g g y Modernismo e Filosofia: o caso Oswald Modernism and Philosophy: the case of Oswald de Andrade RESUMO – Comemoramos, em 1992, os setenta anos do movimento modernista. Ao mesmo tempo, o discurso reinante no país era o da modernização. O objetivo deste artigo é o de resgatar as idéias filosóficas do poeta modernista Oswald de Andrade, crítico mordaz da cultura brasileira, e sua proposta de uma filosofia antropofágica. O poeta parte da crítica de uma filosofia messiânica, que teria reinado no ocidente, de Sócrates aos nossos dias, para propor uma filosofia dialética sui generis. Suas idéias podem contribuir para o debate em torno de uma filosofia brasileira e para pensar as contradições dos projetos de modernização do país. Palavras-chave: Modernismo – modernidade – filosofia brasileira – antropofagia. ABSTRACT – In 1992 we commemorated the the seventieth year of the modernist movement. At the same time, Brazil was taken by the modernization discourse. The objective of this article is to rescue the philosophical ideas from Oswald de Andrade, a modernist poet and mordant critic of Brazilian culture, and his proposal of an antropophagic philosophy. The poet criticizes the messianic philosophy that would have reigned in Western culture, from Socrates to our days, in order to propose a sui generis dialectic philosophy. His ideas can contribute to the debate around a Brazilian philosophy and to think the contradictions of the modernization process in this country. Keywords: Modernism – modernity – Brazilian philosophy – anthropophagy. impulso 89 nº24 SÍLVIO GALLO Professor da Faculdade de Filosofia, História e Letras da UNIMEP e do Departamento de Filosofia e História da Educação da Unicamp [email protected] ou [email protected] g g y O sarcasmo, a cólera e até o distúrbio são necessidades de ação e dignas operações de limpeza, principalmente nas eras de caos, quando a vasa sobe, a subliteratura trona e os poderes infernais se apossam do mundo em clamor. OSWALD DE ANDRADE, Meu Testamento V ivemos uma época curiosa: crise econômico-social, crise político-administrativa,1 crise dos valores, crise de identidade e, coroando todas, uma crise da racionalidade, imersa num milenarismo obscurantista que busca em ecléticos misticismos uma porta de salvação para a humanidade neste final de século e de milênio, que promete ser duas vezes pior que a travessia para o ano mil. A história mostra-nos que é justamente nessa época de crise aguda que a filosofia encontra um campo fecundo para o germinar de suas reflexões, delas brotando uma nova compreensão do agir humano e caminhos antes não vislumbrados. Entre nós, entretanto, o que vemos é a eclosão de um “liberalismo social”, órfão híbrido de caducas concepções de mundo com o qual as arcaicas elites proto-feudais e as “modernosas” elites industriais tentam uma vez mais dar pretensas respostas e rotas esperanças para bilhões de pessoas alijadas de direitos sociais e humanos básicos.2 É nesse contexto quase surrealista – se não fosse praticamente a única matiz social à qual fomos apresentados nestes quatrocentos anos de história – que percebemos muito mais acuidade e racionalidade em um disco de Caetano Veloso que em artigos e ensaios da intelectualidade a serviço dessas elites. Por outro lado, em meio aos discursos oficiais de levar o país ao patamar de modernidade das nações do primeiro mundo – das quais nos afastamos cada vez mais – comemoramos este ano o septuagésimo sétimo aniversário de um movimento que poderia já estar caduco, não 1 Esse texto foi escrito originariamente em 1992, ano da comemoração dos 70 anos da Semana de Arte Moderna e quando estávamos perplexos frente à crise institucional do governo Collor. Retomando-o agora, para publicação, embora o momento político do país seja outro, penso que o cenário de crise desenhado naquele momento está mais atual do que nunca. 2 O liberalismo social era a proposta de alguns intelectuais reunidos em torno de Fernando Collor, notadamente José Guilherme Merquior. Com o governo Fernando Henrique, embora o título tenha sido deixado de lado, não podemos deixar de perceber aproximações de suas tímidas ações nas questões sociais com o ideário produzido no governo Collor. abril 90 99 g g y fosse ele a base do que de melhor tem sido feito nas artes e na cultura brasileiras, da poesia ao teatro e das artes plásticas à música e ao cinema. Nossa questão é: teria o Modernismo, como movimento cultural – cujo marco foi a agitação provida pela Semana de Arte Moderna de 1922 –, colocado já a questão da modernidade de forma global e não apenas no contexto cultural, como é explorado insistentemente? Essa questão, ampla, desdobra-se: tem o nosso Modernismo uma base filosófica? Podemos partir dele para a construção de uma análise filosófica da realidade nacional? É na busca, senão de uma resposta, pelo menos de pistas que nos permitam a sua gradual construção, que este despretensioso artigo propõe-se a resgatar uma faceta quase desconhecida de uma figura conhecidíssima do movimento modernista, o poeta paulistano – quiçá seu representante mais radical e com certeza o mais polêmico – Oswald de Andrade: a sua produção filosófica. Nesse ponto, os “filósofos