Pastoril: Uma Educação Celebrada no Corpo e no Riso
PASTORIL
uma educação
celebrada
no corpo
e no riso
Marcilio de Souza Vieira
©2012 Marcilio de Souza Vieira
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V673 Vieira, Marcilio de Souza
Pastoril: Uma Educação Celebrada no Corpo e no Riso/ Marcilio de Souza
Vieira. Jundiaí, Paco Editorial: 2012.
184 p. Inclui bibliografia. Inclui imagens.
ISBN: 978-85-8148-194-4
1. Pastoril 2. Educação 3. Corpo 4. Riso . I. Vieira, Marcilio de Souza
CDD: 370
Índices para catálogo sistemático:
Educação – Pedagogia
Cultura Popular – Instituição Cultural
IMPRESSO NO BRASIL
PRINTED IN BRAZIL
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11 4521-6315 | 2449-0740
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370
306.4
SUMÁRIO
Boa-noite, meus senhores todos, boa-noite, Senhoras também...
Uma fenomenologia do pastoril................................................................9
INTRODUÇÃO..................................................................................11
CAPÍTULO 1
1. Uma abordagem do corpo sagrado e profano no medievo...................27
2. O corpo licencioso na lírica medieval..................................................29
3. Uma abordagem do corpo lírico na era moderna.................................47
CAPÍTULO 2
1. Pastoris da cidade dos Reis Magos: Pastoril da Saudade de Ponta Negra
e Pastoril dos Idosos de Bom Pastor........................................................69
2. Pastoril dos Américos da Cidade de Ceará-Mirim..............................90
3. Pastoril de Dona Joaquina de São Gonçalo do Amarante...................100
4. Pastoril de Cabeceiras de Tibau do Sul.............................................107
5. Pastoril da Cidade de Pedro Velho....................................................112
6. Pastoril de Nísia Floresta...................................................................118
7. Pastoril Flor do Lírio da praia de Pirangi..........................................125
8. Pastoril de Zé Miguel de São Paulo do Potengi................................128
9. A boa vizinhança dos Pastoris Potiguares..........................................131
CAPÍTULO 3
1. A cultura oral nos pastoris: Cançonetas - palavras ditas e consumadas
nas jornadas...........................................................................................143
2. Corpo e gestualidade nos pastoris potiguares.....................................159
Conclusão.............................................................................................171
Referências............................................................................................177
LISTA DE FIGURAS
Imagem 1 - Pastoril da Saudade..............................................................70
Imagem 2 - Pastoril da Saudade. ...........................................................72
Imagem 3 - Pastoril da Saudade. ............................................................73
Imagem 4 - Pastoril da Saudade..............................................................76
Imagem 5 - Pastoril da Saudade..............................................................80
Imagem 6 - Mestra do Pastoril de Bom Pastor........................................84
Imagem 7 - Contramestra do Pastoril de Bom Pastor. ........................85
Imagem 8 - Pastoril de Bom Pastor.........................................................86
Imagem 9 - Pastoril de Bom Pastor.........................................................88
Imagem 10 - Pastoril de Bom Pastor......................................................89
Imagem 11 - Pastoril dos Idosos.............................................................90
Imagem 12 - Pastoril dos Idosos de Ceará-Mirim..................................93
Imagem 13 - Pastoril dos Idosos.............................................................97
Imagem 14 - Pastoril dos Idosos. ...........................................................98
Imagem 15 - Pastoril dos Idosos de Ceará - Mirim..............................99
Imagem 16 - Pastoras do Pastoril D. Joaquina, São Gonçalo do Amarante, RN...................................................................................................100
Imagem 17 - Velho Xapuleta do Pastoril Dona Joaquina de São Gonçalo
do Amarante..........................................................................................104
Imagem 18 - Xapuleta e Pastoras de São Gonçalo do Amarante..........106
Imagem 19 - Pastoril de Cabeceiras, Tibau do Sul...............................108
Imagem 20 - Pastoril de Cabeceiras, Tibau do Sul...............................109
Imagem 21 - Mestra Lídia de Cabeceiras, Tibau do Sul.......................111
Imagem 22............................................................................................112
Imagem 23 - Pastoril Campo de Santana..............................................122
Imagem 24 - Pastoril de Pirangi, Parnamirim.......................................125
Imagem 25 - Pastoril de Zé Miguel......................................................129
Boa-noite, meus senhores todos, boa-noite,
senhoras também...
