Da corda de sisal ao cabo Ultraseven: uma análise da evolução tecnológica da Cordoaria São Leopoldo Autoria: Pietro Cunha Dolci, Rafael Kruter Flores, Greice De Rossi, Danielle Schmidt Dolci Resumo A capacidade de evoluir de uma firma está diretamente relacionada ao setor onde esta se encontra. Em um setor caracterizado como sendo de baixa tecnologia, o esperado e, por vezes o mais viável, é que as firmas apresentem este mesmo padrão. Este trabalho se propõe a analisar um caso onde a relação: setor de baixa tecnologia – firma com baixa capacidade tecnológica, não se aplica. A Cordoaria São Leopoldo (CSL) apresenta uma trajetória diferenciada. Identificando oportunidades para inovar, a CSL diferencia-se e distancia-se das demais empresas, incorporando novas tecnologias e alterando o paradigma tecnológico do setor onde está inserida. A partir de uma revisão teórica que se apóia em dois pilares, a teoria evolucionária e a teoria dos custos de transação, buscou-se explicar como a Cordoaria São Leopoldo se adapta, supera e define paradigmas tecnológicos em um setor de baixa tecnologia. Para tanto, utilizou-se o método de estudo de caso, caracterizado por três atributos: caso único, ilustrativo e intrínseco. O método de estudo de caso único proporcionou a identificação, análise e comparação com a teoria relacionada. Foi possível realizar uma contribuição conceitual pela utilização do caso como ilustração, pela sua análise e comparação com a teoria. Pelo alto grau de diferenciação que a CSL possui em relação a outras empresas do setor têxtil, um estudo de caso intrínseco pode ser conduzido, para um melhor entendimento das particularidades desta empresa. A análise dos dados que foram coletados, a partir de entrevistas e fontes secundárias, realizou-se através uma descrição de toda a história da CSL. A história, no entanto, que se inicia em 1929 com a fundação da empresa apresenta foco em cinco principais momentos. Estes momentos relatam fases de grande inovação para a CSL, que evolui de uma empresa que fabricava cordas de uso geral, que não exigiam conhecimento e tecnologia muito específicos, para a produção de cabos para ancoragem de plataformas de petróleo. O conhecimento que a Cordoaria São Leopoldo acumulou e, foi capaz de transformar em rotinas, durante toda sua trajetória, chamaram também a atenção de outras empresas. O que resultou em uma grande parceria com a Petrobrás, para o desenvolvimento dos cabos de ancoragem de plataformas em águas profundas, e a posterior venda da divisão da CSL dedicada ao mercado petroleiro, ao Grupo Lupatech, sendo chamada posteriormente de Lupatech CSL. Assim, a Cordoaria São Leopoldo é um caso em particular, uma empresa que alterou paradigmas tecnológicos e persiste na superação dos próprios paradigmas que vem estabelecendo ao longo do tempo. 1 Apresentação do caso A ameaça de esgotamento das reservas de petróleo que tem preocupado cientistas e a comunidade em geral na transição do século XX para o século XXI vem sendo, paulatinamente, substituída por anúncios freqüentes de novas descobertas. Desde 2007, a estatal brasileira de petróleo, Petrobrás, vem confirmando descobertas de jazidas de petróleo em águas profundas na costa brasileira. Em pouco tempo, o Brasil entrou definitivamente no rol de países ricos em petróleo, e a Petrobrás se afirmou como uma das principais empresas mundiais no setori. Segundo Brasil (2008), a exploração de petróleo em águas profundas teve inicio na Bacia de Sergipe em 1968. Porém, ainda que se soubesse do potencial petroleiro no País, a alta tecnologia necessária e os baixos preços do produto no mercado internacional tornavam a exploração desnecessária. Com a crise do petróleo instalada em 1973, quando os países produtores do Oriente Médio decidiram reduzir o volume produzido a fim de aumentar o preço do barril, o panorama mudou: tornava-se cada vez mais necessário reduzir a dependência do mercado externo. Assim, em meados da década de 70, a Petrobrás iniciou um caminho de investimentos na área de pesquisa e desenvolvimento direcionados à exploração e produção de petróleo. Tal processo resultou em um conhecimento endógeno de exploração de petróleo offshoreii (NETO; SHIMA, 2008). Na década de 80, o volume de produção em bacias marítimas ultrapassou a produção onshore. Através dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento e de parcerias com outras empresas do ramo, a Petrobrás tornou-se detentora de tecnologias especificas que a colocam em um patamar diferenciado na exploração offshore (FURTADO, 1996). Dentre as parcerias firmadas pela empresa está o fornecimento de cabos de ancoragem de plataformas, realizado desde 1997 pela Cordoaria São Leopoldo (CSL), empresa instalada em São Leopoldo, cidade localizada na região metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. A CSL foi fundada em 1929, por imigrantes austríacos e alemães. Na época, atuava principalmente no mercado de cordas feitas a partir de fibras naturais, como o cânhamo, o sisal e a juta, e fornecia também cabos de aço e cobre, tendo como um de seus principais clientes a Companhia Estadual de Energia Elétrica. Desde sua fundação até a década de 60, a empresa se manteve com esse posicionamento. (ABU-JAMRA, 2007). No início da década de 60, a empresa ampliou suas instalações e passou a utilizar fibras sintéticas ao invés de naturais. O foco da empresa era o mercado pesqueiro, que já se mostrava muito competitivo. Em 1969, a CSL importou uma máquina inaugurando um novo posicionamento de mercado para a empresa: cabos navais (offshore e de navegação) (ABUJAMRA, 2007). Nas Figuras 1 e 2 podem ser observados exemplos da fibra natural e da sintética. Figura 1 – Exemplo de fibra natural Figura 2 – Exemplo de fibra sintética 2 Durante os anos 70, foram compradas e construídas máquinas trançadeiras, torcedeiras e retorcedeiras. Além disso, naquele período a empresa realizou nova reestruturação de sua planta fabril. Em 1974 a empresa reavaliou seu posicionamento e voltou ao mercado pesqueiro, deixando os cabos navais como produtos adjacentes. Segundo o sítio da própria empresa, “a reforma na estrutura de produção foi essencial para o crescimento da CSL, porque permitiu o foco de investimento em poucos produtos, viabilizando um crescimento tecnológico mais significativo” (CORDOARIA SÃO LEOPOLDO, 2010 p, 1.) Em 1979 a CSL construiu a segunda trançadeira de 12 pernas em todo o mundo. Em 1985 a empresa concluiu a produção de uma máquina para fabricar os cabos de dupla trança, momento que marcou definitivamente a mudança de foco para o mercado offshore e de