Eleutério F. S. Prado
Equilíbrio e entropia: crítica da teoria
neoclássica *
VOL. I Nº II DEZ.99
pp. 8/34
Eleutério F. S. Prado **
1. Introdução
É possível que o domínio exercido pelo pensamento neoclássico
por mais de um século, no campo do saber econômico, esteja chegando ao
fim. Em The evolution of economic theory, Kirman, refletindo sobre a crise da
economia walrasiana, levanta a seguinte possibilidade:
A lição básica que se pode tirar [...] é que a Economia, por várias
razões, ficou encerrada num paradigma particular, paradigma este
que é constantemente comparado com as realizações de várias
ciências, em particular com as da Física, com o fim de determinar
o seu estatuto científico relativo. O que eu gostaria de sugerir
[...] é que a Economia, tal como a ciência em geral, está entrando
agora, provavelmente, num período de turbulência teórica. Ela,
basicamente, parece ter evitado a revolução probabilística na
Física. Entretanto, aquilo que agora está acontecendo no que se
pode descrever frouxamente como teoria da complexidade, ou
como teoria dos sistemas adaptativos complexos, parece que vai
ter provavelmente um impacto no desenvolvimento da teoria
econômica (Kirman, 1997a, p. 102).
Kirman sugere, assim, que está-se abrindo, pouco a pouco, um novo
caminho teórico para a Economia, e que para trilhá-lo é preciso abandonar
os modos usuais de pensar a realidade econômica, passando a acompanhar
* Este artigo tem por base um texto mais longo que foi apresentado no XXVI Encontro
Nacional de Economia, realizado pela ANPEC, em dezembro de 1998. Ao modificar a
versão original, busca-se atender, em parte, aos agudos comentários de Gilberto Tadeu
Lima feitos na ocasião do Encontro e posteriormente. Busca-se, também, apresentar a
idéia central veiculada naquela versão de uma maneira diferente, procurando torná-la
mais clara e mais acessível. Quando se menciona aqui teoria neoclássica, deve-se entender que se trata da economia política walrasiana em sua versão atual.
** Professor da USP.
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Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica
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um movimento científico que atualmente atinge várias outras ciências, em
especial a Física e a Biologia, e que vem sendo caracterizado pela sua
orientação voltada à complexidade. A preocupação central desse movimento
consiste em se apropriar de certas dimensões da realidade que a ciência
moderna deixou em grande medida de lado, quais sejam, as do processo e
da emergência. Dito de outro modo, esta linha de pensamento quer enfrentar
de um modo científico os problemas da evolução temporal dos sistemas e
da geração de estruturas macrossociais a partir de comportamentos
microssociais.
Para caracterizar o modo pelo qual esse movimento está entrando
no campo da Economia, Arthur, Durlauf e Lane, na introdução de uma
obra coletiva denominada muito sugestivamente de The economy as an evolving
complex system, arrolam seis notas distintivas das novas construções teóricas,
ainda em fase inicial de desenvolvimento: (ver Arthur, Durlauf & Lane,
1997, p. 3-4)
1. as interações entre agentes econômicos heterogêneos e adaptativos são
coordenadas de modo descentralizado;
2. essas interações são coordenadas por normas, instituições e organizações
endógenas, de tal modo que não haja qualquer instância global e externa de
controle;
3. o sistema econômico tem propriedades emergentes e é constituído por
vários níveis de coordenação;
4. o novo emerge continuamente no sistema econômico;
5. o sistema econômico, em conseqüência, encontra-se em permanente
processo de adaptação;
6. o sistema econômico, finalmente, opera dinamicamente e, em geral, fora
do equilíbrio.
A perspectiva da complexidade caracteriza-se, pois, pela sua ambição
de levar em consideração uma série de características normalmente atribuídas
ao sistema econômico realmente existente, ambição que a atual teoria
econômica padrão – a teoria neoclássica –, entretanto, não consegue
efetivamente realizar.
Para entender essa ruptura possível no campo específico da teoria
econômica, procura-se aqui contrapor dois modos de abordar esta esfera
Eleutério F. S. Prado
da realidade social, os quais diferem entre si especialmente pela maneira
como concebem os homens e as relações sociais no que ainda pode ser
denominado, de modo provocativo, modo de produção capitalista. Para
enfocar os problemas de uma maneira mais precisa, apresenta-se de início,
em amplos traços, um modelo de equilíbrio de mercado desenvolvido por
Duncan Foley (1994). Segue-se este caminho porque o modelo, nascido de
uma apropriação de resultados da mecânica estatística, se ainda conserva
um caráter estático, tem como característica importante que o equilíbrio aí
considerado não vem a ser um ponto fixo, mas tem, diferentemente, uma
natureza estatística.
Justamente por causa dessas duas características distintivas, o modelo
de Foley permite mostrar, em primeiro lugar, as deficiências mais
fundamentais e, assim, os limites da teoria neoclássica de equilíbrio geral,
que pode ser vista como um seu caso particular. Em segundo lugar, por
introduzir uma noção de equilíbrio que não reprime a noção de incerteza
endógena do sistema econômico, torna possível mostrar porque a
coordenação das transações que ocorrem num mercado complexo não pode
ser feita sem o dinheiro. E este é, como se sabe, um ponto fraco da teoria
neoclássica padrão. Segundo Kirman, por exemplo,
[...] é revelador que o dinheiro, enquanto um meio de transação,
apareça como uma preocupação natural no sistema iterativo e
descentralizado em que me concentro [...] já que o dinheiro não
se ajusta de modo confortável no arcabouço da teoria do equilíbrio
geral. (Kirman, 1997b, p. 499).
Subjacente à questão da ausência intrínseca do dinheiro no modelo
de equilíbrio geral e de sua presença necessária num modelo construído
sob a perspectiva da complexidade, encontram-se duas concepções
antagônicas de sistema econômico. Uma delas, a neoclássica, supondo que a
coordenação das ações é feita de forma centralizada e que os mercados são
completos e não seqüenciais, opta por uma concepção atomista de sociedade,
em que as interações sociais ocorrem de um modo mecânico e são
inerentemente reversíveis. A outra, a ser denominada de evolucionária, ao
incorporar explicitamente noções de incerteza endógena – ou seja, de
entropia – e de processo de mercado, leva a adotar uma concepção de
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Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica
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economia como um sistema de ações que ocorrem de modo espalhado, as
quais se influenciam e se realimentam mutuamente, dependendo sempre de
um meio de comunicação adequado. A primeira dessas duas tem, como se
sabe, uma natureza estática e a segunda caracteriza-se por incorporar a
flecha do tempo.
