A IMPORTANCIA DA FAMiLIA E DAS OUTRAS INSTITUIc;OES NA CONSTRUc;AO DA MEM6RIA DO VISCONDE DE TAUNA Y* ABSTRACT: The objective of this work is to analyse the results of the institutional influences in some of the writings of Visconde de Taunay. I try to show how those influences played a decisive role in the choice of his themes, in the establishment of his complete works, in the imposition of censorship, and in what I call "criteria for forgetfulness". "0 individuo se encontra em uma situa~ilo herdada, com padroes de pensamento a ela apropriados, tentando reelaborar os modos de rea~ilo herdados, ou substituindo-os por outros, a fim de lidar mais adequadamente com os novos desafios surgidos das varia~oes e mudan~as em sua situa~iio." (Mannheim, 1981:31) o alcance desta afirma~iio de Karl Mannheim 6 decisivo para uma compreensiio apropriOOa da vida de Taunay, ou melhor, da visilo que 0 pr6prio escritor nos apresenta dela. o contexto correspondente a situa~ilo hist6rico-social vivida por ele s6 pode ser devidamente avaliado se considerarmos a import!ncia das institui~oes que, num grau acentuOOo, determinam 0 delineamento de sua visiio de mundo. A mais decisiva delas 6 a famnia, da qual Taunay nilo esconde em nenhum momenta a influancia. Ao contrlirio, parece sempre dela se vangloriar, apesar dos instantes em que essa influancia 6 penosa, como 0 da escolha da profissiio. Tal av6, tal pai, tal filho parece constituir nele uma 16gica que recusa qualquer questionamento. Enquanto memorialista, 0 alvo de sua aten~iio niio recai somente nos limites temporais de sua vida, mas incide tambem para al6m e aquem dela, no passado e no futuro. Se de urn 1000, ele se preocupa em compor a genealogia de sua famnia, num investimento semelhante ao dos antigos cronistas reais, com as decorrentes biografias dos antepassados mais destacados por sua atua~iio publica de fidelidade a monarquia 1, de outro, e ainda a familia que, no futuro, deve decidir sobre a publica~iio de sua obra. Estabelece-se com isso uma tentativa de resistancia, de conserva~iio romlintica de urn ldem-que-somos-amigos-do-rei, de persistancia de urn padrilo fundamentalmente familiar de atua~iio no mundo, que as "varia~oes e mudan~as em sua situa~iio" de que fala Mannheim nilo silo capazes de alterar. A continuidOOe permanece intacta, e envolvido nela, 0 apre~o dedicado a monarquia. Taunay assume por isso 0 papel de homem- 722 memoria descrito por Le Goff, cuja importlincia estaria na manuten~iio da coesiio do grupo (1984:15). No futuro, e 0 filho Afonso que vai atuar mais intensamente sobre a mem6ria do pai, de modo a garantir esta continuidade. 0 seu trabalho, como veremos, vai desde 0 mais elementar, mas niio por isso menos revelador, de classifica~iio da obra por g8neros ate 0 do estabelecimento dos textos ineditos. Se por urn lado, contudo, a classifica~iio por Ig8neros", a mais comum que se tern da opera omnia de Taunay, relaciona como memorialfsticos somente textos de publica~iio p6stuma e despreza aqueles que, inclufdos em outros g8neros, niio deixam em certo sentido de ser memoriaHsticos2, por outro lado, a repeti~ao literal de trechos em volumes com tftulos diferentes a primeira vista parece p6r em duvida 0 prodfgio com que a extensa obra do escritor e tida pelos especialistas3. Qual 0 criterio de distin~ao generic a que justifica, por exemplo, a incluslio de A Retirada da Laguna e Cartas da Campanha como Narrativas de campanha, de Visoes do sertao e Paisagens brasileiras como Viagens e descri~ao da natureza brasileira e de Dias de guerra e de sertao e Memorias como Mem6rias. depoimentos. autobiografia, se todos eles cont€m marcas de 1a pessoa e descri~oes e narra~oes das viagens e da guerra, as quais constituem boa parte da experi8ncia vivida por Taunay? A resposta parece estar na considera~ao das datas em que os textos tidos como memorialfsticos foram escritos: todos eles, sem exce~iio, surgiram ap6s a proclam~iio da Republica, momenta em que seu autor desistiu de todas as atividades em curso na vida publica, restringindo-se unicamente a de escrever. Se as Memorias, tendo em vista a sequ8ncia cronol6gica que as norteou, tivessem podido registrar a vida publica de seu autor nesse perfodo, com certeza se limitariam a recordar 0 que nele foi escrito. o trabalho de estabelecimento destes textos p6stumos, empreendido pelo filho Afonso d'Escragnolle Taunay, a partir de material inedito encontrado no esp6lio do pai ou publicado apenas na imprensa, reclama algumas considera~oes de ordem tecnica que tambem podem ajudar a esclarecer 0 seu papel na resist€ncia a ruptura, no tal pai, tal filho que responde pelo fen6meno da continuidade. 