navegação. Também naquela época a empresa reformou e ampliou pela terceira vez seu pavilhão (CORDOARIA SÃO LEOPOLDO, 2010). Foi, entretanto, na década de 90 que a CSL viveu sua mais radical transformação, acompanhando as descobertas de petróleo em águas profundas no Brasil. Na década de 90, o cenário petroleiro brasileiro foi norteado pela conclusão de que o petróleo em águas rasas estava escasso na costa do Brasil, levando então à decisão estratégica da Petrobras de extrair petróleo em águas profundas, atividade em que foi pioneira. Desde o início desse empreendimento, de valor imensurável para o desenvolvimento do país, a CSL esteve envolvida em parceria com a estatal petroleira (ABU-JAMRA, 2007, p. 15). A Petrobrás necessitava de um fornecedor de cabos para a ancoragem de plataformas em águas profundas, um produto escasso no cenário internacional, mas com um potencial parceiro em território nacional. A CSL aceitou o desafio e, em parceria com a Petrobrás, desenvolveu um novo produto, o CSL Ultraseven, com propriedades únicas no que se refere à sua aplicação, em relação ao mercado offshore. O primeiro cabo CSL Ultraseven foi fornecido à Petrobras em agosto de 1996 (ABU-JAMRA, 2007). Desde então, outros clientes passaram a também adquirir o produto, que se tornou a principal marca da empresa, e responsável por parte considerável de suas receitas. Em 2007, a empresa figurava como líder mundial no fornecimento deste produto, com mais de 500 km de material produzido, chegando a atingir a produção de 400 toneladas por mês (ABU-JAMRA, 2007). Ainda, segundo Pellegrini e Araujo (2001), a CSL detém recordes de profundidade de produção e de quantidade de plataformas instaladas além dos 1000 metros de lâmina d’água, além de ter o maior número de cabos instalados em águas ultra profundas, com mais de 1000 metros de profundidade (PELLEGRINI e ARAÚJO, 2001). Não obstante, o desenvolvimento de produtos e processos levou a empresa a questionar e contribuir na reformulação de normas nacionais e internacionais de fabricação de cabos de ancoragem, fato que será analisado posteriormente. O conhecimento desenvolvido pela empresa, seja em parceria com a Petrobrás na década de 90, seja de forma autônoma desde sua fundação, se somaram aos esforços nacionais de auto-suficiência na produção de petróleo. Já na década de 2000, os anúncios das jazidas de pré-sal e as perspectivas de exploração em águas ultra-profundas tiveram como conseqüência uma reorganização acionária dos ativos da CSL, sendo que a empresa antes familiar foi dividida em duas: a Lupatech CSL e a Cordoaria São Leopoldo, que mantém a propriedade e a gestão familiar. Enquanto a primeira tem exclusividade na produção de cabos de ancoragem de plataformas, a segunda produz todos os demais produtos (cabos navais e cordas de usos diversos) (ABU-JAMRA, 2007). A parceria entre a Cordoaria São Leopoldo, da divisão ou setor têxtil da classe fabricação de artefatos de cordoaria (IBGE, 2010), considerado de baixa-tecnologia pela 3 OCDE (2005), com a Petrobrás, reconhecida como uma empresa que desenvolve e utiliza conhecimentos, possibilitou uma diferenciação da cordoaria em relação ao seu setor. Assim, a partir das informações encontradas e observadas elaboramos a seguinte questão: De que forma a Cordoaria São Leopoldo consegue, ao decorrer de sua história, não apenas se adaptar a mudanças ambientais, mas se destacar nacionalmente e internacionalmente em um setor de baixa tecnologia? Assim, o trabalho visa alcançar esse objetivo a partir da análise histórica da empresa com foco em quatro momentos de sua história. Para tanto, definiremos um referencial teórico apoiado em dois eixos que se encontram dentro da teoria da firma: a teoria evolucionária e a teoria dos custos de transação. Referencial teórico Apesar de compartilharem o mesmo objeto de estudo, a firma, as teorias evolucionária e dos custos de transação se diferenciam nas perspectivas de análise: enquanto a primeira busca compreender processos dinâmicos de mudança das firmas, a segunda explica momentos estáticos de configurações organizacionais. Mesmo assim, para a questão levantada no item anterior, ambas auxiliarão nas análises que seguem, uma vez que compreender a história da CSL exige que se tenha um olhar processual; ao mesmo tempo, em alguns momentos a empresa alterou significativamente sua configuração, o que demanda uma análise estática momentânea. Portanto, revisaremos ambas as teorias, iniciando pela teoria evolucionária. A teoria evolucionária A teoria evolucionária é uma perspectiva que reconhece ser herdeira de Schumpeter, motivo pelo qual iniciaremos esta revisão abordando, de forma muito breve, o pensamento evolucionário deste autor. Posteriormente, apresentaremos alguns conceitos de Nelson e Winter (2005) que permitem compreender as rotinas operacionais como a memória dos conhecimentos produzidos dentro das firmas. Além disso, abordaremos a noção de paradigmas tecnológicos de Dosi (1988), que afirma existirem possibilidades e limitações às firmas, e tais possibilidades e limitações são determinadas pelos setores aos quais pertencem e os paradigmas vigentes. Schumpeter entrou no debate econômico de sua época (início e meados do século XX) para fornecer uma síntese entre as duas abordagens então dominantes a respeito do valor. Após os fisiocratas, que viam na terra e nos elementos da natureza a fonte dos valores dos bens, os clássicos (desde Adam Smith, passando por David Ricardo até chegar a Karl Marx) defenderam que era o processo de trabalho que criava valor. A abordagem neoclássica nasceu da defesa de que o valor se cristaliza nos preços, que por sua vez são identificados precisamente nas curvas de oferta e demanda, que se auto-equilibram. A determinação do valor sai do processo produtivo (nos clássicos) e vai para o mercado (nos neoclássicos). Schumpeter, sem desconsiderar o equilíbrio neoclássico (que chamou de fluxo circular), voltou seu olhar para dentro da indústria e viu que é a inovação que pode criar valor e deslocar o fluxo circular a um patamar superior, por meio da socialização do progresso técnico. Assim, o autor reteve dos neoclássicos um pressuposto de equilíbrio (ainda que transitório), mas retomou dos clássicos a idéia de valorização no interior da empresa, no processo produtivo. Segundo o autor, a valorização acontece em função da concorrência, não a concorrência dos preços, mas a concorrência de novas mercadorias, novas técnicas, novas fontes de suprimento, novo tipo de organização (a unidade de controle na maior escala possível, por exemplo) – a concorrência que