, apresentam comprometimento de sua vida pessoal, social e/ou familiar,
nível de autonomia, de auto-cuidado e crítica bastante diminuídos ou mesmo inexpressivos.
Esta modalidade de tratamento se subdivide em “Intensivo Dia” – e, nesse caso, os usuários
participam das atividades oferecidas pelo serviço ao longo dos dois turnos nos cinco dias úteis
da semana – e “Intensivo Manhã” ou “Intensivo Tarde” – quando freqüentam o CAPS cinco
vezes por semana no turno da manhã ou no turno da tarde.
- Semi-intensiva: os usuários que têm PTS nesta modalidade se apresentam em estado “menos
grave”
do
que
o
anterior
porque,
entre
outros
fatores,
preservam
vínculos
afetivos/familiares/sociais, parcial nível de autonomia, independência e capacidade de autogestão. Podemos dizer também que há expressão menos intensa dos sintomas psiquiátricos ou,
em outros casos, a convivência com esses sintomas (alucinações, por exemplo) é alvo de
alguma crítica e de investimento do usuário. Essa modalidade se subdivide em “Semi Terça e
Sexta” e “Semi Segunda e Quinta”; nomenclatura que já indica os dois dias na semana de
participação das atividades do CAPS, sendo no turno da manhã ou no turno da tarde.
3.2. Descrição do trabalho: relatando o desenvolvimento das atividades junto aos
usuários
Seguindo a instrução de nosso Prof°Orientador, elaboramos semanalmente um Relatório das
atividades realizadas (cujo modelo está em anexo n°1) que nos auxiliaram na identificação
das suas características e, de acordo com esse perfil, foram aglutinadas em “tipos” diferentes
8
Havia uma terceira modalidade, a “Não-intensiva” que não esteve em funcionamento e, mesmo no
contexto de rediscussão do serviço, não conseguiu ser reimplementada.
13
1
para que pudessem ser esquematicamente descritas nesse Relatório, relacionadas com nossa
Fundamentação Teórico-Metodológica e nossos objetivos anteriormente organizados em
nosso Plano de Estágio. Temos, a seguir, descrição quantitativa organizada de maneira sucinta
no quadro abaixo (referente a todo o período do estágio). Segue agora a descrição qualitativa
das atividades desenvolvidas no estágio que se concentraram majoritariamente no cuidado ao
portador de sofrimento psíquico dentro das dependências do CAPS.
Perfil das Atividades
Total9
Atividades junto aos usuários
Perfil das Atividades
Total
Atividades de supervisão e
estudo
Sessões de observação de grupo
Sessões de Supervisão no CAPS
(Grupo “Movimento”)
Nº de atividades
Nº de horas
2
3hs
Nº de atividades
Nº de horas
Sessões de observação e co-
Sessões de Orientação na UFPE
facilitação de grupo
e Seminários de Estágio
18
18hs
(Grupo “Bom Dia”)
Nº de atividades
Nº de horas
23
11h30min
Nº de atividades
Nº de horas
Sessões de co-facilitação de grupo
Reuniões de Equipe / Supervisão
(Grupo “Situação”)
Institucional
Nº de atividades
Nº de horas
10
15hs
Sessões de co-facilitação de grupo
Nº de atividades
Nº de horas
25
75hs
29
145hs
Elaboração de Relatórios
(Reunião de Família)
Nº de atividades
Nº de horas
12
24hs
Nº de atividades
Nº de horas
Sessões de co-atendimento
Participação em eventos
individual à família
(ex:palestras)
Nº de atividades
Nº de horas
9
6hs45min
Nº de atividades
Nº de horas
16
24hs
9
28hs
9
A carga horária contabilizada aqui como “Total” se refere ao total de horas de estágio (660hs)
sistematizada dentro dessas atividades, mas não contemplam, por exemplo, o tempo que investimos no
contato/convívio com os profissionais e usuários do serviço.
14
1
Sessões de atendimento individual
(conversAÇÃO / escuta)
Nº de atividades
Nº de horas
105
34hs40mi
n
Sessões de co-facilitação de
Oficina Terapêutica
Nº de atividades
Nº de horas
16
32hs
Sessões de co-facilitação de
Passeios Terapêuticos
Nº de atividades
Nº de horas
7
21hs
Elaboração de Laudos
Nº de atividades
Nº de horas
4
2hs
Turnos de co-Acolhimento /
Triagem
Nº de atividades
Nº de horas
16
48hs
Registro escrito das Atividades
em Grupo (Reunião Família,
“Situação”,“Oficina Terapêutica”
e “Passeio Terapêutico”)
N° de atividades
Nº de horas
40
20hs
Registro escrito da “Evolução”
dos usuários
N° de atividades
Nº de horas
31
31hs
Atividade-Extra: Visita
Domiciliar
N° de atividades
Nº de horas
1
3hs
15
1
Atividade-Extra: Elaboração de
Projeto de Supervisão
N° de atividades
Nº de horas
2
8hs
3.2.1. Descrição do trabalho: Observação e co-facilitação de atividades grupais: A maior
parte das atividades oferecidas aos usuários do serviço são realizadas em grupo e buscam
oferecer um espaço de relaxamento, escuta e construção de discursos sobre o sofrimento
psíquico. Foram com essas atividades que mais nos envolvemos durante o período de estágio
(pontualmente: Grupo Movimento; de forma sistemática: Bom Dia, Reunião de Família,
Grupo Situação, Oficinas Terapêuticas e Passeio Terapêutico). Com objetivos diferentes,
cada um dos Grupos oferecidos por essa US adota metodologias diversas e, por isso, nossa
participação se deu como observadora, co-facilitadora – a depender das características do
Grupo em questão e do nosso avançar do estágio.
Um dos Grupos que é realizado nesse CAPS é chamado de “Bom Dia” e tem a tarefa de fazer
o acolhimento aos usuários que estão naquela manhã no CAPS, apresentar as atividades que
vão acontecer e abrir o espaço de fala para quaisquer pessoas colocarem na roda alguma
mensagem que avaliem ser inspiradora para si e para os outros. Nesse Grupo, participamos
inicialmente10 como observadora e depois como co-facilitadora e, mesmo sendo um grupo de
realização breve, acreditamos que ele pode ter destacado papel se relacionar-mos sua tarefa
com o princípio do SUS de acolhimento – prática de não só receber os usuários do serviço,
mas acolher sua demanda de sofrimento e, já nesse primeiro contato (que, no caso do Grupo
em questão é realizado diariamente), poder investir no vínculo usuário - CAPS e, a partir daí,
estabelecer o cuidado ao sujeito (GOMES & PINHEIRO, 2005).
Além disso, avaliamos que nossa participação nesse grupo nos possibilitou ter uma percepção
geral “das pessoas que estão na casa”, com qual grupo vamos trabalhar naquela manhã. Por
outro lado, não podemos deixar de registrar que a equipe do CAPS repensou durante algum
tempo a existência e metodologia dessa atividade porque, muitas vezes, ela não consegue
atingir esse objetivo, mas pouca ou nenhuma mudança se deu. Acreditamos que as sugestões
(por exemplo: participação não só dos usuários, mas de todas as pessoas que estão na “casa”)
10
Na ocasião da elaboração do plano de estágio, acordamos que, na primeira parte, acompanharíamos e
co-facilitaríamos as atividades que nossa supervisora tivesse responsabilidade direta e, na segunda parte do
estágio, circularíamos por outras atividades que ela não está diretamente envolvida; incluindo o
acompanhamento a intervenções da Ação Avançada, por exemplo.
16
1
que já foram apresentadas nas Reuniões de Equipe possam contribuir diretamente para a
potencialização dessa atividade e ela possa, de fato, acolher seus usuários e instigá-los à
participação.