de carteirinha” já estarão com certeza rasgando raivosamente estas páginas, ou pelo menos delas sorrindo desdenhosamente, do alto de seu púlpito acadêmico... Mas sigamos em frente. FILOSOFIA BRASILEIRA E/OU FILOSOFIA NO BRASIL? Nossos cursos de graduação em Filosofia apresentam sempre uma ou mais disciplinas que visam a estudar a produção desse ramo do conhecimento em nosso país. Parece-me que são duas as posições mais assumidas pelos nossos professores: a) a de que existe uma filosofia genuinamente brasileira; b) a de que existe apenas uma divulgação de idéias filosóficas entre nós sem que, entretanto, haja uma filosofia de fato nativa. Que existiram e existem entre nós profundos conhecedores do assunto e autores de obras monumentais, é inegável; não citarei nomes para não cometer a injustiça de esquecer alguns. Mas fizeram – e fazem – essas figuras uma filosofia brasileira? Roberto Gomes em seu delicioso ensaio Crítica da Razão Tupiniquim sustenta que não falta a eles a originalidade e a identidade com nossos próprios problemas. Segundo Gomes, falta-nos enraizamento em nossa realidade brasileira e latino-americana: Antes disso, qualquer filosofia será, entre nós, pura ingenuidade. Aprendamos duas coisas. Que nesta altura dos acontecimentos, um soco na mesa, violento e sonoro, é mais importante do que sabermos da validade dos juízos sin- impulso 91 nº24 g g y téticos a priori. E que, do ponto de vista de um pensar brasileiro, Noel Rosa tem mais a nos ensinar do que o senhor Immanuel Kant, uma vez que a filosofia, como o samba, não se aprende no colégio.3 Se é verdade que “todos os homens são filósofos”, como bem o demonstrou o italiano Antonio Gramsci,4 não é menos verdadeiro que existe uma Filosofia instituída, com um histórico e um corpo de problemas que são a matéria dos especialistas profissionais que a eles se dedicam; nessa segunda acepção, nem todos os homens são filósofos: na verdade, bem poucos o são. Parece-me que quando questionamos a possibilidade de uma “filosofia brasileira” estamos falando deste segundo sentido da filosofia, de um tipo especial e específico de conhecimento. Sem dúvida alguma, os nossos poetas, cantadores ou não, desvelam para nós muitos dos sentidos do humano, e há filosofia – e não pouca – em Noel Rosa, Caetano Veloso, Raul Seixas, Drummond, para citar apenas uns poucos. Por outro lado, embora esses desveladores da alma humana tivessem assombrosos insights e os equacionassem maravilhosamente em jogos de palavras que a maioria dos “grandes filósofos” jamais sonharia conseguir, nunca escreveram tratados filosóficos, nem debruçaramse sistematicamente sobre os problemas que a filosofia logra pesquisar – e obviamente nunca sentiram falta disso. O que estou tentando afirmar é que, embora existam, por exemplo, em Caetano Veloso, belíssimos insights filosóficos e em uma música sua possa até haver mais filosofia que em um tratado de Kant, é um exagero, e mesmo um desrespeito – uma calúnia, até –, chamá-lo de filósofo. Ao falar dos sentidos do humano, os poetas fazem filosofia. Ao falar das múltiplas perspectivas que têm os brasileiros dos sentidos do humano, nossos poetas e cancioneiros fazem, até certo ponto, uma filosofia brasileira. A outra filosofia, no entanto, aquela sistematizada que venho chamando aqui de filosofia instituída, essa fala do humano em geral, buscando a universalização dos sentidos. E, por ser universal, não há e nem pode haver uma filosofia brasileira, como jamais existiu 3 GOMES, 1983, p. 107. “Deve-se destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia seja algo muito difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos. Deve-se, portanto, demonstrar, preliminarmente, que todos os homens são ‘filósofos’” (GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro:, Civilização Brasileira, 1986, 6ª ed., p. 11). 4 abril 92 99 g g y uma filosofia alemã, uma filosofia francesa ou mesmo uma filosofia grega... Existiram, isso sim, filósofos alemães, franceses e gregos que são reconhecidos como grandes filósofos, justamente porque, partindo de seu enraizamento espacial e temporal, lograram atingir a universalidade de falar a todos os homens, de todos os tempos. Nesse sentido, não só Kant, mas também Platão, Nietzsche, Sartre etc. têm tanto a me dizer quanto Noel, Caetano ou Raul Seixas: é uma questão de complementaridade. Enveredei por essa trilha que parece afastar-se de nosso tema por uma razão bastante simples: como movimento artístico-cultural, o Movimento Modernista tem ligações óbvias com a filosofia; por outro lado, seus inúmeros poetas da prosa e do verso também desvelaram muito de nossa alma e de nossa realidade. Seria, pois, fácil falar de uma “filosofia modernista”; o objetivo deste artigo, entretanto, é ir além do Oswald poeta e literato, o que já seria uma matéria-prima riquíssima, e resgatar o Oswald filósofo – se não um pesquisador universitário, ao menos um estudioso da filosofia e produtor de textos filosóficos. Tal será a matéria de nossas próximas páginas. OSWALD FILÓSOFO: A CONSTRUÇÃO DE UMA “FILOSOFIA ANTROPOFÁGICA” Roberto Gomes exige para o estatuto de uma filosofia genuinamente brasileira a originalidade do enraizamento em nossa