Eleutério F. S. Prado Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica * VOL. I Nº II DEZ.99 pp. 8/34 Eleutério F. S. Prado ** 1. Introdução É possível que o domínio exercido pelo pensamento neoclássico por mais de um século, no campo do saber econômico, esteja chegando ao fim. Em The evolution of economic theory, Kirman, refletindo sobre a crise da economia walrasiana, levanta a seguinte possibilidade: A lição básica que se pode tirar [...] é que a Economia, por várias razões, ficou encerrada num paradigma particular, paradigma este que é constantemente comparado com as realizações de várias ciências, em particular com as da Física, com o fim de determinar o seu estatuto científico relativo. O que eu gostaria de sugerir [...] é que a Economia, tal como a ciência em geral, está entrando agora, provavelmente, num período de turbulência teórica. Ela, basicamente, parece ter evitado a revolução probabilística na Física. Entretanto, aquilo que agora está acontecendo no que se pode descrever frouxamente como teoria da complexidade, ou como teoria dos sistemas adaptativos complexos, parece que vai ter provavelmente um impacto no desenvolvimento da teoria econômica (Kirman, 1997a, p. 102). Kirman sugere, assim, que está-se abrindo, pouco a pouco, um novo caminho teórico para a Economia, e que para trilhá-lo é preciso abandonar os modos usuais de pensar a realidade econômica, passando a acompanhar * Este artigo tem por base um texto mais longo que foi apresentado no XXVI Encontro Nacional de Economia, realizado pela ANPEC, em dezembro de 1998. Ao modificar a versão original, busca-se atender, em parte, aos agudos comentários de Gilberto Tadeu Lima feitos na ocasião do Encontro e posteriormente. Busca-se, também, apresentar a idéia central veiculada naquela versão de uma maneira diferente, procurando torná-la mais clara e mais acessível. Quando se menciona aqui teoria neoclássica, deve-se entender que se trata da economia política walrasiana em sua versão atual. ** Professor da USP. 9 Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica 10 um movimento científico que atualmente atinge várias outras ciências, em especial a Física e a Biologia, e que vem sendo caracterizado pela sua orientação voltada à complexidade. A preocupação central desse movimento consiste em se apropriar de certas dimensões da realidade que a ciência moderna deixou em grande medida de lado, quais sejam, as do processo e da emergência. Dito de outro modo, esta linha de pensamento quer enfrentar de um modo científico os problemas da evolução temporal dos sistemas e da geração de estruturas macrossociais a partir de comportamentos microssociais. Para caracterizar o modo pelo qual esse movimento está entrando no campo da Economia, Arthur, Durlauf e Lane, na introdução de uma obra coletiva denominada muito sugestivamente de The economy as an evolving complex system, arrolam seis notas distintivas das novas construções teóricas, ainda em fase inicial de desenvolvimento: (ver Arthur, Durlauf & Lane, 1997, p. 3-4) 1. as interações entre agentes econômicos heterogêneos e adaptativos são coordenadas de modo descentralizado; 2. essas interações são coordenadas por normas, instituições e organizações endógenas, de tal modo que não haja qualquer instância global e externa de controle; 3. o sistema econômico tem propriedades emergentes e é constituído por vários níveis de coordenação; 4. o novo emerge continuamente no sistema econômico; 5. o sistema econômico, em conseqüência, encontra-se em permanente processo de adaptação; 6. o sistema econômico, finalmente, opera dinamicamente e, em geral, fora do equilíbrio. A perspectiva da complexidade caracteriza-se, pois, pela sua ambição de levar em consideração uma série de características normalmente atribuídas ao sistema econômico realmente existente, ambição que a atual teoria econômica padrão a teoria neoclássica , entretanto, não consegue efetivamente realizar. Para entender essa ruptura possível no campo específico da teoria econômica, procura-se aqui contrapor dois modos de abordar esta esfera Eleutério F. S. Prado da realidade social, os quais diferem entre si especialmente pela maneira como concebem os homens e as relações sociais no que ainda pode ser denominado, de modo provocativo, modo de produção capitalista. Para enfocar os problemas de uma maneira mais precisa, apresenta-se de início, em amplos traços, um modelo de equilíbrio de mercado desenvolvido por Duncan Foley (1994). Segue-se este caminho porque o modelo, nascido de uma apropriação de resultados da mecânica estatística, se ainda conserva um caráter estático, tem como característica importante que o equilíbrio aí considerado não vem a ser um ponto fixo, mas tem, diferentemente, uma natureza estatística. Justamente por causa dessas duas características distintivas, o modelo de Foley permite mostrar, em primeiro lugar, as deficiências mais fundamentais e, assim, os limites da teoria neoclássica de equilíbrio geral, que pode ser vista como um seu caso particular. Em segundo lugar, por introduzir uma noção de equilíbrio que não reprime a noção de incerteza endógena do sistema econômico, torna possível mostrar porque a coordenação das transações que ocorrem num mercado complexo não pode ser feita sem o dinheiro. E este é, como se sabe, um ponto fraco da teoria neoclássica padrão. Segundo Kirman, por exemplo, [...] é revelador que o dinheiro, enquanto um meio de transação, apareça como uma preocupação natural no sistema iterativo e descentralizado em que me concentro [...] já que o dinheiro não se ajusta de modo confortável no arcabouço da teoria do equilíbrio geral. (Kirman, 1997b, p. 499). Subjacente à questão da ausência intrínseca do dinheiro no modelo de equilíbrio geral e de sua presença necessária num modelo construído sob a perspectiva da complexidade, encontram-se duas concepções antagônicas de sistema econômico. Uma delas, a neoclássica, supondo que a coordenação das ações é feita de forma centralizada e que os mercados são completos e não seqüenciais, opta por uma concepção atomista de sociedade, em que as interações sociais ocorrem de um modo mecânico e são inerentemente reversíveis. A outra, a ser