XII Semana de Letras da Ufop Pluralidade da Memória: literatura, tradução e práticas discursivas 23 a 26 de outubro de 2012 Ufop – Mariana, MG, Brasil Mnemosine /Lesmosyne: As Àguas Da Memória E Do Esquecimento Em Cruz E Sousa1 Prof. Dr. Anelito Pereira de Oliveira 1 ((UNIMONTES) Mestranda Rosane Ferreira de Sousa 2 (UNIMONTES) Resumo: Ao entrelaçar os fios da memória com os da imaginação, o poeta tem o privilégio de acessar outros mundos chamando à presença o não-presente, coisas passadas ou futuras. Seduzido pela memória (Mnemosine) o poeta regressa ao manancial da linguagem e escava nas palavras o que já resvalou no reino do esquecimento (Lesmosyne). A partir deste viés, o presente trabalho propõe uma discussão sobre os temas da Memória e do Esquecimento na poesia lírica de Cruz e Sousa. Neste sentido, o estudo objetiva analisar o poema “Esquecimento” publicado no livro Faróis (1900) à luz da abordagem do jogo ambíguo dos significantes lembrar/esquecer pontuando a interconexão entre Literatura, Memória e História. Busca–se como resultado mostrar que a relação dialética entre memória e esquecimento terá imbricação no jogo recíproco de linguagem e poder. Palavras-chave: Mnemosine. Lesmosyne. Cruz e Sousa. 1 Introdução A presente comunicação trata-se do tema de uma Dissertação de Mestrado sobre Memória e Reconhecimento na poesia lírica de Cruz e Sousa, que está em andamento. O estudo visa apresentar uma reflexão sobre o fazer poético de Cruz e Sousa com enfoque no poema “Esquecimento” publicado no livro Faróis em 1900. A pesquisa se dedica à interpretação do jogo ambíguo dos significantes lembrar/esquecer e a análise da problemática do desejo desesperador de Cruz e Sousa de não querer ser esquecido que dá vazão ao sujeito perturbado e complexo da modernidade. 2 Do esquecimento para a comunidade da memória O mito de Mnemosine permite tecer discussões sobre Memória e Literatura, bem como possibilita a compreensão do jogo ambíguo dos significantes lembrar/esquecer. Partindo deste viés, a pesquisa propõe uma discussão sobre a poesia lírica de Cruz e Sousa à luz da abordagem do jogo ambíguo destes significantes, já que se percebe na obra deste poeta um embate entre memória e esquecimento. Para tanto, busca-se realizar uma reflexão sobre o poeta Cruz e Sousa e o seu fazer poético ao propor o estudo do poema “Esquecimento”. Ao analisar este poema, observa-se, nele, o desespero de um sujeito inserido num momento agoral que sente a angústia do esquecimento. Por isso, busca antecipar a sua futura lembrança ao estabelecer o elo entre lembrar/esquecer que terá imbricação na luta por um reconhecimento colocando em interconexão a Literatura, a Memória e a História. Considerando o processo sócio-histórico em que o poema foi construído tem-se uma compreensão de que este poeta realiza um distinto trabalho com a linguagem. O poema sugere que Cruz e Sousa resgata a historicidade da Lírica e repensa o lugar da poesia e do poeta na sociedade. Além disso, entranha o fio poético num processo de recordar/rememorar que retoma os mitos de Mnemosine e Lesmosyne. Desta maneira, Cruz e Sousa nos apresenta como o 1 Esta comunicação contou com o auxílio da FAPEMIG por meio do Projeto de Pesquisa Científica e Tecnológica denominado DEG - Demanda Endogovernamental nº 114/10/FAPEMIG. XII Semana de Letras da Ufop Pluralidade da Memória: literatura, tradução e práticas discursivas 23 a 26 de outubro de 2012 Ufop – Mariana, MG, Brasil Homero lírico de um tempo sem grandeza, o poeta fecha os olhos para as aparências e abre-se para o sonho. Mas tudo ainda é sonho, aparência, reflexo especular de algo que ali está (grifos do autor) mas cujo sentido se ocultou. Ao poeta resta acompanhar o desdobramento insólito deste algo (grifos do autor), como se fora um misterioso fio de Ariadne do estado poético (AGUIAR, 1998, p.18). Cruz e Sousa agarra este fio e adentra no labirinto da linguagem para desvendar os segredos do desconhecido. A sutileza da linguagem revela o estratégico jogo com a palavra poética expondo o confronto entre a lembrança e o esquecimento como dupla faceta da memória. Para os gregos, a memória era a personificação da deusa Mnemosine que tinha o conhecimento do passado, presente e futuro. Ela era “o antídoto do Esquecimento” (LE