realidade, como vimos no ensaio anteriormente citado; mesmo discordando dessa exigência que chega um pouco às margens da xenofobia, como também já demonstrei, poderíamos ver em Oswald de Andrade um genuíno “filósofo brasileiro”, mesmo segundo a concepção de Gomes. Deixando de lado, por enquanto, a produção literária de Oswald (poesia, prosa e polêmicas), temos em seus dois manifestos poéticos duas belas peças de filosofia da cultura. O Manifesto da Poesia Pau-Brasil (março de 1924) e o Manifesto Antropófago (maio de 1928 ou, como data o poeta, “Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha”) são um desvelamento da cultura brasileira e uma declaração de intenções para um agir poético sobre essa realidade. Mas são dois os textos eminentemente filosóficos de Oswald de Andrade. O primeiro deles é A Marcha das Utopias, compilação editada nos Cadernos de Cultura do MEC em 1966 de uma série de artigos que apareceram originariamente em O Estado de S.Paulo, onde ele analisa o desenvolvimento do pensamento utópico, de Morus a Cabet: impulso 93 nº24 g g y Pode-se chamar de Ciclo das Utopias esse que se inicia nos primeiros anos do século XVI, com a divulgação das cartas de Vespúcio, e se encerra com o Manifesto Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels, em 1848, documento esse que liquida o chamado Socialismo Utópico, aberto com a obra de Morus e que, superado, chega, no entanto, até o século XIX, quando o francês Cabet publica a sua Viagem a Icária, último país onde o puro sonho igualizante encontrou guarida e afago.5 O estudo das utopias serve de pano de fundo para Oswald analisar a alma do homem brasileiro, mostrando que para os europeus nós já aparecemos como o novo, antes de sucumbirmos ao colonialismo econômico e cultural: Apesar de desmembrado em mil seitas pitagóricas, órficas, satânicas ou cristãs, de que dá uma pálida imagem o belo livro de Paulo Barreto – As Religiões no Rio – ainda creio que nossa cultura religiosa venha a vencer no mundo moderno a gélida concepção calvinista, que faz da América do Norte uma terra inumana, que expulsa Carlitos e cultiva McCarthy. Na guerra holandesa, vencemos uma gente estranha que sob um grande comando e com superioridade de armas, queria impor-nos uma língua estranha e um culto estranho. Nela se prefiguraram os limites do nosso destino. As Utopias são, portanto, uma conseqüência da descoberta do Novo Mundo e sobretudo da descoberta do novo homem, do homem diferente encontrado nas terras da América.6 Curioso é que essa visão de Oswald tem sido colocada hoje, nas mais diversas perspectivas, por pensadores europeus do calibre, por exemplo, de um Félix Guattari.7 O verbo de Oswald passeia pelas mais diversas matizes filosóficas, de Platão e Aristóteles a Sartre e Ortega y Gasset, de Morus e Campanella a Marx, Nietzsche e Freud. Um dos focos centrais é, po5 ANDRADE, 1978, p. 147. Ibid., p. 149. 7 Em uma palestra na Faculdade de Arquitetura da PUCCamp, Guattari afirmou ver nas favelas do terceiro mundo uma criatividade há muito perdida pela arquitetura européia. Segundo ele, só as culturas terceiromundistas poderiam dar vazão à construção de um novo mundo, posto que os europeus, imersos em seu classicismo, não conseguiam ver novos horizontes. 6 abril 94 99 g g y rém, Rousseau e a questão do “bom-selvagem”. O mérito de “Jean-Jacques, que hoje já não é mais subversivo” – nas palavras de nosso filósofo tupiniquim –, reside no fato de, também ele um utopista a seu modo, colocar a questão do homem em “estado de natureza”, diferentemente dos filósofos liberais anteriores: Desde então, mesmo que não identificado e compreendido, surgiu no horizonte das controvérsias essa extraordinária questão do homem natural, sem culpa de origem e sem necessidade alguma de redenção ou castigo. As Utopias foram as caravelas ideológicas desse novo achado – o homem como é, simples e natural.8 Culturalmente diferente do europeu cristão, o nativo americano aparece como outra(s) possibilidade(s) do humano, como alargamento de horizontes. Mas qual a resposta do europeu? Qual espelho esfíngico que não reconhece a própria identidade – e tem, pois, medo do diferente – lança a terrível sentença: “imita-me ou devoro-te!”. Muitos foram devorados; a maioria tornou-se uma cópia daquela identidade em crise... Os últimos artigos da série tratam da colonização da África, analisam as cartas de Vespúcio sobre a terra recém-descoberta, analisam rapidamente a obra de Sartre sobre Genet e, por fim, tratam do tema mais caro a Oswald no contexto do pensamento utópico: a noção de um Matriarcado que estaria em oposição político-cultural ao Patriarcado, base de toda a história da opressão do homem pelo homem, que veremos de forma mais aprofundada ao examinarmos seu outro texto filosófico. Oswald conclui seu ciclo de ensaios relatando sua própria utopia; anos cinqüenta, depois de toda uma trajetória de militância política e cultural, do burguês irreverente ao militante extremado do Partido Comunista, do inveterado Don Juan ao candidato a deputado federal pelo PRT (1950) sob o lema “Pão-teto-roupa-saúde-instrução-liberdade”, demonstrando o seu profundo conhecimento da natureza humana e sua paixão por um mundo mais