SIMPÓSIO TEMÁTICO
Da arte de construir à inteligência arquitetônica
TÍTULO
DÉTOURNEMENT
a estética da indiferença na arquitetura holandesa
AUTOR
Gentil Porto Filho, professor doutor do Departamento de Design da UFPE
RESUMO
O presente artigo discute o impacto do détournement na arquitetura holandesa
contemporânea. Definido pela Internacional Situacionista como "desvio" de elementos
estéticos preexistentes para a configuração de novos arranjos significativos, o
détournement foi explorado nos anos sessenta como um método de configuração e
crítica cultural. Embora rapidamente assimilado pela arte e pelo design, o "desvio" de
objetos arquitetônicos e situações urbanas − a máxima ambição da vanguarda
situacionista − permaneceu, no entanto, praticamente irrealizado até a década de
noventa. O que foi designado de "ultra-détournement" só veio a ser sistematicamente
materializado a partir de tendências arquitetônicas influenciadas pelos postulados de
Rem Koolhaas. Estabeleceu-se então uma verdadeira cultura projetual, disseminada
internacionalmente por escritórios holandeses como o MVRDV, Neutelings Riedijk e
NL Architects, com base justamente em técnicas de deslocamento, justaposição e
hibridação de programas e tipologias preexistentes. Se, por um lado, tal produção vem
renovando os paradigmas metodológicos e formais da arquitetura, por outro, não deixa
de reproduzir a própria lógica organizacional da metrópole contemporânea. Neste
contexto, cabe discutir se o détournement consiste hoje numa estratégia capaz de
atuar criticamente sobre a cidade ou apenas num subproduto da "sociedade do
espetáculo".
PALAVRAS-CHAVE
détournement, Internacional Situacionista, arquitetura holandesa
1
ABSTRACT
This article discusses the impact of détournement in contemporary Dutch architecture.
Defined by the Situationist International as a "diversion" of preexisting aesthetic
elements for setting up new meaningful arrangements, the détournement was exploited
in the sixties as a method of configuration and cultural criticism. Although quickly
assimilated into the art and design, the "diversion" of architectural objects and urban
situations - the highest ambition of the situationist avant-garde - remained, however,
virtually unfulfilled until the nineties. What was termed "ultra-détournement" only came
to be systematically materialized by architectural trends influenced by the tenets of
Rem Koolhaas. It has established then a true design culture, disseminated
internationally through Dutch offices such as the MVRDV, NL Architects and Neutelings
Riedijk, just based on techniques of shifting, overlapping and hybridization of
preexisting programs and types. If, on the one hand, this production has been
renovating the formal and methodological paradigms of architecture, on the other hand,
it reproduces the own organizational logic of the contemporary metropolis. In this
context, it should discuss whether the détournement is today a strategy able to act
critically in the city or just a byproduct of the "society of spectacle."
KEY-WORDS
détournement, Situationist International, Dutch architecture
Técnica situacionista
Fundada em 1957 por um grupo heterogêneo de artistas e ativistas políticos,
a Internacional Situacionista (SI, 1959) tinha como marca de sua manifestação o uso
do détournement. Definido como “desvio de elementos estéticos pré-fabricados” ou
“integração de produções artísticas atuais ou passadas em uma construção superior
do ambiente” (SI, 1958), o détournement era concebido como o próprio método de
superação de uma ordem sócio-cultural caracterizada pelo consumo passivo de
imagens e mercadorias.
Tendo como objetivo criar novos valores a partir da negação dos valores
estabelecidos (JORN, 1959), o détournement obedecia a duas "leis" principais: [1] a
2
perda de importância de cada elemento autônomo desviado e [2] a organização de um
outro arranjo significativo no qual cada elemento ganha novos escopos e efeitos (SI,
1959). A realização do détournement implicaria, assim, numa atitude ao mesmo tempo
de "indiferença" e de crítica em relação aos produtos culturais de uma sociedade
capitalista em processo de "decomposição" (DEBORD; WOLMAN, 1956).
