o ESTUOO DE UM CASO DE SiNDROME FRONfAL A PARTIR DE PRESSUPOSTOS LINGmSTICOS E NEUROLINGmSTICOS Silvia Elaine PEREIRA (IEUUNICAMP - P6s-Graduacao) This work relate the case of a patient that found in the "Centro de Convivenciade Afasicos" (CCA) which treatment was realized in the neurolinguistics perspective. ABSTRACI': KEY WORDS: neurolinguistics, frontal syndrome, discourse analysis. Faremos aqui uma breve analise de um caso que foi diagnosticado como sindrome frontal grave. Pelo pouco tempo que dispomos, serao feitos comentarios a respeito de dados selecionados de UIila sessao do Centro de, Convivencia de Afisicos (CCA) realizada em 1994. Ao analisarmos casos de pacientes com sindrome frontal,observamos a ocorrencia de dificuldades relacionadas a sua atividade lingilistica, a relacao do sujeito com sua linguagem em seu cotidiano e problematica. Com a participacao no Centro de Convivencia de Afasicos (CCA) , onde a linguagem e posta em funclonamento os sujeitos sao expostos a situaCoes nas quais, inevitavelmente,aparecerao os deficits especificos de cada um; no CCA as atividades envolvem as mesmas questoes do "jogo" da linguagem que eles encontram nos fatos mais corriqueiros do dia-a-dia numa fila de banco, num restaurante, entre outros. E assim, de acordo com uma Teoria de Linguagem discursivamente orientada (Franchi, 1977; Coudry, 1988; Maingueneau, 1989), os fatos lingilisticos que "saltam" diante dos pesquisadores revelam que a atividade que coloca a linguagem em funcionamento, no processo de interlocucao, e um lugar privilegiado que possibilita a re-coDStrucaoda linguagem desses sujeitos, diferentemente da situacao de teste nas quais 0 sujeito geralmente realiza uma atividade metalingilistica sobre a lingua, a atividade feita no CCA leva 0 sujeito a agir na e pela linguagem, sem descartar 0 conhecimento que ele tem sobre a lingua. Dentre os virios aspectos que podem ser analisados no processo de interlocucao que se da no CCA, elegemos as dificuldades de engajamento de alguns sujeitos no t6pico discursivo, pois assim, fatos da linguagem como a digressao e a confabulacao que "saltam" 80S nossos olhos, podem ser discutidos. Tomaremos por t6pico d.iscursivo 0 assunto sobre 0 qual se fala, ultrapassando 0 Divel da sente~ e Ilio prescindindo dos fatores textuais, dos interlocutores - enfim, de todo 0 contexto no qual 0 discurso se realiza (cf. Dascal & Katriel, 1979). Para iniciarmos nossa discusdo, lembramos que, tradicionalmente, a sfndrome frontal ~ vista como urn distUrbio de comportamento; caracterizando-se pela desorg~o geral nas atividades do indivfduo, distraibilidade, perda de mem6ria, impossibilidade de retletir sobre suas atividades para corrigir erros eventuais, penist!ncia em atividades simples, dificuldade para lidar com situaeOes inesperadas, entre outros. (cf. LURIA, 1984). Em anAlisesapresentadas (a respeito ver Gandolfo, 1994 e Coudry & Gandolfo, 1994), ja encontramos algumas caracteriza¢e$ lingilfsticas da sindrome frontal que do pouco discutidas e que merecem maior atencio. Assim, procuramos mostrar nesta apresen~o que a sfndrome frontal pode ser caracterizada J.ing(1fsticamente a partir dos pressupostos te6ricos ja mencionados. Para tanto, sera utilizado urn expediente enunciativo privilegiado para a investigacao do funcionamento da linguagem: a piada. Como foi apontado por Coudry e Possenti (1993), a piada permite que 0 pesquisador teDhaurn