justo: E encerrando, nada mais tenho a dizer senão que também trago a minha Utopia, de caráter social. Por que não se organizar o mundo numa política de dois tetos? Ninguém terá mais do que tanto. Ninguém menos do que tanto. No intervalo o homem poderá subir ou des8 ANDRADE, 1978, p. 190. impulso 95 nº24 g g y cer como quer a sua ambiciosa natureza. E por que não criar uma especialização vocacional? Inclusive um corpo político de eleitores formados para isso? Tenho dito.9 O principal escrito filosófico de Oswald intitula-se A Crise da Filosofia Messiânica; antes de analisá-lo convém, porém, que seja citado um artigo menor, mas também muito interessante, enviado como comunicação ao Primeiro Congresso Brasileiro de Filosofia promovido pelo Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF), realizado em 1950 sob os auspícios da reitoria da Universidade de São Paulo. Nessa comunicação intitulada Um Aspecto Antropofágico da Cultura Brasileira: o homem cordial, nosso poeta-filósofo discute de forma bastante curiosa a constatação de diversos culturalistas, sociólogos, etnólogos e historiadores da época – dentre eles o Sérgio Buarque de Raízes do Brasil – de que a cordialidade era uma das principais características culturais do homem brasileiro. Para o nosso eterno militante esse era um traço remanescente de nossa arcaica cultura matriarcal, já apagada na personalidade européia pelos séculos de cristianismo extremado: No contraponto agressividade-cordialidade, se define o primitivo em weltanschauung. A cultura matriarcal produz este duplo aspecto. Compreende a vida como devoração e a simboliza no rito antropofágico, que é comunhão.10 Na concepção oswaldiana, o rito da devoração do outro é o reconhecimento máximo da alteridade, pois a devoração é o reconhecimento do outro como outro e a sua aglutinação ao si-mesmo, a perfeita comunhão. E embora a devoração leve a honra do reconhecimento de sua autenticidade e força pelo outro, a iminência da morte traz em si o terror básico da existência humana. Por isso, a sempre presente possibilidade da devoração leva a uma solidariedade social em torno da defesa mútua:11 “De outro lado, a devoração traz em si a 9 ANDRADE, 1978, p. 228. Ibid., p. 143. 11 O naturalista russo Piotr Kropotkin trabalhou, no início do século, uma tese oposta à teoria da seleção de Charles Darwin: as espécies que sobreviveriam na luta pela vida não seriam aquelas que adquiririam força na união dos indivíduos através do mútuo apoio entre si. Parece um pouco o que afirma Oswald, quanto a solidariedade social surgir no horizonte da defesa contra a antropologia. Há atualmente uma tradução acessível do texto de Kropotkin em espanhol: El Apoyo Mutuo. Móstoles: Ediciones Madre Tierra, 1989, 3ª ed. 10 abril 96 99 g g y imanência do perigo. E produz a solidariedade social que se define em alteridade”.12 Já as sociedades de estrutura patriarcal baseadas na dominação e na exploração – praticamente todas as sociedades históricas de que temos conhecimento – e que substituem uma visão antropofágica da vida por uma visão messiânica (é esse o assunto do texto de Oswald que veremos a seguir) sublimam, no sentido freudiano, a sensação do perigo, pois o fim da vida é, antes de tudo, o princípio da salvação e de uma “vida eterna”. Essa concepção escatológica acaba por levar, portanto, a uma vivência muito mais egoísta e “darwinista”, em sentido contrário àquele da solidariedade: Ao contrário, as civilizações que admitem uma concepção messiânica da vida, fazendo o indivíduo objeto de graça, de eleição, de imortalidade e de sobrevivência, se dessolidarizam, produzindo o egotismo do mundo contemporâneo. Para elas, há a transcendência do perigo e sua possível dirimição em Deus.13 A tese de Oswald, que aparece também no ciclo A Marcha das Utopias, é a de que o contato com o homem americano revoluciona também a cultura do europeu; apesar de sermos nós os violentados pela dominação, também eles não saem impunes, e sua cultura se transforma. As novas orientações da filosofia deste século são, para ele, um claro indício de que os europeus aos poucos abandonam a segurança intelectual de seu milenar messianismo, impelidos pela nietzscheniana “morte de Deus”: A angústia de Kierkegaard, o “cuidado” de Heidegger, o sentimento do “naufrágio”, tanto em Mallarmé como em Karl Jaspers, o Nada de Sartre, não são senão sinais de que volta a Filosofia ao medo ancestral ante a vida que é a devoração. Trata-se de uma concepção matriarcal do mundo sem Deus.14 Partindo dessa “confissão existencialista”, passemos agora ao principal texto filosófico de Oswald, vendo como a própria “confissão” se fundamenta e percebendo sua sutil originalidade. 12 ANDRADE, 1978, p. 143. Ibid., p. 143. 14 Ibid., p. 144. 