Figure 1 - Asger Jorn, O pato inquietante, 1957
A eficácia dessa técnica – devidamente sistematizada pelas regras de
aplicação de um “guia prático” inspirado em técnicas do design e da propaganda –
proviria da coexistência de velhos e novos significados (SI, 1959). Para os
situacionistas, tal método expressaria a própria contradição de uma era cuja
necessidade de iniciar uma ação coletiva inovadora é confrontada com a sua
impossibilidade imediata (SI, 1959).
O détournement ganha corpo nos anos sessenta como uma evidente
adaptação de certas idéias artísticas já desenvolvidas nas primeiras décadas do
século XX pelas vanguardas históricas. Selecionar e recontextualizar objetos
ordinários e “acoplar realidades inacopláveis” para produzir “estranhamento” e
“centelhas poéticas” ou para ampliar e criticar os padrões culturais vigentes é o próprio
fundamento dos readymades de Marcel Duchamp, das colagens dadaístas de Raoul
Hausmann e das imagens surrealistas de Max Ernst (1999).
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Embora assumidamente devedores dessa tradição que remonta às "poesias"
de Lautréamont, ainda no século XIX, os situacionistas pretendiam ultrapassar o viés
eminentemente negativo que a caracterizava e, sobretudo, estender a prática do
détournement a todo o espaço urbano (DEBORD; WOLMAN, 1956). Seja fazendo do
détournement um instrumento de propaganda seja produzindo uma “construção
integral de um ambiente em ligação dinâmica com experiências de comportamento”
(SI, 1958), os situacionistas almejavam manipular não apenas imagens e discursos,
mas formas arquiteturais e “situações inteiras”. Sendo assim, o “ultra-détournement”
constituiria a máxima ambição de uma práxis política e cultural que pretendia aplicar a
técnica do "desvio" na totalidade da vida social cotidiana (DEBORD; WOLMAN, 1956).
O détournement na arte contemporânea
Após o encerramento da Internacional Situacionista e de vários outros
movimentos revolucionários nos anos setenta, o mundo das artes acabou
testemunhando na década de oitenta uma ampla retomada da tradição pictórica
(ARCHER, 2001). Tanto no contexto internacional como no brasileiro, as ambições
políticas que tinham orientado a crítica radical situacionista e a aplicação de técnicas
similares ao détournement cedem lugar às mais variadas tendências artísticas neoexpressionistas (HARRISON, 1998).
Somente a partir de meados dos anos noventa o discurso crítico nas artes
visuais veio novamente a se fortalecer, associado muitas vezes aos diversos
movimentos ambientalistas e antiglobalização. As intervenções no espaço urbano e os
“projetos táticos” na internet de coletivos como o Critical Art Ensemble e o Etoy
passaram então a ocupar um território significativo da cultura contemporânea
(RICHARDSON, 2002). Uma produção que voltou a questionar os objetivos, os
métodos e o próprio contexto da arte e da cultura mediante procedimentos
parodísticos típico dos situacionistas.
A valorização de objetivos comunicacionais e do uso de técnicas projetuais
diversas, em detrimento dos tradicionais interesses estéticos, emergem como traços
fundamentais dessas tendências. Ao atuarem no espaço público, tais artistas
convertem-se muitas vezes em arquitetos de eventos e ambientes efêmeros,
explorando amplamente o détournement. Trabalhos de artistas como Nina Pope e
Jeanne van Heeswijk e do coletivo Superflex servem como exemplos de uma prática
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dedicada ao mapeamento do contexto físico, institucional e informacional e, sobretudo,
às estratégias de interação com o público-alvo através da manipulação de imagens,
espaços e práticas sociais estabelecidas.
Cada vez mais conectados com o sistema internacional das artes, artistas
brasileiros não só têm assimilado tais expedientes como colaborado para a sua
propagação e diversificação. Intervenções urbanas que atualizam a técnica do
détournement – seja por intermédio de artefatos físicos ou ações performáticas –
ocorrem inclusive regularmente em eventos públicos de grande porte como o “SPA
das Artes” no Recife.
Figura 2 - Vik Muniz, Mona Lisa dupla, 1999
No âmbito dos espaços tradicionais de exposição, a aplicação de
procedimentos relacionados ao détournement tem sido também notável na obra de
diversos artistas reconhecidos nos circuitos de museus e galerias. Os trabalhos de
Raul Mourão, Marcelo Cidade e Vik Muniz podem ser apontados como exemplos de
poéticas contemporâneas apoiadas no "desvio" de signos e artefatos preexistentes.