controle relativamente flicil dos dados pela sua brevidade, al~m de ser urn material rico no que diz respeito a duplicidade de interpretacao, exigindo urn certo dominio de elementos lingillsticos e/ou contextuais tanto por parte daquele que a conta como por parte do ouvinte das piadas. Por esse motivo a piada foi introduzida em uma versio protocolar para avali~o dos pacientes que participam do Centro de Convivancia de AfAsicos(CCA). o sujeito ER participa das reuniOes do CCA, tem 41 anos e sofreu traumatismo craneoencefAlicocausado por acidente automobilistico em janeiro de 1991 resultando em sequelas neuropsicol6gicas compatfveis com urn quadro de slndrome frontal grave. Os dados foram selecionados da sessao de 23 de marco de 1994, na qual foi realizada a atividade de contagem e recontagem de piadas. Foram feitos dois grupos para que urn pudesse recontar piadas diferentes para 0 outro; cada urn dos sujeitos pertencentes aos respectivos grupos ficou responsavel pela recontagem de uma piada. Nesta atividade podemos notar as dificuldades de interpretaCio ER; ele sabe que se tratam de piadas, mas no momento de reconta-las, demonstra seu ~ficit lingillsticocognitivo. A piada que deveria ser recontada por ER era a seguinte: "-voca sabe 0 que 0 carrapato macho disse para a carrapato femea? -v~ Ilio desgruda, hein!!" 1 1raDSC~ 682 Os dados loom transcritos com base nas nonnas do Projeto NURC. alem das nonnas de especffic:asdo Projeto Integrado em Neurolingi1fstica. (...) INVmb: bom. Ederaldo. conta essa piada pra mim. voce vai ter que contar 18 ... ER: chega urn sa...• urn cara macho. olba pra iemea dele e fala que ela e des ... e muito desegida e quer conversar com ela. sOisso. INVmb: s6 isso? mas foi essa a piada que a gente contou. Celene? CF: (PACIENTE COM AFASIA MOTORA GRAVE QUE APRESENTA ESTEREOTIPIA) ah. esal, esal .,. (e ri) INVmb: vejam. a hist6ria Ilio e de urn CARA MACHO. e de urn CAR-RAPATO. que que 0 carrapato disse pra iemea? ER: ele chega e fala que e muito desegida e que ele quer conversar com ela, s6 isso. INVmb: mas essa foi a piada que eu contei? CF: nio ... nio ... (...) INVmb: enmo essa e a piada. Ederaldo. "0 carrapato MACHO disse pra femea. par que e que voce nao desgruda?" ou "voce Ilio desgruda mesmo. heim?", ne? ( ...) IMVmb: entao vamos 18. Ederaldo. conta a piada do carrapato, n6s temos cinco minutos ainda. a gente tem que ensaiar pra contar la, ne? entao vamos contar a piada do carrapato .. , 0 que e (ajudando ER a contar a piada; ele repetia 0 que a investigadora falava) ER: 0 que e ... INVmb: que 0 carrapato ... ER: que 0 carrapato ... INVmb: macho ... ER: macho ... INVmb: perguntou... ER: perguntou ... INVmb: pra femea ... ER: pra femea? INVmb: enmo agora fala essa frase pra mim. fala isso que a gente acabou de falar ... ER: 0 carrapato chegou na femea e perguntou pra ela ... INVmb: e falou pra ela. isso... ER: e falou pra ela ,.. INVmb: que que ele falou pra ela. Ederaldo? ER: ele perguntou ... INVmb: ta. que que ele perguntou? par que e ... ER: par que e que ela e esquisita ... INVmb: NAO! par que e que voce (CF ri) Ilio .,. [ LC: INVmb: Ilio des... ER: nio diz... INVmb: desgruda! nao larga ... ER: desgruda. (CF ri) INVmb: entio vamos la, voce vai ter que contar essapiada, que se voce chegar e falar assim, "0 fe, 0 carrapato macho chegou pra femea e falou assim '0, como voce e esquisita', tem gr~a essa piada? nao, ne? tem que chegar e falar