Sempre como observadora, participamos duas vezes do Grupo “Movimento”; facilitado por
um educador físico do Programa da Academia da Cidade da PCR que vem uma/duas vezes
por semana ao CAPS exclusivamente para facilitar essa atividade. Tal Grupo tem o objetivo
de promover a melhoria da qualidade de vida através do exercício físico e interação entre os
usuários numa situação de jogos cooperativos/lúdicos/educativos. Nossa participação nessa
atividade se deu pontualmente quando estávamos no segundo mês de estágio e nos
possibilitou, pela primeira vez, interagir com os usuários através de uma outra linguagem que
não a falada, a linguagem do corpo. Nesse sentido, nossa co-facilitação das Oficinas
Terapêuticas foram também uma oportunidade para experenciarmos esse recurso do uso das
outras linguagens.
Realizadas a partir da segunda metade do estágio todas às quartas-feiras pela manhã, essa
atividade promovia a concentração da atenção e energias dos usuários em torno de uma tarefa
manual de confecção de algum objeto (chaveiro, cartazes, pintura em tecido, cestas de jornal).
Através da concretização da tarefa e da peça confeccionada trabalhamos o desenvolvimento
das capacidades dos participantes não só em torno daquela habilidade manual específica, mas
do aprendizado de que todos nós somos capazes de continuar produzindo e desenvolvendo
nossas aptidões – daí o caráter terapêutico dessa atividade. As Oficinas eram co-facilitadas
por nós em parceria com a artesã e auxiliar de enfermagem do CAPS e posteriormente com
uma enfermeira da instituição.
Foi diante da leveza e prazer que os participantes demonstravam durante o Grupo
“Movimento” e a Oficina Terapêutica que pudemos, nessa oportunidade, refletir também
sobre o quanto nosso estágio se concentrou nos discursos sobre o padecer psíquico, sobre a
doença. Habituada a participar de Grupos onde os discursos sobre a crise tomavam todo o
cenário (caso do Grupo Situação que será descrito mais adiante), avaliamos que o Grupo
“Movimento” e a Oficina, puderam nos atentar para a importância de estimularmos os
usuários a investirem energia (física e psíquica) em outras esferas da sua vida que lhe dão
prazer e os dão suporte, inclusive, para lidar com o sofrimento mental. Acreditamos que essa
atividade atingiu um dos objetivos específicos de nosso estágio de conhecer metodologias que
17
1
contribuam para a diminuição do sofrimento psíquico e colaborem na promoção da saúde
integral (MATTOS, 2004) dos usuários do serviço.
Nossa supervisora direta também foi nossa parceira na facilitação de grupo com os usuários
ou seus familiares. Segundo o Projeto Terapêutico desse CAPS, o Grupo “Situação” tem o
objetivo de proporcionar um espaço para a avaliação individual e grupal do tratamento e
fortalecimento da responsabilidade desses sujeitos para consigo e com o outro em relação ao
tratamento. Para isso, segundo esse mesmo documento, seria adotada a metodologia de um
Grupo Operativo que se caracteriza como uma atividade que se processa em torno de uma
tarefa (a discussão de um determinado tema, por exemplo) e que objetiva, a partir dos
discursos individuais e grupal, elaborar um agir para ser operacionalizado (BLEGER, 1980).
A troca de experiências dos usuários dentro de um grupo com metodologia operativa tem o
objetivo de, necessariamente, encaminhar o facilitador para, junto com o grupo, elaborar
formas de concretizar o produto elaborado pelo grupo. Na primeira metade do estágio,
todavia, percebemos que os facilitadores desenvolveram o papel de propiciar um espaço em
grupo de fala livre sobre o “tratamento”, mas isso não foi realizado em torno de uma tarefa e
nem veio sendo encaminhado para um produto a ser concretizado e, dessa forma, não se deu
sob a metodologia Operativa – crítica que, a nosso ver, que foi compartilhada por toda a
equipe do CAPS; já que, em Reuniões de Equipe, foi discutida a implementação de grupos
com essa metodologia no serviço através da reformulação que fez com que no estágio II não
existisse mais os Grupos Situação, mas sim os Grupos Operativos no seu Quadro de
Atividades.
Independentemente da questão metodológica, entretanto, avaliamos que essa atividade
contribuiu para a nossa aproximação da experiência da loucura. Foi no Grupo “Situação” que
participamos de uma discussão entre os usuários sobre a discriminação que de muitos deles
são alvo em seus lares e/ou comunidades. Por outro lado, foi nesse grupo também que
escutamos relatos vibrantes de uma usuária sobre sua melhora e empenho para retomar “as
rédias de sua própria vida”. Nossa participação enquanto co-facilitadora nesta atividade
atendeu nosso objetivo de refletir sobre possibilidades de intervenção (e suas dificuldades
18
1
metodológicas11) que fortaleçam o vínculo terapêutico e objetivem o desenvolvimento da
autonomia dos sujeitos.
Outra atividade que se realiza em grupo e que participamos como co-facilitadora foram as
“Reuniões de Família” do turno da manhã. De freqüência semanal, essa atividade tem o
intuito de reunir pelo menos um familiar de cada um dos usuários do CAPS do turno da
manhã para proporcionar-lhes um espaço de fala sobre a relação o usuário portador de
sofrimento psíquico e os aspectos da dinâmica familiar presentes no processo de inserção
desses sujeitos. São ofertados suporte e orientação através da troca de experiências entre os
participantes que busquem incentivar o fortalecimento de vínculos e inclusão desses no PTS
de cada usuário.
Cabe a nós, nesse momento, referir que a concepção de família que estamos lidamos no
estágio não se trata necessariamente de pessoas com quem o usuário tem laços
sanguíneos/hereditários. Fala-se aqui, por outro lado, e na abordagem/prática Sistêmica, num
conceito de família que se refere a todas as pessoas componentes do Campo Referencial
(MINUCHIN, COLAPINTO & MINUCHIN, 1999) dos usuários. São essas pessoas que
foram consideradas significativas no processo terapêutico dos sujeitos sociais em crise, e
participaram das Reuniões em nosso estágio.
Nessas atividades, entramos em contato com os familiares de alguns dos usuários com quem
tivemos vínculo direto e essa experiência nos aproximou um pouco da realidade familiar, mas
também de violência, pobreza e ausência de assistência social de boa parte de público que
usufrui dos serviços do CAPS. Foram essas Reuniões que nos mostraram alguns dos limites
da atuação dos profissionais (e também de nós, estagiários), já que, por mais que tenhamos
uma equipe comprometida com sua missão, muitas vezes o contexto familiar e as condições
de vida do usuário não nos imobilizaram, mas influenciaram negativamente o seu
acompanhamento. É por essa razão que percebemos a necessidade de, cada vez mais, haver o
incremento das ações/intervenções desenvolvidas intersetorialmente e em conjunto com
equipamentos de outras secretarias da PCR e do Governo do Estado – como indicamos em
nossa Fundamentação através de Lancetti com a perspectiva de CAPS “Turbinado” (2006).
11
Por exemplo: conduzir um grupo onde, algumas vezes, nem todos os participantes estavam entrando
em contato com uma mesma realidade em decorrência da produção de alucinações/delírios, por exemplo, e, a
partir daí, pudessem dialogar com o coletivo.
19
1
O Passeio Terapêutico, finalmente, se referiram às atividades de lazer pela cidade que
realizamos duas vezes ao mês com os usuários do serviço. O passeio pela orla da praia, por
um centro comercial, pela praça mais perto ou mesmo distante de nosso DS foram momentos
onde pudemos proporcionar um mínimo de mobilidade e lazer aos participantes que, na
maioria das vezes, não conheciam os lugares visitados.