Ultra-détournement: o teorema
Embora o détournement tenha sido amplamente assimilado pelas artes
visuais, pelo design e pela propaganda, essa técnica ficou aparentemente restrita ao
nível imagético ou a ações artísticas. Ou seja, o tão almejado "ultra-détournement" − a
fusão de todas as artes na construção de um “complexo arquitetônico” segundo as
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regras do "desvio" − nunca chegou a ser plena e regularmente realizada até o
desfecho do movimento situacionista em 1972.
Foram necessárias três décadas desde então para que a própria arquitetura
começasse a ser largamente produzida a partir de métodos de deslocamento,
justaposição, hibridização ou deformação de “blocos situacionais” preexistentes. No
entanto, um possível início da difusão dessa estratégia projetual pode ser encontrado
já em 1978 com a publicação de Delirious New York. Nesse livro, Rem Koolhaas
(1994) desenvolve não apenas um "manifesto retroativo" em favor da "cultura da
congestão", mas uma possível teoria do détournement para o campo da arquitetura e
do urbanismo.
Ao descrever o típico "arranha-céu" nova-iorquino de múltiplo uso como o
dispositivo que engendrou o "manhattanismo", o arquiteto holandês apresenta uma
ilustração que, surpreendentemente, pode servir como um legítimo diagrama do "ultradétournement" situacionista (KOOLHAAS, 1994, p. 83). Retirado de um cartum do
início do século XX, esse "teorema" apresentado por Koolhaas mostra uma
megaestrutura vertical que suporta em cada pavimento edifícios completamente
autônomos em relação aos demais. Ora, se o arranha-céu multifuncional é
representado pelo empilhamento de tipos arquitetônicos preexistentes, tal ilustração
constitui o próprio teorema do détournement aplicado na arquitetura.
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Figura 3 - Rem Koolhaas, Teorema, Delirious New York, 1978
Nesse caso, a configuração do arranjo arquitetônico funda-se em duas
operações elementares: a primeira consiste em "desviar" tipos "originais" dos seus
contextos usuais e a segunda em justapor verticalmente esses elementos desviados.
Um método projetual que evidencia, antes de tudo, aquela atitude situacionista de
indiferença não só em relação a qualquer premissa estética como também à cultura
arquitetônica como um todo. Ao explicitar esse desinteresse pelo resultado formal
obtido, o "teorema" sugere que a ênfase do fazer projetual recai agora sobre questões
de ordem programática e organizacional.
Descrito e ilustrado implicitamente no Delirious New York, o uso do
détournement só ganharia ampla repercussão na arquitetura contemporânea a partir
da sua aplicação prática, efetivada pelo próprio Koolhaas nos anos noventa. Um dos
trabalhos mais emblemáticos quanto ao emprego desse método é o projeto para a
Biblioteca de Jussieu de 1992. Apesar da relativa homogeneidade programática e do
resultado final não corresponder a um tipo propriamente vertical, Koolhaas concebeu o
edifício como uma peculiar concretização do "teorema" do arranha-céu: um sistema de
pilares e lajes interconectadas a ser ocupado pelos itens do programa da biblioteca,
além de outros espaços e equipamentos "desviados" do tecido urbano, tais como
praças, cafés e lojas.
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A arquitetura surge claramente aqui como resultado de um processo projetual
baseado na configuração de uma estrutura espacial genérica e flexível e na posterior
seleção e combinação de tipologias preexistentes. O projeto não fixa o caráter estético
do conjunto, apenas estabelece uma infraestrutura urbana capaz de abrigar, organizar
e justapor artefatos e eventos. A atenção do projetista volta-se, portanto, menos para a
composição objetual do que para o modo de articulação de componentes
programáticos previamente estipulados.
Figura 4 - Rem Koolhaas, Kunsthal, Roterdã, 1992
Construída em 1992, a Kunsthal de Roterdã é outro trabalho de Koolhaas que
evidencia o uso do détournement como principal técnica projetual. No entanto,
diferentemente do projeto para Jussieu, Koolhaas aqui privilegia a elaboração estética
da edificação. O resultado alcançado provém diretamente da heterogeneidade dos
fechamentos e, sobretudo, das distintas tipologias escolhidas para cada setor da
edificação.
