Da cegueira colectiva à aprendizagem da insensibilidade
Mia Couto
Quero, antes de mais saudar os professores.
Durante anos, fui professor. E quando digo isto há uma emoção fortíssima que
me atravessa. Eu não sei se há profissão mais nobre do que a de ensinar. E
digo ensinar porque existe uma diferença sensível entre ensinar e dar aulas. O
professor no sentido de mestre é aquele que dá lições.
Os professores que mais me marcaram na vida foram os que me ensinaram
coisas que estavam bem para além da matéria escolar. Não esqueço nunca um
professor da escola primária que um dia leu, comovido, um texto escrito por ele
mesmo. Logo na declaração da sua intenção nasceu o primeiro espanto: nós,
os alunos, é que fazíamos redações, nós é que as líamos em voz alta para ele
nos corrigir. Como é que aquele homem grande se sujeitava àquela inversão
de papéis? Como é que aceitava fazer algo que só faz quem ainda está a
aprender?
Lembro-me como se fosse hoje: o professor era um homem muito alto e seco
e, nesse dia, ele subiu ao estrado da sala segurando, nos dedos trémulos, um
caderno escolar. E era como se ele se transfigurasse num menino frágil, em
flagrante prestação de provas. Parecia um mastro, solitário e desprotegido. Só
a sua alma o podia salvar.
Depois, quando anunciou o título da redação veio a surpresa do tema que
parecia quase infantil: o professor iria falar das mãos da sua mãe. Éramos
crianças e estranhámos que um adulto (e ainda por cima com o estatuto dele)
partilhasse connosco esse tipo de sentimento. Mas o que a seguir escutei foi
bem mais do que um espanto: ele falava da sua progenitora como eu podia
falar da minha própria mãe. Também eu conhecera essas mesmas mãos
marcadas pelo trabalho, enrugadas pela dureza da vida, sem nunca
conhecerem o bálsamo de nenhum cosmético. No final, o texto acabava sem
nenhum artifício, sem nenhuma construção literária. Simplesmente, terminava
assim, e eu cito de cor: “é isto que te quero dizer, mãe, dizer-te que me orgulho
tanto das tuas mãos calejadas, dizer-te isso agora que não posso senão
lembrar o carinho do teu eterno gesto.”
Havia qualquer coisa de profundamente verdadeiro, qualquer coisa diversa
naquele texto que o demarcava dos outros textos do manual escolar. É que
não surgia ali, em destacado, uma conclusão moral afixada como uma grande
proclamação, uma espécie de bandeira hasteada. Aquele momento não foi
uma aula. Foi uma lição que sucedeu do mesmo modo como vivemos as
coisas mais profundas: aprendemos, sem saber que estamos aprendendo.
Lembro este episódio como uma homenagem a todos os professores, a esses
abnegados trabalhadores que todos os dias entregam tanto ao futuro deste
país.
Comecei por saudar os professores. Parece que me esqueci dos estudantes.
Ou que os coloquei em segundo plano. Mas não.
Todos somos professores, mesmo que não o saibamos. Perante os outros,
perante os nossos pais, perante os amigos, perante nós mesmos, com bons ou
maus exemplos, com tristes ou gratificantes lições, todos somos professores.
Um dos maiores professores do nosso tempo é um homem que nunca deu
aulas. É um homem que ensinou a sermos mais humanos. Mais do que isso, é
um homem que ensinou a ter esperança num mundo tão desesperançado.
Esse professor de toda a humanidade, de todas as raças e credos, é um
africano. Chama-se Nelson Mandela. A sua vida foi uma interminável lição.
Mandela é hoje uma bandeira mundial não apenas porque foi um político que
dignificou a política, mas porque nos dignificou a todos nós, seres humanos.
Deixem-me falar de Mandela. Este homem, que agora está doente e cansado,
viveu encarcerado durante vinte e sete anos. Vinte e sete anos são mais do
que o tempo de vida da maior parte dos presentes nesta sala. Vinte e sete
anos de prisão é tempo suficiente para criar raiva, ódio e insuperáveis
ressentimentos. Contudo, este homem converteu esse potencial negativo em
força construtiva e reconciliadora. Um dos motivos de inspiração de Mandela
foi ter encontrado num poema que se chama “Invictus”. Vou ler esse poema.