Aqui se sustenta que o sucesso dessa linha teórica no campo da
ciência econômica depende crucialmente da adoção de fundamentos sociais
e antropológicos distintos dos fundamentos da teoria neoclássica. Sustentase, ademais, que aqueles se mostram necessários quando se passa a considerar,
além das dimensões do processo e da emergência como características em
geral dos sistemas adaptativos complexos, a dimensão da comunicação como
particularidade inerente aos sistemas sociais, como o sistema econômico,
que engloba os mercados e as hierarquias administrativas, assim como outros
modos de governança.
Nessa perspectiva, as relações sociais passam a ser concebidas como
vínculos constituídos por comunicações, fazendo-se diferença entre as
relações mediadas pela linguagem no âmbito do mundo da vida e as
comunicações mediadas pelos meios não lingüísticos na esfera do sistema.
O dinheiro aparece, assim, como um meio de comunicação crucial para a
existência e o funcionamento do sistema econômico como tal.
Ao final do artigo, pretende-se ter apresentado não só uma crítica
interna à teoria neoclássica de equilíbrio geral, mas também um enfoque
teórico em que o dinheiro aparece como algo co-originário ao sistema
econômico – sistema este, agora, dotado da propriedade da auto-organização.
Pretende-se, também, ter mostrado um caminho promissor dentro do qual
a teoria econômica pode se desenvolver como teoria do processo de
acumulação de capital. Para tanto, este último é entendido, ao modo clássico,
como valor que cresce no tempo e que se expressa, de um modo pleno, no
dinheiro.
2. Modelo neoclássico generalizado 1
O modelo a ser aqui apresentado vem a ser uma generalização do
modelo neoclássico padrão. A sua característica distintiva vem do fato de
1. Nesta seção se aproveita em parte uma contribuição do autor a um artigo escrito em
colaboração com Jorge Soromenho (Prado & Soromenho, 1988).
Eleutério F. S. Prado
que vai além do determinismo inerente à análise econômica usual, tratando
o mercado como um sistema de coordenação que opera segundo um certo
padrão de aleatoriedade. Esse modelo, em que os preços são variáveis
estocásticas e o equilíbrio é estatístico, vem a ser uma aplicação de um
resultado clássico de mecânica estatística em Economia, que estende o escopo
do que é usualmente denominado análise econômica.
Fazendo abstrações drásticas, é possível apresentar o modelo
construído por Foley de um modo simples. Seja uma economia de produtores
independentes em que as duas únicas mercadorias existentes são produzidas
apenas com trabalho; cada uma delas, perfeitamente homogênea, é produzida
sempre com uma mesma técnica. Admitiremos que, em razão da existência
de uma restrição institucional, a jornada de trabalho de todos os produtores
é fixa no período de produção. Cada trabalhador, por razões tecnológicas,
produz uma única mercadoria, 1 ou 2, de tal modo que há apenas dois tipos
de produtores. As quantidades efetivamente produzidas das mercadorias 1
e 2 são fixas período a período e iguais a e1 e e2, respectivamente.
Para apresentar o modelo do modo mais claro possível, necessitamos
estabelecer uma notação adequada. Para tanto, assumimos que quatro índices
estão associados às quantidades de mercadoria, da seguinte forma: jcikK ,
onde o sub-índice i responde pelo bem de que se trata (i = 1,2); k indica o
tipo de produtor (k = a,b); o sobre-índice j indica os indivíduos dentro de
cada tipo de produtor ( j = 1,2, ...., nk) e, finalmente, o sub-índice K indica a
troca a que se associa a quantidade do bem. Em alguns casos, para evitar
redundância, omitiremos o sub-índice k ou o sub-índice K ou, ainda, ambos.
Com base nessas convenções de notação, podemos enfrentar melhor o
problema de expor o modelo neoclássico generalizado desenvolvido por
Foley.
Suporemos, agora, que ambos os tipos de produtores, para
sobreviver, precisam consumir os bens 1 e 2, buscando trocar no mercado,
período a período, certa quantidade do bem que produzem por certa
quantidade do bem que não produzem. Como existem na produtores da
mercadoria 1, indicamos por 1c1a, 2c1a,...,nac1a as quantidades vendidas no
mercado pelos indivíduos 1, 2, ..., na. De igual modo, como existem nb
produtores da mercadoria 2, indicamos por 1c2b, 2c2b, ... , nbc2b as quantidades
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Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica
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trocadas no mercado pelos indivíduos 1, 2, ... , nb. A população total de
trabalhadores é igual a na+nb = n. As razões de troca entre 1 e 2 são
consideradas, entretanto, como variáveis aleatórias.
Cada tipo de produtor encontra-se caracterizado por sua dotação
inicial daquele bem que produz, assim como por seu mapa de preferências.
No gráfico abaixo (figura 1), a título de exemplo, apresentamos a situação
de escolha dos indivíduos que produzem a mercadoria 1. A dotação inicial
deste tipo de produtor encontra-se indicada negativamente no eixo
horizontal por e1a. A curva aí traçada, e que passa pela origem, representa
uma curva de indiferença dos trabalhadores do tipo a. Ao se admitir que
ambas as mercadorias não são perfeitamente divisíveis, fica determinado o
elenco das trocas possíveis para cada produtor do tipo a como um conjunto
finito de pontos. Este conjunto é designado na figura 1 por Aa. Os pontos
do conjunto Aa podem, então, ser indexados pela seqüência 1, 2, ..., sa,
sendo então designados genericamente por w. Evidentemente podemos fazer
o mesmo com a situação de escolha dos produtores da mercadoria 2,
indexando, então, os pontos de Ab especificamente por 1, 2, ...., s b e
genericamente por j.