Exibindo
formas
genéricas
e
elementares,
o
exterior
expressa
didaticamente o seu programa, seja através do aspecto fabril do setor de exposição
seja da típica laje inclinada para a platéia do auditório.
O que evidencia esteticamente o uso do "desvio" como método projetual na
Kunsthal é a inexistência de uma síntese formal a partir dos componentes plásticos e
tipológicos utilizados. Ao recorrer deliberadamente à justaposição de elementos
heterogêneos, Koolhaas demonstra pouco apreço pela correção compositiva e,
8
consequentemente, pelos próprios valores formais dos elementos desviados. Afirma
antes uma estética que ganha interesse justamente pela desvalorização de princípios
formais que costumam comprometer o valor de uso e a capacidade de inovação da
arquitetura (PORTO FILHO, 2004).
Os desdobramentos arquitetônicos das teses do Delirious New York
acabaram por fomentar uma cultura projetual baseada em técnicas de "desvio".
Aparentemente, tal tendência deve seu impacto a pelo menos duas razões práticas:
primeiro, porque a aplicação do détournement tende a valorizar questões relacionadas
mais aos usos arquitetônicos do que às formas − mostrando-se, assim, adequado às
posturas que questionam o potencial estético da arquitetura na metrópole
informacional; segundo, porque o détournement afirma-se como um procedimento
coerente com a fragmentação formal, a diversidade tipológica e a "instabilidade
programática" que caracteriza a realidade contemporânea.
Desvios holandeses
Muitos dos arquitetos holandeses que vêm atualizando a técnica do
détournement costumam considerar a arquitetura como um sistema para regulação e
potencialização
de
usos
e
eventos
às
custas
de
premissas
estéticas
ou
representacionais (SPEAKS, 1998). Para Winy Maas (1998), por exemplo, atuar na
"cidade da máxima diferença" implica em abandonar o tradicional exercício
compositivo em favor do processamento de dados e diagramas e de uma ampla
reutilização de tipologias "default".
Não é por acaso que o MVRDV, dirigido por Maas, seja um dos principais
responsáveis pelo desenvolvimento e radicalização das idéias difundidas por Koolhaas
e venha produzindo as mais notáveis aplicações do détournement na arquitetura
recente. O pavilhão holandês para a feira universal de Hannover em 2000 é um
desses casos emblemáticos de materialização do "teorema" do arranha-céu. Em vez
de deslocar tipologias arquitetônicas com objetivos puramente pragmáticos, o MVRDV
"desvia" aqui fragmentos de paisagens holandesas com finalidades simbólicas. De
todo modo, a operação projetual é basicamente finalizada com o simples
empilhamento desses "blocos situacionais", dispensando qualquer esforço para
harmonizar os elementos díspares selecionados.
9
O
MVRDV
também
tem
explorado
o
détournement
em
programas
convencionais, submetidos aos condicionantes ordinários da prática arquitetônica.
Edifícios residenciais como o Silodam e o Mirador, construídos respectivamente em
2002 e 2005, demonstram a viabilidade dos métodos de "desvio" na realidade
cotidiana. Em ambos os casos, os dois procedimentos que caracterizam o processo
projetual consistem, primeiramente, em "desviar" a maior variedade possível de tipos
de apartamentos para, em seguida, agrupá-los, formando um grande bloco unitário.
Figure 5 - MVRDV, Silodam, Amsterdã, 2002
O aspecto visual resultante indica a prioridade do arranjo programático sobre
a harmonia compositiva. A dimensão estética surge aqui como uma espécie de
autocrítica, na medida em que a forma edificada decorre da mera justaposição de
elementos aparentemente incompatíveis. Desse modo, tais edifícios expressam de
maneira eloquente a condição fundamental para o uso do détournement: um certo
desdém em relação ao valor das formas utilizadas ou a qualquer método criativo
fundado em premissas estéticas.