0 tiio mencionado arquivo pessoal de Taunay parecia conter uma quantidade expressiva de material, a partir do qual ele escreveu as Memorias - daf a serie de repeti~oes literais ja citadas - e sobre 0 qual seria necessario realizar urn trabalho de revisiio, organiza~ao e sel~iio. E desse trabalho diio conta os prefacios e as notas de Afonso, contidos nestes volumes4. Se cabe ao filho 0 merito de tomar conhecida a obra do pai, e preciso niio esquecer tambem a sua responsabilidade na censura (ou tratar-se-ia de uma mera tentativa de criar a iluslio de que niio foi escrito?) ao primeiro romance publicado, A mocidade de Trajano (1871), que, tido pel0 filho como "urn livro fmpio", permaneceu 113 anos numa primeira edi~lio rarfssima e quase total mente inacessfvel, vindo a dificultar por longo tempo a avalia~iio da importancia que 0 livro de fato tern. Este julgamento e comentado por Ernani da Silva Bruno que, na introdu~iio segunda edi~iio do romance (1984), escreve: a "Tudo indicava que havia urn misterio, que alguma coisa impedia que esse romance (entre todas as obras de fic~iio do Visconde de Taunay) se tornasse acessfvel ao leitor interessado em conhec€-lo. Tentei decifrar esse misterio, M uns trinta anos, ao ensejo de 723 urn encontro com 0 ilustre historiador Afonso de E. Taunay, que era quem promovia e orientava as sucessivas edi~oes dos livros de seu paL Perguntei-lhe se nunca lhe ocorrera incluir, entre essas reedi~oes, a do romance de estreia do Visconde. 0 historiador, assumindo urn ar entre surpreso e contrafeito, respondeu secamente: - Deus me livre, aquilo e urn livro fmpio ... Vanos anos depois, ao ler a biografia do Visconde escrita por Gentil de Azevedo, deparei nota de pe de pagina em que esse autor informava que, tendo igualmente interpelado 0 historiador sobre a nao reedi~ao de A mocidade de Trajano, obtivera resposta de que ele 'respeitava a ideia original do pai e por isso nao tinha Animo para alterl1-la.' E que 'nao julgava conveniente sua divulga~ao, por conter referencias menos nobres a padres'." (Taunay, 1984: 9) E verdade que 0 proprio Taunay tentou estender sua vontade sobre 0 futuro, para alem da sua morte, ao exigir a manuten~ao do manuscrito das Memorias na Arca do Sigilo do Instituto Hist6rico e Geografico Brasileiro ate pelo menos 1943, de maneira a configurar uma outra especie de censura, dessa vez aos seus contemporllneos. Mas 0 filho tambem agiu sobre a mem6ria do pai ao classificar, revisar, alterar, .organizar, selecionar, censurar, e mesmo publicar os seus registros. Vejamos alguns casos em que esta interven~ao revel a 0 papel de manter viva a mem6ria do paL 0 primeiro livro resultante do empreendimento, intitulado Reminisc2ncias e datado de 1908, foi posteriormente (em 1923, e a pretexto de ter ficado muito volumoso) desmembrado em dois volumes, 0 primeiro com 0 titulo original e 0 segundo com 0 titulo Homens e coisas do Imperio. Os textos neles contidos versam em geral sobre as impressoes de Taunay a respeito da vida parlamentar do periodo, a partir de alguns dos grandes nomes que a compuseram, com suas caracteristicas individuais, atos e atividades na area. Alem disso, a pr6pria carreira polltica do escritor e motivo para a elabora~ao de tr8s dos textos5, assim como outros fatos tidos como marcantes e significativos sao relatados e comentados, como a narra~ao do dia da morte do Visconde do Rio Branco, da atua~ao her6ica do guia Lopes na Retirada da Laguna6, de anedotas envolvendo Caxias, do epis6dio da partida da famfiia imperial para 0 exfiio e uma reprodu~ao de notas de leitura de D. Pedro II. Os textos, quase sem exc~ao, tern 0 carater de