43 ARTIGO ORIGINAL/ORIGINAL ARTICLE Instabilidade atlanto-axial em pacientes com síndrome de Down – sua relação com a prática de esportes e o valor prognóstico da triagem radiológica Atlantoaxial instability in patients with Down’s syndrome – its relation with sports activities and the prognosis based on radiological evaluation Deodato César Casas1 André Luiz Fernandes Andújar2 Deuclesio Marioto3 Luiz Eduardo Rau3 Jeferson Pierite3 João Carlos Schleder4 RESUMO ABSTRACT Objetivos: avaliar a possível progressão para a instabilidade atlanto-axial (IAA) e sua relação com a prática esportiva. Verificar a presença de IAA na síndrome de Down (SD) devido à hiperfrouxidão ligamentar, especialmente do ligamento transverso entre C1-C2. Métodos: avaliação de 37 pacientes com SD que praticavam esportes, sem restrições de freqüência ou modalidade. Reavaliação de 13 deles após cinco anos. O estudo incluiu anamnese, exame físico e neurológico completos além de exame radiológico da coluna cervical para aferir a distância atlanto-axial (DAA). Resultados: três pacientes apresentaram IAA, dois novos casos e um remanescente, sendo que todos permaneceram neurologicamente assintomáticos. Conclusão: a prática de esportes, mesmo na presença de IAA deve ser incentivada nestes pacientes e a triagem radiológica preconizada pela Divisão Médica das Olimpíadas Especiais não é necessária. Objectives: To evaluate the progression of Atlantoaxial instability (AAI) in relation to sport practice; to verify the AAI related to Down syndrome (DS) and its characteristic ligamentous laxity, particularly in the transverse atlantal ligament between C1C2. Methods: In 1998, 37 sport practicing (no regarding frequency or modality) Down syndrome patients were evaluated. From these, 13 returned after five years to be reevaluated. The study included story taking, physical and neurological examination and cervical spine radiographs to measure atlantoaxial distance, searching for possible progression to AAI and its relationship with sports activities. Results: Three patients presented AAI, two new and one old case, all of them had no neurological findings. Conclusion: Sports activities, even in presence of AAI, must be stimulated in Down syndrome patients, and radiological screening, recommended by the Olympic Medical Division, is proved to be unnecessary. DESCRITORES: Instabilidade articular; Articulação atlantoaxial; Síndrome de Down KEYWORDS: Joint instability; Atlanto-axial joint; Down syndrome Trabalho realizado no Hospital Infantil Joana de Gusmão - Florianópolis (SC), Brasil e Universidade do Vale de Itajaí - Santa Catarina (SC), Brasil Recebido: 20/02/2005 - Aprovado: 16/08/2005 1 Professor - Faculdade de Medicina - Universidade do Vale de Itajaí - UNIVALI - Itajaí - Santa Catarina (SC), Brasil. Preceptor - Residência Médica em Ortopedia e Traumatologia - Faculdade de Medicina - Universidade do Vale de Itajaí - UNIVALI - Itajaí - Santa Catarina (SC), Brasil. Doutorandos da Faculdade de Medicina - Universidade do Vale de Itajaí - UNIVALI - Itajaí - Santa Catarina (SC), Brasil. 4 Professor - Faculdade de Medicina - Universidade do Vale de Itajaí - UNIVALI - Itajaí - Santa Catarina (SC), Brasil. 2 3 COLUNA/COLUMNA. 2006;5(1):43-45 2006;5(1):13-18 Casas DC, Andújar ALF, Marioto D, Rau LE, Pierite J, Schleder JC 44 INTRODUÇÃO A síndrome de Down (SD) foi descrita inicialmente em 1866 por Sir John L. H. Down sob a denominação de “idiotia mongolóide”. Foi a primeira anomalia cromossômica detectada na espécie humana, sendo caracterizada pela presença de um pequeno cromossomo acrocêntrico adicional identificado no cromossomo 211,2. A laxidão ligamentar generalizada, secundária à alteração na estrutura do colágeno Tipo I é responsável por uma série de alterações ortopédicas como pé plano, instabilidade patelar, instabilidade do quadril e Instabilidade Atlanto-Axial (IAA). A incidência de IAA nos pacientes com SD varia de 10 a 30% 3 e esta instabilidade ocorre devido à insuficiência do