13 impulso 97 nº24 g g y A CRISE DA FILOSOFIA MESSIÂNICA Como agitador e pensador da cultura, Oswald é um verdadeiro dialético, o que em parte pode ser explicado pelo seu engajamento no Partido Comunista, levado pela bela Pagu (Patrícia Galvão). Mas em um pequeno poema escrito ainda em 1925 já estava presente esse espírito debochadamente dialético, ainda longe da ortodoxia que o faria mais tarde um crítico do PC: ERRO DE PORTUGUÊS Quando o português chegou Debaixo duma bruta chuva Vestiu o índio Que pena! Fosse uma manhã de Sol O índio tinha despido O português15 É talvez essa sincera paixão por uma visão verdadeiramente dialética do mundo, aliada a um desejo de estudar mais seriamente16 as conseqüências das afirmações já expostas poeticamente no Manifesto Antropofágico, que leva Oswald ao terreno da filosofia e ao estudo que culminaria com a redação de um texto em 1950, originariamente uma tese para um concurso em que se disputava uma Cadeira de Filosofia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. A esse texto Oswald denominou “O antropófago – uma filosofia do primitivo tecnizado” e, mais tarde, ganhou o título mais interessante de “A crise da filosofia messiânica”. Ao longo de mais ou menos sessenta laudas, ele desenvolve um projeto em que a ambição dá de dez na modéstia: uma quase-revisão de toda a história da filosofia, desde os tempos homéricos gregos até nossos dias, para mostrar que a sociedade patriarcal enseja uma filosofia messiânica, escatológica, que assume as mais diversas feições ao longo da história, de Sócrates a Marx, de Platão a Hegel. Contemporaneamente, porém, os filósofos existencialistas, além de Nietzsche, estariam levantando questões que vão de encontro à filosofia messiânica, sendo o prenúncio de uma nova filosofia antropofágica, expressão de uma sociedade matriarcal perdida no tempo mas que dialeticamente 15 ANDRADE, 1991, p. 95. O adjetivo “seriamente” é usado aqui não no sentido do abandono do sarcasmo peculiar a Oswald, mas sim no de um estudo bastante aprofundado. 16 abril 98 99 g g y está sempre presente no Patriarcado como o Outro, como negatividade, crítica e possibilidade de superação. Os “filósofos profissionais”, esses prostitutos da filosofia, prostrados humildes frente à autoridade dos grandes mestres, ficam, no mínimo, irritados com essa ousadia de Oswald; mas não podemos discordar: sem a ousadia, não há originalidade. A originalidade de Aristóteles está em afrontar o mestre Platão, assim como não haveria Marx se ele não tivesse ousado colocar o mestre Hegel de cabeça para baixo. Pode-se objetar que o texto de Oswald carece de uma maior “consistência filosófica”, dessa que pulula em tratados chatíssimos e ininteligíveis, que só são compreendidos pelo próprio autor e por uns poucos sacerdotes por ele treinados para oficiar o culto de sua santidade. Mas o Oswald com certeza responderia a isso com uma grande gargalhada, pois seu texto é exatamente o contrário: leve, inteligente, alinhavando coerentemente uma enorme quantidade de conhecimentos filosóficos, históricos e culturais em geral. Vamos a ele. A tese básica é a seguinte: a história humana é a história do conflito de duas organizações sóciopolíticas antagônicas, o Matriarcado (sociedades pré-históricas) e o Patriarcado (sociedades historicamente conhecidas). Cada uma dessas formas enseja uma cultura e uma filosofia particulares; a primeira caracterizar-se-ia por uma cultura antropofágica, enquanto que a segunda, por uma cultura messiânica. Ao longo da história da humanidade assistimos ao domínio da sociedade patriarcal, mas uma série de características que Oswald identifica na filosofia contemporânea como uma crise do messianismo prenunciaria uma volta ao matriarcado, obviamente modificado de forma substancial, e de sua filosofia antropofágica, o que começa a ser prenunciado pelas utopias renascentistas e a descoberta de um novo homem e uma nova cultura na América e que se exprime, não em sua totalidade, na revolução soviética. Aproveitemos a ruína da antiga República Soviética para perceber o Oswald profeta: 7º) Que a URSS exprime um pequeno anseio da grande revolução do parentesco que se realiza com o advento do novo Matriarcado. A sua revolução se concentra numa ênfase – a do setor da propriedade. 8º) Que, ao lado disso, a URSS, levada pela mística da ação, perdeu o impulso dialético de seu movimento, eqüidistando-se numa dogmática obreirista que lembra, em síntese, a Reforma e a Contra-reforma.17 17 ANDRADE, 1978, p. 128. impulso 99 nº24 g g y O dialético radical já percebia, quatro décadas antes, que a dogmatização de princípios que se baseiam no perpétuo movimento acabariam com o “sonho socialista” na URSS,18 mas não com o advento de uma nova visão de mundo e uma nova prática social de coletividade, pois a revolução soviética acabou por abarcar apenas um aspecto da necessária reestruturação social, o econômico, por estar amparada no messianismo escatológico de Marx. Para mostrar que existe realmente uma “crise na filosofia messiânica”, Oswald põe-se a analisar os principais traços da filosofia ocidental, identificando o seu messianismo ao longo da história. Veremos aqui apenas alguns poucos pontos, por duplo motivo: primeiro, para não alongar demais essas modestas páginas e, segundo, para que o leitor, com a curiosidade aguçada, corra para o texto do poeta-filósofo, podendo deleitar-se também com suas palavras. O ensaio inicia-se com a constatação de que a antropofagia existiu tanto entre os gregos primitivos quanto entre os povos da América pré-colombiana. Entretanto, frisa o autor, a essência da antropofagia não é saciar a fome, mas trazer o outro para si mesmo, assimilar a cultura, transformá-la, torná-la única: “A operação metafísica que se liga ao rito antropofágico é a da transformação do tabu em totem. Do valor oposto, ao valor favorável. A vida é devoração pura. Nesse devorar que ameaça a cada minuto a existência humana, cabe ao homem totemizar o tabu. Que é o tabu, senão o intocável, o limite?”