Do ventre da noite que tudo cobre
Negra como o fundo da cova escura
Agradeço aos deuses de todos os céus
Por quanto a minha invencível alma perdura
Ante as garras do cruel acaso
Nem eu tremi, nem o medo me turvou
Sob o peso da ameaça e da desumana violência
Eu sangrei mas a minha alma nunca se curvou
Não importa se a passagem é estreita
Não importa quantos castigos devo penar
Eu sou o dono do meu destino
Eu sou o capitão da minha alma.
Estes versos, meus amigos, foram uma espécie de suporte moral que deram
força a Nelson Mandela. Vezes infinitas o prisioneiro 46664 da Ilha de Robin
regressou a estes versos para não sucumbir. Como escritor e poeta, dá-me
grande alegria saber deste poder da poesia. Neste caso, há qualquer coisa que
deve ser acrescentada.
Na verdade, este poema foi escrito em 1875. O seu autor não foi um poeta sulafricano, não foi sequer um poeta africano. Quem escreveu estes versos foi um
britânico chamado William Ernest Henley. Estes versos viajaram para além de
séculos e continentes e iluminaram a esperança de um homem que, em vez de
se vitimizar e procurar a vingança, nos deu uma eterna lição da crença nos
outros.
Eu venho falar para a Escola de Comunicação e Artes. Por isso me demorei
nestes episódios. Porque acredito que a comunicação e a arte são ferramentas
de mudança tão importantes como a política. Mandela fez da política um
instrumento de comunicação da verdade. Ele fez da política uma obra na arte
da reconciliação, numa nação dividida pelo preconceito. Talvez a cultura seja o
mais poderoso e duradouro instrumento de intervenção social. No nosso
continente isso é bem claro. Vejamos um exemplo:
Desde há 50 anos, quando começaram a acontecer as independências, o
nosso continente conheceu mais de 210 presidentes. O desafio que vos faço é
o seguinte: digam o nome de 10 (apenas 10) destes dirigentes que se tenham
notabilizado como figuras humanas de referência. Terão dificuldade. Será
muito mais fácil enumerarmos artistas e intelectuais dignos de serem
lembrados. E é aqui que a figura de Mandela é tão importante para nós,
africanos. Podemos não nos lembrar de muitos políticos africanos que nos
dignifiquem. Mas o nome de Mandela basta para compensar toda essa
ausência e devolver o orgulho de sermos quem somos.
Caros amigos, vou entrar agora no tema central desta alocução.
Todos os dias centenas de chapas de caixa aberta transitam por esta cidade
que parece afastar-se do seu próprio lema “Maputo, cidade bela, próspera,
limpa, segura e solidária”. Cada um destes “chapas” circula superlotado com
dezenas de pessoas que se entrelaçam apinhadas num equilíbrio inseguro e
frágil. Aquilo parece um meio de transporte. Mas não é. É um crime ambulante.
É um atentado contra a dignidade, uma bomba relógio contra a vida humana.
Em nenhum lado do mundo essa forma de transporte é aceitável. Quem se
transporta assim são animais. Não são pessoas. Quem se transporta assim é
gado. Para muitos de nós esse atentado contra o respeito e a dignidade
passou a ser vulgar. Achamos que é um erro. Mas aceitamos que se trata de
um mal necessário dada a falta de alternativas. De tanto convivermos com o
intolerável, existe um risco: aos poucos aquilo que era errado acaba por ser
“normal”. O que era uma resignação temporária passou a ser uma aceitação
definitiva. Não tarda que digamos: “nós somos assim, esta é a maneira
moçambicana.” Desse modo nos aceitamos pequenos, incapazes e pouco
dignos de ser respeitados.
O caso dos chapas é apenas um exemplo, uma ilustração de um processo que
eu chamaria de “construção do inevitável”. E é simples: aos poucos, os
passageiros do “chapa” deixam de ser visíveis. Na nossa sociedade essas
pessoas já contavam pouco. É gente pobre, gente sem rosto, gente que não
aparece na TV nem no jornal. Essa gente surgirá no jornal quando o “chapa” se
acidentar. Mas aparecerá sem voz e sem nome. Um simples número para se
contabilizar feridos e mortos. Em contrapartida, outras coisas ganharam brilho
na nossa sociedade. Por exemplo, adquiriram toda a visibilidade os carros de
luxo de uma pequena minoria. Deixamos de ver os “chapas” mortais, mas
estamos atentos aos sinais de ostentação dessa minoria.