determina uma superioridade decisiva no custo ou na qualidade e que fere não a margem de lucros e a 4 produção de firmas existentes, mas seus alicerces e a própria existência. (SCHUMPETER, 1942, p. 20) É por meio desses processos de concorrências de técnicas e mercadorias e diferenciações de suprimentos e formas de organização que as empresas se diferenciam e criam valor. Naturalmente, a constante transformação das empresas resulta e é resultado de uma constante transformação no sistema como um todo, que evolui. Ao olhar para a economia com uma lente histórica, Schumpeter captou o sistema capitalista em suas transformações, e não em momentos estáticos. Nelson e Winter (2005, p. 149), por meio da teoria evolucionária, buscam compreender como esses processos de evolução do sistema ocorrem dentro das firmas. Segundo os autores, “isso justifica, em particular, a atenção que damos à natureza e às fontes de continuidade nos padrões comportamentais de uma organização individual”. Para compreender, então, os padrões comportamentais das firmas, os autores propõem o conceito de rotina, que pode referir-se a um padrão repetitivo de atividade, a uma habilidade individual, ou à eficácia de um desempenho organizacional ou individual. Uma das formas de se analisar a rotina de uma organização é como memória, ou seja, a rotinização de atividades é uma forma de estocar o conhecimento específico, pois “há uma verdade substancial na proposição de que o conhecimento possuído por uma organização é redutível ao conhecimento de seus membros individuais.” (NELSON; WINTER, 2005, p. 161). Os autores reconhecem a obviedade de que o conhecimento de uma organização é o conhecimento de seus membros, pois ‘saber é algo que só os seres humanos podem fazer’. Contudo, fazem uma ressalva. Ver a memória da organização como redutível às memórias dos membros individuais é negligenciar, ou subvalorizar, a ligação daquelas memórias individuais pelas experiências compartilhadas no passado, experiências que estabeleceram o sistema de comunicação extremamente detalhado e específico que é subjacente à execução das rotinas. (p. 162) Compreender que o conhecimento está diretamente relacionado às rotinas e experiências do passado abre a possibilidade de questionar a noção comum de que há oposição entre rotina e inovação. “As rotinas confiáveis de abrangência bem compreendida fornecem os melhores componentes para novas combinações” (p. 199). Ou seja, as rotinas contêm em si mesmas o conhecimento acumulado da organização ao longo de sua história, conhecimento que, evidentemente foi produzido por seus membros, em contextos e momentos distintos. Ainda que os contextos e momentos mudem, de alguma forma o conhecimento permanece. Propomos incluir em nosso conceito de rotina todas as padronizações de atividades organizacionais que a observação dos procedimentos heurísticos produz, incluindo a padronização das formas particulares de tentativas de inovar. Á medida que tal padronização persiste ao longo do tempo e têm implicações na lucratividade e no crescimento, ela faz parte do mecanismo genético subjacente ao processo evolucionário. (2005, p. 202) Por mais contraditório que pareça, a teoria evolucionária assume que há uma padronização de formas particulares de tentativas de inovar. A trajetória de tentativas de inovar e as rotinas e conhecimentos que se criam no processo compõe o gene da organização, e o grande desafio desta perspectiva, segundo os autores, é “compreender como a continuidade do comportamento rotineiro atua para canalizar a mudança na organização” (p. 204). Como primeira aproximação, portanto, pode-se esperar que as firmas se comportem no futuro de acordo com as rotinas que empregaram no passado. 5 Isso não implica uma identidade literal de comportamento ao longo do tempo, uma vez que as rotinas podem ser acionadas de formas complexas pelos sinais do ambiente. Mas implica que é bastante inadequado conceber o comportamento da firma em termos de uma escolha deliberada a partir de um amplo cardápio de alternativas que algum observador externo considera serem oportunidades ‘disponíveis’ para a organização. O cardápio não é amplo, mas estreito e idiossincrático; ele é construído sobre as rotinas da firma, e a maior parcela das ‘escolhas’ também é executada automaticamente por aquelas rotinas. (p. 203) É evidente, como os autores demonstram, que o comportamento das firmas não é função exclusivamente de suas rotinas. Se o sistema evolui, o ambiente muda. Se o ambiente muda, as organizações mudam em função tanto do seu ambiente quanto de suas rotinas. Para compreender como se dão as dinâmicas de mudança ambiental, especialmente no que se refere a conhecimento e tecnologia, adotaremos a perspectiva de paradigmas tecnológicos. Para Dosi (1988), um paradigma tecnológico define contextualmente as necessidades que se destinam a serem cumpridas, assim como os princípios científicos utilizados para as tarefas, bem como a tecnologia de material a ser utilizada. Em outras palavras, um paradigma tecnológico pode ser definido como um padrão para solução de problemas técnicoeconômicos baseado em princípios altamente selecionados e derivados das ciências naturais. Colocando de outra forma, os paradigmas tecnológicos definem as oportunidades tecnológicas para inovações, e mais alguns procedimentos básicos sobre como explorá-los. Ainda segundo Dosi (1988), as atividades inovadoras são altamente seletivas e advindas de conhecimentos cumulativos, o que evidencia que este autor compartilha dos pressupostos da teoria evolucionária. O que a empresa pode esperar para fazer tecnologicamente no futuro é fortemente condicionado por aquilo que ela tem sido capaz de fazer no passado. Uma vez que a natureza cumulativa de determinada empresa de tecnologia é reconhecida, o seu desenvolvimento ao longo do tempo deixa de ser aleatório, e fica limitado às zonas intimamente relacionadas às atividades tecnológicas existentes. Assim, os gargalos tecnológicos, as oportunidades, as experiências e habilidades incorporadas em pessoas e organizações, bem como a capacidade de uma atividade econômica ‘transbordante’ a outra, são ingredientes fundamentais ao processo de inovação. A aprendizagem inovadora, então, é local e específica, no sentido de que é um paradigma vinculado e ocorrido ao longo de trajetórias particulares. Essas trajetórias são chamadas pelo autor de ‘trajetórias tecnológicas’: trocas econômicas e tecnológicas determinadas pelo paradigma (DOSI, 1988). A trajetória mostra a canalização de esforços em um determinado sentido, ou seja, é a atividade do progresso