.19 A cultura antropofágica ataca os limites, afronta-os e os incorpora; a cultura messiânica, por outro lado, faz do limite a escatologia, o ponto de ruptura, de passagem e de salvação. Após examinar as características sociais, políticas e culturais do Matriarcado, sempre colocando-o em contraposição ao Patriarcado, passa Oswald a analisar o momento histórico que marca o advento das características patriarcais: A ruptura histórica com o mundo matriarcal produziu-se quando o homem deixou de devorar o homem para fazê-lo seu escravo. Friedrich Engels assinala o fecundo progresso dialético que isso constituiu para a humanidade. De fato, da servidão derivou a divisão do trabalho e a 18 Antes mesmo de acontecer a Revolução Soviética, um anarquista russo, Mikhail Bakunin, polemizava com Marx durante a I Internacional e denunciava o provável rumo a ser tomado por uma revolução socialista no modelo pensado por Marx, com a instalação de uma “ditadura do proletariado”; os profetas de plantão perdem longe para a lucidez das “previsões” de Bakunin... 19 ANDRADE, 1978, pp. 77-78. abril 100 99 g g y organização da sociedade em classes. Criou-se a técnica e a hierarquia social. E a história do homem passou a ser como disse Marx, a história da luta de classes.20 Acontece que além de significar a abertura de novas possibilidades, inclusive todo o avanço tecnológico que o homem alcançaria nos séculos vindouros, a nova realidade social de exploração trouxe para uma imensa maioria da humanidade o terror de uma vida de sofrimento e sem um sentido nela mesma. É aí que entra o messianismo e sua promessa de uma “salvação”, de uma vida melhor após a morte: Uma classe se sobrepôs a todas as outras. Foi a classe sacerdotal. A um mundo sem compromissos com Deus, sucedeu um mundo dependente de um Ser Supremo, distribuidor de recompensas e punições. Sem a idéia de uma vida futura, seria difícil ao homem suportar a sua condição de escravo. Daí a importância do messianismo na história do patriarcado.21 Oswald empreende então o monumental trabalho de demonstrar o messianismo nas filosofias e nas religiões, de Sócrates até a modernidade e do cristianismo ao hinduísmo, passando pelos mais diversos matizes religiosos; deixo ao leitor o prazer de tomar contato com ele no texto original. E chegamos ao século XIX e à formulação daquela filosofia que é, no dizer de Sartre, a “filosofia insuperável de nosso tempo”, o marxismo. Não é difícil mostrar que também o marxismo é uma filosofia messiânica, o último grande sistema dessa filosofia, segundo Oswald: há em Marx uma aguda escatologia, uma doutrina do fim da história, que ele e Engels, mestres do discurso, conseguem mascarar como o verdadeiro “início da história” que seria o advento do socialismo, a entrada no reino da liberdade humana. A estrutura de pensamento do marxismo é a mesma do cristianismo, embora seus conteúdos sejam bastante diferentes; há em Marx um germe de esperança para o proletário na construção da sociedade socialista, muito parecido com a esperança do fiel no “reino dos céus”. Poder-se-ia objetar que para Marx essa esperança pressupõe o engajamento do indivíduo nas lutas sociais, pois a nova sociedade só pode ser conseguida com a ruína do capitalismo pelo acirramento da luta de classes; mas não diz também aquele protestante radical que a graça divina só alcança aquele indivíduo que 20 21 ANDRADE, 1978, p. 81. Ibid., p. 81. impulso 101 nº24 g g y trabalha arduamente para consegui-la? Em suma, os escravos trabalham porque seu trabalho pode ser instrumento de libertação, do céu ou da terra... Mas se o conteúdo do discurso marxista era uma pequena centelha de luz sobre uma nova sociedade de estrutura muito mais matriarcal, esse conteúdo acabou sucumbindo ante a estrutura messiânica do pensamento, que gerou uma prática também messiânica no marxismo-leninismo que sustentou a construção da sociedade soviética após a revolução de 1917. O marxismo militante engajou-se na economia do Haver (Patriarcado) escapando às injunções históricas da economia do Ser (Matriarcado). E na alienação, no dinheiro, na filosofia do dinheiro, prossegue dentro da atualidade russa, o surto enunciado pela economia do renascimento. O Estado assume a idolatria do dinheiro. E para ligar com as férreas ataduras policiais a massa sufocada, dentro da fórmula áspera de Paulo, “quem não trabalha não come”, utiliza a lógica de Aristóteles e a metódica de Sorel, dentro da cortina de ferro e de seus limites geográficos políticos.22 O marxismo abandona a busca de uma sociedade matriarcal a ser fundada na não exploração do homem pelo homem, na cooperação e tendo o ócio por objetivo, perdido que fica na lógica do capital. Os jogos táticos e políticos para a sustentação do “socialismo real” levam a uma idolatria do dinheiro que é própria do capitalismo, e o Estado converte-se em