PUNIÇÃO, VINGANÇA VITIMOLÓGICA E JUSTIÇA CRIMINAL: UMA EXPERIÊNCIA Lucas Laire Faria Almeida1 RESUMO: O presente artigo aborda a problemática posição das vítimas e seus familiares de crime violento no cenário atual brasileiro. O nascimento do sentimento de vingança e o seu constante agravamento são analisados sob uma visão crítica, na qual são apontados fatores jurídicos e sociais que justifiquem tal cenário. A perda de utilidade da prisão, reduzida a mero espaço segregador e a disseminação da ideologia punitivista, encabeçada pela bandeira da lei e ordem são abordados como causa de um processo lesivo à plena efetividade dos Direitos Humanos. Palavras-chave: vítima; vingança; prisão; lei e ordem; direitos humanos. ABSTRACT: The fowling article shows the problematic place of violent crime’s victims and their relatives in the present Brazilian state. The birth of revenge and his incensement are review in a critical look, which related juridical and social factors able to explain this scenery. The loss of prison utility’s, turned only in a segregator space, and the punishment ideal, headed by the law and order’s flag, are elected as reason of the damage process in the plenty effectiveness of the Human Rights . Keywords: victim; revenge; prision; law and order; human rigths. 1 Especialista em Ciências Penais pela PUC Minas, professor da PUC Minas campi Coração Eucarístico e Barreiro, advogado criminalista e assessor jurídico do Núcleo de Atendimento às Vítimas de Crimes Violentos de Belo Horizonte – MG. 1 A VINGANÇA ENTRE NÓS O presente ensaio procura abordar através de um enfoque crítico a questão da pena privativa de liberdade no atual Estado de Direito Democrático. A proposta se justifica diante do corte epistemológico obtido a partir de nossa experiência na pratica forense criminal, mais precisamente no Núcleo de Atendimento às Vítimas de Crimes Violentos de Belo Horizonte/MG, onde convivemos diariamente com pessoas vitimadas pela violência. Verificase que o regular processamento do feito criminal com o advento de sentença penal condenatória culminante em pena privativa de liberdade, não atende a expectativa de grande parte do público. Há sempre uma demanda por mais rigor, pela expiação do delito através de sofrimento e, se possível, sua retribuição nos moldes da Lex Talionis2, resultando assim, em pura e simples vingança. Diante desta constatação, impõe-se a seguinte indagação: quais fatores jurídicos e meta-jurídicos presentes na atual realidade social acentuam o natural sentimento de retribuição das vítimas e familiares de crimes violentos, gerando a demanda vingativa e conseqüente perda de credibilidade do Direito? Contudo, antes de passarmos à análise desse difícil e complexo dilema, necessário se faz um breve escorço histórico acerca da pena privativa de liberdade, bem como a exposição das teorias correlacionadas. 2 A Lei do talião (do Latim Lex Talionis: lex: lei e talis: tal, parelho) consiste na justa reciprocidade do crime e da pena. Os primeiros indícios dessa lei foram encontrados no Código de Hamurabi, em 1730 a.C, no Reino da Babilônia. Também presente no antigo Direito Hebraico (Êxodo, cap. 21, vers. 23-25), essa concepção aponta que o criminoso fosse punido taliter, ou seja, talmente, de maneira igual ao dano causado a outrem. 2 DIREITO VERSUS JUSTIÇA? Embora a prática de condutas lesivas a bens jurídicos ocorra desde a aurora humana, a sua definição como ilícita ou criminosa sempre precedeu a existência de um poder constituído (político ou econômico) que as definissem como tal, estipulando as respectivas sanções. O período anterior à Revolução Industrial foi caracterizado por arbítrios no exercício do poder punitivo, como julgamentos sumários e o emprego de penas cruéis. O corpo era o objeto do Direito Penal e as penas variavam desde as execuções e mutilações previstas nos códigos de Hamurábi e Manu, passando pelos trabalhos forçados e os exílios (perda do direito de cidade), característicos do Império Romano, até as torturas e suplícios públicos da Idade Média. Marco das Ciências Penais, o livro “Dos delitos e das