GOFF, 2003, p. 434), pois tanto permitia aos homens recordar os feitos heroicos como esquecer os males. Deste modo, Mnemosine conferia ao poeta o dom da lembrança e do esquecimento, uma vez que presidia a poética clássica unindo o imaginário ao conhecimento. Nesta direção, “a poesia identificada com a memória, faz desta um saber e mesmo uma sabedoria, uma sophia” (LE GOFF, 2003, p. 434) e coloca em conexão dialética a História, a Memória e o Imaginário, uma vez que a tensão entre o lembrar e o esquecer terá imbricação no jogo recíproco de linguagem e poder. Conforme Hesíodo, em Teogonia: a origem dos deuses, o Esquecimento (Lesmosyne) é filho da Noite, o reino do Não-ser, da ausência, reino noturno do oblívio. “O esquecimento é designado obliquamente como aquilo contra o que é dirigido o esforço da recordação”. (RICOEUR, 2007, p. 46). Já Mnemosine, deusa da memória e mãe das musas está próxima do dia claro e do deus do sol Apolo fazendo oposição a Letes, divindade feminina da linhagem da Noite. Letes “é, sobretudo, nome de um rio do submundo que confere esquecimento às almas dos mortos” (WEINRICH, 2001, p. 24). As duas deusas têm seus direitos e seus reinos, elas concedem ajuda poderosa para lembrar ou esquecer. Quem deseja imortalidade “não deve beber as águas do Letes, fonte do esquecimento, mas nutrir-se da fonte da Memória” (LE GOFF, 2003, p. 434). Lesmosyne faz par com a Memória que tem o poder entre presença e ausência e apresenta a revelação (alétheia) e o esquecimento. Garcia-Roza (2005) salienta que “é em torno desse par de opostos memória-esquecimento que se estrutura a palavra poética. Pela palavra do poeta eterniza-se o feito guerreiro, pela ausência da palavra sobrevêm o silêncio e o esquecimento”. (GARCIA-ROZA, 2005, p. 27). Sendo assim, ao expor o confronto entre o lembrar e o esquecer desvela-se no poema um lugar de combate, pois, por meio da linguagem, o poeta tem o poder de decidir entre a revelação (Alétheia) e o esquecimento. Além disso, lança o fazer poético para além de um simples dito, já que a poeticidade da linguagem permite que a poesia vá sempre para este além que a ultrapassa ao mesmo em que torna possível a sua origem. Deste modo, o embate entre Mnemosine e Lesmosyne, no poema “Esquecimento”, repercutem no reencontro do que está esquecido trazendo à presença o passado que é reinventado através da força da recordação e imaginação. Seduzido pela memória (Mnemosine), o poeta retorna ao manancial da linguagem e escava nas palavras o que já resvalou no reino do Esquecimento (Lesmosyne) trazendo à tona, por meio da memória, eventos primordiais narrados pelos mitos reatualizando-os. Neste sentido, Alfredo Bosi sublinha que: a instância poética parece tirar do passado e da memória o direito à existência; não de um passado cronológico puro — o dos tempos já mortos —, mas de um passado presente cujas dimensões míticas se atualizam no modo de ser da infância e do inconsciente. (BOSI, 2004, p. 132). Nesta perspectiva, Cruz e Sousa, por meio do poema “Esquecimento”, regressa à origem da poesia lírica e reporta ao texto homérico renovando a tradição literária. Ao emaranhar os fios da XII Semana de Letras da Ufop Pluralidade da Memória: literatura, tradução e práticas discursivas 23 a 26 de outubro de 2012 Ufop – Mariana, MG, Brasil memória com os da imaginação, o poeta, de modo privilegiado, acessa outros mundos chamando à presença o não-presente, tanto o já vivido quanto àquilo que se projeta para o futuro. Como pontua Bendito Nunes: sendo Mnemosýne, a memória, a mãe das musas, a palavra poética retrocede ao manancial, escavando nos vocábulos o que precisa ser lembrado. A lembrança cria a proximidade com as coisas, chamando à presença desvelando–as na linguagem. O canto se torna um apresentar, e, como tal, uma temporalização da temporalidade autêntica, que ao dirigir-se às coisas mostra-as, cada vez no instante único do intercurso dialogal em ato por ele mesmo suscitado. (NUNES, 1992, p. 275). Há no poema “Esquecimento”, a tensão entre Mnemosine e Lesmosyne, presença e ausência, memória e esquecimento, que convergem para um desejo de imortalidade e para o reconhecimento da ausência que é simultâneo ao desejo de denunciar um esquecimento silenciador. O poema demonstra o desejo agônico do