denominada de evolucionária, ao incorporar explicitamente noções de incerteza endógena ou seja, de entropia e de processo de mercado, leva a adotar uma concepção de 11 Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica 12 economia como um sistema de ações que ocorrem de modo espalhado, as quais se influenciam e se realimentam mutuamente, dependendo sempre de um meio de comunicação adequado. A primeira dessas duas tem, como se sabe, uma natureza estática e a segunda caracteriza-se por incorporar a flecha do tempo. Aqui se sustenta que o sucesso dessa linha teórica no campo da ciência econômica depende crucialmente da adoção de fundamentos sociais e antropológicos distintos dos fundamentos da teoria neoclássica. Sustentase, ademais, que aqueles se mostram necessários quando se passa a considerar, além das dimensões do processo e da emergência como características em geral dos sistemas adaptativos complexos, a dimensão da comunicação como particularidade inerente aos sistemas sociais, como o sistema econômico, que engloba os mercados e as hierarquias administrativas, assim como outros modos de governança. Nessa perspectiva, as relações sociais passam a ser concebidas como vínculos constituídos por comunicações, fazendo-se diferença entre as relações mediadas pela linguagem no âmbito do mundo da vida e as comunicações mediadas pelos meios não lingüísticos na esfera do sistema. O dinheiro aparece, assim, como um meio de comunicação crucial para a existência e o funcionamento do sistema econômico como tal. Ao final do artigo, pretende-se ter apresentado não só uma crítica interna à teoria neoclássica de equilíbrio geral, mas também um enfoque teórico em que o dinheiro aparece como algo co-originário ao sistema econômico sistema este, agora, dotado da propriedade da auto-organização. Pretende-se, também, ter mostrado um caminho promissor dentro do qual a teoria econômica pode se desenvolver como teoria do processo de acumulação de capital. Para tanto, este último é entendido, ao modo clássico, como valor que cresce no tempo e que se expressa, de um modo pleno, no dinheiro. 2. Modelo neoclássico generalizado 1 O modelo a ser aqui apresentado vem a ser uma generalização do modelo neoclássico padrão. A sua característica distintiva vem do fato de 1. Nesta seção se aproveita em parte uma contribuição do autor a um artigo escrito em colaboração com Jorge Soromenho (Prado & Soromenho, 1988). Eleutério F. S. Prado que vai além do determinismo inerente à análise econômica usual, tratando o mercado como um sistema de coordenação que opera segundo um certo padrão de aleatoriedade. Esse modelo, em que os preços são variáveis estocásticas e o equilíbrio é estatístico, vem a ser uma aplicação de um resultado clássico de mecânica estatística em Economia, que estende o escopo do que é usualmente denominado análise econômica. Fazendo abstrações drásticas, é possível apresentar o modelo construído por Foley de um modo simples. Seja uma economia de produtores independentes em que as duas únicas mercadorias existentes são produzidas apenas com trabalho; cada uma delas, perfeitamente homogênea, é produzida sempre com uma mesma técnica. Admitiremos que, em razão da existência de uma restrição institucional, a jornada de trabalho de todos os produtores é fixa no período de produção. Cada trabalhador, por razões tecnológicas, produz uma única mercadoria, 1 ou 2, de tal modo que há apenas dois tipos de produtores. As quantidades efetivamente produzidas das mercadorias 1 e 2 são fixas período a período e iguais a e1 e e2, respectivamente. Para apresentar o modelo do modo mais claro possível, necessitamos estabelecer uma notação adequada. Para tanto, assumimos que quatro índices estão associados às quantidades de mercadoria, da seguinte forma: jcikK , onde o sub-índice i responde pelo bem de que se trata (i = 1,2); k indica o tipo de produtor (k = a,b); o sobre-índice j indica os indivíduos dentro de cada tipo de produtor ( j = 1,2, ...., nk) e, finalmente, o sub-índice K indica a troca a que se associa a quantidade do bem. Em alguns casos, para evitar redundância, omitiremos o sub-índice k ou o sub-índice K ou, ainda, ambos. Com base nessas convenções de notação, podemos enfrentar melhor o problema de expor o modelo neoclássico generalizado desenvolvido por Foley. Suporemos, agora, que ambos os tipos de produtores, para sobreviver, precisam consumir os bens 1 e 2, buscando trocar no mercado, período a período, certa quantidade do bem que produzem por certa quantidade do bem que não produzem. Como existem na produtores da mercadoria 1, indicamos por 1c1a, 2c1a,...,nac1a as quantidades vendidas no mercado pelos indivíduos 1, 2, ..., na. De igual modo, como existem nb produtores da mercadoria 2, indicamos por 1c2b, 2c2b, ... , nbc2b as quantidades 13 Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica 14 trocadas no mercado pelos indivíduos 1, 2, ... , nb. A população total de trabalhadores é igual a na+nb = n. As razões de troca entre 1 e 2 são consideradas, entretanto, como variáveis aleatórias. Cada tipo de produtor encontra-se caracterizado por sua dotação inicial daquele bem que produz, assim como por seu mapa de preferências. No gráfico abaixo (figura 1), a título de exemplo, apresentamos a situação de escolha dos indivíduos que produzem a mercadoria 1. A dotação inicial deste tipo de produtor encontra-se indicada negativamente no eixo horizontal por e1a. A curva aí traçada, e que passa pela origem, representa uma curva de indiferença dos trabalhadores do tipo a. Ao se admitir que ambas as mercadorias não são perfeitamente divisíveis, fica determinado o elenco das trocas possíveis para cada produtor do tipo a como um conjunto finito de pontos. Este conjunto é designado na figura 1 por Aa. Os pontos do conjunto Aa podem, então, ser indexados pela seqüência 1, 2, ..., sa, sendo então designados genericamente por w. Evidentemente podemos fazer o mesmo com a situação de escolha dos produtores da mercadoria 2, indexando, então, os pontos de Ab especificamente por 1, 2, ...., s b e genericamente por j. Aa C2a Cω -e1a -C1ω C2ω 0 C1a Figura 1 Conjunto de oferta Definamos, agora, as trocas possíveis para os