penas”, escrito em 1764 pelo italiano Cesare Bonesana, então Marquês de Beccaria, revelou-se um verdadeiro manifesto contra as arbitrariedades e crueldades cometidas em prol do jus puniendi, apregoando a aplicação de princípios básicos, como o da reserva legal e propondo o fim da pena capital. Atualmente, o saber penal continua provocando discussões, com a formulação de várias doutrinas justificativas da pena, dentre as quais se destacam as teorias absoluta e relativa. A primeira teoria se funda na idéia de retribuição, enquanto a segunda é baseada na prevenção, conforme melhor expõe Luigi Ferrajoli: São teorias absolutas todas aquelas doutrinas que concebem a pena como um fim em si própria, ou seja, como castigo, reação, reparação ou ainda retribuição do crime, justificada por seu intrínseco valor axiológico, não um meio, e tampouco um custo, mas sim um dever ser metajurídico que possui em si seu próprio fundamento. São, ao contrário, relativas todas as doutrinas utilitaristas, que consideram e justificam a pena para a realização do fim utilitário da prevenção de futuros delitos (FERRAJOLI, 2002, p. 236). Há ainda uma subdivisão da teoria relativa em geral e especial: a prevenção geral se verifica quando a sociedade, impactada com a punição recebida por um de seus membros, sente-se demovida da prática de algum delito, refletindo sobre suas conseqüências. Encerra, ainda, a noção de integração social, na medida em que se infunde na consciência coletiva o respeito ao ordenamento jurídico e às instituições. A prevenção especial recai exclusivamente sobre o autor do delito, seja anulando ou neutralizando temporariamente novas ações do agente através do encarceramento, ou ainda com um aspecto pedagógico e ressocializante, uma vez que força o apenado a refletir sobre o ato perpetrado, reconhecendo-o como errado, para então voltar ao seio social. Todavia, estas teorias são merecedoras de profundas críticas. No que tange a prevenção geral, a mesma revela-se desassociada do atual paradigma, pois, em um Estado comprometido com os valores democráticos e voltado para a efetivação de direitos fundamentais, tanto o processo de instrumentalização, quanto o de transfiguração da pessoa humana em mero meio para uma finalidade (o temor social da lei) devem ser encarados como falácia jurídica, manifestadamente inconstitucional, conforme pontua Juarez Cirino dos Santos: A crítica à função negativa de intimidação destaca que a prevenção geral não possui critério limitador da pena, degenerando em puro terrorismo estatal – como ocorre, por exemplo, com os crimes hediondos, no Brasil; por outro lado, assinala que a intimidação atribuída à função de prevenção geral negativa da pena criminal constitui violação da dignidade da pessoa humana: a punição imposta ao condenado teria por objetivo influenciar o comportamento da coletividade, de modo que o sofrimento de uma pessoa seria simples exemplo para intimidar outras pessoas (SANTOS, 2002, p.56). Sobre a prevenção especial, oportuna e atual é a crítica feita por Winfried Hassemer: O que realmente se quer atingir com o fim apontado: uma vida exterior conforme ao Direito (ou só conforme o Direito Penal?), uma conversão também interna, uma cura, um consentimento com as normas sociais, jurídicas e penais de nossa sociedade? A resposta ainda está pendente. Sem uma determinação clara e vinculante, nenhum programa de recuperação, a rigor, se justifica (HASSEMER, 1993, p.39). Pertinente é a indagação do renomado jurista alemão, uma vez que se verificam incutidos em vários programas “ressocializadores”, valores morais e religiosos, que são literalmente impostos como conditio sine qua nom para a reintegração, resultando assim verdadeiro processo de ortopedia social. Uma vez expostas as teorias acerca da pena e suas respectivas críticas, elencamos dois possíveis fatores, por nós considerados como decisivos, para a acentuação do sentimento de vingança. O primeiro deles é referente à prisão ou a instituição total (FOCAULT, 2000). Inicialmente, cabe desmistificar que esta teria se inspirado na rotina dos mosteiros europeus, nos