O assunto que quero abordar convosco hoje é esta operação que banaliza a
injustiça e torna invisível a miséria material e moral. Esta vulgarização faz
perpetuar a pobreza e faz paralisar a história. Saímos todos os dias para a rua
para produzir riqueza mas regressamos mais pobres, mais exaustos, sem
brilho, nem esperança. De tanto sermos banalizados pelos outros, acabamos
banalizando a nossa própria vida.
Estamos perante uma espécie de formatação mental e moral. A mensagem é a
seguinte: querem dizer-nos as nossas doenças sociais são incuráveis. Restanos viver de remendos e expedientes.
Visitou-me um escritor amigo da Nigéria. Ele percorreu as cidades de
Moçambique e ligou-me de Pemba. A primeira coisa que ele disse: Estou
maravilhado! Vocês têm estações de gasolina a funcionar! O seu espanto
espantou-me a mim. Principalmente porque esse assombro provinha de um
cidadão da Nigéria, o maior produtor de petróleo de África. Só depois entendi.
O que passa na Nigéria – depois de 50 anos de exportação de petróleo - é que
as cidades nigerianas não possuem aquilo que para nós é comum: estações de
gasolina vendendo gasolina. As bombas de combustível naquele país estão
quase todas fechadas e a gasolina é vendida em garrafas e jerricans nos
passeios públicos. Para alguns esse é um processo natural em África. Mas não
é. O que sucedeu foi o seguinte: o governo subsidiou os preços dos
combustíveis mas não foram os mais desfavorecidos que lucraram mais. Foi
uma parte da elite nigeriana que se apoderou dos circuitos formais e desviou
para os mecanismos informais a distribuição e venda do combustível. Uma vez
mais, os ricos tornaram-se ainda mais ricos. Mas não é a questão politica que
eu quero trazer aqui. A questão é que, para o cidadão da Nigéria, aquele
sistema de venda, à maneira do dumba-nengue, se tornou normal. Ver bombas
de gasolina a funcionar numa nação bem mais pobre como é Moçambique foi,
para ele, um motivo de surpresa. Eu vejo muito africanos proclamarem que os
mercados informais são a única maneira que África sabe fazer comércio. Que
apenas nas barracas sabemos comer e beber. É mentira. A dumbanenguização da economia é uma estratégia escolhida para fugir dos impostos,
para escapar das obrigações para com o património público. Quando o meu
amigo nigeriano voltou a Maputo ele disse-me o seguinte:
- A minha surpresa não foi tanto o que eu vi em Moçambique. Foi sim o que já
não sabia ver na Nigéria.
O principal aliado dos tiranos é a cultura da aceitação. Talvez alguns de vocês
sabem que sou um dos autores do Hino Nacional. Quando entregamos o Hino
para aprovação na Assembleia da Republica nós não podíamos imaginar que
alguns deputados se sentissem incomodados com a passagem da letra que
diz: Nenhum tirano nos irá escravizar. É claro que a letra não fala do presente.
Mas um hino é feito para durar. E quem pode garantir que um candidato a
tirano não assaltará a nossa futura história? O melhor modo de prevenir esse
risco não é apenas consolidar a democracia política. É investir numa cultura
viva, numa cidadania de construção do futuro. O que me interessa falar aqui,
numa Escola de Arte e Cultura é a dimensão cultural das nossas pequenas e
grandes misérias.
A invocação da chamada “africanidade” é uma das armadilhas mais usadas
pelos tiranos. No Malawi atacaram e rasgaram a roupa de mulheres pelo
simples facto de andarem de calças. Mulheres de calças não é uma coisa
africana – foi o que invocaram os agressores. Em nome de África se agrediram
e mataram pessoas apenas porque eram homossexuais. Em nome da pureza
africana se continua a impedir que, apenas por serem do sexo feminino,
milhares de crianças não prossigam os seus estudos. Em nome de África se
cometem os maiores crimes contra África. O nosso continente é feito de
passado e tradição, sim. Mas é feito de modernidade. É feito de mudança.
Como todos os outros continentes.
As dinâmicas de mudança confrontam-se com uma identidade feita de passado
e tradição. Tudo isto tem a ver com o processo da construção do inevitável.