ligamento transverso que é o principal estabilizador nos movimentos de flexo-extensão entre a primeira e segunda vértebras cervicais. Também pode estar associada a malformações da coluna cervical alta como hipoplasia do odontóide, impressão basilar e os odontoideum4-14 (Figura 1). Em 1984, o Comitê de Medicina Esportiva da Academia Americana de Pediatria (CMEAAP) determinou que se realizasse uma triagem radiológica dinâmica da coluna cervical nos pacientes portadores da SD, de rotina, antes que estes iniciem qualquer prática esportiva, para pesquisar a presença de IAA4,6,15. Em nova resolução publicada em 1995, o CMEAAP concluiu que apesar da não existência de comprovação científica sobre a validade da triagem radiológica de IAA para a prática de exercício, a mesma deveria continuar sendo realizada como rotina4. O objetivo deste trabalho é avaliar a validade da triagem radiológica e correlacionar as alterações encontradas em cinco anos de acompanhamento nos pacientes com síndrome de Down que praticaram esportes durante o período. MÉTODOS Em 1998, foram avaliados 37 pacientes com SD sendo que 13 retornaram para reavaliação após cinco anos. Os pacientes foram submetidos à anamnese, exame físico e radiológico realizados pelo mesmo profissional durante todo o estudo. O exame físico incluiu o exame ortopédico geral e exame neurológico (força muscular, sensibilidade, clônus, sinal de Babinski, espasticidade e reflexo cutâneo, abdominal, patelar e aquileu). Em todos os pacientes foi realizado estudo radiológico dinâmico da coluna cervical em perfil (neutro, extensão, flexão), em AP Figura 1 Raio-x de perfil de um paciente portador de Síndrome de Down com instabilidade atlanto-axial e AP transoral, seguindo a orientação da Academia Americana de Pediatria e a padronização de Pueschel et al.13. Esta recomenda uma distância de 183cm entre o chassi e o filme alvo 4,13 para a pesquisa da distância atlanto-axial (DAA), que é o intervalo compreendido entre a face póstero -inferior do arco anterior do atlas e a superfície anterior adjacente do processo odontóide, e que se for maior de 4,5mm representa instabilidade15. Os pacientes foram estimulados a praticar esportes sem restrição de freqüência ou modalidade durante o período. RESULTADOS Dos 37 pacientes avaliados, 13 deles (35,14%) tiveram seguimento nestes cinco anos, sendo a idade média no final da pesquisa de 25,62 anos (5 a 47). As características dos pacientes em relação ao sexo, idade e análise radiológica estão ilustradas no Quadro 1. Todos os pacientes avaliados praticavam esportes (diversas modalidades), com freqüência mínima de duas vezes semanais. O exame neurológico permaneceu normal durante o seguimento. A distância atlanto-axial na posição neutra em perfil variou de 2 a 6mm (3,3mm) na primeira avaliação e de 2 a 5mm (3,5mm) após cinco anos de seguimento. Na posição em flexão, a DAA inicial era de 2 a 8mm (4,1mm) na primeira avaliação e variou de 3 a 7mm (4,3 mm) no seguimento. No atual estudo, encontramos três pacientes com IAA, sendo que um deles já apresentava esta alteração na primeira avaliação. Apesar destes dois novos casos de IAA, não houve quaisquer alterações no exame neurológico. Quadro 1 – Características gerais dos pacientes estudados Nome Sexo Raça Idade 1 FLP 2 AMJ 3 JLR 4 FLL 5 JFM 6 ACD 7 APL 8 GIB 9 FAZ 10 JC 11 DS 12 MM 13 JLS M M M M M F M M M F F M M Leucodermo Leucodermo Leucodermo Leucodermo Leucodermo Leucodermo Leucodermo Leucodermo Leucodermo Leucodermo Leucodermo Leucodermo Leucodermo (anos) 18 11 35 1 13 35 12 43 11 7 20 31 37 COLUNA/COLUMNA. 