Aa
C2a
Cω
-e1a
-C1ω
C2ω
0
C1a
Figura 1 – Conjunto de oferta
Definamos, agora, as trocas possíveis para os produtores do bem 1
pelo vetor cw = (c1w , c2w ), em que c1w £ 0 e c2w ³ 0. Os valores de troca
podem ser representados de modo usual por retas que passam pela origem
e pelo ponto de troca considerado. Tomando, então, por base a troca jcw ,
destacada no gráfico, podemos ver que o produtor j troca c1w por c2w , ficando
Eleutério F. S. Prado
para si mesmo com c2w de 2 e (e1a - c1w ) de 1. Definamos, igualmente, as
trocas possíveis para os produtores de 2 por cj = (c1j ,c2j) em que c1j ³ 0 e
c2j £ 0. Omitimos aqui o sub-índice a em cw e o sub-índice b em cj.
É evidente que podemos indicar as opções escolhidas pelos
produtores da mercadoria 1 por jcw = (jc1w , jc2w ), com j = 1, 2, 3, ... , na e as
opções escolhidas pelos produtores da mercadoria 2 por jcj = (jc1j, jc2j),
com j = 1, 2, 3, ... , nb.
Ao conjunto das trocas possíveis em Aa, em princípio, associamos
uma distribuição de probabilidades p(cw ), com å p(cw ) = 1, em que p(cw )
indica a proporção dos agentes do tipo a que faz a troca cw em Aa. Igualmente,
ao conjunto das trocas possíveis em Ab, em princípio, associamos uma
distribuição de probabilidades p(cj), com as mesmas característica da anterior.
Os excessos de demanda média para os bens 1 e 2 podem ser
expressos do seguinte modo:
nb
1 na
∆c1 = [ ∑ j c1ω + ∑ j c1ϕ ]
n j =1
j =1
nb
1 na
∆c2 = [ ∑ j c2ω + ∑ j c2ϕ ]
n j =1
j =1
(1)
15
( 2)
Reagrupando os c1w e os c1j comuns na primeira expressão e os c2w
e os c2j comuns na segunda, podemos fazer a seguinte transformação de
(1) e (2) em (3) e (4), respectivamente:
∆c1 =
∆c2 =
na
n
∑ p( c
)c1ω +
nb
∑ p(cϕ )c1ϕ
n Ab
(3)
nb
n
∑ p( c
)c2ϕ +
na
∑ p(cω )c2ω
n Aa
(4)
ω
Aa
ϕ
Ab
Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica
Considerando como eventos as trocas possíveis de cada tipo de
produtor, dadas as distribuições de probabilidade associadas a estas trocas,
é possível medir o grau de incerteza relativo ao conjunto destes eventos.
Para tanto, é preciso empregar o conceito de entropia, cuja origem encontrase na termodinâmica, mas foi utilizado na teoria da informação de Shannon.
(Ver Haykin, 1994, pp. 444-449) Fazendo uso da expressão normalmente
empregada para medir a entropia de um sistema estocástico bidimensional,
temos:
E[ p(ck )] = −
16
na
n
∑ p( c
ω
).ln p(cω ) −
Aa
nb
n
∑ p( c
ϕ
).ln p(cϕ )
(5)
Ab
É preciso notar que a expressão acima define uma medida da
desorganização do sistema econômico. Quanto maior a incerteza associada
ao sistema em consideração, maior será a sua entropia. De modo metafórico,
pode-se dizer genericamente que quanto maior for a entropia de um sistema,
mais “aquecido” ele se encontra. Assim, um mercado pode ser considerado
“frio” ou “quente”, dependendo de seu grau de incerteza.
Para encontrar o equilíbrio estatístico do sistema é preciso resolver
um problema de programação não linear, em que se maximiza E[p(ck)]
sujeito às restrições de que os excessos de demanda (3) e (4) acima sejam
nulos. Eis que estas restrições, como se sabe, correspondem ao suposto
usual da teoria neoclássica de market clearing. Ao maximizar-se E[p(ck)],
procura-se garantir que os casamentos entre os dois tipos de produtores
venham a ocorrer de tal modo a obedecer àquelas restrições. A solução
deste problema, como indica Foley, deve-se ao físico J. W. Gibbs e é chamada
canônica:
exp[ −πcκ ]
Z k (π )
( 6)
onde Z k (π ) = ∑ exp[ −πcκ ]
( 7)
p(cκ ) =
Ak
se k = a ⇒ κ = ω ; se k = b ⇒ κ = ϕ
Eleutério F. S. Prado
As funções Zk(p), k = a,b, chamadas de partições, associam-se às
trocas possíveis para os produtores dos bens 1 e 2, respectivamente. Elas
se compõem de sa e sb partes; cada parte corresponde a uma das trocas
possíveis em Aa ou em Ab, respectivamente. Em ambos os casos, a
contribuição de cada troca para a soma Zk(p), k = 1,2 , define, de um modo
proporcional, as probabilidades de ocorrência da troca.2
3. Da interpretação do modelo
Antes de procurar chegar a algumas conclusões na interpretação
dos resultados do modelo estatístico apresentado, é preciso mencionar
algumas razões pelas quais ele foi considerado uma generalização do modelo
neoclássico de equilíbrio geral. Note-se, antes de tudo o que se segue, que
ambos têm um caráter estático.
Como se sabe, a compreensão do sistema econômico que vem da
teoria walrasiana funda-se, em última análise, em supostos bastante
extremados sobre a capacidade cognitiva dos agentes. Para poder pensar
que estes são perfeitamente racionais e que fazem escolhas ótimas, esta
teoria toma como se certo fosse que os agentes possuem um conhecimento
completo de todas as escolhas possíveis, assim como das conseqüências
destas escolhas para o seu próprio bem-estar. A mesma teoria presume,
ademais, que a relação destas escolhas com o próprio funcionamento do
sistema econômico pode ser negligenciada pelos agentes, porque se admite
que eles tomam os preços como dados. Para tornar as opções individuais
dos agentes coerentes no agregado, supõe ainda aquela teoria que estes
valores de troca foram já descobertos previamente pelo leiloeiro por meio
de uma seqüência de experimentos de equilibração cujo resultado final é a
supressão do processo de mercado e a inversão de sua seqüência espontânea:
no modelo walrasiano, primeiro o equilíbrio é atingido e, depois, fazem-se
as trocas.
Na visão de sistema econômico sugerida pelo modelo generalizado,
os indivíduos são concebidos ainda como unidades básicas deste sistema.
