PEDAGOGIA DO BOM HUMOR
Adel Fernando de Almeida Vanny1
Resumo:
O presente trabalho tem como objetivo avaliar a natureza da anedota como ferramenta
pedagógica. Nesta avaliação pretende-se demonstrar peculiaridades especiais da piada para o
ensino de filosofia, isto é, demonstrar que o humor aplicado metodologicamente é um campo
fértil para assuntos filosóficos. Esta pretensão leva a examinar características que o humor
tem, relacionáveis ao “brincar” (conceito importante para o desenvolvimento cognitivo
humano), bem como sua possibilidade de direcionamentos para problemas filosóficos. Neste
direcionamento delimita-se o cômico a partir de análises de dois filósofos, a saber, Aristóteles
e Kant. Nessa delimitação buscar-se-á expor a forma própria de uma piada. Com isso,
pretende-se caracterizá-la em seus aspectos lucrativos para um instrumento pedagógico.
Observa-se que esse intento impulsiona-se a partir da disciplina “filosofia e ensino de
filosofia” ministrada pelo professor Ronai Rocha, assim como, de um texto, de autoria do
professor Frank Thomas Sautter, referente ao ensino de lógica a partir de jogos e enigmas,
somados, ainda, a um particular e não recente interesse meu pelo tema.
Palavras-chave: Piada. Ensino. Filosofia.
Atuais pesquisas, no âmbito fisiológico e biológico, têm nos possibilitado o acesso
às diversas e interessantes informações sobre o humor. Este trabalho, entretanto, não se deterá
nem em considerações sobre os complexos processos neurais que estão associados ao riso,
nem em especulações, por mais prováveis, sobre o desenvolvimento do riso como mecanismo
adaptativo do ser humano na sociedade. Em contrapartida, não pode abster-se de considerar o
humor inicialmente na esfera social.
Nas características antropológicas, o riso tem um lugar especial. O riso aproxima
os seres humanos, auxilia nas relações sociais. O sorriso “quebra o gelo”. Este caráter de
“quebrar o gelo”, isto é, facilitar as relações entre as pessoas, permite uma primeira conclusão
(C1): o humor é um instrumento de grande valia para a comunicação entre os indivíduos, pois
possibilita despertar o interesse, isto é, alcançar um acesso ao ouvinte.
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Acadêmico do curso de filosofia da UFSM. E-mail: [email protected]
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As crianças, pelo riso, manifestam um estado de ânimo que indica que elas estão
se divertindo. Tal estado de ânimo é a fuga manifesta para um “lugar” próprio, onde a
imaginação é o guia. Este “lugar” é uma instância, para qual a criança voltou totalmente sua
atenção. A criança experimenta sensações e estimula suas capacidades físicas, motoras e
intelectuais. Essa instância própria da criança, esse lugar, que se dissipa apenas mediante a
insistência da mãe que chama para o banho, é a brincadeira. O riso convida para brincar, para
o caráter lúdico que estimula estruturas cognitivas. O brincar é um conceito muito tratado por
pensadores da esfera da psicologia (embora fosse aconselhável ser melhor exposto, em vista
de seus fins, este trabalho limita-se ao que foi dito).
Com consciência dos laços que aproximam o brincar e o humor, propõe-se a
segunda conclusão (C2): o riso manifesta, ou propõe um estado de ânimo que caracteriza um
“estar brincando”. Nesse manifestar um estado de ânimo, o riso convida a criança para brincar
(supõem-se aqui crianças pela evidência com que respondem ao “convite” para brincar, mas
acredita-se que o riso cause um efeito análogo na maioria dos adultos).
Passa-se agora ao exame de outro elemento, a saber, a anedota. Uma piada pode
ser classificada em diferentes tipos, mas este texto detém-se apenas naquele tipo que serve, de
forma mais evidente, para o trabalho pedagógico. Tal tipo será aquele que nos remeterá a
contextos, os quais devem ser entendidos como relações lógicas categoriais. Em outras
palavras, farei um exame das anedotas que nos remetem a elementos que nos possibilitem
brincadeiras categoriais.
Tratar os contextos por relações lógicas categoriais soará como uma arbitrariedade.