cr6nicas com fei~ao aned6tica e levam a composi~ao de uma fisionomia do Imperio a partir de algumas de suas facetas. Dos tres prefacios de Afonso que introduzem as tres publica~oes, ou seja, a primeira e as outras duas, resultantes do trabalho de desmembramento, 0 de 1908 contem informa~oes preciosas para 0 que me interessa neste momento. Alem de esclarecer a data e 0 local de publica~ao original dos artigos (na imprensa) e de se pronunciar de forma elogiosa a respeito do estilo e da importlincia dos textos prefaciados, registra a seguinte observa~iio: "0 trabalho de quem imaginou ressuscitar os artigos da Notfcia e da Gazeta da Tarde consistiu em os alterar mui ligeiramente, cortando trechos que continham alusoes e respostas as criticas e controversias suscitadas na epoca da publica~ao, alem de urn ou outro retoque, modificador de expressoes proprias do jornalismo." (Taunay, 1924:V) 724 A boa inten~ao de quem se intitula 0 ressuscitador dos textos, ao encarar as marcas das pol~micas suscitadas como algo a ser ocultado do leitor do livro, e responsavel por urn processo de higienizafiio, que procura retirar dos textos jornaHsticos as impurezas de seu perfil contextual, os tra~os de seu contexto de ocorr~ncia. 0 ressuscitador, neste sentido, se transforma em mutilador. Da "exist~ncia circunstancial e efemera do trabalho periodfstico" para 0 "aspecto que teriam de assumir ao tomar a fei~ao de livro", com a sua "fatura moderna", "que evita a intercala~ao de grandes notas ao texto", percebe-se urn trabalho de adu1ter~ao dos originais que tern a ver com a constrUfiio da memoria, empreendida tambem por Afonso. E 0 resultado e uma mem6ria que nao traz os tra~os de pol~mica que os textos, em princfpio, continham. E dado que a mem6ria e, nas palavras de Halbwachs, "em larga medida uma reconstru~ao do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e alem disso, preparada por outras reconstru~oes feitas em epocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se ja bem alterada" (Halbwachs, 1990:71), 0 trabalho de Afonso tambem faz parte da constru~ao da mem6ria de Taunay, principalmente por ter apelado para um dado tecnico de estabelecimento de textos, emprestado do seu presente. Quanto ao livro Recordafoes de guerra e de viagem, 0 que ha a observar a respeito do estabelecimento dos textos nele contidos diz respeito a declara~ao do prefaciador quanto a uma das duas partes do livro: "Sao as primeiras notas tomadas para as suas Memorias e nestas largamente desenvolvidas." (1920:3),0 que anuncia ao leitor das Memorias a possibilidade de cotejar trechos delas com os daquele livro, a fim de perceber 0 que havia sido negado ao leitor de Taunay anterior a 1943 e tentar apurar as razoes do sigilo tao 10ngamente mantido. Outra caracterfstica significativa desta publica~ao e a inclusao de rnateriais do arquivo iconografico, como a reprodu~iio do famoso retrato de Taunay feito pel0 pintor Moreau por ocasiao das homenagens prestadas por membros do exercito em 1885, a de urn retrato de Os6rio com dedicat6ria ao escritor, a de uma fotografia tirada em plena Campanha da Cordilheira (na vila do Rosario, em 16 de janeiro de 1870), a do famoso quadro de Pedro Americo e, talvez principalmente, a da "Planta da Campanha da Cordilheira de 1° a 21 de agosto de 1869 sobre trabalhos dos engenheiros da Comissao do Exercito", urn dos mapas narrativos produzidos pelo Visconde numa tentativa de contar plasticamente a hist6ria da guerra. Afonso contribui, assim, para a divulga~ao da iconoteca da mem6ria nacional relativa a guerra do Paraguai. o contato de Taunay com as outras institui~oes - Exercito, Instituto Hist6rico e Geografico Brasileiro (uma tfpica instituifiio-memoria criada pel0 rei, como nos ensina Le Goff (1984:18), e as polfticas (Senado, Camara e presid~ncia de provfncias) submete-se a ordem de continuidade ate 0 momento em que elas se prestam a confirmala. 