produtores do bem 1 pelo vetor cw = (c1w , c2w ), em que c1w £ 0 e c2w ³ 0. Os valores de troca podem ser representados de modo usual por retas que passam pela origem e pelo ponto de troca considerado. Tomando, então, por base a troca jcw , destacada no gráfico, podemos ver que o produtor j troca c1w por c2w , ficando Eleutério F. S. Prado para si mesmo com c2w de 2 e (e1a - c1w ) de 1. Definamos, igualmente, as trocas possíveis para os produtores de 2 por cj = (c1j ,c2j) em que c1j ³ 0 e c2j £ 0. Omitimos aqui o sub-índice a em cw e o sub-índice b em cj. É evidente que podemos indicar as opções escolhidas pelos produtores da mercadoria 1 por jcw = (jc1w , jc2w ), com j = 1, 2, 3, ... , na e as opções escolhidas pelos produtores da mercadoria 2 por jcj = (jc1j, jc2j), com j = 1, 2, 3, ... , nb. Ao conjunto das trocas possíveis em Aa, em princípio, associamos uma distribuição de probabilidades p(cw ), com å p(cw ) = 1, em que p(cw ) indica a proporção dos agentes do tipo a que faz a troca cw em Aa. Igualmente, ao conjunto das trocas possíveis em Ab, em princípio, associamos uma distribuição de probabilidades p(cj), com as mesmas característica da anterior. Os excessos de demanda média para os bens 1 e 2 podem ser expressos do seguinte modo: nb 1 na ∆c1 = [ ∑ j c1ω + ∑ j c1ϕ ] n j =1 j =1 nb 1 na ∆c2 = [ ∑ j c2ω + ∑ j c2ϕ ] n j =1 j =1 (1) 15 ( 2) Reagrupando os c1w e os c1j comuns na primeira expressão e os c2w e os c2j comuns na segunda, podemos fazer a seguinte transformação de (1) e (2) em (3) e (4), respectivamente: ∆c1 = ∆c2 = na n ∑ p( c )c1ω + nb ∑ p(cϕ )c1ϕ n Ab (3) nb n ∑ p( c )c2ϕ + na ∑ p(cω )c2ω n Aa (4) ω Aa ϕ Ab Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica Considerando como eventos as trocas possíveis de cada tipo de produtor, dadas as distribuições de probabilidade associadas a estas trocas, é possível medir o grau de incerteza relativo ao conjunto destes eventos. Para tanto, é preciso empregar o conceito de entropia, cuja origem encontrase na termodinâmica, mas foi utilizado na teoria da informação de Shannon. (Ver Haykin, 1994, pp. 444-449) Fazendo uso da expressão normalmente empregada para medir a entropia de um sistema estocástico bidimensional, temos: E[ p(ck )] = − 16 na n ∑ p( c ω ).ln p(cω ) − Aa nb n ∑ p( c ϕ ).ln p(cϕ ) (5) Ab É preciso notar que a expressão acima define uma medida da desorganização do sistema econômico. Quanto maior a incerteza associada ao sistema em consideração, maior será a sua entropia. De modo metafórico, pode-se dizer genericamente que quanto maior for a entropia de um sistema, mais aquecido ele se encontra. Assim, um mercado pode ser considerado frio ou quente, dependendo de seu grau de incerteza. Para encontrar o equilíbrio estatístico do sistema é preciso resolver um problema de programação não linear, em que se maximiza E[p(ck)] sujeito às restrições de que os excessos de demanda (3) e (4) acima sejam nulos. Eis que estas restrições, como se sabe, correspondem ao suposto usual da teoria neoclássica de market clearing. Ao maximizar-se E[p(ck)], procura-se garantir que os casamentos entre os dois tipos de produtores venham a ocorrer de tal modo a obedecer àquelas restrições. A solução deste problema, como indica Foley, deve-se ao físico J. W. Gibbs e é chamada canônica: exp[ −πcκ ] Z k (π ) ( 6) onde Z k (π ) = ∑ exp[ −πcκ ] ( 7) p(cκ ) = Ak se k = a ⇒ κ = ω ; se k = b ⇒ κ = ϕ Eleutério F. S. Prado As funções Zk(p), k = a,b, chamadas de partições, associam-se às trocas possíveis para os produtores dos bens 1 e 2, respectivamente. Elas se compõem de sa e sb partes; cada parte corresponde a uma das trocas possíveis em Aa ou em Ab, respectivamente. Em ambos os casos, a contribuição de cada troca para a soma Zk(p), k = 1,2 , define, de um modo proporcional, as probabilidades de ocorrência da troca.2 3. Da interpretação do modelo Antes de procurar chegar a algumas conclusões na interpretação dos resultados do modelo estatístico apresentado, é preciso mencionar algumas razões pelas quais ele foi considerado uma generalização do modelo neoclássico de equilíbrio geral. Note-se, antes de tudo o que se segue, que ambos têm um caráter estático. Como se sabe, a compreensão do sistema econômico que vem da teoria walrasiana funda-se, em última análise, em supostos bastante extremados sobre a capacidade cognitiva dos agentes. Para poder pensar que estes são perfeitamente racionais e que fazem escolhas ótimas, esta teoria toma como se certo fosse que os agentes possuem um conhecimento completo de todas as escolhas possíveis, assim como das conseqüências destas escolhas para o seu próprio bem-estar. A mesma teoria presume, ademais, que a relação destas escolhas com o próprio funcionamento do sistema econômico pode ser negligenciada pelos agentes, porque se admite que eles tomam os preços como dados. Para tornar as opções individuais dos agentes coerentes no agregado, supõe ainda aquela teoria que estes valores de troca foram já descobertos previamente pelo leiloeiro por meio de uma seqüência de experimentos de equilibração cujo resultado final é a supressão do processo de mercado e a inversão de sua seqüência espontânea: no modelo walrasiano, primeiro o equilíbrio é atingido e, depois, fazem-se as trocas. Na visão de sistema econômico sugerida pelo modelo generalizado, os indivíduos são concebidos ainda como unidades básicas deste sistema. 2. Esses resultados podem ser estendidos para os modelos estatísticos de mercado em que os conjuntos de oferta são infinitos (Foley, 1994, p. 330). 