tecnológico ao longo do paradigma. A teoria dos custos de transação A teoria dos custos de transação teve inicio em um trabalho seminal de Ronald Coase (1937) e tem em Williamson (1991; 1996) suas principais formulações. Por este motivo, iniciaremos a revisão com a questão fundamental levantada por Coase. Posteriormente, trabalharemos os conceitos de Williamson relacionados à ampliação da noção de custo de transação e às estruturas de governança, conceitos que permitem compreender as relações entre as firmas e o mercado, bem como as diferentes configurações organizacionais em função da especificidade dos ativos envolvidos. Em 1937, Coase levantou a seguinte questão: porque não é toda a produção continuada por uma grande firma? O autor então propôs algumas respostas que auxiliam no entendimento dessa indagação. Primeiro, assim que uma firma fica maior, pode haver diminuição de retorno para a função do empreendedor, isto é, os custos de organizar transações adicionais dentro da firma podem aumentar. Naturalmente, um ponto deve ser alcançado onde os custos de 6 organizar uma transação extra dentro da firma são iguais ou menores aos custos envolvidos em realizar a transação no mercado aberto ou aos custos de outro empreendedor. Segundo, pode ser que assim que as transações organizadas aumentam, o empreendedor falha em colocar os fatores de produção nos usos onde seu valor e maior, isto é, falha em fazer o melhor uso dos fatores de produção. Novamente o ponto a ser alcançado é aquele onde a perda através do desperdício de recursos é igual ou menor (1) aos custos de mercado de uma transação ou (2) à perda de outros empreendedores. No primeiro caso o desperdício se equivale ao custo de transacionar; no segundo, se equipara às perdas médias das firmas. Finalmente, o preço do fornecimento de um ou mais dos fatores de produção pode aumentar, porque as vantagens de uma firma pequena são maiores do que aquelas da firma grande. Lógico, o ponto real onde a expansão de firma cessa deveria ser determinado por uma combinação dos fatores referidos acima. A firma, então, aumenta e diminui de acordo com os fatores referidos acima: custos de transação no mercado, perdas por ineficiência das outras firmas e os preços de fornecimento. Uma firma tende à expansão até que os custos de organizar uma transação extra dentro dela tornam-se iguais aos custos de realizar a mesma transação no mercado, ou ao custo de organização de outra firma. Assim, as firmas, ao perceberem que os custos de internalizar mais uma transação são maiores do que transacionar externamente, buscam soluções externas. A teoria de Coase (1937), desta forma, explica por que as firmas realizam transações externas e por que não existe uma grande firma. Segundo Zawislak (2004), a noção de custo de transação seria ampliada, na segunda metade do século XX, a partir dos trabalhos de Oliver Williamson. Para este, o custo de transação seria a conseqüência de um emaranhado de eventos institucionais, tais como posturas competitivas dos concorrentes, perfil dos clientes, ritmo de desenvolvimento científico e tecnológico, regras e legislação vigentes, cultura etc., aos quais os ativos das empresas seriam mais ou menos adaptáveis. Quanto menos adaptados, maior seria o custo de transação. O segredo da administração de uma empresa estava, então, na comparação ex-ante de seus ativos tangíveis (tecnologias) e intangíveis (conhecimentos) com as mais diversas informações oriundas do ambiente institucional; a partir disso, era possível tomar uma decisão gerencial. Essencialmente, duas esferas de decisão passavam a ser possíveis: uma interna, a partir do desenvolvimento de novas tecnologias para contornar a falta de adaptação dos ativos da firma ao ambiente institucional em vigor; e outra externa, a partir do estabelecimento de estruturas de governança (contratos) alternativas à hierarquia deficiente da firma (ZAWISLAK, 2004, p. 182). A questão que Williamson se propôs estudar é como essas instituições (mercados, firmas e contratos) lidam com os problemas vinculados à transação (Williamson, 1985; 1991), uma vez que, conforme demonstrou Coase (1937), a utilização do mecanismo de mercado implica custos. Assim, Williamson (1991) propõe que a firma vista como uma estrutura de governança das transações pode definir se tratará determinado contrato a partir de uma pura relação de mercado, se preferirá uma forma mista contratual ou se definirá a necessidade de integração vertical, a partir dos princípios de minimização dos custos de produção (cobertos pela economia neoclássica), somados aos custos de transação. Podemos então identificar três estruturas de governança para coordenação entre as firmas: mercado, hierarquias e estruturas híbridas (WILLIAMSON, 1991). Na forma de mercado, a estrutura produtiva dos ativos específicos não está presente e não há nenhuma relação de dependência entre os agentes, sendo que cada firma pode estabelecer transações com novos parceiros sem perdas econômicas. A transação é encerrada em um ponto no tempo, não havendo expectativa de acontecer recorrência no futuro. Na forma hierarquia, a estrutura é mais eficiente quando os ativos são altamente específicos. Nesse caso o mercado passa a não ser mais uma solução eficiente, sendo 7 necessário maior controle por meio de um mecanismo de coordenação mais cooperativo, proporcionado tanto pela integração vertical quanto pelo desenho de contratos com salvaguardas específicas. Estas salvaguardas poderão atenuar os comportamentos oportunistas dados os mecanismos de controle e incentivos. Nessa forma, ocorre incorporação das relações para dentro dos domínios da firma. As estruturas híbridas são as formas intermediárias entre os mercados e as hierarquias, combinando elementos desses dois extremos. Nessa estrutura, a integração vertical pura não é eficiente, tampouco a estrutura de mercado pode governar as transações. Esta é a forma mais comum de organização das empresas modernas. Os contratos, nesse caso, incluem formas mais flexíveis e informais e possuem mais elementos adaptativos coordenados para contornar distúrbios não antecipados do que os mercados. A análise proposta por Williamson (1991) tem como variável principal a especificidade dos ativos (K). A freqüência, a incerteza e as características do ambiente institucional são parâmetros de deslocamento das funções, representados por q. As funções que representam as formas organizacionais são: mercado, M(K, q); híbrida, X(K, q), e hierárquica H(K, q). A especificidade dos ativos é a característica que determina a mudança da coordenação via mercado para formas mais complexas de estruturas de governança. Na Figura 1 é apresentada a relação entre custos de cada estrutura de governança e a especificidade dos ativos; na situação K1, os agentes são indiferentes entre as formas híbridas e de mercado. Em K2, os agentes são indiferentes entre as formas híbrida e hierárquica. A curva formada pela junção entre os trechos das curvas de custo de mercado, híbrida e hierárquica, representa a escolha ótima da forma organizacional para cada especificidade de ativos. Figura 1 – Custos de governança como função do ativo específico Fonte: Williamson (1991, p. 284) Podemos, a partir da revisão teórica realizada nas páginas acima, sintetizar os conceitos que serão trabalhados na análise do caso na seqüência, como no Quadro 1. 