2. Esses resultados podem ser estendidos para os modelos estatísticos de mercado em
que os conjuntos de oferta são infinitos (Foley, 1994, p. 330).
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Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica
18
Eles se encontram definidos como átomos sociais, ou seja, como elementos
que têm uma unidade própria, externos uns aos outros, imutáveis em
princípio e que interagem mecanicamente por meio de trocas. A busca do
próprio interesse é a força inerente que os move; o entrechoque de suas
ações, que se constituem como ofertas e demandas, é o único modo por
meio do qual interagem; em conjunto, eles compõem um campo de forças
que tende ao equilíbrio. O mercado é o que meramente resulta da agregação
das ações dos indivíduos que o formam, apresentando, em conseqüência,
propriedades emergentes, mas estas, estando ausente qualquer noção de
processo, não influenciam o comportamento dos agentes por realimentação.
No modelo generalizado, para que um equilíbrio aconteça, é preciso
supor que os agentes – uma parte deles pelo menos –, ademais de atuarem
como compradores e vendedores, operam também como intermediários
no mercado. Enquanto compradores e vendedores, eles fixam os valores de
troca ao se encontrarem nos pontos de seus conjuntos de oferta Aa e Ab;
entretanto, apenas dessa forma o mercado não chega à plena compensação.
Dada a distribuição das demandas e ofertas nesses conjuntos, é preciso
admitir então que, enquanto intermediários, os agentes são capazes de
localizar os excessos de uma e outra existentes, realizando as transações
necessárias para que o equilíbrio estatístico venha a ocorrer. Assim se é
levado a atribuir comportamentos aos agentes em função de um
constrangimento que opera ao nível do mercado como um todo.
Note-se, agora, que no modelo generalizado os agentes atuam com
base nos valores de troca, mas a informação disponível para estes agentes
não é completa. Em conseqüência, na ausência de leiloeiro, eles não podem
seguir a regra de maximização. Note-se, também, que os agentes são dotados
de racionalidade instrumental e que buscam melhorar a sua condição
econômica. Tendo em mente essas observações, não é difícil perceber que o
modelo walrasiano tradicional pode ser visto como um caso particular do
modelo de Foley. Para tanto, basta substituir os intermediários pelo leiloeiro,
supondo ao mesmo tempo que um processo de tâtonnement descobre um
k* que gera o market clearing de um modo determinista. O ponto descoberto
vem a ser, como se sabe, um equilíbrio de Arrow-Debreu. Neste
caso, p(ck* ) = 1 e p(ck*) = 0 para k ¹ k* e a entropia do sistema é nula.
Eleutério F. S. Prado
Esse resultado reclama, entretanto, uma explicação, pois para obtêlo foi necessário partir da maximização da entropia associada ao sistema
econômico. Eis que isto se explica pela adoção de um princípio de
objetividade científica que recomenda não supor que existe informação e
que esta esteja disponível, quando isto não puder ser bem justificado nos
termos da própria construção teórica em consideração.3 Ora, justamente a
violação deste princípio – ou seja, a adoção de uma forma de geração de
informação puramente ad hoc, puramente imaginária – é o que possibilita à
teoria neoclássica apresentar o sistema econômico como uma máquina de
informação perfeita que chega possivelmente a um equilíbrio de ponto
fixo.
Tudo isto, entretanto, é surpreendente, pois revela uma fraqueza
profunda da teoria neoclássica de equilíbrio geral. Diferentemente dos agentes
econômicos que povoam o modelo, o leiloeiro não está submetido a qualquer
constrangimento informacional: a sua capacidade de processar a informação
necessária para descobrir a alocação de equilíbrio é praticamente ilimitada.
Ele organiza o mercado transformando informação dispersa em centralizada
de um modo perfeito – dito de outro modo, o “custo” entrópico é nulo.
Tudo se passa como se, no âmbito da Economia, estivesse sendo contrariada
uma lei da Física: o leiloeiro representa, de certo modo, uma violação do
equivalente informacional do segundo princípio da termodinâmica.4
Apesar de cometer esse atentado à objetividade científica, é sabido
que o programa de pesquisa em equilíbrio geral não conseguiu resolver os
problemas que ele próprio privilegiou como as questões teóricas por
excelência no campo da ciência econômica. Se para o problema da existência
3. Sobre este princípio, ver Kapur & Kesavan (1992).
4. Foley menciona a similaridade entre o leiloeiro walrasiano e o demônio de Maxwell,
figura inventada por este físico famoso com o intuito de mostrar a conversão possível
de uma forma de energia degradada, ou seja, calor, em outra mais nobre, por exemplo,
energia cinética, de modo perfeito, isto é, sem gasto adicional de energia, em condições
imaginárias. O papel do demônio, como se sabe, vem a ser separar, num sistema fechado, as moléculas com maior energia daquelas com menor energia, de tal modo a criar
dois subsistemas com temperaturas diferentes. Em Física, o problema era bem claro, já
em Economia ...
19
Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica
20
do equilíbrio foi dada uma solução satisfatória, o mesmo não ocorreu com
os problemas conexos da unicidade e da estabilidade. Ao contrário, ficou
demonstrado, por exemplo, que mesmo a existência de um ponto fixo no
processo de tâttonement não era garantia de que ele fosse estável. Mais do
que isto, foi provado que a propriedade da unicidade não poderia ser
garantida, a não ser mediante a adoção de restrições ad hoc. (Ver Soromenho,
1997 e Ingrao & Israel, 1990) Eis, porém, que soluções para esses três
problemas somente seriam realmente satisfatórias se consistentes entre si.
O modelo acima apresentado, ao generalizar a teoria neoclássica,
elimina em parte essas dificuldades. Ao fazê-lo, entretanto, deixa-a indefesa
diante de uma crítica mais penetrante: o modelo de Arrow-Debreu concebe
o mercado como uma máquina perfeita que organiza as informações
necessárias ao próprio funcionamento, sem custo e sem limitações de
capacidade de processamento. Observe-se, porém, que o modelo
generalizado não elimina toda dificuldade: não fica claro como os
intermediários – um elemento do modelo tão ad hoc quanto o leiloeiro –,
cumprem a sua tarefa. Afinal, o que garante, ao nível microeconômico, que
as situações de desequilíbrio convirjam para as de equilíbrio?