3.2.2. Descrição do trabalho: Realização de Atividades de intervenção individual: além
das atividades de intervenção grupal que participamos ao longo do estágio, houve também
aquelas de nível individual que representaram outra forma de experenciar o fazer psicológico
dentro dessa instituição já que, mesmo sendo a nível individual, nenhuma de nossas
intervenções poderam ser caracterizadas como psicoterapia. Explicamos: dentro da dinâmica
de funcionamento de uma US do SUS e da proposta que os CAPS desenvolvem, as atividades
objetivam, de maneira geral, a diminuição do estado de crise, reconstrução de vínculos
(familiares/sociais/comunitários) e construção de um projeto de inserção social para cada um
de seus usuários – contribuindo para a transformação das representações acerca da Loucura
em nossa sociedade. Durante o processo de atenção e admissão do usuário no serviço, devem
ser desenvolvidos aspectos de sua subjetividade e dinâmica de funcionamento psíquico, mas
esse trabalho não acontece numa psicoterapia (já que esta não é oferecida pelo serviço) e sim
nas atividades grupais e atendimentos individuais (conversAÇÃO/escuta), como vamos
discutir a seguir.
As atividades de intervenção individual que desenvolvemos no estágio são nomeadas pela
equipe de “Atendimentos Individuais”. Os Atendimentos Individuais aos usuários podem ser
realizados por qualquer um dos técnicos que compõem a equipe terapêutica do CAPS e se
caracterizam como momentos breves, que não exigem um lugar específico para dar-se, que
não têm freqüência nem tempo de duração estabelecidos, mas que representam um momento
de interação cuidador-usuário onde o primeiro pode, à luz da abordagem Psicossocial
(VIEIRA FILHO, 1998) se dedicar à escuta do segundo e, de maneira ativa, interagir com ele
no sentido de refletir sobre sua fala, relacioná-la ao tratamento em curso e, de maneira
indireta, fortalecer vínculos entre esses dois sujeitos/atores sociais envolvidos. Por isso, para
efeitos pedagógicos, vamos nos referir a esses Atendimentos Individuais como “Atendimentos
Individuais de ConverAÇÃO Terapêutica/Escuta” para dar ênfase às características que o
diferenciam de um processo psicoterápico individual.
20
2
Dentro de nosso estágio, desenvolvemos alguns Atendimentos Individuais de ConverAÇÃO
Terapêutica/Escuta com alguns usuários do serviço que nos procuram para tal (“quero
conversar com você Suzana.. posso?”, disse Deusdete12 numa de nossas manhã de estágio no
CAPS) ou que nós procuramos (“Deusdete, posso conversar com você? Vamos lá pra o
terraço que tá mais tranqüilo....”, disse). Seja por parte do usuário (que traz, na maioria das
vezes, uma demanda específica) ou por nossa parte, as conversAÇÕES/escutas vêm sendo
uma atividade que têm nos solicitados especial atenção no seu manejo para não cairmos na
“armadilha” de dar aos usuários as respostas que procuram e que, por si mesmos, podem
alcançar - colaborando para a construção da autonomia e responsabilidade pelo seu
tratamento, trajetórias, vida.
Da mesma forma que realizamos com os usuários, há também no CAPS os “Atendimentos
Individuais à Família”. As diferenças entre esses e aqueles Atendimentos se concentram no
fato de que, como os familiares não estão no serviço cotidianamente, esses atendimentos
geralmente são marcados com dada antecedência e, por se tratar do familiar, as narrativas se
concentram não sob o sofrimento deste, mas sim sobre como a relação entre ambos pode ser
trabalhada para ser promotora de saúde para ambos os sujeitos. A sobrecarga do cuidado,
dinâmica familiar, administração da medicação são temáticas que conhecemos através dessa
atividade que realizamos em conjunto com nossa supervisora direta e na primeira metade do
estágio por isso nomeamos de “Co-atendimento individual à família”.
3.2.3. Descrição do trabalho: Co-Acolhimento / Triagem: para um usuário ser admitido no
serviço, há a realização do acolhimento e, se necessário, do procedimento de Triagem.
Encaminhados por outros equipamentos do SUS ou por demanda espontânea, a população
tem acesso ao CAPS e é acolhida durante todos os dias úteis da semana através de uma escala
de revezamento entre todos os técnicos da equipe terapêutica para garantirem essa “porta de
entrada” do serviço. No caso do nosso estágio, fomos responsáveis pela realização desse
procedimento em parceria com nossa supervisora – por isso falamos em sessões de “Coacolhimento/Triagem” – durante uma manhã na semana, todos os usuários que acessaram esse
CAPS naquele turno foi de nossa responsabilidade acolhê-los.
Essa atividade não tinha despertado muito o nosso interesse por se resumir, em alguns casos,
à aplicação de uma entrevista de anamnese psiquiátrica (ZUARDI & LOUREIRO, 1996).
12
Todos os nomes próprios associados aqui a usuários desse CAPS são fictícios.
21
2
Houve algumas experiências que se destacaram das demais e nos indicaram a possibilidade de
usar esse momento para a construção do vínculo entre terapeuta e usuário (BRASIL, 2007).
Vale à pena trazer um exemplo desse aprendizado. Diego chegou ao serviço acompanhado de
seu avô e encaminhado pela psiquiatra de um Hospital Geral – no qual foi emergenciado em
crise há poucos dias. Queixava-se de uma tristeza e momentos de ansiedade profundos que o
impediam de exercer qualquer tipo de atividade “produtiva”. Realizamos a investigação de
quando se iniciaram a manifestação de determinados sinais e sintomas, registramos essas
informações nas devidas fichas do SUS, mas o aprendizado foi desenvolver o acolhimento e
saber conduzir a entrevista com o objetivo de estabelecer o que, para nós, foi o mais
importante: uma relação de confiança entre o usuário e as profissionais – fato que pudemos
observar quando ele teve a coragem de pedir que seu avô saísse da sala para expor mais
“motivos” que o faziam sentir desacreditado de si mesmo e dos outros. Ficamos muito felizes
com a forma como fomos aos poucos superando as dificuldades dele falar sobre seu
sofrimento e ficamos especialmente empenhadas na condução do Projeto Terapêutico de
Diego principalmente pelo fato de posteriormente termos nos tornado sua co-Técnica de
Referência (TR13).
3.2.4. Descrição do trabalho: Registros escritos: todos os conteúdos das atividades em
grupo que fomos co-facilitadora (Situação e Família no estágio I e Oficina Terapêutica e
Passeio Terapêutico no estágio 2) e das atividades individuais (Atendimento individual
escuta/conversAÇÃO e Co-atendimento individual à família) são registrados por nós em
forma de relatoria no Livro de atividades do CAPS (no casos dos grupos) e nos prontuários de
cada um dos usuários (no caso dos atendimentos). Além dessas formas de registro, há também
o revesamento de todos os técnicos (à semelhança do que acontece com o
Acolhimento/Triagem) para registrar a presença no CAPS e a participação dos usuários que
estiveram “na casa” naquele turno – essa atividade é curiosamente chamada de “Evolução” e
também fez parte de nossas atribuições enquanto estagiária. Avaliamos que a execução desses
registros foi constituir uma ferramenta para preservar a história e trajetória de cada sujeito que
13
O TR é o profissional que, após discussão na Reunião de Equipe, é indicado para ser a referência para
um determinado usuário. Dessa forma, cada um dos profissionais da equipe técnica do CAPS tem o papel de
estar mais próximo de um determinado grupo de usuários e assim poder acompanhar mais detalhadamente a
caminhada desses usuários no serviço e de investimento em seu PTS (através, por exemplo, das
Escutas/Atendimentos Individuais, Atendimentos à Família, observação detalhada da sua freqüência no serviço
etc), bem como a coordenação desse Projeto junto à Equipe. Cabe-nos esclarecer uma distorção recorrente em
relação à figura do TR: mesmo tendo a tarefa de prestar uma assistência mais próxima, ele não é o único
profissional que cuidará desse ou daquele usuário – até porque os usuários são usuários do serviço como um todo
e não desse ou daquele TR -, mas sim o que pode representar o vínculo mais direto do usuário com o serviço.
