“Shraddhá” quaerens intellectum: A certeza interior como pressuposto para o conhecimento Rubens Turci [email protected] Laboratório de Estudos da Índia e Ásia do Sul (LEIAS) da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 1. Introdução Como se constrói a verdade no oriente e no ocidente? A Figura 1 procura ilustrar estes distintos olhares. No ocidente as modernas teorias sobre a questão da verdade desenvolveram-se a partir de duas formulações que praticamente definiram os períodos medieval e moderno da filosofia ocidental: (1) a expressão fides quaerens intelectum (a fé católica como pressuposto da razão e do conhecimento), que representa o paradigma medieval do conhecimento; e (2) a expressão cogito ergo sum (penso; logo existo), que decorre do método de duvidar, presente no Discurso do Método (Discours de la méthode pour bien conduire sa raison, et chercher la verité dans les sciences – 1637) de Descartes, e que representou um caminho “alternativo” em relação àquele fundado na fé católica para se chegar à verdade, conforme a formulação de Agostinho (354–430), Anselmo (??- 805) e Tomás de Aquino (1225 – 1274). No oriente, em especial no sub-continente asiático, desde o período da Bhagavad Gita (c. 400 a.C.), podese argumentar que a verdade é construída a partir de shraddhá (certeza interior, convicção, fervor, coragem, resiliência) – termo que expressa tanto um sentir como um saber, e que se traduz também como fé interior, mas que não se reduz a ela. Apresentar as dúvidas com honestidade representa na Gita o modo conforme o personagem Arjuna consegue recuperar a sua motivação interior e a confiança em si mesmo (shraddhá). 2. Objetivo Figura 1. Você diz que é um sapo e eu juro que é um cavalo! A rotação da figura revela que se trata do mesmo objeto. Este trabalho compara as duas formulações citadas acima e investiga como ambas se interligam neste mundo globalizado, pós-moderno, e caracterizado pelo resgate de antigas concepções e discussões metafísicas em torno das noções de sagrado, dos mitos e dos distintos saberes dos povos ancestrais e também da sua relação com o campo do real e da noção de verdade. 3. Discussão No período medieval a Igreja definia o que constituía ou não a matéria da filosofia e de todas as ciências. Para a Igreja, a relação entre a fé católica e a razão (fides et ratio) era aquela discutida na Ratio Studiorum – método pedagógico fundado em Agostinho, Anselmo e Tomás de Aquino e que define a fé católica como o pressuposto da razão: fides quaerens intellectum. Tomás de Aquino representa o aristotelismo transmitido aos filósofos judaico-cristãos por Averróis (1126-1198) e Maimônides (1135-1204). A formulação do mulçumano Averróis, defendendo a interpretação alegórica como forma de conciliar a existência de vários modelos de verdade, será decisiva no jmundo ocidental. A tese averroísta da dupla verdade – uma teológica ou da fé e outra filosófica ou da razão – apresenta-se como a tábua de salvação para a Igreja, que se via ameaçada pelo triunfo da razão positiva sobre a fé. Com a modernidade, inaugurada por Descartes, a dúvida, que antes era prova de heresia, entretanto, agora é elevada à condição de pré-requisito epistemológico. A dúvida metódica de Descartes torna-se um recurso metodológico para se chegar à verdade. Nas Meditações Metafísicas (Meditationes de prima philosophia – 1641) é o exercício da dúvida quase-herética que conduz Descartes à formulação de uma verdade irrefutável – a sua primeira certeza sensível – “penso, logo, existo”. O cogito cartesiano expressa o que se pode designar como a fé-em-si-mesmo, ou seja, a convicção interior. Assim entendida, a fé cartesiana expressa aquela certeza interior que teriam experimentado Copérnico (1473-1543) e Galileu (1564-1642) , quando estes ousaram duvidar radicalmente do dogma vigente e afirmar que a Terra girava. Este sentido de convicção e certeza interior experimentado como fé-em-si-mesmo por Descartes é muito próximo do sentido denotado pelo termo sânscrito shraddhá no contexto da Gita (Figura 2), conforme provo em minha tese de doutorado, recentemente publicada [1]. Além disto, o termo sânscrito shraddhá funciona também como uma espécie de parente do termo latino fides. Distingue-se, entretanto, por não se caracterizar como algo imposto de fora. Enquanto “fé” é sempre fé em algo exterior a si mesmo (algo em que se acredita mesmo na ausência de motivos racionais para tal), shraddhá, de outro lado, não se define por uma relação com um objeto exterior ao sujeito. Desse modo, enquanto a expressão “tenho fé nas verdades da Igreja” exemplifica um dos usos do termo fides (fé), a proposição “experimentar de um estado de coragem, entusiasmo e convicção em si mesmo” exemplifica um dos usos em que se emprega o termo shraddhá, que prescinde da necessidade de referência a um objeto externo ao sujeito para fazer sentido. Esta particularidade do conceito expresso pelo termo shraddhá, capaz de representar as experiências de Descartes, Copérnico e Galileu como atos corajosos de fé no sentido mais próprio do termo, ou seja, enquanto convicção interior, permite argumentar, que o termo shraddhá, lança nova luz sobre a expressão fides quaerens intellectum, resgatando a essência do pensamento de São Tomás e sem deixar de atender, tanto aos critérios da ciência positiva, como também das modernas teorias sócio-ambientais, que buscam reconciliar as verdades da razão e da fé. Em suma, o movimento, necessariamente, deve ser da razão, mas a direção, para ser boa, deve concordar com o sagrado coração – é aí nessa síntese perfeita, que parece esconder-se o próprio ato de descoberta, que escapa à mera análise lógica, pois uma lógica da descoberta, se existir, tem que levar em conta o que faz ferver o coração (Figura 3). Figura 2. A Gita representa a reportagem em tempo real feita ao rei no palácio dos fatos que se passam no campo de batalha, instantes antes do início da batalha final do Mahabharata. Representa, portanto, uma pequena narrativa (700 versos), dentro da narrativa maior do épico (aproximadamente 100.000 versos), onde o protagonista Arjuna somente consegue sair do seu “estado de ilusão e confusão mental” quando desenvolve a shraddhá necessária para buscar na experiência prática as vias para a sua “iluminação”. Figura 3. “O coração tem razões que a própria razão desconhece” – Pascal. A subjetividade do coração e o método científico: Se a ciência fosse, assim, tão racional e “objetiva”, seria contínua ao invés de ser caracterizada por tantas quebras de paradigmas. A subjetividade, que se equaciona a partir de shraddhá, é parte essencial do ato de descoberta científica. 4. Conclusão Diferentemente da expressão medieval, fides quaerens intellectum, provada falsa no domínio das ciências naturais, a expressão, “shraddhá” quaerens intellectum, parece verdadeira em qualquer domínio. Representa, portanto, um referencial pós-moderno, para lidar com a crise sócio-ambiental, que, nem a ciência materialista, nem a moral religiosa, foram ainda capazes de equacionar adequadamente. Representa também uma explicação para a utilização nas pesquisas desenvolvidas pelos grandes gênios da ciência, tais como Kepler (1571-1630), Newton (1642-1727) e Einstein (1879-1955), de esquemas “não-racionais” e sentimentos reconhecidamente religiosos. Agradecimentos [1] TURCI, R. Shraddhà in the Bhagavad-Gìtà: a magnetic needle pointing toward Brahmànirvàna. Saarbrücken: VDM, Verlag D. Müller, 2008.