Vale notar, agora, que se o modelo padrão é determinista, o modelo
neoclássico generalizado apresenta em princípio um grau excessivo de
aleatoriedade ou de incerteza sistêmica. Se o número de bens aumenta e se
o número de tipos tender a igualar o número de trabalhadores na população,
o grau de entropia do sistema tenderá a um valor cada vez mais alto,5 de tal
modo que a sua possibilidade de funcionamento desaparecerá. Isto mostra
uma limitação do modelo generalizado: para que haja solução é preciso
pensar que os agentes da economia são tipos e não individualidades. Ora,
isto é uma espécie de preço que se tem de pagar pela eliminação do leiloeiro.
Ademais, no modelo generalizado, não há nem externalidades e
nem custos de transação, (ver Amable, Boyer & Lordon, 1997) mas há
incerteza e esta é medida pela entropia. Neste modelo, apesar disso, não há
ainda dinheiro, de tal modo que a economia representada não deixa de ser
de troca. Parece óbvio, entretanto, que a situação modelada, ao envolver
5. Isto pode ser provado rigorosamente. (Karlin & Taylor, 1975, pp. 495-502)
Eleutério F. S. Prado
incerteza endógena, parece requerer a consideração de algo que possa manter
a entropia do sistema num nível razoável.
Recusa-se aqui, entretanto, um caminho fácil, que consiste em derivar
a existência do dinheiro de uma função que ele pode ter no sistema
econômico. Para introduzir rigorosamente o dinheiro no modelo vem a ser
necessário, primeiro, criticar as bases da teoria econômica walrasiana,
sugerindo inclusive que é preciso considerar uma outra concepção de
homem e de sociabilidade. É preciso mostrar, ademais, que estas concepções
só fazem sentido quando a economia for apreendida como um processo
evolucionário. Assim, encontrar-se-ão novas bases que permitirão a
construção de um modelo no espírito da teoria da complexidade em que o
dinheiro está presente por necessidade intrínseca.
4. Da concepção alternativa
A compreensão da economia que vem de Walras foi criticada por
Hayek de um modo agudo, já em 1936: a construção walrasiana tem para
ele um caráter tautológico, já que não é capaz de mostrar como o
conhecimento necessário ao funcionamento do sistema econômico é
adquirido e transmitido. Para chegar aos seus resultados logicamente
necessários, a teoria walrasiana assume que já se encontra resolvido o
problema que o mercado real tem de resolver, qual seja, o da sua própria
auto-organização. Segundo Hayek (1948a, p. 45), esta teoria assume que “o
sistema econômico como um todo é um mercado perfeito em que todos
sabem tudo”. Entretanto, afirma ele, é preciso superar o caráter centralizado,
“tautológico” e estático do modelo de equilíbrio geral.
Para compreender melhor tal sistema, de acordo com Hayek, devese considerar explicitamente o problema da “dispersão do conhecimento”
e enfrentar a questão de entender “como a interação espontânea de um
grande número de pessoas, cada uma delas possuindo apenas uma porção
de conhecimento, leva a um estado em que os preços correspondem aos
custos ...” (Id., ibid., 1948a, pp. 50-51). Em outro texto, diz, mais
enfaticamente:
O caráter peculiar do problema da ordem econômica é
determinado precisamente pelo fato de que o conhecimento
21
Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica
necessário das circunstâncias nunca existe numa forma
concentrada ou integrada, mas somente como porções incompletas
de conhecimentos, freqüentemente contraditórias, porções estas
detidas por indivíduos distintos. (Hayek, 1948b, p. 77)
22
Apesar de responder em alguma medida às preocupações de Hayek
– as trocas não são coordenadas de forma centralizada e não há inversão da
seqüência espontânea do mercado – o modelo generalizado ainda não
satisfaz à perspectiva desse autor, já que não incorpora o que vem sendo
chamado propriamente de auto-organização, algo intimamente relacionado
com o que Smith designava por mão invisível. O modelo generalizado
também não incorpora a formação descentralizada de conhecimento, a
aprendizagem e a revisão do conhecimento antes adquirido; também não
permite – e isto é crucial – que os agentes se influenciem reciprocamente,
em particular, que aprendam uns com os outros. Ademais, não admite que
esses agentes possam ser inovadores, que possam interagir com o ambiente
social, comportando-se com base numa racionalidade processual e
adaptativa.6 Eis que estas notas são características distintivas da visão
hayekiana do processo de mercado, indicando, também, aspectos que podem
fazer diferença em uma nova construção teórica distinta da neoclássica.
Em conseqüência, é preciso, agora, passar de uma concepção atomista
e mecânica para uma concepção sistêmica e pragmática, respectivamente,
de economia e de interação econômica, admitindo desde o início que o
mercado funciona com o dinheiro. Dito de outro modo, é preciso adotar
uma perspectiva evolucionária. O dinheiro, como já se mencionou na
6. O conceito de racionalidade otimizadora, característica da assim chamada teoria da
escolha racional, vem a ser uma particularização do conceito mais amplo de racionalidade
cognitiva e instrumental. O conceito de racionalidade limitada, que envolve restrições à
capacidade cognitiva do agente, vem a ser outra particularização possível. O mesmo
ocorre com o conceito de racionalidade adaptativa. Aqui é fundamental perceber que os
agentes, imersos num contexto social, são impelidos a se ajustar da melhor forma possível a um ambiente em processo de mudança, algumas das quais ocasionadas por eles
mesmos, consciente ou inconscientemente. Em qualquer dos casos, a racionalidade diz
respeito à consistência dos fins – e, obviamente, à adequação de meios a fins –, mas não
ao seu conteúdo, já que no dizer clássico de Hume, ela é meramente “escrava das paixões”.
Eleutério F. S. Prado
introdução, será aqui entendido como um meio de comunicação sistêmico
por meio do qual se estabelecem as relações sociais na economia mercantil
generalizada.7 O dinheiro, assim concebido, permite a equivalência geral
das mercadorias, possibilita a memória do sistema e a aprendizagem dos
agentes, mantendo a entropia de um funcionamento progressivo altamente
complexo em níveis suportáveis.