22
2
usufrui diretamente do serviço e constituiu-se como uma fonte de informações atualizadas
para serem consultadas por todos os profissionais desse CAPS – por mais que muitas vezes as
Evoluções se restrinjam à escrita de quais atividades os usuários participaram e qual
comportamento apresentaram durante o turno em decorrência da grande quantidade de
usuários (cerca de 20 a 30 por turno). No nosso caso, nos momentos que julgamos necessário,
não realizamos a Evolução por julgar que não tivemos qualquer interação com o usuário X
naquela manhã e, portanto, não nos julgávamos habilitadas para realizar tal procedimento e
levamos essa queixa às Reuniões de Equipe.
Em nossa segunda metade do estágio passamos a fazer também outra forma de registro escrito
usada nessa US: os laudos técnicos. O laudo de cada usuário do CAPS é elaborado pelo seu
TR e, no nosso caso, coube, portanto, a elaboração periódica dos laudos das duas usuárias que
fomos TR. Cada laudo corresponde a um formulário onde são registrados os dados da US e a
atualização do quadro sintomatológico do sujeito social em crise – não há espaço para registro
de qualquer aspecto da dinâmica psíquica ou aspectos da singularidade identitária dessas
pessoas.
3.2.5. Descrição do trabalho: Acompanhamento da Ação Avançada em Saúde Mental:
com o objetivo de dar apoio matricial às equipes de Saúde da Família do Distrito Sanitário no
qual o CAPS está localizado, a PCR, em 2004 criou e constituiu as Equipes de Ação
Avançada em todos os DS da cidade. A composição inicial dessas equipes contava com
profissionais das áreas de medicina, psicologia e serviço social, que, solicitados pelo PSF,
realizavam atividades de intervenção clínica e de assessoria em saúde mental ao cuidador da
Atenção Básica, discussão de casos detectados através das ações no território e trazidos para
reflexão conjunta e construção de um projeto de atenção para a produção do cuidado que
desse conta dessa demanda que, na maioria das vezes, nem chegaria ao CAPS. As Equipes de
Ação Avançada, portanto, trabalham nessa intersecção entre o CAPS, Ambulatórios,
Hospitais, no território, em parceria com o PSF.
Atualmente, essas Equipes vêm por diversos fatores perdendo seus profissionais que pediram
transferência, por exemplo, no DSV resta hoje apenas a profissional de Psicologia com quem
tivemos a oportunidade de acompanhar algumas das atividades que foram desenvolvidas
durante uma semana de trabalho (divididas em 5 turnos, como havíamos planejado em nosso
Plano de estágio).
23
2
Durante essa breve passagem, acompanhamos essa profissional em algumas visitas
domiciliares com parte da equipe de PSF de dado território sanitário, realizamos visitas às
USF para discussão de casos clínicos, reunião com equipe de Hospital Psiquiátrico sobre a
reinserção de uma dada usuária e realizamos reunião com o GOAS (Gerência Operacional de
Atenção à Saúde) do DSV. Após as 20hs de interação na Ação Avançada, acreditamos que foi
a porção de nosso estágio onde pudemos observar o sentido da clínica sendo tecido da
maneira mais dinâmica possível e, por outro lado, especialmente assertiva porque o
referencial em que se sustenta aqui é o de uma clínica ampliada, voltada para o protagonismo
do sujeito e de estabelecimento de vínculos que possam favorecer a produção do cuidado em
Rede de Atenção no Distrito. Lembrando Barus-Michel que diz que “a partir do momento que
se reconhece o sujeito, já se está na clínica” (2004, p.67).
A participação nas ações de cuidado em saúde mental só foi possível de concretizar-se graças
à relação estabelecida no cotidiano entre cuidador (no caso, as Agentes Comunitárias de
Saúde) e usuário; confirmando nosso referencial em clínica no âmbito comunitário que diz
que “a situação real e a demanda já supõem uma relação”. (Barus-Michel, 2004, p.69).
Nas abordagens realizadas em domicílio, observamos que o objetivo da Psicologia na Ação
Avançada era atender a demanda clínica para promover a elaboração do sentido frente a
experiência de sofrimento viabilizando possibilidade de nomeação e re-significação em
espaços terapêuticos na Rede de Saúde Mental das relações sociais do sujeito que se colocava,
na homotesia e na dessemelhança (Barus-Michel, 2004), em relação dialógica com o cuidador
da Atenção Básica. Foi também com o exercício prático do protagonismo do sujeito que
vimos, por exemplo, a fala de uma usuária colaborar na elucidação de sua alta de um Hospital
Psiquiátrico e lançar pistas à equipe para a reconstrução de seus vínculos familiares.
Mesmo com todas as condições adversas com que se realizam essas ações (“equipe de uma só
profissional”, falta rotineira de transporte), nossa vivência na Ação Avançada proporcionou
um diferencial em nosso estágio e nos deixou entusiasmadas pelo trabalho na atenção básica à
saúde.
3.2.6. Descrição do trabalho: Atividades-extras (Projeto de Supervisão e Visita
Domiciliar): devido ao contexto do serviço enquanto estávamos estagiando, realizamos,
mesmo nessa primeira experiência de estágio, duas atividades específicas que não estavam
24
2
previstas em nosso cronograma inicial, mas que nem por isso foram menos importantes ou
não deve ser registradas.
Contribuindo para uma experiência que seja a mais completa e diversa possível, fomos
“convidadas” pela Gerência Geral do CAPS a elaborar, em conjunto com a psicóloga da
“Ação Avançada”, um Projeto de supervisão para esse CAPS (anexo n°1). Por ocasião do
lançamento de um edital do Ministério da Saúde para financiamento de supervisões nos
CAPS, nossa gerência acordou com a Coordenação de Saúde Mental que esse CAPS iria
inscrever projeto e a gerência do CAPS nos designou a execução dessa tarefa. Mesmo nos
sentindo um tanto desconfortável com a tarefa (pois estávamos elaborando um Projeto que
não tinha sido minimamente discutido com toda a equipe), realizamos a tarefa que nos
permitiu exercitar a escrita sobre o tema e a troca de idéias e experiência com outra
profissional da psicologia desse serviço.
Se a demanda do âmbito da gestão nos indicou uma tarefa-extra, a assistência não foi
diferente e tivemos a oportunidade de realizar nossa primeira Visita Domiciliar. Tratava-se de
um caso onde a usuária foi admitida, porém nunca compareceu ao serviço e como há grande
risco de tentativa de suicídio, a visita domiciliar foi uma indicação da última Reunião Técnica
para que retomássemos o contato com a usuária e encaminhasse para um outro serviço mais
próximo de sua casa na tentativa de adesão ao tratamento. Na busca pelo endereço correto
através de ligação telefônica à família, descobrimos que a usuária passou a morar com sua
família materna e, com isso, perdera a referência/cobertura desse serviço, mas também não
procurou acolhida em nenhum outro. Dessa forma, fomos ao bairro de Peixinhos no
município de Olinda e fizemos a visita que se procedeu de maneira bastante tranqüila, apesar
da pessoa diretamente responsável com a qual havíamos previamente combinado por telefone
não estar na residência para nos receber, um outro familiar o fez. Estabelecemos contato com
o CAPS responsável pela cobertura dessa área e apesar da equipe não terem realizado a visita
junto conosco, se comprometeram a acompanhar o caso a partir de então. Ficamos satisfeitas
com a articulação interinstitucional que realizamos e o diálogo com a família também nos
pareceu promissor para a atenção da usuária.