8 Teoria evolucionária Inovação Schumpeter (1942) Processo produtivo que cria valor, por meio da socialização do progresso técnico e da concorrência de novas mercadorias, novas técnicas, novas fontes de suprimento e novos tipo de organização. Rotinas Nelson e Winter (2005) Formas de estocar e acumular conhecimentos específicos, a partir da ligação com memórias individuais pelas experiências compartilhadas no passado. As rotinas contêm em si mesmas o conhecimento acumulado da organização ao longo de sua história. Gene Nelson e Winter (2005) Atributo da organização estabelecido pelas formas particulares históricas de tentativas de inovar, bem como suas rotinas e conhecimentos. Paradigma tecnológico Dosi (1988) É um padrão para solução de problemas técnico-econômicos baseado em princípios altamente selecionados e derivados das ciências naturais. Definem as oportunidades tecnológicas para inovações, e os procedimentos básicos sobre como explorá-los. Teoria dos custos de transação Trajetória tecnológica Dosi (1988) É a atividade do progresso tecnológico ao longo do paradigma. Custos de transação (Williamson Apud Zawislak, 2004) É a conseqüência de um emaranhado de eventos institucionais, como, por exemplo, posturas competitivas dos concorrentes, perfil dos clientes, ritmo de desenvolvimento científico e tecnológico, regras e legislação vigentes e cultura, aos quais os ativos das empresas seriam mais ou menos adaptáveis. Quanto menos adaptadas as firmas, maior é o custo de transação. Estrutura de mercado Williamson (1996) A estrutura produtiva dos ativos específicos não está presente e não há nenhuma relação de dependência entre os agentes, sendo que cada firma pode estabelecer transações com novos parceiros sem perdas econômicas. Estrutura hierárquica Williamson (1996) A estrutura é mais eficiente quando os ativos são altamente específicos. Nesse caso o mercado passa a não ser mais uma solução eficiente, sendo necessário maior controle por meio de um mecanismo de coordenação mais cooperativo, proporcionado tanto pela integração vertical quanto pelo desenho de contratos com salvaguardas específicas. Estrutura híbrida Williamson (1996) É a forma mais comum de organização das empresas modernas. Os contratos, nesse caso, incluem formas mais flexíveis e informais e possuem mais elementos adaptativos coordenados para contornar distúrbios não antecipados do que os mercados. Quadro 1 – Síntese dos conceitos. Fonte: elaborado pelos autores. A partir dos conceitos revisados e listados no quadro acima, o objetivo deste trabalho é evidenciar como a Cordoaria São Leopoldo se adapta, supera e define paradigmas tecnológicos em um setor de baixa tecnologia. 9 Método Esta pesquisa é um estudo de caso caracterizado por três atributos: é um caso único, ilustrativo e intrínseco. Seguindo a metodologia proposta por Siggelkow (2007), o caso único proporciona a identificação, análise e comparação com o levantamento teórico realizado, pois é um exemplo muito poderoso para tais atividades. Além disso, segundo Siggelkow (2007), o caso ilustrativo permite realizar uma contribuição conceitual, através da utilização dele como uma ilustração. Um trabalho com um caso como ilustração deve apresentar o caso após a teoria e com isso realizar análises e comparações com a mesma. Finalmente, o estudo foi realizado como um estudo de caso intrínseco, quando se procura melhor entendimento de um caso particular. “O estudo não é realizado primariamente porque o caso representa outros casos ou porque aborda um problema particular, ao contrário, porque o caso em si é de interesse, em todas as suas particularidades.” (STAKE, 2005, p. 445). O caso abordado é a história da empresa Cordoaria São Leopoldo. Os dados foram obtidos de fontes primárias e secundárias. Foram realizadas duas visitas técnicas, duas entrevistas em profundidade – uma com o Diretor financeiro e outra com o Gerente de pesquisa e desenvolvimento. Além disto, foi disponibilizado aos pesquisadores um documento interno da empresa (Manual de cursos). Os dados secundários analisados consistem de artigos científicos publicados por membros da empresa e relacionados ao tema de estudo, bem como outros trabalhos acadêmicos desenvolvidos na mesma temática. A partir desses dados, foi construído um histórico da empresa com foco nos temas desenvolvimento e inovação tecnológicos. Posteriormente, o histórico foi analisado à luz do referencial construído no item anterior (teoria evolucionária e teoria dos custos de transação). Esta análise compõe a sessão seguinte. Análise dos dados A Cordoaria São Leopoldo foi fundada em 1929, na cidade de São Leopoldo, RS, Brasil. Inicialmente, a empresa fabricava somente cordas de fibra natural, como cânhamo e sisal para a indústria calçadista, atendendo à demanda presente no Vale dos Sinos e também produzindo cabos metálicos torcidos para companhias elétricas como a Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE). Segundo o entrevistado, “quando foi fundada em 29, a CSL fabricava cordinhas, simples cordinhas de fibra natural, fibra vegetal, cânhamo, linho, sisal, algodão. Fibras naturais foram muito utilizadas ainda até a década de 60”. A tecnologia utilizada para a fabricação das cordas era a mesma conhecida há mais de 1000 anos – corda torcida. Só no final da década de 60, com a introdução das fibras sintéticas (como poliamida, polietileno e polipropileno) no setor, o padrão de produção das cordas começou a ser alterado. Em 1968, a CSL através da aquisição de uma máquina trançadeira alemã passou a produzir cabos com uma nova forma construtiva: o cabo trançado de 8 pernasiii. A empresa então passou a fornecer também para a indústria naval. A introdução de fibras sintéticas no mercado de cabos e cordas representou o deslocamento do paradigma tecnológico que balizava a produção do