17 Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica 18 Eles se encontram definidos como átomos sociais, ou seja, como elementos que têm uma unidade própria, externos uns aos outros, imutáveis em princípio e que interagem mecanicamente por meio de trocas. A busca do próprio interesse é a força inerente que os move; o entrechoque de suas ações, que se constituem como ofertas e demandas, é o único modo por meio do qual interagem; em conjunto, eles compõem um campo de forças que tende ao equilíbrio. O mercado é o que meramente resulta da agregação das ações dos indivíduos que o formam, apresentando, em conseqüência, propriedades emergentes, mas estas, estando ausente qualquer noção de processo, não influenciam o comportamento dos agentes por realimentação. No modelo generalizado, para que um equilíbrio aconteça, é preciso supor que os agentes uma parte deles pelo menos , ademais de atuarem como compradores e vendedores, operam também como intermediários no mercado. Enquanto compradores e vendedores, eles fixam os valores de troca ao se encontrarem nos pontos de seus conjuntos de oferta Aa e Ab; entretanto, apenas dessa forma o mercado não chega à plena compensação. Dada a distribuição das demandas e ofertas nesses conjuntos, é preciso admitir então que, enquanto intermediários, os agentes são capazes de localizar os excessos de uma e outra existentes, realizando as transações necessárias para que o equilíbrio estatístico venha a ocorrer. Assim se é levado a atribuir comportamentos aos agentes em função de um constrangimento que opera ao nível do mercado como um todo. Note-se, agora, que no modelo generalizado os agentes atuam com base nos valores de troca, mas a informação disponível para estes agentes não é completa. Em conseqüência, na ausência de leiloeiro, eles não podem seguir a regra de maximização. Note-se, também, que os agentes são dotados de racionalidade instrumental e que buscam melhorar a sua condição econômica. Tendo em mente essas observações, não é difícil perceber que o modelo walrasiano tradicional pode ser visto como um caso particular do modelo de Foley. Para tanto, basta substituir os intermediários pelo leiloeiro, supondo ao mesmo tempo que um processo de tâtonnement descobre um k* que gera o market clearing de um modo determinista. O ponto descoberto vem a ser, como se sabe, um equilíbrio de Arrow-Debreu. Neste caso, p(ck* ) = 1 e p(ck*) = 0 para k ¹ k* e a entropia do sistema é nula. Eleutério F. S. Prado Esse resultado reclama, entretanto, uma explicação, pois para obtêlo foi necessário partir da maximização da entropia associada ao sistema econômico. Eis que isto se explica pela adoção de um princípio de objetividade científica que recomenda não supor que existe informação e que esta esteja disponível, quando isto não puder ser bem justificado nos termos da própria construção teórica em consideração.3 Ora, justamente a violação deste princípio ou seja, a adoção de uma forma de geração de informação puramente ad hoc, puramente imaginária é o que possibilita à teoria neoclássica apresentar o sistema econômico como uma máquina de informação perfeita que chega possivelmente a um equilíbrio de ponto fixo. Tudo isto, entretanto, é surpreendente, pois revela uma fraqueza profunda da teoria neoclássica de equilíbrio geral. Diferentemente dos agentes econômicos que povoam o modelo, o leiloeiro não está submetido a qualquer constrangimento informacional: a sua capacidade de processar a informação necessária para descobrir a alocação de equilíbrio é praticamente ilimitada. Ele organiza o mercado transformando informação dispersa em centralizada de um modo perfeito dito de outro modo, o custo entrópico é nulo. Tudo se passa como se, no âmbito da Economia, estivesse sendo contrariada uma lei da Física: o leiloeiro representa, de certo modo, uma violação do equivalente informacional do segundo princípio da termodinâmica.4 Apesar de cometer esse atentado à objetividade científica, é sabido que o programa de pesquisa em equilíbrio geral não conseguiu resolver os problemas que ele próprio privilegiou como as questões teóricas por excelência no campo da ciência econômica. Se para o problema da existência 3. Sobre este princípio, ver Kapur & Kesavan (1992). 4. Foley menciona a similaridade entre o leiloeiro walrasiano e o demônio de Maxwell, figura inventada por este físico famoso com o intuito de mostrar a conversão possível de uma forma de energia degradada, ou seja, calor, em outra mais nobre, por exemplo, energia cinética, de modo perfeito, isto é, sem gasto adicional de energia, em condições imaginárias. O papel do demônio, como se sabe, vem a ser separar, num sistema fechado, as moléculas com maior energia daquelas com menor energia, de tal modo a criar dois subsistemas com temperaturas diferentes. Em Física, o problema era bem claro, já em Economia ... 19 Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica 20 do equilíbrio foi dada uma solução satisfatória, o mesmo não ocorreu com os problemas conexos da unicidade e da estabilidade. Ao contrário, ficou demonstrado, por exemplo, que mesmo a existência de um ponto fixo no processo de tâttonement não era garantia de que ele fosse estável. Mais do que isto, foi provado que a propriedade da unicidade não poderia ser garantida, a não ser mediante a adoção de restrições ad hoc. (Ver Soromenho, 1997 e Ingrao & Israel, 1990) Eis, porém, que soluções para esses três problemas somente seriam realmente satisfatórias se consistentes entre si. O modelo acima apresentado, ao generalizar a teoria neoclássica, elimina em parte essas dificuldades. Ao fazê-lo, entretanto, deixa-a indefesa diante de uma crítica mais penetrante: o modelo de Arrow-Debreu concebe o mercado como uma máquina perfeita que organiza as informações necessárias ao próprio funcionamento, sem custo e sem limitações de capacidade de processamento. Observe-se, porém, que o modelo generalizado não elimina toda dificuldade: não fica claro como os intermediários um elemento do modelo tão ad hoc quanto o leiloeiro , cumprem a sua tarefa. Afinal, o que garante, ao nível microeconômico, que as situações de desequilíbrio convirjam para as de equilíbrio? Vale notar, agora, que se o modelo padrão é determinista, o modelo neoclássico generalizado apresenta em princípio um grau excessivo de aleatoriedade ou de incerteza sistêmica. Se o número de bens aumenta e se o número de tipos tender a igualar o número de trabalhadores na população, o grau de entropia do sistema tenderá a um valor cada vez mais alto,5 de tal modo que a sua possibilidade de funcionamento desaparecerá. Isto mostra uma limitação do modelo generalizado: para que haja solução é preciso pensar que os agentes da economia são tipos e não individualidades. Ora, isto é uma espécie de preço que se tem de pagar pela eliminação do leiloeiro. Ademais, no modelo generalizado, não