3.3. Relatando o desenvolvimento de atividades de estudo e formação
Além das atividades práticas que realizamos no estágio, ocorreram momentos de estudo e de
formação que nos proporcionaram discussões e reflexões sobre a prática institucional e as
dificuldades encontradas por toda a equipe.
25
2
3.3.1. Supervisão no CAPS e Orientação na UFPE: Ao longo de nosso estágio, tivemos
dois momentos de reflexão sobre nossa prática como estagiária: a Supervisão no CAPS e as
Orientações na UFPE. O primeiro desses dois momentos se concretizou em reuniões de
duração aproximada de uma hora com Supervisora onde pudemos discutir casos e,
principalmente, a dinâmica do serviço: suas dificuldades, avanços, pontos polêmicos etc.
Foram nesses momentos que pude esclarecer algumas dúvidas e aprender em conjunto com
nossa Supervisora. Já aquelas, as Orientações na UFPE foram de freqüência semanal e
simbolizaram momentos coletivos de leitura dos relatórios semanais (que apresentavam
sistematicamente o relato de uma semana de atividades desenvolvidas no estágio) e treinos
para nossa apresentação do Seminário de Estágio onde a troca de experiência nos auxiliou a
compreender nosso estágio localizado numa rede de outros CAPS que compartilham muitas
das dificuldades do que realizamos estágio. Foi também nesses momentos que pudemos
participar dos Seminários de Estágio – apresentações da experiência parcial dos estagiários de
Psicologia desta Graduação.
Além de assistir as apresentações do estágio de nossos colegas, também nós mesmos tivemos
de expor nossa vivência. Inicialmente, a proposta era fazê-lo em conjunto com uma colega de
CAPS (Luisa Xavier), mas na Orientação na UFPE percebemos que seria mais interessante se
articulássemos esse nosso conteúdo com o de mais dois outros colegas (Vasco Gomes e Pedro
Santos) e por conta de nossas convergências ideológicas, éticas e políticas, foi completamente
possível. Nos reunimos mais algumas outras vezes e a apresentação foi muito bem avaliada
por nós e pelos participantes daquela ocasião.
3.3.2. Reuniões de Equipe & Supervisão Institucional: com o objetivo de reunir
semanalmente todos os técnicos do CAPS (da equipe terapêutica e da equipe administrativa)
em torno de uma única pauta, os CAPS dedicam um turno da semana para esse trabalho
interno. No caso de nosso estágio, esse momento se deu às quartas-feiras e eram intercaladas
com as reuniões de Supervisão Institucional que eram facilitadas por uma profissional de
psicologia contratada pela PCR exclusivamente para, nessas reuniões, promover a discussão
de casos específicos trazidos pela equipe e/ou questões referentes à instituição como um todo.
Foram nas Reuniões de Equipe que discutimos coletivamente todas as admissões advindas das
triagens, o acompanhamento dado a alguns casos e discussão de que medidas adotar em
relação a outros; além das pautas específicas que cada técnico tinha a liberdade de inscrever.
26
2
Foram nessas reuniões que pudemos dialogar francamente sobre as dificuldades e os impasses
que a equipe como um todo enfrenta na missão de oferecer cuidado em saúde mental no DS e,
na primeira metade do estágio, por um contexto peculiar de rediscussão do Projeto
Terapêutico desse CAPS.
Pelo que pudemos compreender, o Projeto Terapêutico é um documento que se refere não
apenas à descrição das atividades que são propostas pela instituição, mas também, e
principalmente, quais fins terapêutico se objetiva alcançar com esse formato. Atualmente esse
Projeto é considerado por toda a equipe bastante desatualizado e um tanto incompatível com a
realidade do serviço – já que não conseguiu, até hoje, ser implementado em sua totalidade.
Além disso, as difíceis condições de trabalho e a inflexibilidade do Quadro de Atividades são
características que estão sendo repensadas por toda a equipe nessa ocasião. Naquele momento
de discussão, portanto, coube ao coletivo de técnicos e estagiários do CAPS traçarem metas,
discutirem como cada uma delas pode ser alcançada e qual será a pessoa responsável por tal
iniciativa de reformulação.
Participamos de Reuniões de Equipe onde começamos a repensar as assembléias, rever o
“Grupo Situação”, pensar na aplicação de Grupos Operativos, reimplementar a modalidade de
tratamento “não-intensiva”, elaborar estratégias de incursão no território na Atenção Básica e
iniciamos a reconstrução do Quadro de Atividades antigo e estávamos na finalização de uma
proposta que pretende dar conta e sanar algumas críticas feitas pela equipe (por exemplo: que
tipo de atenção oferecer aos usuários que passam muito tempo ociosos no CAPS porque não
está em condições / não quer participar das atividades em grupo). Através dessas
transformações a equipe pretende distanciar esse CAPS do modelo de CAPS “burocrático” e
aproximá-lo do modelo “turbinado” (LANCETTI, 2006).
Ocorre, entretanto, que o Projeto terapêutico do CAPS não foi de fato rediscutido. Posições
políticas, ideológicas e metodológicas das pessoas que fazem o serviço não chegaram a ser
(re)discutidas. Nossas Reuniões de Equipe e Supervisão Institucional permaneceram em torno
da remodelação do Quadro de Atividades e da problematização da oferta dessa ou daquela
atividade, como foi o caso da supressão do Grupo Situação e inclusão do Grupo Operativo;
mas por diversos fatores não alcançamos uma remodelação do que esse CAPS propõem, de
seu Projeto Terapêutico.
27
2
Foram também nas Reuniões de Equipe que as relações e condições de trabalho ganharam voz
e vez para serem colocadas na roda, apreciadas, discutidas e encaminhadas coletivamente. A
ausência de um profissional da psiquiatria no CAPS durante toda a primeira metade do
estágio e a redução de quase 50% dos vales-transporte para os usuários e seus cuidadores são,
somados ao perceptível cansaço da equipe, percebidos por nós como indicadores negativos da
infra-estrutura do serviço e, consequentemente, das condições de trabalho em que
processamos nosso estágio.
No caso da ausência de um psiquiatra, as discussões giraram em torno da forma como
conduzimos, desprovidos desse profissional, conduzir a porção medicamentosa do tratamento
e do quanto a falta de monitoramento periódico dessa intervenção pode gerar reverberações
em toda uma caminhada desse usuário em relação ao seu sofrimento psíquico. Vale à pena
destacar, entretanto que as reivindicações pela necessidade de um psiquiatra, devem ser
sempre associadas ao cumprimento da Portaria 336/2002 no Ministério da Saúde (que institui,
entre outras coisas, uma equipe-mínima para o funcionamento dos CAPS) para não
reforçarmos, mesmo que indiretamente, a representação do poder/saber médico como superior
às outras especialidades. Acreditamos que esse foi um momento de muito investimento para
todos os membros da equipe e de muito amadurecimento para nós estagiárias que estávamos
ainda ingressando nesse ambiente e tivemos que, expondo nossas opiniões e críticas, lidar
com as resistências de alguns profissionais. Avaliamos que, mais do que o próprio serviço,
nós nos beneficiamos muito com o aprendizado desenvolvido naquele momento.
3.3.3. Elaboração de relatórios e participação em eventos: Para incremento de nossa
formação, participamos de quatro atividades que nos auxiliaram a articular teoria e prática na
experiência do estágio (a saber: encontro dos estagiários em saúde mental da PCR; I Encontro
de CAPS do Recife; as palestras da Exposição fotográfica do Programa de Volta para Casa;
participação pontual numa reunião do Fórum Distrital de Saúde Mental; palestra preparatória
para o Dia da Luta Antimanicomial; o Colóquio sobre interdisciplinaridade e psicologia e o
Colóquio sobre o Compromisso Social na atuação do psicólogo). Além disso, em relação à
produção escrita, ao longo dos meses de estágio, como já foi mencionado no início desse
capítulo, organizamos semanalmente nossas experiências em relatórios semanais que são
entregues ao nosso Orientador e esse exercício facilitou, inclusive, nossa escrita desse
documento.