setor, como explicado por Dosi (1988). Podemos considerar que a produção de cabos 8 pernas – possibilitada pela socialização do progresso técnico manifestada na compra da máquina alemã – foi a primeira inovação da CSL, o que permitiu a firma entrar no mercado naval. Para Schumpeter (1942), o processo de inovação envolve a concorrência de novas mercadorias, novas técnicas e novas 10 fontes de suprimento. Na fala do entrevistado verificamos esse processo inovador da Cordoaria. No final da década de 60 a cordoaria resolveu inovar, tendo em vista que começou a aparecer no mercado fibras sintéticas (poliéster, polipropileno,...). Dali em diante, o mercado de corda natural ficou muito restrito, ou seja, a fibra sintética chegou para promover essa revolução, e com ela, veio também a revolução industrial, ou seja, já que a gente tem uma fibra mais nova, melhor, vamos também desenvolver tecnologias mais novas para fazer cabos. A tecnologia utilizada para a fabricação da corda não foi desenvolvida internamente pela CSL, mas sim adquirida junto à empresa alemã Herzog. A CSL decidiu comprar a nova máquina e não desenvolvê-la internamente. De acordo com a teoria dos custos de transação, quando uma firma identifica ser mais barato adquirir uma tecnologia no mercado do que criála, ela decide por comprar. Além disso, no momento em que a Herzog concebeu uma nova máquina para atender um novo mercado que estava se criando, deslocou o paradigma tecnológico relativo à produção de cabos. Aquele momento, então, envolveu dois deslocamentos de paradigmas tecnológicos que se relacionam: a introdução no mercado de fibras sintéticas e da máquina trançadeira de 8 pernas. Nos anos 70, mantendo o seu foco no setor naval, a CSL projetou uma máquina para a fabricação de cabos de 12 pernasiv em 1979, tornando-se pioneira na América Latina no desenvolvimento desse produto. A concepção deste cabo não foi um projeto original da Cordoaria, mas novamente um projeto da alemã Herzog. Contudo, naquele momento, a CSL adotou uma postura diferenciada, optando por aprender como se dava a fabricação da máquina para construí-la internamente. Para Dosi (1988) a inovação diz respeito à descoberta, experimentação, desenvolvimento, imitação e adoção de novos produtos, novos processos de produção e nova organização. Percebemos naquele momento a criação de um ativo específico através construção de uma máquina com novas tecnologias para o desenvolvimento de um novo produto. Isso ocorreu através de conhecimentos internos e externos e através de ‘imitação’ de tecnologia. O papel da CSL foi perceber a sinalização de novas tecnologias pela Herzog. Quem vive no meio, sabe o que existe de tecnologia. O papel da Herzog é o papel de vender máquina. Eu diria para ti que muito provavelmente o próprio fabricante da máquina está sinalizando para o mundo o que ele está fazendo de novo. A Herzog estava preocupada com a inovação, em oferecer melhor solução e a cordoaria enxergou isso. Na década de 1980, a CSL apresentou ao mercado naval um novo produto: o cabo dupla-trançav. O conhecimento que a empresa detinha por estar no setor naval há mais de vinte anos permitiu que, dessa vez, a Cordoaria não precisasse recorrer a nenhuma outra fonte externa de tecnologia, desenvolvendo um produto resultante de uma combinação de matérias primas que até então não existia. O cabo dupla-trança é diferenciado por ter uma capa de poliéster envolvendo um cabo interno que é feito de náilon. Para chegar a estas características foram realizados diversos trabalhos de pesquisa e desenvolvimento e testadas várias matérias primas diferentes. O entrevistado refere-se à criação do cabo dupla-trança como um momento de inovação importante para a cordoaria, pois “esse produto é uma inovação por fazer uma combinação que não existia, analisando as características de cada matéria disponível no mercado”. O desenvolvimento deste cabo somente foi possível devido àquilo que Nelson e Winter (2005) chamam de rotinas, uma vez que resultou de um conhecimento acumulado ao longo da história e operacionalizado através das atividades de firma. Entre as décadas de 60 e 80, então, percebe-se momentos de inovação tecnológica através de transformações no produto, no sistema de produção, e da própria organização, uma vez que a empresa teve que focar esforços na qualificação de pessoal, mudanças na estrutura, 11 etc. “Esses cabos foram o que teve de melhor em termos de inovação durante a década de 70 e parte de 80. Eles estão ali até hoje sendo líder de segmento no mercado.” Com o passar dos anos o cenário nacional de exploração de petróleo sofreu uma grande mudança. Na década de 90, prevendo o esgotamento das bacias de petróleo em águas rasas, a Petrobrás passou a alocar grande parte dos seus investimentos na pesquisa e desenvolvimento para extração em águas profundas. Junto a esta nova concepção de exploração de petróleo estava a necessidade de adaptação e desenvolvimento de equipamentos, incluindo os cabos navais. Em 1993, um engenheiro da Petrobrás defendeu uma tese de doutorado afirmando ser possível prospectar petróleo em águas profundas e muito profundas utilizando cabos de fibra sintética para ancoragem. A descoberta do Campo de Roncador em 1996 trouxe uma nova perspectiva, porém uma grande barreira atrapalhava a Petrobrás: a falta de tecnologia nacional. Já que naquela época as únicas tecnologias existentes para tal eram advindas do exterior, a Petrobrás decidiu estabelecer parcerias nacionais a fim de produzir materiais para as suas plataformas de extração de petróleo. O entrevistado relata este momento na seguinte fala: “Este engenheiro entrou em contato com a CSL e propôs: “vocês querem participar conosco desse desenvolvimento? A CSL concordou e iniciou o desenvolvimento do Ultraseven”. Esse cabo é formado por 7 almas (sub-cabos), sendo que cada alma é um cabo de 12 pernas. As 7 almas são envoltas pro uma capa trançada que as une em um formato circular e as protege principalmente da abrasão e dos raios ultravioleta. A CSL responsabilizou-se pelo desenvolvimento de um tipo de cabo diferenciado, que fosse mais leve e durável, pois com a tecnologia disponível no momento, seria inviável chegar às águas profundas para a ancoragem das plataformas. Foi naquele contexto que, em 1996, a CSL deu seu maior passo em termos de tecnologia e faturamento, com a criação de um produto que viria a ficar conhecido no mundo todo: o cabo CSL Ultraseven (ABU-JAMRA, 2007). A parceria com a Petrobrás não foi somente firmada porque a CSL era a única empresa no mercado que possuía o cabo de 12 pernas, mas pelo fato da