quais os clérigos, reclusos em determinados cômodos, se penitenciavam. Esta origem falaciosa (com a romântica idéia de arrependimento e redenção) foi há muito desmascarada por Rusche e Kirchheimeir na clássica obra “Punição e Estrutura Social”. O referido trabalho ainda inspirou o “Cárcere e Fábrica”, de Melosi e Pavarini, que também contribuiu significativamente para a derrocada do mito sobre a origem da prisão. Ambas as obras, após um vasto estudo empírico, relacionaram o advento das prisões com a mudança dos meios de produção e com a relação capital/trabalho. Foi constatado que o processo de introdução da pena privativa de liberdade delineia-se no período mercantilista, possuindo aceitação e universalização no período pós-Iluminista, com o assentamento definitivo do sistema e ideologia capitalista. As taxas de criminalidade das cidades recém industrializadas eram altíssimas, originadas pelo êxodo da população camponesa, que, ociosa, adotava uma série de comportamentos desviantes tais como pequenos furtos, jogatina e embriaguez contumaz, o que fatalmente resultavam em crimes mais graves como homicídios e crimes sexuais. Diante do déficit de mão de obra apta ao trabalho industrial, o poder dominante não poderia se dar ao luxo de executar ou mutilar os milhares de indivíduos como fazia em épocas anteriores. A solução apresentada foi a criminalização exacerbada: penas privativas de liberdade cumpridas em locais, cujas condições sempre eram inferiores às das categorias sociais mais baixas. O indivíduo, mediante rígida disciplina, era capacitado e via no trabalho a única esperança de liberdade. O paradoxo é que, ao sair da prisão, não encontrava condições muito diferentes nas fábricas. Vale ressaltar que tal processo foi reproduzido em larga escala ao longo dos séculos em praticamente todos os sistemas penais ocidentais e que isto significava também a imposição de valores de uma esfera dominante para os estratos sociais inferiores. Contudo, com a explosão demográfica ocorrida no século XX, manter uma estrutura laborativa nos estabelecimentos penais tornou-se economicamente inviável. A abundância de mão de obra, aliada ao etiquetamento, bem como ao preconceito decorrente do cárcere, praticamente selaram a utilidade da prisão como reformadora de delinqüentes e transformadora de trabalhadores. A prisão tornou-se uma instituição falida, com pouco ou nenhum reconhecimento social, banalizada e reduzida a mero espaço segregador. Outro fator que pode ser apontado é o surgimento e, posteriormente, o crescimento do movimento Law and Order3. Tal movimento se desdobra de diversas maneiras, desde a criminalização de condutas lesivas a bens jurídicos de pouca relevância até o agravamento das penas, passando pelo desprezo a garantias penais e processuais penais consagradas, como bem assevera Eugênio Raúl Zaffaroni: Estas campanhas realizam-se através de “invenção da realidade” (distorção pelo aumento do espaço publicitário dedicados a fatos de sangue, invenção direta de fatos que não aconteceram), “profecias que se auto-realizam” (instigação pública para a 3 A expressão “Lei e Ordem” será empregada propositalmente em língua estrangeira, de modo a deixar clara a conotação neocoloniasta, neoimperialista e, sobretudo, o caráter alienígena do referido movimento. prática de delitos mediante metamensagens de “slogans” tais como “a impunidade é absoluta”, “os menores podem fazer qualquer coisa”, “os presos entram por uma porta e saem pela outra, etc.; publicidade de novos métodos para a prática de delitos, de facilidades, etc.) “produção de indignação moral” (instigação a violência coletiva, a autodefesa, a glorificação de “justiceiros”, apresentação de grupos de extermínio como “justiceiros”, etc. (ZAFFARONI, 2001, p.129). A intrínseca relação entre controle social e poder político dominante assume um caráter explicito no movimento Law and Order, na medida em que este é convenientemente usado como plataforma eleitoral. Sobre esse aspecto, pontuam Jorge de Figueiredo Dias e Manoel da Costa Andrade: Para o poder, o crime constitui um dos tópicos mais gratificantes. Os