Esse processo envolve o mecanismo da acomodação e o mecanismo da
invisibilidade. A acomodação tem várias facetas. Sabemos que está errado,
mas nada fazemos. Porque temos medo. Porque achamos que não tem a ver
connosco. Ou porque fazemos cálculos. É melhor calar e ser promovido. É
melhor recolher uns magros favores em troca do nosso silêncio e da nossa
cumplicidade.
O mecanismo da invisibilidade foi tratado por José Saramago no livro O ensaio
sobre a cegueira. Nós estamos doentes, não porque os olhos tenham alguma
deficiência, mas porque deixamos de saber olhar. Deixamos de querer ver. E
deixamos de nos ver a nós mesmos. No fundo, este é o desfecho desse
processo de alienação. Tornamo-nos cegos. Quem não vê, aceita que outros
lhe digam como é o mundo.
Eu rabisquei uma lista de fenómenos sociais que se tornaram invisíveis em
Moçambique. A lista é bem extensa. Mencionarei apenas de alguns.
A violência contra os mais fracos
O primeiro desses fenómenos é a violência. Dizemos com frequência que
somos um povo pacífico. Isso é verdade. Mas os povos todos, do mundo, são
pacíficos por natureza. O que muda é a sua história. Assim, é verdade que
somos um povo pacífico, mas também é verdade que foi esse povo pacífico
que fez uma guerra civil que matou cerca de um milhão de pessoas. A guerra
terminou em 1992, e essa data é talvez a mais importante da nossa história
recente, depois da Independência Nacional. Terminou o conflito militar, mas
não terminaram outras guerras silenciosas, invisíveis e perversas.
Hoje somos uma sociedade em guerra consigo mesma. Os alvos dessa guerra
são sempre os mais fracos. Estamos em conflito com as mulheres, com as
crianças, com os velhos, estamos em guerra com os pobres, com aqueles que
não têm poder. Somos uma sociedade obcecada pelo Poder. Quem não tem
poder é como quem circula na traseira do chapa: não existe. Tudo tem uma
leitura política, o mais pequeno detalhe é um recado, uma definição de
hierarquias. Quem chega primeiro à reunião, onde se senta, quem não
comparece à cerimónia, com que carro chegou, de quem se faz acompanhar,
tudo isso são sinais de poder. Nas ruas sou chamado de patrão, sou chamado
de “boss”, porque a minha cor da pele é tida como um sinal de Poder. O
vendedor de viaturas insurgiu-se com a escolha de um carro que eu queria
comprar. Deixe que escolho um carro compatível com o seu estatuto.
Estamos em guerra connosco mesmos e o primeiro desses alvos é
curiosamente uma maioria: as mulheres. Em Moçambique há mais um milhão
de mulheres que homens. Mas ao nível das percepções, os homens dão pouca
importância a essa verdade. Eles são chefes, os donos, e olham as mulheres
como uma pertença privada. As mulheres, por outro lado, ainda pedem licença
para existir. A maioria das mulheres que são objecto de violência dos maridos
acha que isso não é um crime. Acham normal, acham natural. Ser agredida faz
parte do seu destino, da sua imutável natureza.
E conto-vos três episódios reais, que retirei da nossa imprensa apenas nas
últimas semanas:
Em Cabo Delgado 17 homens violaram uma mulher que se atreveu a
atravessar o acampamento onde se praticavam os rituais de iniciação. Da parte
das autoridades locais houve uma inaceitável passividade. Foi necessária
insistência da família e de ONGs para que houvesse uma insuficiente resposta.
Em Manica dois jovens violam sexualmente uma mulher no sétimo mês da
gravidez.
Em Tete um homem mata a criança de dois meses e esfaqueia gravemente a
mulher porque a meio do dia ele chegou a casa e a mulher recusou fazer sexo
com ele. O jornalista da televisão que entrevista o confesso culpado sugere
uma quase legitimidade do ato ao perguntar: “o senhor devia estava
necessitado não é verdade?”.
Reclamamos a violência da rua, mas é mais provável uma mulher ser agredida
dentro de casa do que fora de casa. É mais provável uma criança ser agredida
e violentada no espaço da sua família. Esta tendência não sucede apenas em
Moçambique, mas no mundo. As estatísticas são reveladoras e assustadoras:
cerca de 70 por cento dos actos de violência contra a mulher acontecem dentro
da casa. Mais de 60 por cento dos assassinatos de mulheres são cometidos
pelos seus companheiros ou ex-companheiros. Em todo o mundo, uma em
cada três mulheres ou já foi ou irá ser agredida ou violentada. Não é pois
Moçambique que é afectado de modo particular. O que sucede é que para nós
essa violência é legitimada por razões que se dizem culturais. Nós ainda
banalizamos muito facilmente. É ainda prevalecente a ideia de que a mulher é
que é culpada, porque ela é quem provoca a violência. Ainda achamos que
este assunto não tem a ver connosco, que é para ser denunciado pelas ONGs.