Para tanto, torna-se necessário apresentar uma concepção alternativa
de homem e de relação social em comparação com aquela da teoria
neoclássica. Seguindo Habermas, admite-se desde o princípio que o homem
é um ser que se desenvolve historicamente por meio do uso da comunicação
lingüística e não lingüística, relacionando-se assim entre si e com a natureza
– neste último caso, por meio do trabalho (que tem também uma dimensão
simbólica). Admite-se ainda que os atores sociais, na sociedade moderna,
estão sempre submetidos a uma dupla imersão contextual: junto ao mundo
da vida (ou seja, a esfera da cultura, da formação da personalidade e da
constituição da sociabilidade) e junto ao sistema social como um todo (que
nada mais é do que a parte da estruturação simbólica que se tornou reificada
e que é constituída, basicamente, pelo sistema econômico e pelo Estado).
O mundo da vida é o acervo dos conhecimentos intersubjetivamente
compartilhados pelos atores sociais e que permite a entabulação da
comunicação por meio da linguagem. O sistema social – que aqui interessa
mais de perto –, estruturação simbólica que aparece para os agentes como
realidade objetiva, ou seja, como uma segunda natureza, é constituído por
um complexo de modos de governança que funcionam a despeito da
consciência dos agentes e que constrangem e moldam as ações instrumentais
e estratégicas dos atores sociais.8 No sistema, os agentes atuam com base
7. Isto significa que não se concorda aqui com a posição de Shubik, segundo a qual é
preciso “evitar aquele tipo de debate que quer saber ‘o que é dinheiro?’”. Antes de mais
nada, porque é assim que se cai em contradição: “a atitude adotada aqui [...] é considerar” – diz Shubik, logo após firmar essa posição – “que todas as formas de dinheiro e de
instrumento de crédito têm uma existência física” (1997, p. 268). Sem considerar o dinheiro, primeiro, sociologicamente, como algo por meio de que se estabelecem certas
relações sociais, não se terá sucesso na construção de modelos econômicos em que ele
tenha um papel relevante.
8. As regras de comportamento reificadas aparecem, então, como instituições.
23
Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica
24
em regras operacionais, buscando fins exteriores, largamente independentes
dos valores e das normas do mundo da vida.
Descobre-se essa concepção alternativa de homem e de relação social
quando se presta atenção ao que vem sendo chamado usualmente de “virada
lingüística” da Filosofia. (Ver Herrero, 1997) No movimento de passagem
que ultrapassa a filosofia da consciência, tornou-se claro que as formas de
comunicação lingüísticas e não lingüísticas fazem a mediação de toda relação
entre os sujeitos e entre os sujeitos e os objetos, intermediando todo o
sentido e toda a validade possíveis. Nessa perspectiva, a interação social
não é meramente mecânica, mas constitutiva das partes que interagem, as
quais se transformam no processo. Mais do que isso, o meio por excelência
de interação social é a comunicação que envolve, além da transmissão de
informação, o vínculo intersubjetivo.
Buscando agora descer do geral para o específico, é preciso fazer
referência aqui à crítica de Commons à noção de troca de mercadoria e à
sua proposta de substituí-la pela noção de transação, enquanto a menor
unidade de análise em Economia. O seu argumento básico consiste em
dizer que a noção de troca é naturalista, pois pressupõe agentes situados no
mesmo nível da natureza e se remete, portanto, meramente, às relações
destes agentes com o seu entorno natural. Para fazer diferente, para ver aí,
antes de tudo, relações dos homens entre si, ele propõe o conceito de
transação:
As transações são, não ‘trocas de mercadorias’, mas a alienação e
a aquisição, entre indivíduos, dos direitos de propriedade e de
liberdade criados pela sociedade, os quais têm de ser negociados
entre as partes interessadas antes de que o trabalho possa produzilos ou os consumidores possam consumi-los ou as mercadorias
possam ser fisicamente trocadas.
Nas transações, diz ele, estão envolvidas negociações:
[...] cada participante busca influenciar o desempenho, a
indulgência e o comedimento do outro. Cada um modifica o
comportamento do outro em maior ou menor grau. Esta é a
psicologia dos negócios, dos costumes, da legislação das cortes,
das associações comerciais e dos sindicatos. (Commons, 1931).
Eleutério F. S. Prado
Ainda que a crítica de Commons à noção de troca de mercadorias
– quando ele tem por referência a economia neoclássica walrasiana – seja
correta,9 não se endossa aqui inteiramente, entretanto, a noção de transação
que ele propõe, pois, como se sabe, desde Marx as relações sociais mercantis
são coisificadas. Mas julga-se que o conceito de Commons tem a sua
importância porque enfatiza o caráter interativo e “comunicacional” da
relação econômica e o papel que esta tem na constituição das regras, das
convenções, das instituições e mesmo dos processos tecnológicos que
permeiam o funcionamento do sistema econômico e que permitem tanto a
ação coletiva quanto a ação individual. A sua noção de transação, assim,
encontra-se ligada a uma concepção evolutiva de economia.10
Nesta perspectiva, pois, é que cabe procurar compreender o dinheiro
como um meio que regula as transações no sistema econômico. Para tanto,
é necessário entender, de início, que a linguagem natural – assim como o
seu emprego na vida cotidiana – vem a ser o paradigma por excelência dos
meios de comunicação, atentando para o significado que o próprio termo
comunicação assume no contexto dessa “virada”: basicamente, ao mesmo
tempo, vínculo intersubjetivo e troca de informação.
A comunicação é constituída por atos de fala e estes têm uma
estrutura dual: por um lado, propõem um compromisso, estabelecem
intenções e, por outro, apontam para os objetos, transmitem informação.
Assim, eles apresentam algo no mundo objetivo, mas só o fazem porque,
ao mesmo tempo, estabelecem uma relação intersubjetiva entre aqueles que
9. De acordo com Walras, “o fato do valor de troca toma, pois, desde que estabelecido,
o caráter de um fato natural, natural em sua origem, natural em sua manifestação e em
sua maneira de ser” (Walras, 1983, p. 22). A expressão “desde que estabelecido” dentro
da sentença acima sugere que Walras estava pensando, também, implicitamente, em
coisificação.