Uma fenomenologia do Pastoril
Corpo, riso e educação são temas que atravessam o livro escrito por
Marcilio de Souza Vieira e que eu considero como uma fenomenologia
do Pastoril. Acompanho a trajetória de Marcilio há algum tempo e é com
muito prazer que aceitei o convite para prefaciar o seu livro, fruto de sua
tese de doutorado produzida no Programa de Pós-Graduação em Educação
da UFRN e em sintonia com as produções do Grupo de Estudos Corpo e
Cultura de Movimento e do Laboratório VER.
O livro intitulado Uma educação celebrada no corpo e no riso apresenta
uma cartografia do Pastoril no Rio Grande do Norte. Nessa cartografia,
lemos a educação como aprendizagem da cultura, afinada com o riso e com
o corpo. Ao dançar, ao cantar, ao rir construímos a cultura como forma de
criar sentidos materiais e simbólicos para a existência individual e coletiva.
Amparado na fenomenologia de Merleau-Ponty, o autor faz dialogar
conceitos estéticos e narrativas dos brincantes dessa expressão da nossa cultura. Os personagens e os seres humanos que os incorporam, como Zé de
Bé e Geralda Calixto, convidam a celebrar a cultura, o riso e o que Marcilio
chama de um corpo lírico. O que é um corpo lírico? A leitura do livro nos
mostra o corpo lírico atado ao mundo dos afetos, das memórias, das lembranças, da gestualidade do corpo desses brincantes. Marcilio constrói uma
argumentação que apresenta outros horizontes para a fenomenologia, em
diálogo com a cultura. Para compreender o corpo lírico, o autor retoma de
forma breve certo percurso da racionalidade ocidental, sobretudo eurocêntrica, que conforma as nossas percepções de corpo, arte e conhecimento.
Mas nessa jornada há também espaço para a transgressão, como o espaço
do riso, por exemplo.
A frequentação do mundo vinda dos brincantes de pastoril, suas histórias, suas cançonetas, seus bailados constituem-se como o solo no qual o
autor deste livro traça os caminhos da pesquisa, via redução fenomenológica, a saber, a reflexão sobre as experiências vividas, crenças, juízos, valores
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Pastoril: Uma Educação Celebrada no Corpo e no Riso
e a criação de novos horizontes de sentidos como os sentidos, estéticos e
educativos apresentados ao longo do texto. Nesse contexto, a vida pessoal,
a expressão, o conhecimento, a história, a cultura avançam obliquamente,
jamais em linha reta. É preciso compreender o sentido da redução fenomenológica como profunda reflexão sobre o vivido, como forma de reaprender
a ver o mundo. Reaprender a ver o corpo, a educação, a cultura; eis algumas
das possibilidades de leitura deste livro que espero que possam atingir os
leitores de várias áreas de conhecimento, em especial, aqueles desejosos de
celebrar o corpo, a educação e o riso. Seguramente, irão encontrar, nessas
páginas, jornadas, bailados, cançonetas inspiradoras de formas de educar, de
criar cultura, de existir.
Dançando, cantando e sorrindo damos sentido à nossa existência individual e coletiva. Esse corpo lírico, poético e licencioso dos nossos Pastoris
constrói em torno de si um mundo que se abre para o sonho, esse momento
fugaz e poético que nos faz humanos.
Às quatro horas da manhã
Quando vem rompendo a aurora
Os anjos cantam lá no céu
As pastorinhas vão embora
Com saudade eu me retiro, pois não vim para ficar
As moças são deliciosas
Faceiras e generosas
Lindas como a rosa...
É com alegria que apresento este livro, seu autor e convido-os a essa
jornada pastoril!
Petrucia Nóbrega
Natal, outubro de 2012.
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INTRODUÇÃO
Este livro é fruto da tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Afirmamos, neste livro, uma educação celebrada no corpo e no riso,
tomando como referência para a demonstração desse argumento o Pastoril,
considerando a experiência dos brincantes desse folguedo e a construção de
uma cartografia. Educação fundada nos desdobramentos do ver e do ouvir,
compreendida na gestualidade licenciosa desse folguedo, sobretudo no personagem do Velho e nas cançonetas que fundamentam a educação como
fenômeno que se dá no corpo, pois não vemos e não ouvimos apenas com os
olhos e os ouvidos, visto que carregamos nessas ações nossa própria história,
que também é história coletiva. Esse posicionamento implica uma perspectiva de compreensão do folguedo não só para ser contemplado e admirado a
distância, mas também para ser experimentado com todo o corpo em todas
as suas dimensões estéticas, artísticas e festivas.