explorador oficial e oficiado do trabalho humano. Oswald não logrou ver o resultado do processo, embora suas palavras permitam-nos imaginar que ele já antevia tudo aquilo que presenciamos hoje. Messianismo por messianismo, capital por capital, por enquanto vence ainda o capitalismo, que tem alguns séculos mais de experiência... Quem poderia prever, quem ousaria sonhar que o Messianismo em que se bipartiu a religião do Cristo (Reforma e Contra-Reforma) iria medrar no terreno sáfaro das reivindicações materialistas do marxismo? Uma pequena correção no texto dos Exercícios Espirituais daria esta proclamação comunista: “minha vontade é conquistar os povos que estão sob o domínio da 22 ANDRADE, 1978, p. 118. abril 102 99 g g y burguesia. Que lutem todos os povos que estão sob o domínio da burguesia. Que lutem todos como eu para que depois do sofrimento venham as festas da vitória”. No fundo, refulge a promessa messiânica. (...) Se Lorca foi assassinado em Granada, Maiakovski suicidou-se em Moscou. São os imperativos da ação, explicam os justificadores dos regimes de terror.23 Assim como o marxismo, também o existencialismo traz em si um germe de cultura matriarcal, embora seja ainda uma filosofia messiânica: O que se tenta pelas formas audazes ou dissimuladas da filosofia contemporânea é restaurar, através do existencialismo, da axiologia, da fenomenologia e mesmo do marxismo-leninismo, o Ser como tal em seu trono absolutista.24 O Existencialismo recolocou o homem na sua ansiedade ancestral. E isso basta. Tanto a equação Tempo e Ser, o estar para a morte, o naufrágio de Jaspers como a tensão de Sartre ante a Negatividade, tudo recoloca o homem no meridiano da devoração.25 Para Oswald de Andrade, esse prenúncio na filosofia contemporânea de vislumbres de uma cultura matriarcal mostra que nossa época de crise demarca um novo período de transição e que as condições histórico-sociais postas permitem a eclosão de uma nova cultura mais matriarcal, baseada na solidariedade e na justiça. Historicamente, o homem natural das sociedades matriarcais primitivas deu lugar ao homem tecnicizado pelas civilizações patriarcais. Estamos hoje na emergência de um novo homem, o homem natural tecnizado, síntese dialética de nosso agir histórico, incorporando na justiça e solidariedade originais todo o aparato tecnológico produzido através de séculos de exploração. E é esse aparato tecnológico que permitirá que o homem frua, finalmente, de seu valor supremo: o ócio. No mundo supertecnizado que se anuncia, quando caírem as barreiras finais do Patriarcado, o homem poderá cevar a sua preguiça inata, mãe da fantasia, da invenção e do amor. E restituir a si mesmo, no fim de seu longo estado de negatividade, na síntese, enfim, da 23 24 25 ANDRADE, 1978, pp. 119-120. Ibid., p. 122. Ibid., p. 123. impulso 103 nº24 g g y técnica que é civilização e da vida natural que é cultura, o seu instinto lúdico. Sobre o Faber, o Viator e o Sapiens, prevalecerá então o Homo Ludens. À espera serena da devoração do planeta pelo imperativo do seu destino cósmico.26 CRISE E MODERNIDADE: A ORIGINALIDADE DO PROJETO Aí estão, delineadas de modo geral, as reflexões filosóficas deste clown iconoclasta que sempre foi Oswald de Andrade. Militante e combatente da cultura, soube encontrar em nós mesmos a porta para o novo, nem imersos numa xenofobia cultural absurda, nem dissolvidos no caldeirão do feitiço do dominador, mas afrontando-o, devorando-o, incorporando-o. Antropofagia: eis nosso honroso destino cultural de construção de um novo mundo. Exatamente no ano em que se completaram cinco séculos da chegada dos europeus ao Novo Mundo, comemoramos meio século de vida de um oswaldiano convicto, o cantor e compositor Caetano Veloso. Num documentário que foi ao ar no ano de seu cinqüentenário, o compositor baiano fazia uma leitura da carta de Pero Vaz de Caminha e comentava emocionado a narração de um primeiro contato dos europeus com um nativo, um índio que foi levado à caravela de Cabral e, após um contato que estendia uma tênue ponte sobre o quase intransponível abismo entre duas culturas absolutamente distintas, dormiu a noite toda no tombadilho do navio, embalado por sua inocente confiança naquele outro tão diferente dele. Tomo a liberdade de reproduzir aqui um trecho deste comentário: Eu fico imaginando a fé profunda de uma pessoa destas, que não temeu dormir ali, entre desconhecidos, de uma cultura que deveria ser muito impressionante, mas que ele acolheu com uma tranqüilidade... Como se chegasse um disco voador aqui e você fosse dormir lá, sem saber o que é, sem entender a língua deles... Troca dois negocinhos e dorme lá dentro, depois sai, volta pra praia, vem pra casa... É incrível isso. A inocência me encanta, sim. Nessa cena da carta de Pero Vaz o assunto da inocência é maravilhoso, porque a descrição da nudez é muito bonita. A percepção de que era uma sensação de pureza, no texto de Pero Vaz aparece muito claramente. E, justamente, eles estavam trazendo uma espécie de grandeza, que é a grandeza 26 ANDRADE, 1978, p. 83. abril 104 99 g g y da Europa, que de uma certa forma implica a perda da inocência.27 Essa tensão dialética entre duas culturas que tanto emociona a Caetano