há nem externalidades e nem custos de transação, (ver Amable, Boyer & Lordon, 1997) mas há incerteza e esta é medida pela entropia. Neste modelo, apesar disso, não há ainda dinheiro, de tal modo que a economia representada não deixa de ser de troca. Parece óbvio, entretanto, que a situação modelada, ao envolver 5. Isto pode ser provado rigorosamente. (Karlin & Taylor, 1975, pp. 495-502) Eleutério F. S. Prado incerteza endógena, parece requerer a consideração de algo que possa manter a entropia do sistema num nível razoável. Recusa-se aqui, entretanto, um caminho fácil, que consiste em derivar a existência do dinheiro de uma função que ele pode ter no sistema econômico. Para introduzir rigorosamente o dinheiro no modelo vem a ser necessário, primeiro, criticar as bases da teoria econômica walrasiana, sugerindo inclusive que é preciso considerar uma outra concepção de homem e de sociabilidade. É preciso mostrar, ademais, que estas concepções só fazem sentido quando a economia for apreendida como um processo evolucionário. Assim, encontrar-se-ão novas bases que permitirão a construção de um modelo no espírito da teoria da complexidade em que o dinheiro está presente por necessidade intrínseca. 4. Da concepção alternativa A compreensão da economia que vem de Walras foi criticada por Hayek de um modo agudo, já em 1936: a construção walrasiana tem para ele um caráter tautológico, já que não é capaz de mostrar como o conhecimento necessário ao funcionamento do sistema econômico é adquirido e transmitido. Para chegar aos seus resultados logicamente necessários, a teoria walrasiana assume que já se encontra resolvido o problema que o mercado real tem de resolver, qual seja, o da sua própria auto-organização. Segundo Hayek (1948a, p. 45), esta teoria assume que o sistema econômico como um todo é um mercado perfeito em que todos sabem tudo. Entretanto, afirma ele, é preciso superar o caráter centralizado, tautológico e estático do modelo de equilíbrio geral. Para compreender melhor tal sistema, de acordo com Hayek, devese considerar explicitamente o problema da dispersão do conhecimento e enfrentar a questão de entender como a interação espontânea de um grande número de pessoas, cada uma delas possuindo apenas uma porção de conhecimento, leva a um estado em que os preços correspondem aos custos ... (Id., ibid., 1948a, pp. 50-51). Em outro texto, diz, mais enfaticamente: O caráter peculiar do problema da ordem econômica é determinado precisamente pelo fato de que o conhecimento 21 Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica necessário das circunstâncias nunca existe numa forma concentrada ou integrada, mas somente como porções incompletas de conhecimentos, freqüentemente contraditórias, porções estas detidas por indivíduos distintos. (Hayek, 1948b, p. 77) 22 Apesar de responder em alguma medida às preocupações de Hayek as trocas não são coordenadas de forma centralizada e não há inversão da seqüência espontânea do mercado o modelo generalizado ainda não satisfaz à perspectiva desse autor, já que não incorpora o que vem sendo chamado propriamente de auto-organização, algo intimamente relacionado com o que Smith designava por mão invisível. O modelo generalizado também não incorpora a formação descentralizada de conhecimento, a aprendizagem e a revisão do conhecimento antes adquirido; também não permite e isto é crucial que os agentes se influenciem reciprocamente, em particular, que aprendam uns com os outros. Ademais, não admite que esses agentes possam ser inovadores, que possam interagir com o ambiente social, comportando-se com base numa racionalidade processual e adaptativa.6 Eis que estas notas são características distintivas da visão hayekiana do processo de mercado, indicando, também, aspectos que podem fazer diferença em uma nova construção teórica distinta da neoclássica. Em conseqüência, é preciso, agora, passar de uma concepção atomista e mecânica para uma concepção sistêmica e pragmática, respectivamente, de economia e de interação econômica, admitindo desde o início que o mercado funciona com o dinheiro. Dito de outro modo, é preciso adotar uma perspectiva evolucionária. O dinheiro, como já se mencionou na 6. O conceito de racionalidade otimizadora, característica da assim chamada teoria da escolha racional, vem a ser uma particularização do conceito mais amplo de racionalidade cognitiva e instrumental. O conceito de racionalidade limitada, que envolve restrições à capacidade cognitiva do agente, vem a ser outra particularização possível. O mesmo ocorre com o conceito de racionalidade adaptativa. Aqui é fundamental perceber que os agentes, imersos num contexto social, são impelidos a se ajustar da melhor forma possível a um ambiente em processo de mudança, algumas das quais ocasionadas por eles mesmos, consciente ou inconscientemente. Em qualquer dos casos, a racionalidade diz respeito à consistência dos fins e, obviamente, à adequação de meios a fins , mas não ao seu conteúdo, já que no dizer clássico de Hume, ela é meramente escrava das paixões. Eleutério F. S. Prado introdução, será aqui entendido como um meio de comunicação sistêmico por meio do qual se estabelecem as relações sociais na economia mercantil generalizada.7 O dinheiro, assim concebido, permite a equivalência geral das mercadorias, possibilita a memória do sistema e a aprendizagem dos agentes, mantendo a entropia de um funcionamento progressivo altamente complexo em níveis suportáveis. Para tanto, torna-se necessário apresentar uma concepção alternativa de homem e de relação social em comparação com aquela da teoria neoclássica. Seguindo Habermas, admite-se desde o princípio que o homem é um ser que se desenvolve historicamente por meio do uso da comunicação lingüística e não lingüística, relacionando-se assim entre si e com a natureza neste último caso, por meio do trabalho (que tem também uma dimensão simbólica). Admite-se ainda que os atores sociais, na sociedade moderna, estão sempre submetidos a uma dupla imersão contextual: junto ao mundo da vida (ou seja, a esfera da cultura, da formação da personalidade e da constituição da sociabilidade) e junto ao sistema social como um todo (que nada