étiCa apliCada, BioétiCa e étiCa amBiental, RelaçõeS poSSíveiS: o CaSo
da BioétiCa gloBal.
Applied Ethics, Bioethics and Environmental Ethics, possible relations: the case of
Global Bioethics
Fermin Roland Schramm1
rESUmo
A hipótese defendida no artigo é que a problemática de ética aplicada, bioética e
ética ambiental podem ser integradas na linha de pesquisa traçada em 1970 pelo
oncologista VR Potter, ao delinear o campo de estudos que será conhecido como
bioética e que será reformulado nos termos de uma bioética global em 1988. Tenta-se
mostrar que na Era da Globalização e da vigência do dispositivo da oikonomia - que
parece subsumir todos os âmbitos de nossas vidas a um único padrão - ética aplicada,
bioética e ética ambiental se revelam de fato entrelaçados. Isso implica em lançar
mão de ferramentas conceituais e metodológicas de tipo disciplinar, interdisciplinar e
transdisciplinar utilizadas pelas três formas de tematização do ethos em exame para
poder dar conta, ao mesmo tempo, das identidades e das diferenças entre estes três
âmbitos de conhecimento e de práticas da Ética.
palavraS-ChavE
Bioética, ética aplicada, ética ambiental, ética global
abStraCt
The hypothesis defended in this article is that the problematic of applied ethics,
bioethics and environmental ethics can be integrated in the line of research traced
in 1970 by the oncologist V.R. Potter, when he delineated the field of studies known
as bioethics, reformulated in 1988 as a global bioethics. It is attempted to show that
in the Age of the Globalization and the validity of the paradigm of oikonomia - that
seems to subsume all the fields of our lives to an unique standard – applied ethics,
bioethics and environmental ethics are in fact interlaced. This implies in the use of
conceptual and methodological tools of disciplinary, interdisciplinary and transdisciplinary methods by the thematization of the ethos here in focus, so that the identities
and the differences between these three fields of knowledge and practices of Ethics
are all taken into consideration.
KEy
wordS
Bioethics, applied ethics, environmental ethics, global ethics
1
Pós-doutor em Bioética. Pesquisador Titular em Ética Aplicada e Bioética da Escola Nacional se Saúde Pública da
Fundação Oswaldo Cruz. End: Rua Leopoldo Bulhões, 1480, sala 914, Manguinhos - Rio de Janeiro. CEP: 21041-210
Email: [email protected]
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de
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feRmin Roland SChRamm
1. introdUção
A hipótese que pretendo defender é que ética aplicada, bioética e ética ambiental compartilham um denominador comum, que permite integrá-las naquela
linha de pesquisa iniciada por V. R. Potter e indicada pelo termo bioética global.
Isso apesar de suas especificidades requeridas pelas diferenças de enfoque e
de âmbito de pertinência respectivas, ou seja: a aplicabilidade das ferramentas
descritivas e normativas da Ética a qualquer tipo de ação humana para a ética
aplicada; sua aplicabilidade às práticas humanas referidas aos seres e sistemas vivos para a bioética; e a aplicabilidade às práticas humanas aos ambientes naturais
para a ética ambiental. De fato, a hipótese não é muito ousada, pois atualmente
– na Era da Globalização e na vigência do dispositivo da oikonomia que parece
subsumir todos os âmbitos de nossas vidas – os três âmbitos aparecem, cada vez
mais, entrelaçados, devendo-se lançar mão de ferramentas conceituais e metodológicas de tipo disciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar para poder dar
conta, ao mesmo tempo, das identidades e das diferenças entre os três saberes.
O denominador comum se dá pela referência de cada uma à ética e ao
ethos, assim como pelos métodos comuns para construir seus objetos específicos;
ou seja: (a) a descrição e compreensão (no duplo sentido de “representar” e
“apresentar”) dos conflitos existentes no ethos; (b) a prescrição e proscrição de
comportamentos humanos. Em suma, ética aplicada, bioética e ética ambiental
compartilham o “quê” pela referência ao fenômeno da moralidade, constituído
pelo ethos, a apresentação e representação do ethos, constituído pela ética; do
mesmo modo compartilham o “como”, o “porque” e o “para que” usar tais ferramentas. Isso no que diz respeito àquilo que as une.