Trata-se de uma compreensão fenomenológica do Pastoril, um folguedo
popular com gestos e dramaticidade próprios, configurados numa estética
das danças medievais, mas que atravessa o tempo e o espaço com um estilo
visível nos códigos gestuais licenciosos e nas cançonetas, criando uma linguagem própria em dança que pode vir a ser celebrada no corpo através do riso e
tematizada numa educação como aprendizagem da cultura que exalta o riso
através do olhar e da escuta, dos movimentos do corpo e da gestualidade.
Consideramos o Pastoril como um folguedo popular, porque nele seus
participantes engajam sua vida pessoal, sua cultura e suas influências, revelando modos de ser e de compreender que são interiorizados pelos brincantes. A partir da experiência de seu contexto social múltiplo e de diferentes sentidos é que situamos esse folguedo no mundo fenomenológico
vivido para ser discutido e tematizado, compreendendo as relações entre
riso, olhar e ouvir presentes no folguedo e pertinentes para se pensar uma
educação celebrada no corpo através do riso.
O termo folguedo refere-se às festas da cultura popular, com suas
encenações, coreografias, musicalidades e personagens. Tal definição não
surge no sentido de engessar ideias que estão sempre em transformação,
mas somente no de apresentar o ponto de vista que norteia este livro.
Cascudo (1992) designa folguedo como todo fato folclórico, dramático, co11
Pastoril: Uma Educação Celebrada no Corpo e no Riso
letivo e com estruturação, priorizando ora o elemento dramático - a exemplo do nascimento de Cristo no Pastoril, na Lapinha e no Reisado, a luta
contra o infiel, encontrada em folguedos como a Chegança, Cavalhada e
Congadas, a tragédia do mar, muito comum na Marujada, Nau Catarineta
e Barca, e a morte e ressurreição, a exemplo dos folguedos Bumba meu boi,
Congos e Cabocolinhos -, ora o do brinquedo, como o Bumba meu boi, a
Chegança, o Pastoril, dentre outros com seus personagens cômicos.
A característica essencial do folguedo é o sentido de representação.
No folguedo, o indivíduo assume provisoriamente um ou vários papéis na
apresentação. Dramático, não só no sentido de ser uma representação teatral, mas também por apresentar um elemento especificamente espetacular,
constituído pelo cortejo, por sua organização, danças e cantorias. Coletivo,
por ser de aceitação integral e espontânea de uma determinada coletividade; e com estruturação, porque, através da reunião de seus participantes, dos
ensaios periódicos, adquire certa estratificação (Cascudo, 1992).
Pensamos que o folguedo Pastoril fomenta uma discussão na arte, na
educação física e na educação quando tematiza o corpo e o riso e possibilita
reflexões sobre os folguedos populares na contemporaneidade. Assim, fomentar a educação por meio do riso nos folguedos populares não se resume
a buscar sua execução em festas sazonais, tampouco a oferecer uma ideia
centralizada na espetacularização e no aprimoramento técnico ou numa
visão de dança apenas como passatempo, mas possibilitando uma aprendizagem que se dá na informalidade, no ver e no escutar, na festa. Nesse
sentido, a dança é uma forma de compreender e de construir a cultura, de
festejar e de celebrar os encontros e a própria existência.
Trazendo essa discussão para o campo acadêmico da educação, em que
os folguedos populares têm marcado sua presença ao longo dos anos, no
decorrer do estudo reafirmamos que o Pastoril desperta o riso, e este está
presente nesse fenômeno, na experiência do brincante desse folguedo. A
pesquisa discute o corpo e o riso como aprendizagem da cultura, buscando
realizar uma cartografia dos pastoris potiguares e discutir os elementos da
gestualidade licenciosa, pelo olhar, e das cançonetas, pelo ouvir.
Essas evidências, de certa forma, já fazem parte do mundo vivido desses
brincantes, proporcionando direcionamentos para uma educação inscrita
no corpo e celebrada pelo riso. A pesquisa pode ampliar essa percepção,
criando outros horizontes de significados e compreensão do fenômeno em
seus aspectos culturais, estéticos e educativos.