empresa possuir rotinas de inovação em sua história e, portanto, capacidade para acompanhar a Petrobrás em sua trajetória tecnológica, que deslocaria de vez o paradigma do setor de petróleo. Segundo o entrevistado: “a diferença é que a gente usava ‘alma de cabo’ de 12 pernas, por que era mais resistente. A gente consegue fazer um cabo mais fino com a mesma resistência. O nosso diferencial foi fazer um cabo que atendesse a resistência mínima e com menos fios”. A CSL, caminhando com a Petrobrás no desenvolvimento desse novo produto, beneficiou-se do significativo desenvolvimento do setor de energia, especialmente petróleo e gás. Fica evidente, naquele momento, o estoque e o acúmulo de conhecimentos específicos expressos na capacidade da empresa em produzir cabos que acompanhassem e suprissem as necessidades de uma empresa de um setor de tecnologia mais avançada, como é a Petrobrás. Conforme ensina a teoria evolucionária, o comportamento das firmas não é função exclusiva de suas rotinas. Quando o sistema evolui, o ambiente muda, e na mudança do ambiente as organizações mudam tanto em função deste ambiente, como em função de suas rotinas. A Cordoaria teve capacidade para acompanhar essas mudanças, que por sua vez acabaram refletindo nas suas rotinas. O acúmulo de conhecimentos da empresa ficou evidenciado e institucionalizado quando, no inicio do ano 2000, um de seus membros apresentou um projeto alteração da norma NBR 9790vi da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), proposta que foi aceito na primeira reunião. Posteriormente, a empresa participou de um comitê para alteração da norma ISO 2307vii da International Organization for Standardization (ISO). Essas duas normas estão relacionadas com as características ou propriedades físicas e mecânicas de cabos de fios sintéticos e naturais. 12 A partir de 2006, a Petrobrás começou a intensificar a exploração de petróleo em águas profundas, em virtude das freqüentes descobertas de jazidas de petróleo na camada présal, realizadas daquele momento em diante. A demanda pelos produtos acessórios à construção de plataformas petrolíferas, como cabos, aumentou significativamente. No mesmo momento, a Cordoaria São Leopoldo vendeu suas instalações para o grupo Lupatechviii, que ali permaneceu com o nome Lupatech CSL. Junto com a venda das instalações, foi vendida a tecnologia e a carteira de clientes do cabo Ultraseven. Já a Cordoaria São Leopoldo construiu uma nova unidade produtiva na mesma cidade, onde continua produzindo cordas e cabos navais e de usos diversos. A negociação entre as duas empresas (Lupatech CSL e Cordoaria São Leopoldo) foi realizada mediante um contrato de não concorrência, estabelecendo que a Lupatech CSL produziria e comercializaria exclusivamente o Ultraseven; enquanto que a Cordoaria continuaria produzindo os demais produtos de seu portfólio, dentre os quais os cabos de 8 e 12 pernas, além do dupla-trança. À luz da teoria dos custos de transação, podemos interpretar a aquisição da Cordoaria São Leopoldo pelo grupo Lupatech, naquele contexto, da seguinte forma: as perspectivas de demanda por parte da Petrobrás em virtude das explorações em águas ultra profundas tornaram o Ultraseven um ativo ainda mais específico. Assim, a tendência era a de um importante aumento nos custos de governança da empresa, custos estes que a Cordoaria não teria condições de suportar. Por parte do grupo Lupatech, podemos inferir que, analisando suas capacidades internas e seu poder aquisitivo, decidiu adquirir um produto para cuja fabricação não possuía conhecimento e tecnologia. A compra do produto envolveu a compra de tudo aquilo que nele se concretizava: pessoal, processos, conhecimento, marca etc. Ou seja, a aquisição da CSL pelo grupo Lupatech significou também a aquisição das rotinas da primeira, rotinas essas que foram incorporadas em aspectos tecnológicos e organizativos também, uma vez que a parceria com a Petrobrás está na história da empresa. Ou seja, ao adquirir seu principal ativo, a Lupatech incorporou o gene da Cordoaria e seu histórico de inovações. A seguinte fala do entrevistado ilustra esta argumentação: uma coisa é tu ter o dinheiro, recursos, outra coisa é tu ter capacitação, expertise, recursos humanos para fazer isso acontecer. Eu acho que comprar equipamentos é uma coisa, é uma arte fazer cabo, tem soluções, que não só soluções técnicas, depende da tua sensibilidade, da capacidade de analisar, não é como fazer uma válvula, não é commodity [...]. A Lupatech CSL apresenta uma estrutura de governança hierárquica, pois seu ativo é altamente específico, e a empresa não utiliza o mercado para desenvolver seu produto. Além disso, utiliza um controle através de contratos com salvaguardas específicas, como a de exclusividade, bem como controles por meio de mecanismos de coordenação mais cooperativo, onde existem funcionários desempenhando atividades nas duas empresas, tanto da Lupatech CSL quanto da Cordoaria São Leopoldo. A partir do histórico construído, elaboramos um quadro com a síntese dos momentos de inovação da CSL. Os momentos de inovação foram considerados a partir do conceito de inovação de Schumpeter (1942) conforme apresentado no Quadro 1. Data 1968 Momento de inovação Aquisição máquina trançadeira pernas. Análise da O deslocamento de paradigmas tecnológicos que balizavam a produção do setor – fibras sintéticas e máquinas – permitiu à CSL se de 8 atualizar em relação a eles, o que fez pela compra de uma nova máquina, para cuja fabricação não tinha conhecimentos. 13 Data 1979 Momento de inovação Desenvolvimento da máquina trançadeira de 12 pernas. Análise Diante de um novo paradigma tecnológico e de posse de conhecimentos internos rotinizados, e através de socialização do progresso técnico por meio de ‘imitação’, a CSL se tornou pioneira no fornecimento do mercado naval. Desenvolvimento O desenvolvimento de um novo produto resultou das rotinas de Anos do cabo dupla- inovação, ou seja, de um conhecimento acumulado ao longo da 1980 trança. história e operacionalizado através das atividades de firma. Novamente, o desenvolvimento de novo produto, desta vez em Desenvolvimento parceria com a Petrobrás, resultou de rotinas de inovação. A CSL, 1996 do cabo Ultraseven. empresa de um setor de baixa tecnologia, apresentou capacidade para acompanhar a Petrobrás, empresa que utiliza alta tecnologia. Aumento nos custos de governança da empresa. Estrutura de governança hierárquica (Ultraseven - ativo específico; Aquisição da exclusividade; cooperação). Aquisição da CSL pelo grupo Lupatech 2007 empresa pelo grupo - aquisição das