10. Estas observações foram sugeridas pela leitura de um texto de Renault que ressalta a
relação entre o “velho” institucionalismo de Veblen, Commons etc. e o pragmatismo de
Pierce, James etc., ambos de origem norte-americana (Renault, 1997). Ora, foi justamente a semiótica de Pierce elaborada na virada do século XIX para o século XX que assentou as bases para a revolução lingüística do final deste último e que está influenciando o
desenvolvimento de todas as ciências, inclusive da Economia.
25
Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica
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participam do processo da conversação.11 Quando a comunicação, entretanto,
é perturbada, ou seja, quando ocorrem problemas de divergência de
interpretação, os atores sociais podem passar à argumentação que se move
pelo resgate de pretensões de validade.12 Algo de semelhante acontece com
o dinheiro.
No âmbito do mundo da vida, o resgate de pretensões de validade
pressupõe a busca de entendimento por meio do uso da racionalidade
comunicativa (Ver Prado, 1993). No âmbito das relações de mercado, a
comunicação tem uma forma que envolve necessariamente o dinheiro. Os
possuidores de mercadorias asseguram, implícita ou explicitamente, que o
preço pedido é correto, ou seja, que ele expressa adequadamente o valor da
mercadoria. Os demandantes podem concordar ou discordar, dispondo-se
a pagá-lo ou não. Tal como ocorre, pois, no âmbito do mundo da vida,
pode haver ou não acordo sobre o conteúdo da proposição. Logo, também
no âmbito do sistema econômico pode haver necessidade de resgate de
pretensões de validade – que aqui é melhor denominarmos de pretensões
de valor.
Entretanto, agora, o emprego da racionalidade comunicativa
encontra-se obstado, e isto ocorre em virtude do caráter quantitativo do
dinheiro (frente ao qual todas as mercadorias são igualadas, ou seja, as suas
qualidades são colocadas entre parênteses). Em conseqüência, tal resgate
ocorre pelo uso da racionalidade instrumental e estratégica – em si mesma,
uma expressão da busca da autoconservação por meio de procedimentos
intencionalmente eficientes.13 De qualquer modo, nessa perspectiva, mesmo
11. Segundo Habermas, as expressões lingüísticas têm uma estrutura dual: compõem-se
de uma frase performativa, que permanece geralmente implícita, e de uma frase informativa ou propositiva. Por exemplo: [Asseguro-lhe que ...] a flor é vermelha. A primeira
propõe um compromisso intersubjetivo, estabelecendo intenções; já a segunda aponta
para as coisas e transmite uma informação sobre o mundo.
12. É claro que uma perturbação de comunicação pode ser interrompida pela quebra do
vínculo intersubjetivo ou pode ser encerrada pelo apelo à tradição ou ao poder.
13. A racionalidade instrumental aparece na filosofia subjacente à teoria neoclássica como
uma característica por excelência da natureza humana. Ora, a razão é a negação da
animalidade e, por conseqüência, deve ser compreendida com a contrapartida da
institucionalização histórica da produção mercantil, por meio dos mercados, das organizações e do Estado moderno.
Eleutério F. S. Prado
sendo instrumental, a racionalidade dos agentes é processual e adaptativa,
já que envolve interpretação, aprendizagem, revisão de conhecimento,
formação de expectativas e constituição de regras que limitam e possibilitam
as ações dos próprios agentes por meio de realimentação.
Em conseqüência, o mercado é constituído por interações mediadas
de modo crucial pelo dinheiro – ainda que raramente só por ele. Aí se
encontram vendedores que oferecem certos tipos de mercadorias a certos
preços e compradores que buscam adquirir certos bens desejados e cujos
preços eles conhecem aproximadamente. Estes agentes, dotados de
racionalidade instrumental, agem estrategicamente, buscando, como sempre
considerou a ciência econômica, efetuar transações as mais vantajosas
possíveis, dentro das limitações existentes (internas e externas ao próprio
ego).
5. Do conceito de dinheiro
O meio de comunicação dinheiro é, pois, um substituto da
comunicação lingüística no âmbito do sistema econômico; ao comensurar
as mercadorias, assume uma função sistêmica antientrópica. É apenas a
partir desta função básica que se pode entender as outras funções do dinheiro,
tais como meio de transação, reserva de valor, meio de especulação, veículo
por excelência do capital etc. Esta questão, entretanto, extrapola os
propósitos do presente artigo.
Se o dinheiro é um meio de comunicação sistêmico, (ver Prado,
1996) se ele é a linguagem das mercadorias, qual vem a ser a sua especificidade?
O que o distingue da linguagem natural? Ora, no uso da linguagem natural
as noções se expressam nas palavras e as idéias se expressam nas sentenças e
no encadeamento das sentenças, mantendo sempre o caráter de atualização
e de recriação de um patrimônio intersubjetivo sustentado como tal por
um conjunto de atores sociais. A memória da sociedade assume, então, a
forma de um acervo de conhecimentos, normas e vivências compartilhadas
de modo intersubjetivo ou, o que é o mesmo, de um mundo da vida social
e cultural. No mundo das mercadorias, diferentemente, a memória social se
“materializa” como sistema, não podendo ser concebida, então, meramente,
como patrimônio intersubjetivo, pois ela se afigura para os próprios agentes
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Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica
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como possuindo uma objetividade natural, ou seja, como algo que existe
independentemente das escolhas que fazem, assim como de sua vontade e
consciência.
Dado que os preços emergem de um processo que transcende a
intenção e a vontade dos agentes,14 eles não figuram para os atores sociais
como produtos de sua criação coletiva, ou seja, como expressões simbólicas
da igualação de coisas diferentes – física e socialmente. Ao contrário, têm o
caráter de algo inerente às relações das próprias mercadorias. À medida que
as trocas se generalizam e que as razões de troca se estabilizam – sem
nunca se fixarem totalmente, entretanto –, aquilo que vai se configurando
como o dinheiro, além de comensurar as mercadorias, parece capaz de
transferir indefinidamente valor no tempo. O dinheiro figura, então, como
elemento do sistema, como algo capaz de expressar conteúdos quantitativos
que se formam autonomamente.