Isto é, desresponsabilizamo-nos. Mesmo sendo mulheres, achamos que este
assunto tem a ver com os outros. Mesmo sendo homens, que têm mães, irmãs
e filhas, achamos que isto não tem nada a ver connosco.
OUTRA GUERRA - AS VIUVAS
Sugiro que leiam o livro de Fabrício Sabat, chamado As viúvas da minha terra,
para ficarem com uma ideia do crime generalizado que é cometido contra
mulheres que vivem um momento dramático da sua vida. E nesse exacto
momento de fragilidade, são assaltadas pelos próprios parentes. Levam-lhes
os bens, os filhos, o sossego.
CASO DAS VELHAS
Acusadas de feitiçaria, roubaram-nas durante a vida, fizeram sumir a sua
infância e juventude e, no final, roubaram a possibilidade de uma velhice
tranquila, usufruída com os netos e as lembranças. Está longínqua a imagem
de África como um lugar especial porque os velhos são respeitados.
GUERRA CONTRA OS GAYS E AS LÉSBICAS
Moçambique nem é dos países menos tolerantes. Há países que consideram
formal e legalmente um crime o simples facto de ser ter uma orientação sexual
diferente. Mesmo assim, há entre nós, uma enorme intolerância.
CASO DOS DOENTES MENTAIS
Nós estamos tão ocupados com outras doenças que esquecemos que não é
apenas o HIV SIDA que tem implicações do ponto de vista do estigma social.
As doenças mentais são outro mal não visível. Não creio que existam
estatísticas da prevalência de doenças mentais em Moçambique. Mas a média
em África é de 14 por cento da população.
ALBINOS
Vou contar-vos um episódio real. Conheci um pedreiro que chamarei apenas
por Fabião, que certa vez executou uma obra para minha casa. Um dia, uma
moça albina veio à minha porta pedir água. O pedreiro desceu do escadote
onde trabalhava para me dar conselhos: “é melhor não dar, ou usar um copo
que depois deita fora”. Quando lhe perguntei porquê, ele respondeu: “aquela
tjidajna é alguém que tem muitos problemas”. E reproduziu os habituais mitos e
preconceitos sobre os albinos. No final confessou: “ainda bem que na minha
família nós não temos disso».
Passaram-se anos e a semana passada o mesmo Fabião ligou para mim a
perguntar se era possível entrar sem convite na exposição “Filhos da Lua”, na
Fortaleza de Maputo. Ele ouviu na rádio que a exposição tinha por tema “os
albinos” e estava muito interessado em levar a sua filha a esse evento. “É que
a minha filha nasceu albina.” Fabião não podia nunca imaginar ser pai de uma
tjidjana. Mas foi. E ele agora, por amor a essa menina, queria enfrentar junto
com ela os preconceitos que ele mesmo guardava dentro de si. Chamei Fabião
e ofereci-lhe que levasse para a sua filha dois discos. Um de Salif Keita, outro
do nosso Aly Fake. E disse “esses são os melhores copos de água. Refrescam
a alma”.
Muitas vezes pensamos que essas diferenças vivem fora de nós. A diferença
está dentro de nós. Um em cada 35 moçambicanos é portador do gene do
albinismo. Um em cada 35 pessoas é portador dessa gente. Nenhum de nós
sabe à partida se poderá ser pai ou mãe de uma criança albina.
GUERRA COM OS MORTOS
Até aqui falei de conflitos com mulheres, crianças, velhos. Mas todos esses
segmentos sociais são compostos por gente viva. O mais triste é que a nossa
sociedade entrou em guerra com os seus próprios mortos. Este é o sintoma
mais grave da nossa patologia social: passamos a maltratar até os nossos
mortos. O que acontece nos nossos cemitérios é um atentado contra os mais
básicos princípios morais. As famílias enterram os seus entes queridos e são
obrigadas a retirar o mais ínfimo valor que acompanhe o falecido. Sabem que
no dia seguinte, o caixão foi assaltado, o morto foi despido. As próprias jarras
de flores são quebradas antes de serem colocadas para prevenir que sejam
roubadas e vendidas. Não contentes em assaltarem os vivos, há gangs que se
especializaram em roubar os mortos. Nem depois do último suspiro estaremos
a salvo dos ladrões.