rotinas da CSL, rotinas essas que foram incorporadas Lupatech. em aspectos tecnológicos e organizativos. A Lupatech incorporou o gene da Cordoaria e seu histórico de inovações. Quadro 2 – Síntese dos momentos de inovação da CSL. Fonte: elaborada pelos autores. Considerações finais O objetivo do trabalho de evidenciar como a Cordoaria São Leopoldo se adapta, supera e define paradigmas tecnológicos em um setor de baixa tecnologia foi atingido a partir das análises dos momentos históricos e utilizando como referência as teorias evolucionária e dos custos de transação. Apesar de já existirem vários estudos utilizando a CSL como objeto de análise com foco técnico ou nos produtos da empresa (PELLEGRINI; ARAUJO, 2001; ABU-JAMRA, 2007; HAACH; WIKLICKY, 2007; HAACH, 2009), identificamos uma lacuna na literatura para explicar a diferenciação da CSL no seu setor. Assim, teorias da firma, como a evolucionária e a dos custos de transação foram utilizadas para analisar a história da empresa e os atributos que capacitaram essa diferenciação. A partir da utilização de fibras sintéticas ao invés de naturais, percebemos um perfil inovador na firma ao responder a essa alteração no mercado, possibilitando a definição de um novo paradigma tecnológico através da mudança da: matéria-prima, produção e produto em si. Esse fato foi marcante, pois foi o inicio da acumulação de conhecimento que proporcionou a criação de rotinas e o gene da empresa (NELSON; WINTER, 2005). Os momentos históricos seguintes, como a criação dos novos produtos (cabo de 8 e 12 pernas, e o Ultraseven), novas máquinas e novos processos só foram possíveis através dessa acumulação e aplicação de novos conhecimentos. Isso ficou evidente também no momento em que funcionários da firma envolvidos no setor de P&D conseguiram alterar normas internacionais e nacionais como a ISO e a ANBT. Assim, o setor têxtil usualmente caracterizado como de baixa tecnologia (OCDE, 2005), tem um caso, a CSL, de uma trajetória tecnológica diferenciada. No momento em que a firma define oportunidades tecnológicas para inovações, e os procedimentos básicos para explorá-los, a Cordoaria altera o paradigma tecnológico, evidenciando essas características da utilização de tecnologias mais avançadas que as demais empresas do setor. Sendo assim, o que determinou a capacidade tecnológica da firma, não foi somente a parceria com a 14 Petrobrás, mas sim sua trajetória tecnológica, evidenciada nos diversos momentos de inovação apresentados no trabalho. Além disso, na medida em que as prospecções de petróleo em águas profundas crescem, utilizando novas tecnologias para a sua exploração, existe a necessidade de altos investimentos em cabos mais específicos para desempenhar tal atividade. Foi neste momento que a CSL vendeu seu produto específico, Ultraseven, para ancoragem em águas profundas desenvolvidos internamente na firma. Junto com esse cabo, a o grupo Lupatech adquiriu o gene e as rotinas de inovação da CSL acumulados ao longo de sua história. Atualmente, a Lupathec CSL já está envolvida na superação de outro paradigma: o desenvolvimento de um novo produto, através da utilização de uma nova matéria-prima, o Vectram, uma fibra sintética que possui uma estrutura e desempenho melhor que o plástico tradicional. Assim, a Lupatech CSL já nasceu com o gene de inovação da CSL e, portanto, continua sua trajetória de definição e superação de paradigmas tecnológicos. Referencias bibliográficas ABU-JAMRA, Alexandre. CSL Offshore S/A: análise econômico-financeira de um projeto de investimento. Monografia apresentada como requisito à obtenção do grau de Bacharel em Administração de empresas da Faculdade de Administração, Contabilidade e Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, nov. 2007. BRASIL. 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(PETROBRÁS, 2010) ii A expressão offshore significa, na linguagem específica do setor analisado neste artigo, ‘localizado e operado no mar’, enquanto que onshore é ‘localizado e operado em terra’ (PETROBRÁS, 2010). iii A expressão “perna” significa em um cabo torcido a quantidade de cordas utilizadas para fazer a trança. O cabo naval trançado de 8 pernas é extremamente flexível e de fácil manuseio; tem ótima resistência a abrasão (ato ou efeito de raspar ou desgastar por atrito); ótima vida útil com excelente resistência à fadiga; mantém sua resiliência (retorna à forma original dissipando a energia acumulada), mesmo após longos períodos de trabalho. Porém, em virtude de seu formato quadrado, o cabo 8 pernas sofre maior atrito quando em contato com quinas. iv O cabo trançado de 12 pernas é extremamente flexível e de fácil manuseio; maior contato com a superfície quando comparado com cabos comuns de 3 e 8 pernas; excelente resistência a abrasão; ótima vida útil; mantém sua resiliência quando seco ou molhado, mesmo após longos períodos de trabalho. Assim como o de 8 pernas, o cabo de 12 pernas também tem algumas limitações; em virtude de seu formato redondo, sofre menos atrito quando em contato com quinas, porém apresenta maior complexidade na confecção da emenda de mão; além disso, o alongamento e resistência à fadiga menor que o cabo de 8 pernas e a carga de ruptura é maior que o cabo de 8 pernas para um mesmo diâmetro e mesmo material, porém apresenta menor resistência a fadiga. v O cabo dupla-trança é formado por um cabo de náilon trançado interno revestido por uma capa de poliéster. Este produto tem várias vantagens, como: elevada resistência a abrasão; flexibilidade tanto no estado úmido quanto seco; excelente capacidade de absorção de choque; além de poderem ser fornecidos com comprimento ilimitado. vi NBR 9790 - http://www.abntcatalogo.com.br/norma.aspx?ID=2232 vii ISO 2307 - http://www.iso.org/iso/catalogue_detail.htm?csnumber=36586 viii O grupo Lupatech é líder nacional na produção e comercialização de válvulas industriais, principalmente para as indústrias de petróleo e gás, química, farmacêutica, de papel e celulose e construção civil. Além disso, fabrica autopeças utilizando processos de fundição de precisão e injeção de aço (BOVESPA, 2010). Recentemente, o grupo fechou dois contratos no valor de US$ 779 milhões com a Petrobrás (EXAME, 2010). Estes contratos são 16 de cinco anos, podendo ser prorrogados por outros cinco anos e envolvem o afretamento de duas plataformas semi-submersíveis para poços em lâmina de água de 1.100 e 2.500 metros, profundidades que podem ser atendidas pelo Ultraseven. A Lupatech deverá investir cerca de US$ 100 milhões na aquisição de equipamentos para a execução dos serviços (EXAME, 2010). 17