28
2
4. CONSIDERAÇÕES GERAIS
Percorrido o caminho de descrição/discussão das atividades práticas e sua relação com as
teorias que adotamos como referencial, passamos ao momento de sintetizar algumas
considerações gerais – para as quais nos dedicaremos imediatamente a seguir –, avaliar o
estágio e a nós mesmos. Dessa forma, cabe-nos esclarecer que qualquer avaliação do estágio
ou consideração para fins de conclusão desse trabalho não deverão ser deslocados de um olhar
crítico e, consequentemente, avaliativo sobre a atenção oferecida pelo serviço – até porque
nossas atividades de orientação na UFPE também seguiram essa diretriz.
Em relação ao modelo de atenção que esse serviço oferece nesse momento ainda é, em grande
medida, direcionado pelo que vem sendo historicamente constituído como a prática
médica/modelo clássico de psiquiatria: a medicalização e a terapêutização (Amarante,1995) –
mais característicos de um processo de assistência à doença do que de promoção à saúde.
À primeira vista, entretanto, poder-se-ia referir incoerência ou contradição a essa nossa
percepção do serviço; visto que, especificamente esse CAPS não contou durante metade do
tempo de nosso estágio com nenhum profissional de medicina e, como se pôde observar pelo
Relato das Atividades e de nossa Fundamentação, o propósito fundador dos serviços
“substitutivos” é a proposta antimanicomial - que tem em sua bandeira de luta a
desconstrução de um aparato psiquiátrico que aprisionou física e psiquicamente a experiência
humana da Loucura.
Cabe-nos esclarecer, entretanto, que a “prática médica” de que estamos falando aqui tomou
forma nas instituições asilares e nas práticas de profissionais dessa especialidade; mas para
além desses fatores, a prática centrada na medicalização e na terapêutização se alimenta e
reproduz nas condutas individuais e institucionais, na condição de trabalho inadequada e no
montante insuficiente de investimentos políticos e financeiros para a implementação dos
serviços substitutivos e da Reforma na cidade do Recife – por mais que os serviços ditos
substitutivos tenham sido indicados no Plano Municipal de Saúde 2006-2009 como campo
prioritário de investimentos e esse CAPS tenha tido que fechar suas portas para novas
admissões por falta de equipe técnica suficiente para atender adequadamente a demanda que
já estava no serviço àquele momento.
29
2
É nesse cenário que ainda observamos que, por mais que a equipe não se mostre indiferente a
essa problemática, o CAPS ainda concentra a expressiva maioria de suas ações no transtorno
mental em lugar do ‘sujeito-usuário’, na assistência em lugar da promoção, na doença em
lugar da saúde. Referindo-se ao modelo clássico de tratamento, Basaglia nos diz que “(...) a
psiquiatria sempre colocou o homem entre parênteses e se preocupou com a doença (...)”
(Basaglia, 1979, p.57 cited per Amarante, 1995, p.46), transparecendo-nos, portanto, que de lá
pra cá caminhamos pouco na mudança dessa perspectiva.
A reclusão e isolamento são hoje banidos das práticas atuais em saúde mental, as equipes
multi e interdisciplinares são amplamente adotadas, a relação com a família e a comunidade
são campos de intervenção para a promoção à saúde e, entre tantos outros fatores, há uma
crítica solidificada ao poder médico.
Contraditoriamente, nossos avanços parecem não ser plenamente implementados e em alguns
momentos parece-nos que os serviços substitutivos de maneira geral (e especialmente os da
RMR) não conseguiram ainda ultrapassar obstáculos primeiros com os quais se propuseram a
romper: a institucionalização da loucura e a compreensão de que a doença mental é
socialmente construída. Dizemos isso porque, aos nossos olhos, os serviços substitutivos não
representam a ruptura que se propuseram e têm como missão e compromisso político efetivar.
Parece-nos
que,
como
distinguimos
em
nossa
Abordagem
Teórico-Metodológica
(AMARANTE, 1995; VIEIRA FILHO, 1998), paramos no processo de Desospitalização14 e a
Desinstitucionalização efetivamente não se concretizou. Mesmo que de maneira diferenciada
devido às modificações que conseguiram ser implementadas no trato com o usuário e sua
família, os CAPS passaram a ocupar papel em alguma porção semelhante aos Hospitais: o
lugar da institucionalização da loucura.
É no CAPS que permanecem concentrados todo o saber socialmente referenciado para tecer
sobre a loucura e todos os cuidados assistenciais que o Estado oferece ao usuário
(medicamento, alimentação, profissionais da saúde mental, atividades em grupo/individuais,
segurança). Além disso, o trabalho em rede com os outros equipamentos do SUS (VIEIRA
FILHO, 2005), a articulação com a Atenção Básica e o investimento em ações promotoras de
14
E mesmo esse processo na RMR não foi plenamente efetivado – ao passo que apenas os Hospitais
Públicos vêm passando pelo processo de redução de leitos e os Hospitais Particulares (que, em sua maioria, são
conveniados ao SUS) não vêm passando pelas mesmas medidas antimanicomiais.
30
3
saúde ainda são muito deficitários, concentrando nessa instituição o lugar referencial para a
identificação (leia-se diagnóstico) e tratamento da Loucura.
Não queremos dizer aqui que o CAPS não vem de todo cumprindo sua missão. Na mesma
medida que destacamos os aspectos deficitários de sua atuação institucional, cabe-nos
destacar também os obstáculos e contingências históricas que em muito determinam a
implementação desse serviço.
Avaliamos que o desafio que esses serviços se propuseram a enfrentar são conectados não só
com a história da loucura e do poder médico, mas se referem à forma como nossa sociedade
trata as diferenças. O que observamos no caso da Loucura é que ela teve todo o saber e
discurso científico a seu dispor para, construído um argumento da valorização da
racionalidade em detrimento da forma de funcionamento das pessoas ditas loucas, tratar essas
diferenças enquanto desigualdade e a partir daí cometer a violação de vários direitos. Diante
dessa herança histórica, a Reforma Psiquiátrica brasileira veio romper com essa forma de
tratamento e seus princípios se remetem a uma perspectiva de sociedade e de ser humano que
podem ter fortes contribuições, mas não podem ser transformadas em profundidade
exclusivamente pela proposta antimanicomial.
Durante as reuniões de Equipe realizadas ao longo do nosso estágio, avaliamos que esse
CAPS hoje elementos dos conceitos de Lancetti (2006) de “CAPS Burocrático” e do “CAPS
Turbinado” ao mesmo tempo. Podemos falar que se concretiza um exemplo dos avanços
conquistados, da assistência muitas vezes cronificante e dos desafios a serem encarados como
prioridade por toda a equipe. Por esse quadro contraditório e ao final do estágio,
compreendemos o CAPS como um dos serviços substitutivos que está em processo de
implementação ainda em andamento e, dentro da trajetória da Loucura, se localiza, portanto,
“entre o passado e o futuro”15.
4.1. Avaliação do Estágio
Foi no contexto das inúmeras dificuldades que o serviço enfrenta que realizamos nosso
estágio. Destacamos que mesmo se tratando de um estágio considerado na área da Psicologia
Clínica, ao final dessa experiência sistematizada consideramos que nosso estágio foi realizado
sob o viés integral da instituição e, portanto, falamos aqui da avaliação de uma experiência de
estágio que não se restringiu ao olhar sobre o sofrimento/dinâmica psicossociais
15
Parafraseando o título do livro de Arendt (2005).