Se assim é, parece, então, para os atores sociais, que as mercadorias
têm um valor incorporado, valor este que assume o caráter de uma ilusão
real quando visto da perspectiva do observador científico. Trata-se de uma
ilusão, porque as mercadorias não têm, positivamente, valor incorporado
algum – esta ilusão, entretanto, é real, porque ela se afigura como efetivamente existente, de um modo irrecusável, para aqueles que atuam no interior
do sistema econômico. Isto, obviamente, dá razão a Marx quando ele fala
da coisificação das relações sociais “no modo de produção capitalista” e se
refere à relação de valor das mercadorias do seguinte modo:
[...] não é mais nada que determinada relação social entre os
próprios homens que para eles assume a forma fantasmagórica
de uma relação de coisas. Por isso, para encontrar uma analogia,
temos de nos deslocar à região nebulosa do mundo da religião.
Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida
própria, figuras autônomas, que mantêm relações entre si e com
os homens. Assim, no mundo das mercadorias, acontece com os
produtos da mão humana. Isto eu chamo o fetichismo que adere
aos produtos de trabalho, tão logo são produzidos como
14. Aqui se está supondo – como é usual em Economia – que o mercado é concorrencial.
Eleutério F. S. Prado
mercadorias, e que, por isso, é inseparável da produção de
mercadorias.15 (Marx, 1983, p. 71)
Não se endossa aqui, entretanto, a não ser num sentido muito fraco,16
que o valor econômico seja constituído de algum modo pelo trabalho
despendido na produção das mercadorias. Não se assume aqui, dizendo de
outro modo, nenhuma suposta lei do valor trabalho. Em nossa opinião, a
tentativa de Marx de formular uma apresentação do sistema econômico
capitalista com base no “trabalho abstrato” encontra dificuldades
insuperáveis, já que ele não consegue mostrar como os trabalhos concretos
se transformam, anônima e inconscientemente, no processo social, em tal
substância que, supostamente, constitui os valores como algo distinto dos
valores de troca e dos preços. Acreditamos, isto sim, que este é um ponto
cego do marxismo, ponto este que pode ser eliminado quando se atribui ao
valor, firmemente, apenas o caráter de fantasmagoria social.17 (Prado, 1997,
p. 22-23)
15. Observemos que a distinção feita por Marx entre produto da cabeça e produto da
mão, que se remete à distinção entre mente e corpo, pode ser enganosa, já que a produção de significado – porque em ambos os casos é disto que se trata – requer sempre o
concurso de significantes materiais. A diferença importante, sublinhada também por
Marx, vem a ser entre o que é recriação humana, que aparece como tal para os próprios
agentes, e o que é socialmente criado mas que se afigura como algo estranho. Num dos
casos citados por Marx a criação se espiritualiza (Deus) e no outro ela se materializa
(valor incorporado). De qualquer modo, em ambos os casos o significado socialmente
criado transforma-se em fonte de heteronomia.
16. Parece certo que o trabalho, enquanto uma atividade que funda as relações de produção, figura para os próprios atores sociais, de um modo difuso e subconsciente, como a
fonte por excelência da riqueza social, ainda que isto pareça suspeito para a perspectiva
da ciência positiva que só enxerga o natural nas coisas sociais.
17. Os homens, enquanto agentes, estão submetidos aos imperativos do sistema
econômico. Entretanto, é preciso notar que a tese aqui levantada sobre a alienação é bem
distinta daquela baseada no valor trabalho, ainda que ela reconheça, também, uma certa
intransparência inerente ao sistema e um certo caráter ilusório da autonomia dos agentes
que travam aí relações sociais. A alienação aqui não assume o caráter de uma intervenção
do criador do valor em criatura do capital-sujeito, não resulta na negação da auto-realização do homem como sujeito da história. A alienação aqui assume o caráter de supressão da racionalidade comunicativa em nome da racionalidade instrumental, da autoorganização do sistema econômico e, enfim, da eficiência.
29
Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica
Do que dissemos não se pode inferir, entretanto, que adotamos
aqui a tese segundo a qual o valor se forma na circulação. O que apresentamos
anteriormente é consistente com a tese de que a gênese da economia
mercantil se confunde com a gênese do dinheiro, sob várias formas, num
processo histórico em que se engendra o valor como uma ilusão real. Ao se
tratar do sistema econômico como realidade existente num certo momento
do tempo, é preciso ressaltar que o valor se expressa primordialmente no
dinheiro, mas também que não se expressa apenas nele. Por isso, tal como
vem de Marx, o valor tem de ser compreendido como algo distinto dos
valores de troca e dos preços e que perpassa todo o processo de produção e
circulação mercantil. Tal como Foley ressalta,
[...] o valor aparece em outras formas que não o dinheiro. Por
exemplo, na folha de balanço das firmas capitalistas se estima o
valor dos bens em processo e do capital fixo ainda não depreciado,
assim como o valor dos estoques de bens finais que estão
esperando a venda. (Foley, 1983, p. 5)
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6. Rumo a novos modelos
A teoria econômica aqui anunciada pode ser desenvolvida por meio
da formulação de modelos mais complexos, nos quais se leve em conta
aspectos tais como progresso tecnológico, regras que regulam os
comportamentos, mecanismos de seleção e de mudança etc. Ao incorporar
o dinheiro e uma noção de valor distinta da noção de valor de troca e de
preço permite, também, considerar a acumulação de capital – ou seja, a
conversão de forma e a ampliação do valor como um fim em si mesmo –,
em moldes muito semelhantes ao de Marx. Entretanto, o programa de
pesquisa que isto representa ainda se encontra em sua infância.
Há atualmente diversas linhas de pesquisa por meio das quais se
busca fazer avançar a teoria econômica através da compreensão do sistema
econômico como sistema adaptativo complexo. As fontes de inspiração
também variam: Marx, Keynes, Hayek etc. De qualquer modo, pode-se
mencionar aqui que há formulações teóricas baseadas em autômatos
celulares, na replicação dinâmica (jogos evolucionários), em algoritmos
genéticos, em casamentos aleatórios (random matching) etc., além daquela –
Eleutério F. S. Prado
aqui explorada em alguma medida – que procura aproveitar resultados da
mecânica estatística (estática e dinâmica). Para descortinar os horizontes
dessas novas perspectivas, pode-se começar consultando Kirman (1997b),
Lesourne (1992) e Arthur, W. B., S. N. Durlauf & D. A. Lane (1997).
31
Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica
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