0 rompimento de Taunay com estas institui~oes (em 1885 com 0 Exercito e em 1889 com as restantes) sela de alguma forma a ruptura na continuidade e 0 vazio resultante s6 e preenchido com a nostalgia, presente nos escritos, ja que a a~ao nao conta mais com formas de aplica~ao que satisfa~am os projetos polfticos e culturais do escritor. *Este texto constitui doutorado, intitulada mem6ria)" , defendida em Teoria Liteflma I Hardman. uma remodela~ao de parte de urn capftulo de minha tese de "Urn polfgrafo contumaz (0 Visconde de Taunay e os fios da em 19 de dezembro de 1996 junto ao programa de p6s-gradua~ao IEL I UNICAMP, sob a orienta~ao do professor Francisco Foot 1. 0 primeiro capftulo do livro Trechos de minha vida, por exemplo, e inteiramente dedicado elabora~ao de uma genealogia da famflia. (Cf. Taunay, 1921:7-15). a 2. Esta classifica~ao por generos foi feita, entre outros, por Artur Motta, em 1929, por Gentil de Azevedo, em 1951, por Afonso d'Escragnolle Taunay, em 1952, e por Odilon Nogueira de Matos, em 1977. Acredito que a mais antiga delas tenha servido de modelo para as outras, ja que estas apresentarn ligeiras modifica~oes em rela~ao aquela. Afonso respeita, porque reproduz, esta classifica~ao mais antiga. 3. E muito freqiiente encontrarem-se trechos e textos literal mente coincidentes em volumes com tftulos diferentes. A incidencia maior desta ocorrencia acontece no perfodo entre 1920 e 1943, em que se dao as publica~oes dos volumes p6stumos organizados por Afonso a partir do arquivo do pai, perfodo que vai ate 0 momento em que 0 texto das Memorias (Taunay, 1948) torna-se conhecido da farm1ia. Convem observar que este ultimo livro tambem contou com urn trabalho de estabelecimento de texto por parte do filho, com a inclusao de capftulos, anexos e notas. 4. Hi urn total de 44 textos de Afonso d'Escragnolle Taunay que, sob os tftulos "Duas palavras"ou "Prefacio", procuram, nas publica~oes organizadas por ele, dar conta das fontes e dos suportes originais dos textos do pai. 5. Sao os seguintes: "A minha escolha senatorial" , "Ao entrar para 0 parlamento" e "0 meu liberalismo" (Taunay, 1924: 41-84, 93-107 e 153-67). Os dois primeiros foram anexados ao livro Memorias (Taunay, 1948), como maneira de preencher a lacuna do registro memorialfsto relativa ao perfodo final da vida do pai. (Cf. Taunay, 1948: VIIXIV). 6. Este texto, encontrado em avulso nos arquivos do pai e intitulado "0 velho guia", tambem foi aproveitado pelo filho na publica~ao das Memorias: trata-se da capftulo UII da 3" parte (1865-1869). (Cf. Taunay, 1948: 355-9). RESUMO: 0 objetivo deste trabalho e 0 de analisar os resultados das ilifluencias institucionais em alguns escritos do Visconde de Taunay, de maneira a demonstra,. como elas foram decisivas na escolha dos temas, no estabelecimento da obra completa, na imposipl0 da censura, e no que chamo de "criterios para 0 esquecimento". AZEVEDO, Gentil de (1951). 0 Visconde de Taunay: historia de sua vida (estudo biogrdjico). Itatiba, Livraria Vanguarda. HALBWACHS, M. (1990). A memoria coletiva (trad. de Laurent L. Shaffter). Silo Paulo, Vertice I Revista dos Tribunais. LE GOFF, J. (1984). Mem6ria. Enciclopedia Einaudi 1. Lisboa, Imprensa Nacionall Casa da Moeda, pp. 11-50. MANNHEIM, K. (1981). 0 pensamento conservador. In: MARTINS, J. de S.(org.). Introduft'io cr{tica a sociologia rural. Silo Paulo, Hucitee. MATOS, O. N. de (1977) A obra do Visconde de Taunay. Afonso de Taunay, historiador de Sao Paulo e do Brasil: perfil biogrdjico e ensaio bibliogrdjico. Silo Paulo, Fundo de Pesquisas do Museu Paulista, pp. 229-52. MOTTA, A. (1929) - Pertis acad8micos: Visconde de Taunay. Revista da Academia Brasileira de Letras, 85, 42-62, jan. TAUNAY, A. d'E, (1952). A obra do Visconde de Taunay (ensaio de bibliografia). In: TAUNAY, V. de (1975) - A Retirada da Laguna: episodio da Guerra do Paraguai. (tradu~ilo de Afonso d'E. Taunay). 18 ed. Silo Paulo, Melhoramentos; Brasfiia, INL, pp. 197-202. TAUNAY, V. de (1920). Recorda~jjes de guerra e de viagem. Silo PaulolRio de Janeiro, Weiszflog. __ (1921). Trechos de minha vida. Silo Paulo, Melhoramentos. __ (1923). Reminisc~ncias. 2 ed. Silo Paulo, Melhoramentos. __ (1924). Homens e coisas do Imperio. Silo Paulo, Melhoramentos. __ (1948). Memorias. Rio de Janeiro, Instituto Progresso Editorial. __ (1984). A mocidade de Trajano. 2 ed. Silo Paulo, Academia Paulista de Letras.