é o fundamento mesmo da filosofia da cultura de Oswald; sua proposta antropofágica assenta-se não na dominação unilateral ou na assimilação pura e simples, mas na vivência da multiplicidade criadora do choque que é prenhe de sentidos e significados. O confronto, além de inevitável, é definitivo para ambos os lados: se o índio perde a inocência, o português perde a grandeza, não importa as atrocidades de dominador que cometa na ânsia de preservar a sua aparência de superioridade. Podemos traçar um sutil paralelo, guardadas as devidas proporções – que não são pequenas – entre a proposta oswaldiana e um ensaio atual de Gilberto Kujawski, este de uma sisudez filosófica bem maior.28 Segundo o filósofo mineiro, a crise do século XX é antes de tudo a crise da racionalidade moderna, das categorias que permeiam a nossa vivência do cotidiano, isto é, o habitar, o trabalhar, o conversar, o passear, o comer. Isso nos torna ocos. E a crise da modernidade coloca em xeque a arquitetura básica do mundo moderno, os conceitos de Nação, Razão, Ciência, Técnica, Progresso, Revolução e Paixão. Acontece que, assinala Kujawski, essa crise da racionalidade é essencialmente européia. A modernidade é uma realidade européia. Nós, como Brasil e como América Latina, nunca fomos modernos. Esses conceitos nunca enraizaram-se em nós; foram-nos impostos, nas mais diversas formas, ao longo destes quinhentos anos de nossa história, como o sempre recorrente espelho em que deveríamos ver-nos com a roupa do europeu, mas nunca assimilados em sua completude. A farsa do espelho sempre aparecia, mais cedo ou mais tarde, revelando a pureza de nossa nudez onde deveriam estar as vestes importadas. Daí decorre que a intensidade com que a crise abate-se sobre nós – no aspecto cultural, não no econômico – é bem diferente daquela sentida pelos europeus, que vêem seu mundo dissolvendo-se ante seus olhos; e torna-se, pois, mais fácil para nós a sua superação. Embora partindo de bases e raízes bastante diferentes, os projetos de Oswald e de Kujawski apresentam uma certa similaridade – ou pelo menos podem ser assim interpretados: a nossa modernidade deve ser buscada em nós mesmos, e não no modelo do colonizador. A resCaderno Mais!, Folha de S.Paulo, 09/08/92. “A Crise do Século XX”, em que, apoiado em Ortega y Gasset, Kujawski analisa a crise do século XX como crise da modernidade. 27 28 impulso 105 nº24 g g y posta está em nós mesmos. E não apenas a nossa resposta, mas também a resposta dele. O novo só pode brotar de quem não está essencialmente comprometido com os conceitos que se encontram em crise profunda. Mas, voltemos ao Oswald. Sua poesia pau-brasil e sua poesia e filosofia antropofágicas não se esgotaram nelas mesmas, mas influenciaram outros movimentos de profunda renovação da cultura brasileira. Para ficar apenas nos mais significativos, lembremos, no teatro, as estripulias do pessoal do Oficina; foi célebre sua montagem de O Rei da Vela, peça de Oswald que radiografa a chegada da modernidade para a burguesia paulista, no conflito com a aristocracia cafeeira. Também o movimento político-cultural do Tropicalismo de fins dos anos 60, que partindo da música (Caetano, Gil, Tom Zé, Torquato Neto, Duprat, Mutantes) lançou influências sobre as artes plásticas (Hélio Oiticica) e outros âmbitos da cultura brasileira, e teve uma base antropofágica. Exemplo representativo foi Caetano ter musicado o poema Escapulário, de Oswald, com melodia e arranjo de samba-enredo. Na poesia, a influência do poeta modernista fez-se sentir com maior intensidade sobre a poesia concreta dos anos 50, nos irmãos Campos e em Décio Pignatari em especial. Para concluir, urge que reflitamos sobre o projeto antropofágico de Oswald. A crise está posta e com ela a possibilidade de superação, a possibilidade de criação do novo. Enquanto nos curvamos ante a ideais caducos, prontos a seguir caminhos falidos na busca de uma modernidade que está em ruínas, enquanto nos apoiarmos na farsa de um “social-liberalismo”, seremos levados de roldão no bojo de uma crise que, em última análise, não é de todo nossa. O futuro, como sempre, está nas mãos daqueles que se dispõem a construí-lo, conscientes das determinações de sua circunstância. Cabe a nós escolher o nosso, seja ele qual for. No ano 443 da Deglutição do Bispo Sardinha. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Oswald de. Do Pau-Brasil à Antropologia e às Utopias. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1978, 2ª ed. (foi lançada em 1991 nova edição pela Ed. Globo: A Utopia Antropofágica) ___________. Teatro: A Morta, O Rei da Vela, O Homem e o Cavalo. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1978, 3ª ed. abril 106 99 g g y ___________. Serafim Ponte Grande. São Paulo: Círculo do Livro, s/d. ___________. Pau-Brasil (poesias). São Paulo: Globo, 1991, 2ª ed. ___________. Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade. São Paulo: Globo, 1991. ___________. O Santeiro do Mangue e Outros Poemas. São Paulo: Globo, 1991. GOMES, Roberto. Crítica da Razão Tupiniquim. São Paulo: Cortez Editora, 1983, 6ª ed. KUJAWSKI, Gilberto de Mello. A Crise do Século XX. São Paulo: Ática, 1988. impulso 107 nº24 g g y abril 108 99