poeta Cruz e Sousa pelo reconhecimento de sua própria singularidade e o do reconhecimento do outro como uma responsabilidade ética que vai além da literatura. Sugere o desespero do poeta por um não apagamento e “uma vontade de tornar-se homem, de ser reconhecido como tal, pelo exercício da escrita” (OLIVEIRA, 2011, p. 50), a ponto de clamar ao próprio verso para não esquecê-lo. Isto pode ser observado nos versos abaixo: Ó meu verso, ó meu verso soluçante, Meu segredo e meu guia, Tem dó de mim lá no supremo instante Da suprema agonia. Não te esqueças de mim, meu verso insano, Meu verso solitário, Minha terra, meu céu, meu vasto oceano, Meu templo, meu sacrário. Embora o esquecimento vão dissolva Tudo, sempre, no mundo, Verso! que ao menos o meu ser se envolva No teu amor profundo! (SOUSA, 1995, p. 121). Nas estrofes abaixo nota-se que Cruz e Sousa reporta para o mítico rio do esquecimento, o poema traz a imagem do abismo profundo, amargo, frio, tenebroso, que se configura como água da morte, do apagamento, do esquecimento. Os versos demonstram a angústia e a tristeza do poeta ao descer as águas do rio do esquecimento, e mostra a imagem deste rio como o inferno dantesco. Neste sentido, Muzart (2008) pontua que: o esquecimento torna-se o inferno para o poeta, porém, seu medo não é esquecer, mas ser esquecido. Eis as estrofes: Ó rio roxo e triste, ó rio morto, Ó rio roxo, amargo... Rio de vãs melancolias de Horto Caídas do céu largo! Rio do esquecimento tenebroso, Amargamente frio, Amargamente sepulcral, lutuoso, Amargamente rio! Quanta dor nessas ondas que tu levas, Nessas ondas que arrastas, Quanto suplício nessas tuas trevas, Quantas lágrimas castas! (SOUSA, 1995, p. 120-121). XII Semana de Letras da Ufop Pluralidade da Memória: literatura, tradução e práticas discursivas 23 a 26 de outubro de 2012 Ufop – Mariana, MG, Brasil O jogo dúbio do lembrar e do esquecer configura-se como artimanha da escrita para lutar contra o esquecimento que é ao mesmo tempo um paradoxo e um enigma, uma vez que aponta para uma dupla direção. Neste sentido, Lima (1980) pontua que: “a palavra deixou de aparecer como palavra una e se mostrou como biface palavra em dobra. A dobra da palavra significa sua força de engano, sua capacidade de conduzir para este ou aquele rumo”. (LIMA, 1980, p. 21). Na linguagem do poema são revelados os interstícios da memória que medeiam o desejo de se presentificar o passado pela permuta de instâncias da temporalidade do passado, presente e futuro. Ao jogar com estas instâncias temporais o poeta recria as imagens do passado no ato que evoca tanto a rememoração quanto a recordação, momento em que o tempo presente é esquecido. No entanto, o poeta não perde a consciência histórica do presente. O esquecer revela o caráter seletivo da memória que necessita descartar fatos e episódios para evidenciar outros, por outro lado coloca em questão a cisão e a fragmentação e a dor causadas pelo o apagamento ou silenciamentos das memórias. Bergson (2006) afirma que para ocorrer a evocação do passado em forma de imagem é necessário abstrair-se da ação presente, saber valorizar o inútil, e querer sonhar. Assim, a poesia possibilita ao homem enxergar as coisas de um modo diferente do comum, como se o mundo estivesse sendo visto e contemplado pela primeira vez, pois a partir dela pode-se estabelecer uma nova forma de diálogo com o mundo. Neste sentido, Oliveira (2006) enfatiza que é no plano simbólico e na tensão da letra que o poeta irá criar novos mundos e viver os seus sonhos. Como sugere os versos: Como que o coração fica cantando Porque, trêmulo, esquece, Vivendo a vida de quem vai sonhando E no sonho estremece... (SOUSA, 1995, p. 120). Assim como Homero, o poeta Cruz e Sousa demonstra sua habilidade na arte de lembrar/ esquecer inserindo na comunidade da memória a imagem da cultura do seu povo que foi perdida, mas não inteiramente esquecida. O lembrar e o esquecer apontam para o movimento intermitente e constante de rememoração/recordação do passado com vistas à construção e reconstrução de memórias. Cruz e Sousa investe no trabalho de reconstrução da memória de seu povo. O lembrar está direcionado para um processo constante de ressignificação. O poeta, tendo em vista o que virá, percorre o caminho que vai do