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Marcilio de Souza Vieira
Pensar o Pastoril no contexto dos folguedos populares1 e da educação é
pensá-lo numa manifestação da arte em que o corpo dançante é linguagem,
conta histórias expressas e comunicadas através da gestualidade, das canções, do riso. Para tanto, o elemento corpo torna-se imprescindível neste
livro. O corpo que abordamos neste estudo é festejado, celebrado pelo riso,
é revelado como configuração expressiva e simbólica; corpo brincante como
expressão da cultura humana.
Pesquisar esse corpo dançante como linguagem, para a partir de então, empreender outros códigos de seu uso, não ocorre isolando-o, mas
compreendendo-o como um corpo que constrói e é construído pelos
processos de socialização, educação, repressão, transgressão, enfim, pela
cultura. (Nóbrega; Viana, 2005, p. 28)
Nesse sentido, esses brincantes são corpos que trabalham, sofrem, riem,
sentem prazer, moldam, transformam, conformam, disciplinam-se e disciplinam, corpos que brincam e que se fazem dança (Viana, 2005). Quando
dançamos, expressamos várias singularidades desse corpo dançante: nossas
singularidades e as singularidades da cultura, inscritas no corpo e transformadas em movimento que, de algum modo, querem ser universais.
Ao movimentar-me dançando escrevo no espaço e no tempo, com determinada energia, a minha visão de mundo, compartilhada e que quer
ser compreendida. Danço em busca da beleza! Danço para embelezar!
Danço porque já não basta o trabalho, danço para celebrar! Danço de
muitas formas, por muitos motivos [...]. (Nóbrega, 2000, p. 54)
Compreender o Pastoril como arte com enfoque numa educação do
corpo celebrada pelo riso torna-se uma ação relevante para que possamos
compreendê-la à luz da contemporaneidade. O Pastoril, como objeto de nosso estudo, resiste ao tempo e à tradicionalidade como uma aprendizagem a
partir dos processos da cultura, tem sua origem vinculada ao teatro religioso
semipopular ibérico, pois, na Espanha e Portugal, as datas católicas se transformaram em festas eclesiásticas e, ao mesmo tempo em festas populares.
Segundo autores como Andrade (2002) e Mello e Pereira (1990), desde
tempos muito antigos até o final do século XVI, são representadas peças
de um ato relativas ao Natal, Reis e Páscoa, numa mistura de elementos
1. Seu cenário são as ruas e praças públicas de nossas cidades, especialmente nos dias de festas
locais, em louvor dos santos padroeiros ou do calendário religioso-profano.
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Pastoril: Uma Educação Celebrada no Corpo e no Riso
pastorais e alegóricos, de bailados, textos e canções. Esse teatro popular se
afirmou em Portugal com os villancicos galego-portugueses, fonte primeira
dos nossos pastoris.
O caráter religioso desse folguedo está cheio de teatralidade, porém, são
os elementos sociais profanos que vão pouco a pouco tomando importância desmensurada, que destroem a finalidade religiosa primitiva do teatro2
e que nos fazem rir. Tais elementos são encontrados no corpo licencioso,
através da gestualidade dos personagens do Pastoril profano, e nas cançonetas de duplo sentido.
Ao lado do sentimento religioso que esse e outros folguedos populares
despertam na população, há também o sentido de “festa” que se amplia
com as brincadeiras e, sobretudo, com a musicalidade e a dança, expressões
nítidas e fortes no jeito de ser dos indivíduos. A festa obriga-se também a,
simbolicamente, traduzir a evidência da diferença e da desigualdade. Ela
enuncia a diversidade das identidades sociais, propõe hierarquias, sacraliza
o poder e, na maioria dos casos, convoca homens e mulheres a se unirem
no desejo de festejar.
Os homens não se entregam à festa3 apenas porque são naturalmente
lúdicos. Por certo, razões simbólicas da vida social levaram o ser humano de
todas as culturas a aprender a celebrar. A festa não é só contraponto da rotina
laboriosa que mantém a sociedade viva e ordenada; ela estende para muito
além do cotidiano a experiência da vida social. Tanto quanto lúdicos, somos
festivos, e não há cultura que possa dispensar a festa (Duvignaud, 1983).