E, de fato, opta-se aqui por convencioná-los como iguais, pois facilitará a abordagem e com
uma seqüente ressalva não haverá detrimento para o trabalho. Tal ressalva consiste em
advertir que se deve ter em mente que contextos dizem respeito a um nível cultural lingüístico
(interligação de conceitos com suas significações semânticas em uma sociedade), e que, não
obstante, relações lógicas categoriais dizem respeito a um nível formal (a forma geral das
interligações dos conceitos).
Categorial será entendido em termos aristotélicos. Categorias nesse sentido dizem
respeito aos conceitos mais gerais (substância, qualidade, quantidade, relação, lugar, tempo,
ação, paixão, posição e hábito.). Aristóteles alcança as categorias inicialmente a partir das
palavras e de suas funções gramaticais, mas é pela reflexão que se eleva ao conceito mais
geral, a saber, o de “ser”, e dele às categorias, como propriedades comuns aos objetos. Assim,
tratar-se-á das anedotas que tratam de relações lógicas.
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Muitas pessoas já devem ter se perguntado: “Por que rimos de piadas?” não se
trata aqui de explicitar o que ocorre no nosso cérebro quando ouvimos uma piada, mas
delimitar que características têm a piada que a faz engraçada para nós. No livro V da Poética,
obra que se refere basicamente a tragédia, Aristóteles propõe uma definição de comédia:
A comédia, como dissemos, é imitação de pessoas inferiores; não,
porém, com relação a todo vício, mas sim por ser o cômico uma
espécie de feio. A comicidade, com efeito, é um defeito e uma feiúra
sem dor nem destruição; um exemplo óbvio é a máscara cômica, feia e
contorcida, mas sem expressão de dor (Aristóteles, 1993, livro V, p.
35).
Ainda que Aristóteles não se detenha na análise da comédia, trata-a em alguns
aspectos como a tragédia. Fato que permite fazerem-se algumas observações lucrativas para o
presente trabalho. Primeiramente, imitação diz respeito a uma mimesis (imitar em um sentido
artístico que remete a um direcionamento, visa um fim). Em segundo lugar, nesse imitar há
um conflito entre nossas concepções comuns e o ridículo. Em terceiro lugar, tal conflito
objetiva uma katharsis, isto é, chega-se aquilo que no fundo é uma emoção. Portanto, a
comédia tem uma lógica própria, e seus elementos formais têm que possibilitar uma emoção
decorrente da sua recepção.
Veja-se então, uma anedota, em primeiro lugar, insere-se em uma relação lógica
que já conhecemos de antemão. Afinal, não nos origina riso, ou seja, não tem o efeito de “ser
engraçado” para nós piadas de contextos culturais de outras nacionalidades, ou de outro meio
acadêmico diferente do nosso, ou ainda uma piada familiar, a qual um membro de uma
família diferente não pode achar graça. Nesses tipos de chistes não somos capazes de fazer as
relações necessárias para chegar ao efeito hilário.
Assim, uma anedota pode exercer seu efeito em alguém desde que esse alguém
tenha o conhecimento prévio do contexto em que ela desenrola-se. Dessa forma, conhecer seu
contexto é uma característica necessária, mas não é suficiente. Isso, devido ao fato de que
uma piada muda subitamente de contexto, exigindo, então, o conhecimento de um segundo
contexto. Essa característica de mudar de contexto causa um espanto que gera o riso. A
anedota surpreende ao mudar de relações lógicas, esta surpresa nos faz rir.
Por exemplo: “Papai Noel sobrevoa com seu trenó a Etiópia. As crianças correm
alvoroçadas e felizes sob ele. Papai Noel, então, olha para baixo e diz: ‘Não, não! Criança que
não come não ganha presente.” A despeito de seu conteúdo politicamente incorreto, a piada
nos insere no contexto da fantasia infantil natalina, mudando subitamente para a realidade
político-social do país africano. Em outras palavras, ela coloca em conflito conceitos gerais,
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na medida em que esperamos por uma determinada relação lógica que nos frustra
apresentando um “defeito” (também traduzido na passagem citada da poética por “erro”) na
inesperada atitude do bom velhinho. Precisa-se agora caracterizar melhor este “defeito”, pois
Kant (no analisar o que nos gera o riso) propõe um outro conceito em seu lugar.