esquecimento para a comunidade da memória. Como representante da comunidade de tradição oral entra com sua habilidade para um lócus da memória numa experiência de escrita que emerge de uma visão interior penetrante e se inscreve como nova apreensão e reconhecimento de si mesmo e do mundo. Este ato torna-se poético sendo mediado pela consciência e inconsciência, o sonho e a realidade que transita entre as lembranças e os esquecimentos fundando com seus versos uma escrita do inesquecível. Conclusão A poética de Cruz e Sousa apresenta-se numa dimensão transtemporal e transespacial ao abordar a temática da memória e do esquecimento, que implica numa luta por um reconhecimento, tendo em vista que: o reconhecimento aparece como complemento importante da recordação; poderíamos dizer que é sua sanção. Reconhecemos a lembrança presente como sendo a mesma e a impressão primeira visada como sendo outra. Assim, pelo fenômeno do reconhecimento, somos remetidos ao enigma da lembrança enquanto presença do ausente anteriormente encontrado. (RICOEUR, 2007, p. 56). Desta forma, compreende-se que esta poética ultrapassa e supera todos “os bloqueios e distâncias espaciais e temporais, um poder que só lhe é conferido pela Memória (Mnemosine)”. XII Semana de Letras da Ufop Pluralidade da Memória: literatura, tradução e práticas discursivas 23 a 26 de outubro de 2012 Ufop – Mariana, MG, Brasil (TORRANO, In: HESÍODO, 2007, p. 16). Isto imbricará no reconhecimento do valor da Poesia e da Literatura como espaços de ação e criação, de resistência à opressão e abertura para a liberdade e o encantamento, pois “o maior encanto da poesia reside no seu poder de instaurar uma realidade própria a ela, de iluminar um mundo que sem ela não existiria”. (TORRANO, In: HESÍODO, 2007, p. 20). Referências Bibliográficas 1] AGUIAR, Flávio Wolf de. “A secreta malícia”. In: SOUSA, João da Cruz e. Os melhores poemas de Cruz e Sousa. São Paulo: Global, 1998. 2] BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. 7. ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 3] LIMA, Luiz Costa. Mímesis e modernidade: formas das sombras. Rio de janeiro: Graal, 1980. 4] GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Palavra e verdade: na filosofia antiga e na psicanálise. 5. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. 5] HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Estudo e trad. J.A.A Torrano. 7. ed. São Paulo: Iluminuras, 2007. 6] LE GOFF, Jacques. “Memória”. In: ______.História e Memória. Trad. Irene Ferreira, Bernardo Leitão, Suzana Ferreira Borges. 5. ed. Campinas: Unicamp, 2003, p. 419- 476. 7] MUZART, Zahidé Lupinacci. “Espelho contra espelho”. In: Revista História. Junho. 2008. Disponível em: <http// www.revistadehistoria.com.br/secao/leituras/espelho-contra-espelho> Acesso em: 6 abr. 2012. 8] NUNES, Benedito. Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger. 2 ed. São Paulo: Ática, 1992. 9] OLIVEIRA, Anelito Pereira de. O clamor da letra: elementos de ontologia, mística e alteridade na obra de Cruz e Sousa. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006. (Tese para título de Doutor em Letras). 10] RAMOS, Danielle Cristina Mendes Pereira. “Memória e Literatura: contribuições para um estudo Dialógico”. In: Linguagem em (Re)vista. Niterói-RJ, ano 6, nº 11/12, 2011,p. 92-103. 11] RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François et al. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007. 12] SOUSA, João da Cruz e. “Esquecimento”. In: ______. Obra Completa. Org. Andrade Murici. Atualização Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 118-122. 13] TORRANO, J.A.A. “Ouvir ver viver a canção”. In: HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Estudo e trad. J.A.A Torrano. 7. ed. São Paulo: Iluminuras, 2007, p.15-20. 14] TORRANO, J.A. A. “Musas e Ser”. In: HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Estudo e trad. J.A.A Torrano. 7. ed. São Paulo: Iluminuras, 2007, p.21-28. 15] TORRANO, J.A.A. “Musas e Poder”. In: HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Estudo e trad. Jaa Torrano. 7. ed. São Paulo: Iluminuras, 2007, p. 29-37. 16] WEINRICH, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. Trad. Lya Luft. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.