assim, Ederaldo ER: 0 carrapato chegou pra femea e perguntou por que que ela e esquisita. INVmb: por que ela Ilio desgruda ... ER: por que que ela nao desgruda INVmb: isso, entio essa e a piada ... ta? ( ... ) (neste momento, outra investigadora entra na sala) INVmb: ( ... ) conta pra Maza a piada que voce flcou, Ederaldo ... ER.: 0 carrapato macho chegou pra femea e perguntou por que que ela, ela, ela rala, ela e esquisita ••• ela deve conversar multo com ele. INVm: nao entendi nada (CF ri) . ER: ah, 0 cara chegou na mulher e perguntou pra ela por que que ela e daquele jeito, esquisita ... INVm: carrapato esquisito? ER: eo carrapato, ne, pode ser carrapato, pessoa, qualquer coisa ... INVm: mas nao e assim ... INVmb: mas e essa a piada que a gente contou? carrapato macho chegou pra femea e disse pra ela, pergunta. ER: (falando junto com INVmb) carrapato macho chega na femea e pergunta pra ela e INVmb: ... por que e que voce Dio des-gruda ... INVm: ah' essa tem gr~a, 0 carrapato em geral ... INVmb: isso, gruda, que foi 0 Luis que talou '" ER: 0 carrapato perguntou pra ela por que que ela nao desgruda .,. INVm: ah, ai ta j6ia ... INVmb: ai, Ederaldo, e essa piada que voce vai ter que contar la, heim? INVm: entio, nao inventa outra hist6ria Dio, e essa ai ... INVmb: porque voce invocou com 0 "esqusita" .. , Dio e ... ER: 0 carrapato que e 0 macho, nao precisa falar que e macho, a turma ja sabe, ne? 0 carrapato chegou pra femea e perguntou por que que ela ... INVm: nio desgru . ER: nio desgruda . INVmb: ai, Ederaldo, e isso ai '" INVm: desgruda, 6 lembra disso, 6(faz 0 gesto de juntar os dois polegares), 0 carrapato fica la '" ER: a gente sempre quer contar uma coisa, quer contar mais facil, por isso ... INVm:mas a piada se eIa Ilio for contada do jeitinho que ela deve ser, ela Dio e uma piada, ne?" Esta piada envolve dois sentidos possiveis da palavra "desgrudar" , urn relacionado it caracterlstica essencial do carrapato que gruda para sugar e outro relacionada it expressao de afastar-se porque esmo "pegando no seu pe" ou esmo "enchendo a sua paciencia", como costuma-se dizer. ER Ilio levou em conta a quesmo do carrapato dizer algo para a femea, fazendo o deslocamento para urn mundo possivel onde os carrapatos possam falar, levando para 0 contexto "humano" de urn homem falando com uma mulher, ER recorre ao seu pr6rpio contexto, Ilio se deslocando para outros sistemas de referencia queentram em jogo na interpreta~ao da piada. Alem disso, ele parece Ilio manejar a questio da configura~ao textual ou genero discursivo: trata-se de urna piada e Ilio de urn relata sobre uma discussao de urn casal. Mesmo com a interven~ao da investigadora ER Ilio entra no "jogo" que a piada instaura. Os outros sujeitos que entenderam a piada estranharam a recontagem feita por ER, mas ele Ilio se eta conta disso para reformular a recontagem. Como a investigadora apontou, ele partiu para outra situa~ao que nao aquela expressa no texto humorlstico. No momento em que chega a investigadora (invm), para quem ER reconta a piada, come~amos a perceber como ela ajuda ER a recontar a piada. Um dos recursos utilizados pela investigadora foi dizer que da forma como ele havia contado, 0 texto nao apresentava gr~a nenhuma. Isso auxiliou ER a re-estruturar-se lingilisticamente para que a piada fosse entendida pela segunda investigadora como sendo uma piada, com todas as suas particularidades, como vemos no