2006;5(1):43-45 2006;5(1):13-18 Flexão Extensão Neutro (mm) 3 3 3 4 5,5 4 4 4 3 5 2 8 3 (mm) 3 2,5 3 3 4,5 2 2 3 3 3 1 4 3 (mm) 3 2,5 3,5 3 4 2 3 3,5 3 4 2 4,5 3 Idade (anos) 23 16 39 5 18 40 16 47 15 12 25 36 41 Flexão Extensão Neutro (mm) 3 4 3 4 4 5 4 7 3 4 5 5 5 (mm) 2 3 3 3 3 3 3 2 3 2 3 3 3 (mm) 2 3 3 4 3 3 4 3 3 3 5 5 5 IAA Não Não Não Não Não Não Não Não Não Não Sim Sim Sim Instabilidade atlanto-axial em pacientes com síndrome de Down DISCUSSÃO A instabilidade atlanto-axial na síndrome de Down foi, primeiramente, descrita por Spitzer, Rabinowitch e Wybar em 19611 e resulta de um aumento da mobilidade entre a primeira e segunda vértebras cervicais. Em 1983, os membros da Divisão Médica das Olimpíadas Especiais determinaram que todos os participantes portadores de SD deveriam ser avaliados por exame clínico e radiológico dinâmico da coluna cervical e, se a distância atlanto-axial fosse maior que 4,5mm, estes atletas deveriam ser afastados das práticas esportivas que envolvessem movimentos de flexo-extensão forçados da coluna cervical, para evitar possíveis danos neurológicos devido à compressão medular. Em 1984, a Academia Americana de Pediatria, por meio do seu Comitê de Medicina Esportiva, acatou esta orientação e determinou a necessidade da realização desta triagem radiológica para todos os pacientes portadores da síndrome de Down antes do início de qualquer prática esportiva15. Esta mesma Academia reviu, 1995, a publicação de 1984 e questionou a validade da triagem radiológica pois, além de ser rara a presença da instabilidade sintomática, geralmente a distância atlanto-axial regride ou estaciona com o passar dos anos4. Em contra partida, a Divisão Médica das Olimpíadas Especiais defendeu a posição de não negligenciar a IAA e reiterou a necessidade da triagem radiológica, pela possibilidade, embora rara, do aparecimento de lesão neurológica durante a prática esportiva4,6,14. Morton et al. avaliaram 90 crianças portadoras de SD e encontraram sete pacientes com instabilidade atlanto-axial neurologicamente assintomáticos. Após cinco anos, apenas cinco pacientes continuavam com IAA, todos assintomáticos. Na amostra de nosso estudo houve dois novos casos de IAA ao término dos cinco anos, porém, todos neurologicamente assintomáticos16. Em estudo prospectivo foi observado que a prática de esportes não influencia no aparecimento de alterações neurológicas e que o afastamento destes pacientes dos esportes não tem fundamenta- 45 ção científica6. Estes dados estão de acordo com os achados de nosso estudo, no qual, somente três pacientes apresentavam IAA, sendo que todos praticavam esportes regularmente. O diâmetro sagital mínimo, que avalia o diâmetro do canal medular teria maior relevância na avaliação da IAA do que a distância atlantoaxial (DAA), e quando menor que 13mm sugeriria maior risco de lesão medular14. Segundo o Comitê de Medicina Esportiva da Academia Americana de Pediatria, o melhor método de imagem para avaliar a IAA é a tomografia computadorizada. No entanto, além da necessidade de indução anestésica para sua realização, o seu alto custo a torna inacessível para uso como screening4,11. Portanto, ainda não há na literatura um consenso quanto a validade real da triagem radiológica para pesquisar IAA em todos os pacientes com SD e não encontramos na literatura nenhum caso de paciente com SD que tenha desenvolvido alterações neurológicas durante a prática de esportes. Concordamos que mais estudos devam ser realizados para definir se realmente é importante a pesquisa radiológica da IAA nos pacientes com SD, e concordamos que o controle clínico regular sempre deva ser realizado à procura do aparecimento de alguma alteração neurológica, que é o principal indício de compressão medular na presença de IAA . CONCLUSÃO A IAA é uma alteração peculiar da SD e esta não apresenta uma relação com a prática esportiva. Também não há evidências científicas da necessidade do screening radiológico preconizado pela Divisão Médica das Olimpíadas Especiais, sendo que o exame clínico é o mais importante para o acompanhamento destes pacientes. A presença ou não de IAA radiológica não deve ser utilizada como parâmetro para afastar estes pacientes das atividades esportivas pois isto só prejudica a socialização e o desenvolvimento neuropsicomotor destes indivíduos. REFERÊNCIAS 1. Nahas MV, Rosário AV, Nahas AB, Luza GR. 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