31
3
individualizadas, mas também nos dedicamos às observações das relações e condições de
trabalho, a dinâmica institucional e a circulação das relações de poder – o que poderia ser
associado diretamente ao estágio considerado no campo da Psicologia do Trabalho.
Avaliaremos então o nosso estágio de Psicologia no CAPS e não exclusivamente em
Psicologia Clínica.
Acreditamos que dentro desse prisma, nosso estágio cumpriu seu objetivo de contribuir para a
nossa formação profissional – tanto pelo que diz respeito especificamente à atuação do
psicólogo quanto o que se refere ao ambiente de trabalho de maneira mais ampla. A
experiência dentro do SUS e de seu cotidiano nos permitiu vivenciar a rotina do serviço
público – e boa parte dos adjetivos negativos que vêm sendo historicamente associados a essa
esfera pelo senso comum – como também a distinção do que se aplica e do que não se aplica
nesse CAPS.
Cabe-nos destacar também os aspectos que influenciaram negativamente em nossa
experiência e acreditamos que o mais expressivo deles se remete à ausência de uma Política
de Estágio que oferte o mínimo suporte institucional a nossa formação. Percebemos
atualmente que o estágio ainda se concretiza baseado no voluntarismo de alguns profissionais
que se dispõem a tal, fazendo com que permaneça a impressão de que o estagiário é “do
profissional” e não “do serviço” como um todo. As ausências de incentivo aos profissionais
supervisores e bolsa de auxílio financeiro aos estudantes impedem os serviços de receberem
mais estagiários – o que representa, a nosso ver, um aspecto muito negativo em diversas
esferas: para os estudantes, que perdem oportunidades de ter esse aprendizado de base
antimanicomial que na maioria das vezes não é oferecido na academia; para os profissionais,
que poderiam se beneficiar das problematizações elaboradas por “quem está chegando e ainda
está de fora”; e para o serviço, que poderia contar com todas essas contribuições e, querendo
ou não, força de trabalho.
4.2. Auto-avaliação
Dentro do estágio, percebemos que colaboramos menos do que desejávamos com o processo
terapêutico de estabilização da situação de crise e inserção social do usuário. Durante a
primeira metade do estágio, nos dedicamos mais ao momento institucional e às
condições/relações de trabalho; o que pode ser percebido pela descrição quantitativa quando
tivemos mais horas de estágio dedicadas às Sessões de co-facilitação de grupo (Reunião de
Família) e aos Turnos de co-Acolhimento / Triagem do que às Sessões de co-facilitação de
32
3
grupo (Grupo “Situação”) ou Sessões de atendimento individual (conversAÇÃO / escuta);
atividades que, a nosso ver, interagem e beneficiam mais diretamente o usuário. Acreditamos
que a condição temporária no serviço, a necessidade de um tempo de adaptação no serviço e o
período necessário para o entrosamento com a equipe/usuários fizeram com que, no estágio 1,
contribuíssemos mais com a esfera das relações de trabalho no serviço do que com a
assistência propriamente dita.
Na transição do estágio 1 para o estágio 2, tivemos algumas orientações na UFPE que nos
fizeram redirecionar o alvo de nosso maior investimento e a partir daí nos esforçarmos mais
para nos aproximar das histórias e experiências de vida dos usuários desse CAPS; mudança
que pode ser percebida pelo aumento expressivo do número de conversAÇÕES/Escutas que
foram realizadas nessa segunda metade do estágio.
O aspecto que acredito termos investido todos os dias do estágio foi na construção do que
chamamos de posicionamento ético-político do papel do profissional de psicologia dentro
desse ambiente de natureza interdisciplinar. Os limites de nossa condição de estagiária não
nos impediram de estabelecer uma relação de troca de saberes e complementaridade de ações
dentro do CAPS – a experiência de co-facilitação da Oficina Terapêutica foi um exemplo
disso. Nossa intervenção dentro da dinâmica de funcionamento do serviço sempre foi
problematizada tomando como referência aquilo que acreditamos caber a nível prático e
teórico ao profissional de Psicologia, mas sobre tudo, às necessidades do usuário.
Avaliamos que a ausência de articulação teoria-prática ao longo dos quatro anos de formação
em sala de aula na graduação foi determinante para a concretização do hiato entre o cotidiano
do estágio e as referências teóricas para embasar essa prática. Por outro lado, avaliamos
também que essa história contribuiu para que realizássemos poucas leituras ao longo desse
período e muitas delas se acumulassem por ocasião da elaboração desse relatório. Por outro
lado, mesmo na deficiência da consulta bibliográfica, cabe-nos ressaltar que nossos mais
expressivos aprendizados nesse estágio se remetem ao olhar clínico sobre o serviço, a
instituição, as pessoas e as relações que a compõem para, por exemplo, ter sensibilidade para
perceber o que o campo de estágio nos sinalizou (a influência das relações e condições de
trabalho sobre a construção teórico-prática desse serviço, uma leitura de Análise Institucional)
e dar voz a esses discursos.
33
3
Dentro de nossas limitações nessa experiência primeira como profissional, avaliamos que seu
papel foi satisfatório e nos indica investimento de nossas energias, leituras e discussões na
maior qualificação dentro d o trabalho na Saúde Pública que se solidificou para nós como um
dos campos de investimento como profissional.
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ZIMERMAN, OSÓRIO, & cols. Como trabalhamos com grupos. Porto Alegre: Artes
Médicas. 1997.
36
3
6. ANEXO
6.1. Anexo n°1 – Projeto de Qualificação do Atendimento e Gestão do CAPS
PROJETO DE QUALIFICAÇÃO DO ATENDIMENTO E GESTÃO DOS CAPS
1. IDENTIFICAÇÃO:
Nome do Projeto: CAPS - Intervenção no Território Sanitário
Nome do CAPS: Professor Galdino Loreto
Endereço: Rua Emília Torreão, nº135, Bairro de Afogados. CEP: 50820-710 - Fone:
3232-2281.
Secretária Municipal de Saúde: Tereza de Jesus Campos Neta
Coordenadora de Saúde Mental: Higina Duarte
Coordenadora do CAPS: Blandina Perez
2. JUSTIFICATIVA
O CAPS Prof. Galdino Loreto está situado no Distrito Sanitário V(DSV) da cidade do
Recife. Sua área de abrangência é dividida em três micro regiões, situadas na região leste
da cidade. A rede de saúde desta área é (aproximadamente) formada por uma unidade
tradicional, um hospital infantil, uma maternidade, duas residências terapêuticas, uma
policlínica 27 Unidades de Saúde da Família - USF, conta ainda com 43 Agentes de saúde
Ambiental – ASA e com 109 Agentes de saúde comunitária – ACS
O Galdino Loreto, atualmente, atende em média trinta usuários na modalidade intensiva e
trinta e cinco pessoas na modalidade semi-intensiva, perfazendo um total de sessenta e
cinco usuários. Conta com onze técnicos de nível superior – entre psicólogas, terapeutas
ocupacionais, enfermeira, médico e assistente social – e cinco de nível médio e três de
nível elementar, gerenciados por três chefias – administrativa, clínica e gerencial.
O projeto CAPS – Intervençãoo no Território Sanitário vem atender antigas e cruciais
lacunas vivenciadas em procedimentos clínicos de atenção ao usuário da Rede de Saúde
Mental do DSV. Percebemos em nossas tarefas clínicas, junto ao portador de transtorno
mental, a necessidade de favorecer a promoção do cuidado através de uma clínica
ampliada em que haja uma interlocução com comunitários e cuidadores da Atenção
Básica que procuram viabilizar uma atenção primária em saúde mental na comunidade.