Se, nos folguedos populares, festas como o Boi de Reis, o Pastoril profano e as Quadrilhas juninas, por exemplo, comemoram essa laboriosa rotina
2. Com poucas diferenças, os estudiosos afirmam que as comemorações do Natal, a festa da
Natividade, surgiram no início do século X. Conforme comprovam as pesquisas de Mário de
Andrade (2002), a ideia de comemorar o nascimento do Cristo através de representações dramáticas foi do monge Tuotilo. Essas comemorações se espalharam em Sequências e Tropos. O
Tropo consistia em intercalar textos e frases melódicas novas com textos religiosos oficiais da
Igreja, cantados em gregoriano (Gassner, 1997). Logo, tanto na França como na Inglaterra, os
Tropos dialogados do Natal se desenvolveram rapidamente, transformando-se em núcleos do
drama litúrgico medieval. Dividiam-se em três partes principais: a anunciação do nascimento do
Cristo aos pastores; a adoração aos três Reis Magos e o massacre dos inocentes. Os dois primeiros temas se conservaram vivos e se desenvolveram com rapidez por todo o ocidente europeu e
Portugal, através dos jesuítas, que assim repassaram para o Brasil Colônia.
3. Utilizamos o conceito de festa de Duvignaud (1983). A festa, para esse autor, faz parte da
vida coletiva, implicando questionamentos, exaltação da vida. O homem é um homem festivo,
colocando, nessa caracterização identitária essencial, o cultivo dos folguedos, das aspirações visionárias e da capacidade de fantasiar.
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Marcilio de Souza Vieira
de celebrar o riso, em outro momento, celebram a festa de um rei negro,
comemoram o nascimento de um deus, de um herói ancestral, representam
as disputas de cordões de pastoras ou as anedotas de um Birico e Catirina,
bom como de um Velho do Pastoril.
Alegre e mesclada em um momento de fantasia, a festa também lembra
a morte e o pesar por não sabermos ainda resolvê-la; enquanto outra cultura salienta com canto e dança a história real ou mítica de sua sociedade.4 Se
algumas festas, como o carnaval e o entrudo5, por exemplo, comportam o
exagero de condutas e a aparente ruptura da ordem da vida fora dela, há de
ser para que as pessoas possam estabelecer, com os seus símbolos, cultura,
cantos e danças, situações notáveis e privilegiadas, para que realizem entre
elas e sobre elas intenções e efeitos importantes. Assim, no fundo, nada
há de inútil ou dispensável na vocação humana de festejar, embora muitas
vezes a festa aspire a ser o generoso reinado de um coletivo ócio ativo e
um momento de solidária e improdutiva gratuidade celebrada pelo riso
(Bakhtin, 2002).
Os folguedos e danças populares guardam em si características do sagrado e do profano, características da festa apresentando particularidades singulares pela sua pureza e autenticidade, pois, mesmo quando eventualmente
adotam certos modelos coreográficos, estranhos ao seu meio, conseguem
absorver essas influências exteriores, mantendo sua integridade cultural, imprimindo suas próprias características e respeitando a realidade local.
A respeito desses modelos coreográficos, Medeiros (2008) comenta
que, ao reelaborarmos cenas de danças populares, e acrescentarmos os folguedos populares, devemos ter o cuidado de não cair no folclorismo, mas
apresentar em cena composições artísticas que caracterizem, divulguem e
valorizem os folguedos e as danças populares. Sendo assim, a referida au4. Podemos citar como exemplo a Dança Macabra medieval que era celebrada numa histeria coletiva em que as pessoas dançavam expressando o pavor da morte. Ou, ainda, pensar nas danças
brasileiras que se originaram da luta contra o infiel, a tragédia do mar ou a morte e ressurreição
(Portinari, 1989).
5. O entrudo tem origem no carnaval da Península Ibérica, sendo marcadamente imundo, pelo
costume de os foliões lançarem ovos, lama e outras porcarias uns contra os outros. No Brasil, os
festejos foram trazidos pelos colonizadores no século XVI. O entrudo consistia, principalmente,
no que hoje se chama de mela-mela no período carnavalesco. Uma “guerra” considerada brutal,
imunda e desordeira, mas alegre para os participantes. Essa brincadeira sofreu a intervenção do
governo e da igreja e foi acabando-se lentamente, principalmente nos estados da Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro (D’Amorim; Araújo, 2003).
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