Se esses edifícios do MVRDV podem ser apontados como realizações
acabadas de uma metodologia projetual baseada na "montagem" de “situações
desviadas”, as propostas do escritório NL Architects vão indicar, por sua vez,
diferentes possibilidades de uso do détournement. No caso do projeto do Parkhouse, a
operação realizada com os "originais" desviados não é exatamente a da justaposição,
como ocorre no "teorema" de Koolhaas e nas propostas do MVRDV. Após "desviar"
tipologias de estacionamento e shopping-center, o NL Architects realiza antes uma
"hibridização" (L’ARCHITECTURE D’AUJOURD’ HUI, 1999). Ao invés de uma
10
"montagem" de unidades-tipo em que cada uma se mantém inalterada, o novo arranjo
é definido por elementos que se modificam mutuamente (sem no entanto deixarem de
preservar certas características estruturais que garantem a identidade dos "originais").
Figure 6 - NL Architects, Parkhouse, Amsterdã, 1995
O NL Architects tem também demonstrado uma especial versatilidade quanto
aos tipos de elemento desviado e contextos de uso do détournement. A estratégia de
deslocar e hibridizar pode ser observada em projetos de naturezas e escalas
completamente distintas, tal como ocorre na proposta para conversão de trens em
supermercados móveis ou no design do vaso "3Vase", realizado a partir da "fusão" de
três exemplares de um mesmo protótipo (NL ARCHITECTS, 2002). Além da
hibridização, o escritório também vem recorrendo à justaposição direta de programas
aparentemente heterogêneos, como é o caso do premiado Basket Bar, em cujo teto
implantou-se uma quadra esportiva.
Outros projetos representativos dessa metodologia não necessariamente se
fundamentam na justaposição ou hibridização de componentes deslocados. A paródia
da casa Farnsworth de Mies Van der Rohe realizada pelo One Architecture é o
exemplo de uma operação projetual que pode ser caracterizada basicamente pelo
"desvio" − sem nenhum outro procedimento criativo de grande relevância. Em
consonância com o modo de atuação cultural situacionista, o escritório explora
abertamente o "plágio" como um recurso para ironizar os próprios pressupostos
11
estéticos da arquitetura (L’ARCHITECTURE D’AUJOURD’ HUI, 2002). Tende, assim,
a reduzir o valor da edificação ao seu caráter estritamente instrumental, na medida em
que apenas adapta um ícone da arquitetura universal a novas demandas, sem,
todavia, elaborar novas "formas originais".
Figure 7 - John Körmeling, Pioneer House, Roterdã, 1999
A "pioneer house" é outro caso notável na arquitetura holandesa de um
processo projetual reduzido praticamente ao "desvio" de um "original". Sabendo-se
que a arquitetura tende sempre a enfrentar problemas específicos a partir de formas
específicas, a intervenção de Körmeling levanta questões cruciais sobre a própria
natureza da atividade arquitetural. Tal como no readymade de Duchamp, o arquiteto
holandês simplesmente desloca uma tipologia "colonial" para o teto de um edifício de
escritório (TOESET, 2001, p. 13). Desvaloriza, assim, qualquer pressuposto estético
no processo projetual, além de problematizar radicalmente a própria noção tradicional
de autoria.
Essa ampla e variada presença do détournement na arquitetura holandesa
contemporânea pode também ser verificada em projetos cujas técnicas de desvio são
aplicadas a elementos que nem são de natureza espacial nem programática. No caso
do edifício Minnaert de Neutelings Riedijk, os componentes desviados são fontes
tipográficas que, além de deslocadas do seu contexto familiar, são ampliadas e
confeccionadas em aço para funcionarem como elementos estruturais da fachada
principal. Ocorre aqui não só o desvio mas a conversão de artefatos simbólicos em
elementos construtivos mediante uma radical subversão da escala e da função dos
"originais".
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Figure 8 - Neutelings Riedijk, Minnaert, Utrecht, 2000
Desvio desviado: considerações finais
Essa metodologia projetual fundamentada no uso do détournement vem se
renovando nos Países Baixos especialmente a partir do “dirty detailing” da Kunsthal
(TOORN, 2001). Nos últimos anos instalou-se uma cultura arquitetônica que, mesmo
ironicamente “desviada” do contexto histórico “original” dos situacionistas, levanta
importantes questões sobre procedimentos projetuais e sobre o próprio potencial
crítico atribuído aos métodos de desvio.