trecho em que ER diz: "0 carrapato macho chegou pra femea e perguntou por que que ela, e ela, ela fala, ela e esquisita ... ela deve conversar muito com ele. " Nos podemos perceber claramente que ER esta tentando reformular 0 que vai dizer, ele hesita, e ainda permanece na construcao que ele havia feito anteriormente, ao mesmo tempo em que ele ja mostra urn certo trabalho lingilistico para tentar recontar a piada, Ilio conseguindo, no entanto, manter-se na configuracao textual. Assim, 0 sujeito ER apresenta dificuldades para "encontrar 0 recurso de expressao mais adequado para que 0 texto seja chistoso" (Possenti & Coudry, 1991). As investigadoras Ilio escondem do sujeito 0 fato de ele sair do t6pico, ou seja, ele e sempre lembrado que a atividade esta utilizando 0 material hurnoristico contido na piada e nao uma estoria melodramatica baseada no relacionamento homem/mulher. o sujeito ER teve acesso ao t6pico (recontagem de piada), mas oscilou na sua manuten~ao, havendo a necessidade da intervencao do interlocutor (neste caso, do investigador) para que ele pudesse manter-se no t6pico corrente. Afinal, 0 que e relevante para se contar uma piada? ER conseguiu eleger as informacoes pertinentes ao texto para reconta-lo? De acordo com as leis discursivas propostas por Ducrot (1984), existem convencOes tacitas entre os interlocutores que sao supostamente respeitadas ao se "jogar" 0 jogo da atividade verbal. Segundo Maingueneau (1990), as regras desse "jogo" 810 variaveis de acordo com a configur~o textual (ou genero discursivo); tais conv~ t4citas constituem as leis do funcionamento do "jogo". A aval~o cia relevincia depende dos destinat4rios: de acordo com os conhecimentos dos quais eles ja dispOem de um contexto dado, eles juigarAo 0 grau de relevincia do que foi dito pelo enunciador. ER parece nlo dominar as regras desse "jogo", e ainda fere outras leis do funcionamento discursivo pois nlo da as ~ que 810 relevantes para 0 texto hwnoristico em questAo, dando mais detalhes que 0 necessario, u1trapassando os limites impostos por este tipo de texto (de acordo com a lei da exaustividade). Maingueneau (1990) denomina como "competencia pragmatica" esse domfnio das regras "de boa conduta" dos interlocutores, que nAo 810 manejadas adequadamente por ER. Esse sujeito apresenta, portanto, problemas relevantes de ordem pragmatica, alc!mdaqueles de ordem semintica. As questOeslingQsticas tornam- se, assim, pertinentes para a avali~o e para a interv~o terap&1ticade ER, sobretudo considerando a melhora progressiva de seu quadro que foi diagnosticado inicialmente como demencia pOs-traumatica. 0 trabalho com a linguagem, considerando que esta Ultima e a mediadora cia rel~ do sujeito com 0 mundo, tem ajudado sujeitos cc!rebro-lesados a Iidar com sellS problemas lingUfsticospara, assim, participar do "jogo" social da linguagem. COUDRY. M.H.I. (1988). Di4rio de Narciso: discurso e qfasia, SP: Martins Fontes. COUDRY, M.H.I. &: GANDOLFO, M .. (1994). MAfasiaPragm4tica- a sair COUDRY,M.H.I. &: MORATO,H.M. (1992), MProceSSOS de SigDif~o: Boktim dIJABRALlN. 1105 anais ciaABRALIN. a Vislo Ncurolinguistic:a, in COUDRY, M.H.I. &: POSSBNTI, S. (1993) MOo que nem os aftsicos·, LbtgIlistiCOl, 24. CampiDas. IBUUNICAMP. pp. 47-57. in CDdemos de Estudos DASCAL,M &: KATRIBL,T. (1979), MDigressions:a Study in Conversational Coherence·, IN PTL, 4: 76- 95. 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