políticos confiam exageradamente na lei criminal e gostam de invocar as sanções criminais a propósito dos mais variados problemas sociais, que mais não seja para declinar o seu fervor moral e as suas virtudes políticas. Daí a freqüência do recurso à guerra ao crime como expediente de capitalização política sobre o medo e a insegurança e, por isso, de legitimação as formas mais agressivas de poder (DIAS; ANDRADE, 1997, p.414). Com efeito, a opinião pública é tendenciosamente manipulada e seduzida pelo discurso opressor, que se aproveita de situações e fatos de forte apelo emotivo, para deflagrar campanhas antidemocráticas atentatórias à consolidação de direitos fundamentais. No editorial “Escalada da Violência”, de setembro de 2006, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais divulgou uma pesquisa realizada pelo Datafolha, em que 51% da população querem a pena de morte, enquanto 84% são favoráveis à redução da imputabilidade penal de 18 para 16 anos. Porém, a pesquisa, que entrevistou 6.969 pessoas em todo o país, constatou que os mais jovens tendem a ser mais conservadores que a geração que os antecederam, apregoando maior punição. Outro dado revelador é que, quanto mais baixo o nível de escolaridade dos depoentes, maior é a defesa do endurecimento penal (IBCCRIM, 2006). Desta forma, faz-se necessária uma crítica contundente, uma vez que, historicamente, é este segmento social (jovem e sem instrução) o principal alvo das instâncias de controle. Sobre a adoção de medidas reacionárias, relembramos a advertência de Rusche e Kirchheimeir: Na medida em que a consciência social não está numa posição de compreender, e conseqüentemente de agir sobre a necessidade de relacionar um programa penal progressista e o progresso em geral, qualquer projeto de reforma penal continuará caminhando sobre incertezas, e os inevitáveis fracassos serão mais uma vez atribuídos à fraqueza inerente a natureza humana e não ao sistema social. A futilidade da punição severa e o tratamento cruel podem ser testados mais de mil vezes, mas enquanto a sociedade não estiver apta para resolver seus problemas sociais, a repressão, o caminho aparentemente mais fácil, será sempre bem aceita. Ela possibilita a ilusão de segurança, encobrindo os sintomas da doença social com um sistema legal e julgamentos de valor moral (RUSCHE; KIRCHHEIMEIR, 2004, p. 282). 3 A RESPOSTA DO GARANTISMO PENAL Assim, em resposta ao questionamento inicial, concluímos que fatores como a perda da utilidade da prisão e a disseminação do discurso Law and Order são determinantes para a propagação e agravamento do sentimento de vingança. Atribuir à vendeta uma causa exclusivamente subjetiva, apenas de cunho psicológico, é ignorar o processo de supressão de direitos fundamentais, deterioração das instituições democráticas e desconstrução da cidadania atualmente em curso em nosso país, processo este vantajoso apenas para a parcela economicamente viável da população, que usufruirá ao máximo das vantagens do Estado Liberal, enquanto a maioria, excluída, suportará o ônus de viver em um Estado cada vez mais opressor. REFERÊNCIAS DIAS, Jorge de Figueiredo Dias; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinqüente e a sociedade criminógenea. 2ª reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1997. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. FOUCAUT, Michael. Vigiar e punir. 23ª ed. Petrópolis: Vozes, 2000. HASSEMER, Winfried. Três temas de direito penal. Porto Alegre: Fundação Escola Superior do Ministério Público, 1993. IBCCRIM, Boletim. A escalada da violência. Ano 14, n° 166, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. RUSCHE, Georg. KIRCHHEIMEIR, Otto. Punição e estrutura social. Trad. Gizlene Neder, 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004. SANTOS, Juarez Cirino dos. Política Criminal: realidades e ilusões do discurso penal. In: Nilo Batista (Coordenador.). Discursos sediciosos – crime direito e sociedade. nº 12, Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Trad. Vânia Ronamo Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2001.