Meus amigos
Eu disse que estávamos em guerra connosco mesmos. Esta guerra doméstica
compõe-se de duas violências. A violência daqueles que agridem. E a violência
dos que se calam. Marthin Luther King disse O que me entristece não é apenas
o clamor dos homens maus. É o silêncio dos homens bons.
A lista das nossas guerras domésticas estende-se por mais domínios. Os
exemplos que escolhi ilustram o facto de que não somos a sociedade
pacificada que pretendíamos ser. Há um percurso enorme a percorrer e esse
caminho é sobretudo uma viagem interior. Essa viagem só acontecerá se
vocês souberem ver, souberem não aceitar. Tudo o que aqui disse pode ser
resumido em dois textos pequenos de autores alemães. Peço-vos que
escutem. O primeiro é uma parábola e diz o seguinte:
“Um dia, vieram e levaram o meu vizinho, que era judeu. Como não sou judeu,
não me incomodei. No dia seguinte, vieram e levaram o meu outro vizinho, que
era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia,
vieram e levaram o meu vizinho católico. Como não sou católico, não me
incomodei. No quarto dia, vieram e levaram-me mim. Nessa altura, já não havia
mais ninguém para reclamar.”
O segundo texto é um apelo na forma de verso, escrito pelo dramaturgo Bertolt
Brecht:
"Nós pedimos-vos com insistência:
Nunca digam - Isso é natural.
Diante das barbaridades de cada dia,
Numa época em que corre sangue
Num tempo em que a arbitrariedade tem força de lei,
Num momento em que a humanidade se desumaniza
Não digam nunca: Isso é natural
Se aceitamos as coisas como naturais
este nosso mundo torna-se imutável
Caros amigos
O nosso tempo também está em guerra contra os jovens. À nossa frente, e não
falo apenas de Moçambique, se anunciam tempos difíceis. À nossa frente está
um futuro magro em que parece que apenas alguns podem caber. O que nos
sugerem é que briguemos uns com outros para ver quem cabe nessa estreita
porta. Mas talvez seja possível criar um outro futuro mais amplo.
Vão ser assediados. Por forças políticas que estão mais preocupadas com o
Poder do que com a resolução efectiva dos problemas. Por forças que se
lembram dos jovens quando se trata de colher votos. Por forças que falam aos
jovens, não falam com os jovens.
Vocês são jovens. Ser jovens é uma condição inerente, que se exerce sem
esforço. Mais do que jovens, sejam diferentes. Tragam para o nosso tempo o
inesperado, o que é novo, o que é historicamente produtivo.
Uma nova classe está povoando o poder político em Moçambique. São os
papagaios. Reproduzem o discurso dos chefes. A maior parte deles são jovens.
Mas são jovens de alma envelhecida. Os papagaios podem pensar que o seu
futuro está assegurado porque olham o país como se fosse um aviário. Mas o
nosso futuro como nação não se constrói senão com ousadia, com vitalidade e
um infinito respeito pelos outros.
Ficamos muitas vezes à espera, ficamos à espera que o governo faça. Temos
medo de tomar iniciativa. Achamos arriscado. Não agimos porque dizemos que
faltam recursos, falta orçamento, falta autorização do chefe. Mas existem lições
que parecendo pequenas podem tocar alguém para toda a vida.
O professor primário que leu uma redacção sobre as mãos calejadas de sua
mãe não imaginava que estaria marcando para sempre um aluno seu. O poeta
William Henley não poderia imaginar que versos seus poderiam sustentar, cem
anos mais tarde, a vontade de lutar de um africano que iria mudar o destino de
milhões de pessoas.
Fazemos o que fazemos não porque sejam grandiosas iniciativas mas porque
necessitamos mudar as coisas e melhorar o mundo. Fazemos o que fazemos
porque, como diz o poema, nós queremos ser donos do nosso destino e
capitães da nossa alma colectiva.
Aula inaugural – Escola de Comunicação e Artes- UEM. 2012
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