Outro filósofo que examinou as características do chiste foi Kant. Para ele a
anedota é análoga às cócegas, pois as nossas representações do pensamento estão em relação
com o corpo, quer dizer, que as representações podem levar-nos a ânimos que geram efeitos
em nossos órgãos internos capazes de levar-nos ao riso. A piada pode levar a um prazer que
não provêm do conhecimento no simples ajuizamento, mas sim de um jogo de pensamentos
derivado das sensações. Tal jogo de pensamentos se caracteriza como uma alternância de
representações na faculdade do juízo. Em um trecho da Crítica da faculdade do juízo Kant
considera as características especiais de uma piada:
Em tudo que pode suscitar um riso vivo e abalador tem que haver algo
absurdo (em que, portanto, o entendimento não pode em si encontrar
nenhuma complacência). O riso é um afeto resultante da súbita
transformação de uma tensa expectativa em nada. (...) Portanto, a sua
causa tem que residir na influência da representação sobre o corpo e
em sua ação recíproca sobre o ânimo; e na verdade não na medida em
que a representação é objetivamente um objeto de deleite (pois como
pode uma expectativa frustrada deleitar?), mas meramente pelo fato de
que ela enquanto simples jogo das representações, produz um
equilíbrio das forças vitais (Kant, 1993, §54, p. 177-178).
Essa nova abordagem da causa do riso (converter-se de uma expectativa em nada)
não dará a este trabalho uma outra direção. Não obstante, deve-se ressaltar que o que Kant
esta frisando é uma reação fisiológica proveniente de uma alternância de representações. E
ainda que identifique a segunda relação lógica a uma frustração de uma expectativa, e nesse
sentido um nada, pode-se apelar para um exemplo do próprio autor para manter-se a forma
inicial de uma piada, considerada neste trabalho.
[...] [Se] o herdeiro de um parente rico quer promover para este um
funeral realmente solene, mas lamenta que não o consegue direito,
pois (diz ele): “quanto mais dinheiro eu dou às minhas carpideiras
para parecerem tristes, tanto mais divertidas elas parecem [...] (Kant,
1993, §54, p. 178).
Assim, será mantido o sentido aristotélico às representações absurdas que o
segundo contexto apresenta. Essa escolha não se dá por discordância com Kant, mas por
considerar que ele não estava buscando uma forma geral para a anedota. Atribui-se, então, a
primeira relação lógica o aspecto de uma expectativa (uma formulação que tem uma
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seqüência esperada), e a segunda relação lógica o aspecto de um erro, uma proposta absurda à
expectativa.
Chega-se agora à terceira conclusão (C3) e acrescenta-se uma consideração
adicional. Afirma-se, com base nestas características da anedota de mudar subitamente de
relações lógicas, que ela é um eficiente instrumento para levar ao riso, trazendo à tona
contextos e forçando comparações entre os mesmos. Todavia, deve-se advertir que contextos
não relacionais não geram o efeito desejado.
Finalmente, relacionando as conclusões alcançadas, pondera-se que a piada tem a
possibilidade de ser usada como instrumento pedagógico (em concordância com Bérgson, que
atribuiu ao bom humor um poder educativo e corretivo). Afinal, na medida em que, gerando o
riso ou um ambiente humorado (C3), a piada convida a um estado de ânimo (C2), e assim, ela
desperta um interesse que aproxima (C1) o professor do aluno. O humor do professor ludibria
as barreiras, a distância de fuga, do aluno. Em outras palavras, o humor faz com que os préjuízos do aluno fiquem temporariamente suspensos, permitindo a ação do professor.
Todavia, a ação do professor só será eficiente se a anedota for pedagógica. Caso
contrário, se a piada não for estratégica, ou for usada em excesso, ocorrerá uma dispersão da
classe. Para que a anedota seja pedagógica é necessário que os contextos que ela traz à tona
possam ser direcionados para a matéria a ser aplicada. Contextos são apreendidos em uma
linguagem, em um nível pragmático e comum. O vir à tona destes contextos pode ser um
excelente conteúdo para a filosofia. Na medida em que, podem ser explicitados os usos de
conceitos no senso comum.
Ora, usando de uma artimanha que promova a relação com o aluno fica mais fácil
obter a sua atenção, mesmo para tratar de temas por vezes delicados como ética ou religião.