mais é do que a parte da estruturação simbólica que se tornou reificada e que é constituída, basicamente, pelo sistema econômico e pelo Estado). O mundo da vida é o acervo dos conhecimentos intersubjetivamente compartilhados pelos atores sociais e que permite a entabulação da comunicação por meio da linguagem. O sistema social que aqui interessa mais de perto , estruturação simbólica que aparece para os agentes como realidade objetiva, ou seja, como uma segunda natureza, é constituído por um complexo de modos de governança que funcionam a despeito da consciência dos agentes e que constrangem e moldam as ações instrumentais e estratégicas dos atores sociais.8 No sistema, os agentes atuam com base 7. Isto significa que não se concorda aqui com a posição de Shubik, segundo a qual é preciso evitar aquele tipo de debate que quer saber o que é dinheiro?. Antes de mais nada, porque é assim que se cai em contradição: a atitude adotada aqui [...] é considerar diz Shubik, logo após firmar essa posição que todas as formas de dinheiro e de instrumento de crédito têm uma existência física (1997, p. 268). Sem considerar o dinheiro, primeiro, sociologicamente, como algo por meio de que se estabelecem certas relações sociais, não se terá sucesso na construção de modelos econômicos em que ele tenha um papel relevante. 8. As regras de comportamento reificadas aparecem, então, como instituições. 23 Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica 24 em regras operacionais, buscando fins exteriores, largamente independentes dos valores e das normas do mundo da vida. Descobre-se essa concepção alternativa de homem e de relação social quando se presta atenção ao que vem sendo chamado usualmente de virada lingüística da Filosofia. (Ver Herrero, 1997) No movimento de passagem que ultrapassa a filosofia da consciência, tornou-se claro que as formas de comunicação lingüísticas e não lingüísticas fazem a mediação de toda relação entre os sujeitos e entre os sujeitos e os objetos, intermediando todo o sentido e toda a validade possíveis. Nessa perspectiva, a interação social não é meramente mecânica, mas constitutiva das partes que interagem, as quais se transformam no processo. Mais do que isso, o meio por excelência de interação social é a comunicação que envolve, além da transmissão de informação, o vínculo intersubjetivo. Buscando agora descer do geral para o específico, é preciso fazer referência aqui à crítica de Commons à noção de troca de mercadoria e à sua proposta de substituí-la pela noção de transação, enquanto a menor unidade de análise em Economia. O seu argumento básico consiste em dizer que a noção de troca é naturalista, pois pressupõe agentes situados no mesmo nível da natureza e se remete, portanto, meramente, às relações destes agentes com o seu entorno natural. Para fazer diferente, para ver aí, antes de tudo, relações dos homens entre si, ele propõe o conceito de transação: As transações são, não trocas de mercadorias, mas a alienação e a aquisição, entre indivíduos, dos direitos de propriedade e de liberdade criados pela sociedade, os quais têm de ser negociados entre as partes interessadas antes de que o trabalho possa produzilos ou os consumidores possam consumi-los ou as mercadorias possam ser fisicamente trocadas. Nas transações, diz ele, estão envolvidas negociações: [...] cada participante busca influenciar o desempenho, a indulgência e o comedimento do outro. Cada um modifica o comportamento do outro em maior ou menor grau. Esta é a psicologia dos negócios, dos costumes, da legislação das cortes, das associações comerciais e dos sindicatos. (Commons, 1931). Eleutério F. S. Prado Ainda que a crítica de Commons à noção de troca de mercadorias quando ele tem por referência a economia neoclássica walrasiana seja correta,9 não se endossa aqui inteiramente, entretanto, a noção de transação que ele propõe, pois, como se sabe, desde Marx as relações sociais mercantis são coisificadas. Mas julga-se que o conceito de Commons tem a sua importância porque enfatiza o caráter interativo e comunicacional da relação econômica e o papel que esta tem na constituição das regras, das convenções, das instituições e mesmo dos processos tecnológicos que permeiam o funcionamento do sistema econômico e que permitem tanto a ação coletiva quanto a ação individual. A sua noção de transação, assim, encontra-se ligada a uma concepção evolutiva de economia.10 Nesta perspectiva, pois, é que cabe procurar compreender o dinheiro como um meio que regula as transações no sistema econômico. Para tanto, é necessário entender, de início, que a linguagem natural assim como o seu emprego na vida cotidiana vem a ser o paradigma por excelência dos meios de comunicação, atentando para o significado que o próprio termo comunicação assume no contexto dessa virada: basicamente, ao mesmo tempo, vínculo intersubjetivo e troca de informação. A comunicação é constituída por atos de fala e estes têm uma estrutura dual: por um lado, propõem um compromisso, estabelecem intenções e, por outro, apontam para os objetos, transmitem informação. Assim, eles apresentam algo no mundo objetivo, mas só o fazem porque, ao mesmo tempo, estabelecem uma relação intersubjetiva entre aqueles que 9. De acordo com Walras, o fato do valor de troca toma, pois, desde que estabelecido, o caráter de um fato natural, natural em sua origem, natural em sua manifestação e em sua maneira de ser (Walras, 1983, p. 22). A expressão desde que estabelecido dentro da sentença acima sugere que Walras estava pensando, também, implicitamente, em coisificação. 10. Estas observações foram sugeridas pela leitura de um texto de Renault que ressalta a relação entre o velho institucionalismo de Veblen, Commons etc. e o pragmatismo de Pierce, James etc., ambos de origem norte-americana (Renault, 1997). Ora, foi justamente a semiótica de Pierce elaborada na virada do século XIX para o século XX que assentou as bases para a revolução lingüística do final deste último e que está influenciando o desenvolvimento de todas as ciências, inclusive da Economia. 