É importante assinalar que o uso do détournement delineia-se como um
fenômeno cultural contemporâneo que extrapola amplamente o campo da arquitetura,
espalhando-se pelas artes visuais, pelo design, pelo paisagismo e por todo o universo
da propaganda, da publicidade e dos meios de comunicação de massa. Projetos tão
diversos como as “casas-móveis” do Atelier Van Lieshout, o “mobiliário” do Schie 2.0 e
as intervenções paisagísticas do West 8 são apenas alguns exemplos que atestam o
impacto desse método sobre áreas de atuação diferentes da arquitetura.
Apesar da maciça exposição da recente arquitetura holandesa nos meios
editoriais e da multiplicação das investigações sobre as teses situacionistas na última
década, as possíveis conexões entre ambas continuam insuficientemente exploradas.
Deixa-se, assim, de investigar temas arquitetônicos e urbanísticos relacionados não
13
apenas à metodologia projetual mas aos atuais impasses e utopias da arquitetura e
das artes em geral.
Os casos aqui apresentados deixam claro a relevância dessa técnica
situacionista para a teoria e a prática arquitetônica. Ganha destaque o viés pragmático
de um procedimento criativo que se fundamenta no reaproveitamento e na
"perversão" de formas, tipos e conceitos preexistentes. Desse modo, ressalta-se
também a capacidade crítica que o détournement pode assumir em relação ao
esteticismo que vem norteando a "sociedade do espetáculo".
Se o uso do détournement implica numa certa indiferença quanto aos códigos
formais preestabelecidos e mesmo numa desaprovação de qualquer abordagem
projetual formalista, fica patente que se trata de um método que acaba por priorizar
questões relacionadas à usabilidade arquitetônica. Ora, na medida em que a forma
arquitetural é concebida simplesmente a partir do "desvio" de elementos preexistentes
e de um determinado modo de combinação entre eles, os princípios estéticos tendem
a perder espaço para os problemas práticos e, portanto, éticos.
Outro aspecto que merece ser ressaltado é o potencial do détournement para
desestabilizar cenários urbanos e culturais homogeneizados. Na verdade, a própria
concretização do "desvio" depende dos efeitos de "estranhamento" produzidos no
contexto e no "público-alvo". Em outra palavras, a eficácia do détournement está
intrinsecamente vinculada à sua capacidade de subverter ou de pelo menos
"desautomatizar" redes estabelecidas de signos e práticas sociais (DEBORD;
WOLMAN, 1956).
Por outro lado, esse pragmatismo inerente aos métodos de desvio mostra-se
ironicamente coerente com as premissas utilitaristas do capitalismo avançado,
levantando, assim, questões sobre suas possíveis contradições internas. Nesse
sentido, é imprescindível verificar, antes de tudo, se as formas arquitetônicas são
mesmo capazes de produzir algum tipo de "desvio" numa cidade já completamente
fragmentada, hibridizada e saturada − onde parece ocorrer uma irreversível "fadiga do
objeto" (MAAS; RIJS, 1998, p. 100).
Questões sobre a hipotética natureza crítica do détournement tornam-se
especialmente apropriadas ao constatarmos a dependência desse procedimento em
relação às suas condições de recepção. Qualquer "desvio" parece irremediavelmente
14
atrelado ao modo que os aparatos informacionais "editam" seus efeitos ou
circunscrevem sua própria materialização no espaço urbano.
Diante da limitada capacidade estética e crítica das formas arquiteturais no
contexto da cidade pós-industrial, a técnica do "desvio" mostra-se, portanto, tão
relevante quanto problemática. Por um lado, pode ser visto como um dispositivo
projetual capaz não apenas de organizar pragmaticamente a "datatown", mas
sobretudo de transformar "poeticamente" as nossas percepções e comportamentos.
Por outro lado, deixa em aberto perguntas sobre as reais potencialidades técnicas e
críticas de um método que hoje poderia ser visto como a própria reprodução da lógica
organizacional da “delirious New York”. Em resumo, faz-se necessário avaliar se a
ampla utilização do détournement é uma possível “estratégia de resistência”, tal como
entende Toorn (2001, p. 31), ou apenas mais um subproduto da “sociedade do
espetáculo”.
Referências
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DÉTOURNEMENT: a estética da indiferença na arquitetura holandesa