Em tais temas evidentemente surgirão conceitos como “liberdade”, “justiça”, “bem”, “mal”,
“crença”, “verdade”, “Deus” e muitos outros tão espinhosos quanto. Se o aluno por algum
motivo não interagir com o conteúdo, ele vai manter-se em suas redes conceituais (obtidas na
esfera cultural lingüística) sem refletir sobre os próprios conceitos que dela fazem parte. Por
outro lado, se uma anedota pode alcançar a interação e ainda tocar nas estruturas conceituais
do aluno, expondo, nas relações categoriais, conceitos do próprio aluno em sua significação
no senso comum, então a piada mostra-se como excelente ferramenta pedagógica,
especialmente para o ensino de filosofia.
Por fim, tendo em vista os resultados elencados aqui, apresenta-se como o maior
benefício deste trabalho a possibilidade de refletir sobre a eficácia de uma postura pedagógica
alternativa. Tal postura procura alcançar o aluno em sua vontade de brincar e direciona-lo
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para a aprendizagem. Admite-se que não apresentar um exemplo de um plano de aula que
faça uso do método proposto é uma inconsistência que precisa ser remediada. Portanto, seguese uma sugestão de uma possível aula em que seria tratado o tema da religião. O exemplo
deixará insinuadas perspectivas de ramificações para o tratamento de conceitos e problemas.
Segue-se o plano de aula com a enumeração dos passos necessários para a efetivação do
método:
1) Informações prévias: o professor começa a aula comentando sobre um filósofo
polêmico, a saber, Karl Marx. Como quem conta uma notícia que leu num jornal, ele,
brevemente, introduz informações sobre o filósofo. Tais informações visam possibilitar ao
aluno o perfeito entendimento da anedota que se seguirá.
2) A piada: o professor dirige-se para a turma e diz: “Pois bem. Marx morreu em
1883 na Inglaterra e foi para o céu. Lá, começou a debater com os anjos, falar de conflito
entre forças de produção materiais e relações de produção, disputa de classes, etc. Deus
percebeu que os anjos estavam começando a ficar desgostosos com a hierarquia divina e
resolveu tomar uma providência: ligou para o Diabo e disse que estava mandando Marx para
tirar umas férias no inferno. O diabo concordou sem ver maiores problemas. Passado um
tempo, o diabo liga para Deus: ‘Deus, isto aqui está um inferno: os meus assistentes deram
um golpe; estão falando de maximização das forças produtivas; criaram um sindicato; querem
dividir os lucros. Em suma, a coisa aqui ferveu. E a culpa é do Marx. Deus, faça alguma
coisa.’ Deus, já brabo com a situação, resolveu por os pingos nos is: ‘Diabo, passe-me o líder
do sindicato que eu vou falar com ele.’ Imediatamente o Diabo foi buscar o líder sindical.
Esse, atendendo o telefone disse: ‘pois não? Quem fala?’ ‘Ora! Quem fala? Aqui é deus.’
‘Como? Não lhe contaram? Deus não existe.”
3) Possibilidades de trabalho: o professor pode (a partir dos contextos que a piada
traz a tona) trabalhar vários conceitos e problemas filosóficos em diferentes perspectivas da
história da filosofia, poderiam ser, por exemplo, o conceito de Deus em diferentes concepções
filosóficas, ou, ainda, a relação entre política e religião, ou mesmo, concepções políticas.
Assim, como foi dito, ficam aqui indicadas algumas perspectivas de trabalho, e
pode-se também ter uma noção do método proposto. Observa-se que este texto está em um
nível teórico, no qual apenas foi sugerida uma hipótese e buscaram-se argumentos a seu favor.
Qualquer observação especulativa quanto sua efetiva eficácia deve ser guardada para um
posterior trabalho em um nível experimental, no qual podem ser feitas observações práticas
quanto à ventura ou desventura do método.
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Referências bibliográficas
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
ARISTOTELES. Poética. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
_______. Tratado de Lógica. México: Editorial Porrúa, s.a, 1993.
KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo. Tradução de Valério Rohden e António Marques.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993.
MARX, K. O Capital. Coleção Os Economistas. São Paulo: Editora Abril, 1983.
CARDOSO, S.H. O poder do riso. Disponível em: <http://www.cerebromente.org.br>.
Acesso em: 27 jul. 2006.
SEMERENE, B. Aprendendo a ensinar. Disponível em: <http://www.cenpec.org.br>. Acesso
em: 4 ago. 2006.
MATOS, F. G. O humor da língua: análises lingüística de piadas. Delta. São Paulo, v.17, n.2,
2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?>. Acesso em: 6 ago. 2006.
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