25 Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica 26 participam do processo da conversação.11 Quando a comunicação, entretanto, é perturbada, ou seja, quando ocorrem problemas de divergência de interpretação, os atores sociais podem passar à argumentação que se move pelo resgate de pretensões de validade.12 Algo de semelhante acontece com o dinheiro. No âmbito do mundo da vida, o resgate de pretensões de validade pressupõe a busca de entendimento por meio do uso da racionalidade comunicativa (Ver Prado, 1993). No âmbito das relações de mercado, a comunicação tem uma forma que envolve necessariamente o dinheiro. Os possuidores de mercadorias asseguram, implícita ou explicitamente, que o preço pedido é correto, ou seja, que ele expressa adequadamente o valor da mercadoria. Os demandantes podem concordar ou discordar, dispondo-se a pagá-lo ou não. Tal como ocorre, pois, no âmbito do mundo da vida, pode haver ou não acordo sobre o conteúdo da proposição. Logo, também no âmbito do sistema econômico pode haver necessidade de resgate de pretensões de validade que aqui é melhor denominarmos de pretensões de valor. Entretanto, agora, o emprego da racionalidade comunicativa encontra-se obstado, e isto ocorre em virtude do caráter quantitativo do dinheiro (frente ao qual todas as mercadorias são igualadas, ou seja, as suas qualidades são colocadas entre parênteses). Em conseqüência, tal resgate ocorre pelo uso da racionalidade instrumental e estratégica em si mesma, uma expressão da busca da autoconservação por meio de procedimentos intencionalmente eficientes.13 De qualquer modo, nessa perspectiva, mesmo 11. Segundo Habermas, as expressões lingüísticas têm uma estrutura dual: compõem-se de uma frase performativa, que permanece geralmente implícita, e de uma frase informativa ou propositiva. Por exemplo: [Asseguro-lhe que ...] a flor é vermelha. A primeira propõe um compromisso intersubjetivo, estabelecendo intenções; já a segunda aponta para as coisas e transmite uma informação sobre o mundo. 12. É claro que uma perturbação de comunicação pode ser interrompida pela quebra do vínculo intersubjetivo ou pode ser encerrada pelo apelo à tradição ou ao poder. 13. A racionalidade instrumental aparece na filosofia subjacente à teoria neoclássica como uma característica por excelência da natureza humana. Ora, a razão é a negação da animalidade e, por conseqüência, deve ser compreendida com a contrapartida da institucionalização histórica da produção mercantil, por meio dos mercados, das organizações e do Estado moderno. Eleutério F. S. Prado sendo instrumental, a racionalidade dos agentes é processual e adaptativa, já que envolve interpretação, aprendizagem, revisão de conhecimento, formação de expectativas e constituição de regras que limitam e possibilitam as ações dos próprios agentes por meio de realimentação. Em conseqüência, o mercado é constituído por interações mediadas de modo crucial pelo dinheiro ainda que raramente só por ele. Aí se encontram vendedores que oferecem certos tipos de mercadorias a certos preços e compradores que buscam adquirir certos bens desejados e cujos preços eles conhecem aproximadamente. Estes agentes, dotados de racionalidade instrumental, agem estrategicamente, buscando, como sempre considerou a ciência econômica, efetuar transações as mais vantajosas possíveis, dentro das limitações existentes (internas e externas ao próprio ego). 5. Do conceito de dinheiro O meio de comunicação dinheiro é, pois, um substituto da comunicação lingüística no âmbito do sistema econômico; ao comensurar as mercadorias, assume uma função sistêmica antientrópica. É apenas a partir desta função básica que se pode entender as outras funções do dinheiro, tais como meio de transação, reserva de valor, meio de especulação, veículo por excelência do capital etc. Esta questão, entretanto, extrapola os propósitos do presente artigo. Se o dinheiro é um meio de comunicação sistêmico, (ver Prado, 1996) se ele é a linguagem das mercadorias, qual vem a ser a sua especificidade? O que o distingue da linguagem natural? Ora, no uso da linguagem natural as noções se expressam nas palavras e as idéias se expressam nas sentenças e no encadeamento das sentenças, mantendo sempre o caráter de atualização e de recriação de um patrimônio intersubjetivo sustentado como tal por um conjunto de atores sociais. A memória da sociedade assume, então, a forma de um acervo de conhecimentos, normas e vivências compartilhadas de modo intersubjetivo ou, o que é o mesmo, de um mundo da vida social e cultural. No mundo das mercadorias, diferentemente, a memória social se materializa como sistema, não podendo ser concebida, então, meramente, como patrimônio intersubjetivo, pois ela se afigura para os próprios agentes 27 Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica 28 como possuindo uma objetividade natural, ou seja, como algo que existe independentemente das escolhas que fazem, assim como de sua vontade e consciência. Dado que os preços emergem de um processo que transcende a intenção e a vontade dos agentes,14 eles não figuram para os atores sociais como produtos de sua criação coletiva, ou seja, como expressões simbólicas da igualação de coisas diferentes física e socialmente. Ao contrário, têm o caráter de algo inerente às relações das próprias mercadorias. À medida que as trocas se generalizam e que as razões de troca se estabilizam sem nunca se fixarem totalmente, entretanto , aquilo que vai se configurando como o dinheiro, além de comensurar as mercadorias, parece capaz de transferir indefinidamente valor no tempo. O dinheiro figura, então, como elemento do sistema, como algo capaz de expressar conteúdos quantitativos que se formam autonomamente. Se assim é, parece, então, para os atores sociais, que as mercadorias têm um valor incorporado, valor este que assume o caráter de uma ilusão real quando visto da perspectiva do observador científico. Trata-se de uma ilusão, porque as mercadorias não têm, positivamente, valor incorporado algum esta ilusão, entretanto, é real, porque ela se afigura como efetivamente existente, de um modo irrecusável, para aqueles que atuam no interior do sistema econômico. Isto, obviamente, dá razão a Marx quando ele fala da coisificação das relações sociais no modo de produção capitalista e se refere à relação de valor das mercadorias do seguinte modo: [...] não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens que para eles assume a forma fantasmagórica de uma relação de coisas. Por isso, para encontrar uma analogia, temos de nos deslocar à região nebulosa do mundo da religião. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantêm relações entre si e com os homens. Assim, no mundo das mercadorias, acontece com os produtos da mão humana. Isto eu chamo o fetichismo que adere aos produtos de trabalho, tão logo são produzidos como 14. Aqui se está supondo como é usual em Economia que o mercado é concorrencial. Eleutério F. S. Prado mercadorias, e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias.15 (Marx, 1983, p. 71) Não se endossa aqui, entretanto, a não ser num sentido muito fraco,16 que o valor econômico seja constituído de algum modo pelo trabalho despendido na produção das mercadorias. Não se assume aqui, dizendo de outro modo, nenhuma suposta lei do valor trabalho. Em nossa opinião, a tentativa de Marx de formular uma apresentação do sistema econômico capitalista com base no trabalho abstrato encontra dificuldades insuperáveis, já que ele não consegue mostrar como os trabalhos concretos se transformam, anônima e inconscientemente, no processo social, em tal substância que, supostamente, constitui os valores como algo distinto dos valores de troca e dos preços. Acreditamos, isto sim, que este é um ponto cego do marxismo, ponto este que pode ser eliminado quando se atribui ao valor, firmemente, apenas o caráter de fantasmagoria social.17 (Prado, 1997, p. 22-23) 15. Observemos que a distinção feita por Marx entre produto da cabeça e produto da mão, que se remete à distinção entre mente e corpo, pode ser enganosa, já que a produção de significado porque em ambos os casos é disto que se trata requer sempre o concurso de significantes materiais. A diferença importante, sublinhada também por Marx, vem a ser entre o que é recriação humana, que aparece como tal para os próprios agentes, e o que é socialmente criado mas que se afigura como algo estranho. Num dos casos citados por Marx a criação se espiritualiza (Deus) e no outro ela se materializa (valor incorporado). De qualquer modo, em ambos os casos o significado socialmente criado transforma-se em fonte de heteronomia. 16. Parece certo que o trabalho, enquanto uma atividade que funda as relações de produção, figura para os próprios atores sociais, de um modo difuso e subconsciente, como a fonte por excelência da riqueza social, ainda que isto pareça suspeito para a perspectiva da ciência positiva que só enxerga o natural nas coisas sociais. 17. Os homens, enquanto agentes, estão submetidos aos imperativos do sistema econômico. Entretanto, é preciso notar que a tese aqui levantada sobre a alienação é bem distinta daquela baseada no valor trabalho, ainda que ela reconheça, também, uma certa intransparência inerente ao sistema e um certo caráter ilusório da autonomia dos agentes que travam aí relações sociais. A alienação aqui não assume o caráter de uma intervenção do criador do valor em criatura do capital-sujeito, não resulta na negação da auto-realização do homem como sujeito da história. A alienação aqui assume o caráter de supressão da racionalidade comunicativa em nome da racionalidade instrumental, da autoorganização do sistema econômico e, enfim, da eficiência. 29 Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica Do que dissemos não se pode inferir, entretanto, que adotamos aqui a tese segundo a qual o valor se forma na circulação. O que apresentamos anteriormente é consistente com a tese de que a gênese da economia mercantil se confunde com a gênese do dinheiro, sob várias formas, num processo histórico em que se engendra o valor como uma ilusão real. Ao se tratar do sistema econômico como realidade existente num certo momento do tempo, é preciso ressaltar que o valor se expressa primordialmente no dinheiro, mas também que não se expressa apenas nele. Por isso, tal como vem de Marx, o valor tem de ser compreendido como algo distinto dos valores de troca e dos preços e que perpassa todo o processo de produção e circulação mercantil. Tal como Foley ressalta, [...] o valor aparece em outras formas que não o dinheiro. Por exemplo, na folha de balanço das firmas capitalistas se estima o valor dos bens em processo e do capital fixo ainda não depreciado, assim como o valor dos estoques de bens finais que estão esperando a venda. (Foley, 1983, p. 5) 30 6. Rumo a novos modelos A teoria econômica aqui anunciada pode ser desenvolvida por meio da formulação de modelos mais complexos, nos quais se leve em conta aspectos tais como progresso tecnológico, regras que regulam os comportamentos, mecanismos de seleção e de mudança etc. Ao incorporar o dinheiro e uma noção de valor distinta da noção de valor de troca e de preço permite, também, considerar a acumulação de capital ou seja, a conversão de forma e a ampliação do valor como um fim em si mesmo , em moldes muito semelhantes ao de Marx. Entretanto, o programa de pesquisa que isto representa ainda se encontra em sua infância. Há atualmente diversas linhas de pesquisa por meio das quais se busca fazer avançar a teoria econômica através da compreensão do sistema econômico como sistema adaptativo complexo. As fontes de inspiração também variam: Marx, Keynes, Hayek etc. De qualquer modo, pode-se mencionar aqui que há formulações teóricas baseadas em autômatos celulares, na replicação dinâmica (jogos evolucionários), em algoritmos genéticos, em casamentos aleatórios (random matching) etc., além daquela Eleutério F. S. Prado aqui explorada em alguma medida que procura aproveitar resultados da mecânica estatística (estática e dinâmica). Para descortinar os horizontes dessas novas perspectivas, pode-se começar consultando Kirman (1997b), Lesourne (1992) e Arthur, W. B., S. N. Durlauf & D. A. Lane (1997). 31 Equilíbrio e entropia: crítica da teoria neoclássica Referências bibliográficas 32 AMABLE, B.; BOYER, R. & LORDON, F. The ad hoc in economics: the pot calling the kettle black. In: dAutume, A. e Cartelier, J. 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