37
3
Em nossas experiências, o modelo de assistência que vem norteando as nossas atividades
com o paciente, na unidade de saúde, mostra-se insuficiente para possibilitar a inclusão do
sujeito cidadão no contexto comunitário. Entendemos que é preciso transitar no âmbito da
intersetorialidade, junto a equipamentos sociais pertencentes à comunidade do usuário
para favorecê-lo como sujeito autônomo e empoderado na autodeterminação de seu
destino e trajetória de vida.
Em nossas avaliações atuais estamos dedicados à reflexão de nossa prática clínica
cotidiana, nessas discussões, percebemos a necessidade imperativa de revisar a oferta de
serviços oferecidos à população. Entendemos que essa transformação passa não somente
pelo redesenho de nosso quadro de atividades, mas também, pela construção coletiva e
participativa de uma atenção em saúde mental que possa transcender os limites
institucionais da unidade de saúde - podendo, assim, ampliar respostas às demandas
clínicas do território para o qual somos referência.
Nesse sentido, achamos oportuna a implantação de um projeto de supervisão que possa
nos auxiliar na compreensão e na intervenção junto às demandas clínicas que requerem
respostas articuladas intersetorialmente, em contexto comunitário. O benefício
vislumbrado diz respeito não apenas a qualificação da equipe, necessária nas realizações
de tarefas junto a Atenção Básica, mas também pelo impacto a ser gerado na comunidade
no tocante a formação de agentes de transformação em saúde mental. É preciso ressaltar
que os CAPSs, dentro da atual política de atenção à saúde mental do Ministério de Saúde,
são considerados dispositivos estratégicos para a organização da rede de atenção em saúde
mental em seus territórios; dessa feita, será importante e necessária uma articulação da
saúde mental com a atenção básica – iniciativa significativa, hoje refletida pelos técnicos
do CAPS Galdino Loreto frente a sua população usuária e que requer, sem dúvida alguma,
assessoria especializada para a efetivação não só dessa iniciativa, mas da concretização
das diretrizes da Reforma Psiquiátrica Brasileira e do Sistema Único de Saúde desse país.
3. OBJETIVOS
OBJETIVO GERAL: Ampliar a promoção do cuidado em saúde mental no território
sanitário do Distrito V da Cidade do Recife.
OBJETIVOS ESPECÍFICOS:
38
3
-
Constituir um espaço de capacitação contínua dos profissionais e gestores do
CAPS frente à temática da atenção em saúde mental na saúde pública e
coletiva junto a atores sociais em crise;
-
Subsidiar teoricamente práticas de cuidado em saúde mental favorecidas no
CAPS e nas intervenções a serem realizadas em âmbitos comunitários;
-
Potencializar a qualidade do serviço de promoção/atenção em saúde mental
oferecido no DSV da Cidade do Recife.
4. METAS / PRODUTOS / RESULTADOS ESPERADOS
Através das ações de supervisão solicitadas pelo Projeto CAPS – Intervenção no
Território, buscamos, em curto prazo, possibilitar uma ferramenta de suporte para as
incursões da equipe do Galdino Loreto na comunidade do distrito sanitário V, em Recife.
Dessa forma, poderemos contemplar, além de outras instâncias a: identificação de
demandas clínicas por cuidado, dialogia em saúde mental junto às Unidades de Saúde da
Família e rede comunitária, problematização do sofrimento psíquico visando estratégias
de atenção e de ação coletiva, versando a inclusão do portador de transtorno mental em
sua comunidade. Em longo prazo, nossa meta é oferecer um serviço amplo e qualificado
para atender demandas do âmbito da saúde pública, contribuindo, assim, para legitimar os
princípios e fundamentos do SUS.
O Projeto, em suas metas, têm um impacto direto na formação do agente promotor de
saúde mental através da capacitação permanente dos profissionais e gestores do serviço e,
de maneira indireta, vem a favorecer as equipes de Saúde da Família e comunitários com
quem estabeleceremos uma rede de cuidado. Diante da crítica de que nossas ações estão,
na maioria das vezes, restritas aos muros do CAPS, acreditamos que um dos produtos do
Projeto é a realização qualificada de incursão social no território ao qual esse CAPS é
referência. É através da discussão teórico-prática que teremos como resultado esperado do
projeto a apropriação pelos técnicos do serviço sobre: inclusão social, rede comunitária,
saúde coletiva e outras temáticas relevantes. No que concerne a dimensão quantitativa
pensamos em atingir, a priori, a cobertura do território sanitário da Micro Região 5.1 que
possui aproximadamente 94263 habitantes. A prioridade de atenção será dada aos
pacientes egressos de internamento psiquiátrico e os que chegaram ao serviço em sua
primeira crise. Por tratar-se de um projeto de supervisão que articula atenção básica com
procedimentos caps, o indicador quantitativo poderá ser a diminuição do número de
39
3
admissões de usuários desta área no CAPS Galdino Loreto e, simultaneamente, o aumento
de procedimentos de cuidado junto ao portador de transtorno mental na atenção primária.
5. METODOLOGIA/ESTRATÉGIA DE AÇÃO
O caminho a ser percorrido para atingir o nosso objetivo, poderá ser dividido em três
etapas que se complementam e serão executadas na mesma frequência; a partir de
encontros/inserções na comunidade quinzenalmente com duração de quatro horas. As
etapas são a seguir:
1. Formação Teórica sobre a prática clínica em saúde mental na comunidade.
Etapa inicial que tem o objetivo de fornecer aos profissionais envolvidos um espaço
de aprendizagem, discussão e construção coletiva de uma práxis a ser realizada na
etapa subseqüente;
Tempo de duração dessa etapa: um terço do tempo total do Projeto.
2. Ação interventiva supervisionada
Reflexão e estudo da prática elaborada junto às demandas clínicas por cuidado. Nessa
etapa do Projeto, as ações desenvolvidas pelo CAPS na comunidade seriam
supervisionadas em lócus e em espaços discursivos, dessa forma, iniciaríamos as
atividades de expansão da atenção e de uma clínica ampliada.
Tempo de duração dessa etapa: um terço do tempo total do Projeto
3. Elaboração do Projeto de Atenção do CAPS Galdino Loreto na comunidade.
Delinear no quadro de suas atividades, práticas clínicas a serem realizadas junto aos
cuidadores da Atenção Básica e da rede comunitária frente à população usuária que
solicita o cuidado com a saúde mental.
No que concerne ao período programado para a supervisão que está sendo solicitada,
sugerimos o primeiro semestre de 2008 para o início das atividades. A forma de avaliação
deverá ser definida, coletivamente com o grupo de técnicos que após a experienciação das
atividades de cada etapa, construirá critérios e instrumentos de avaliação. Tempo de
duração dessa etapa: um terço do tempo total do Projeto.
6. PLANO DE APLICAÇÃO
De acordo com os repasses dos recursos financeiros por parte do Ministério, a gerência do
CAPS se responsabilizará pela administração a nível local. Isso significa dizer, portanto,
que as parcelas federais serão destinadas mensalmente aos honorários do supervisor a ser
40
4
contratado, aquisições dos materiais necessários para a realização das atividades de
supervisão e inserção no território sanitário. Dessa feita, solicitamos o valor total de
R$10.00,00 (dez mil reais) podendo ser dividias em três parcelas – sendo a primeira delas
no valor de R$4.000,00 (quatro mil reais) e as duas últimas de R$3.00,00 (três mil reais).
7. PRAZO DE EXECUÇÃO
I - Etapa - Formação Teórica sobre a prática clínica em saúde mental na comunidade:
período: março de 2008 a maio do mesmo ano.
II - Etapa - Ação interventiva supervisionada: junho de 2008 a agosto do mesmo ano.
III - Etapa - Elaboração do Projeto de Atenção do CAPS Galdino Loreto na comunidade:
setembro a novembro de 2008.
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Entre o passado e o futuro O relato de uma experiência de estágio