Mas Ética aplicada, bioética e ética ambiental, por estar em uma relação
complexa de saberes e práticas, podem ser abordadas naquilo que as diferencia,
ou seja, serem entendidas como especificações da Ética, entendida como um âmbito da Filosofia Geral, delineado - em sua forma de saber e de saber-viver - pelos
filósofos gregos e tendo como aspiração a sabedoria entendida como pharmakon
ideal para o bem viver. De fato, ética aplicada, bioética e ética ambiental são
construções humanas que nascem e evoluem num espaço e num tempo devido
à pretensão do homo sapiens sapiens de dar conta daquilo que é (compromisso com
a Verdade) e pelo desejo de orientar aquilo que deve (ou deveria) ser e/ou é
(ou seria) correto que fosse (compromisso com o Bem e/ou a Justiça). Os dois
âmbitos são distintos, como bem viu David Hume, a quem se atribui a assim
chamada “lei de Hume”, segundo a qual é “inconcebível” derivar valores a partir
de fatos, um “deve” de um “é”. (Blackburn, 1997, p.221) Mas, como vem sendo
cada vez mais percebido no campo da Ética e da própria Epistemologia, fatos e
valores, embora distintos, não são separados, pois existem enunciados como as
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étiCa apliCada, BioétiCa
e
étiCa amBiental,
RelaçõeS poSSíveiS: o CaSo da
BioétiCa gloBal
promessas que permitem passar da descrição (P. ex. “Fulano disse: prometo dar a
Beltrano x”) à prescrição (“Fulano deve dar x a Beltrano”) (Searle, 1964).
Para corroborar minha hipótese geral do denominador comum entre éticas,
devo ir às origens da bioética e para fazer isso apresentarei o caso da bioética
global (global bioethics), construída ao longo de mais de duas décadas pelo provável
criador, em 1970, do neologismo “bioética” (bioethics) como o entendemos hoje, o
oncologista Van Rensselaer Potter (Potter, 1970). Partindo de uma associação de
idéias (Gedankenexperiment) entre o comportamento humano na biosfera e a atuação das células cancerígenas no organismo (ambos considerados pertinentemente
prejudiciais ao humano), Potter propõe, então, um novo tipo de saber – de fato
um saber-fazer - que deveria permitir vínculos teóricos e metodológicos entre
ciências da vida e humanidades, no plano descritivo, e tendo como objetivo
prático, no plano normativo, a “sobrevivência” humana na ecosfera.
Em minha abordagem desta gênese da problemática bioética me preocuparei, sobretudo, com a análise conceitual, que, a meu ver, permite mostra em
que consiste este denominador comum entre as várias ocorrências e adjetivações da palavra ética. Mas, tal preocupação “analítica” será confrontada com
outra tradição da filosofia contemporânea: a “continental”, pois os conceitos e
os juízos se dão em vários sistemas de pensamento e porque, atualmente, este
tipo de distinção, embora pertinente, é insuficiente, visto que as duas tradições
tendem a se (con)fundir no movimento da filosofia pós-analítica (Rajman et
al., 1985). A razão prática dessa combinação é que os dois métodos, e as duas
tradições que os sustentam, pertencem à caixa de ferramentas da filosofia que
os assim chamados profissionais da “ética prática” (Singer, 1993), independentemente da especialidade de cada um, utilizam como educadores, pesquisadores,
conselheiros e cidadãos.
Porém, e apesar dos vários âmbitos da Ética serem vistos cada vez mais
como um campo complexo de distinções e inter-relações de temas e ferramentas,
não entrarei no mérito da assim chamada ética animal. Não porque não considere esta vertente da ética aplicada importante no aprimoramento de nossa sensibilidade e de nosso trato com os animais, mas porque ela mereceria uma análise
específica que nos afastaria do escopo principal desta abordagem. Esta falta será
em parte compensada ao apresentar a bioética global de Potter, pois ela representa um ponto de vista suficientemente amplo para poder abordar conflitos
morais que extrapolam o mero âmbito das inter-relações humanas, incluindo
questões como a relevância moral do sofrimento evitável de qualquer ser sensitivo ou sensível (ética animal) e da transformação irreversível ou destruição de
qualquer vivente e seu ambiente (ética ambiental, ecoética). Tampouco entrarei
no detalhamento das várias éticas aplicadas, pois meu escopo principal é mostrar
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um possível fio condutor que atravessa o vasto campo da ética e que foi antecipado pelo surgimento do conceito de ethos, cujo sentido primitivo se estende
do significado “modo ou forma de vida” àquele de “fundamento da práxis” (Aranguren,
1997, p.22-23), e agrega sucessivamente os significados de “guarida”, “costume”
e “caráter”. Assim, o provável sentido originário de ethos se aproxima daquele de
oikos, sendo que é desta aproximação que deriva o neologismo ecoética, entendida
como “ética aplicada às normas e valores que orientam as relações humanas com os seres vivos
e os ecossistemas” (Lesch, 2001, p. 339).
Em particular, tentarei mostrar como a bioética surge “grande” com Potter,
isto é, consciente de seus desafios e que ela, em sua versão inicial, antecipava
a abrangência requerida atualmente pela ética ambiental na época das globalizações. Da mesma forma, tentarei mostrar que ética aplicada, bioética e ética
ambiental têm um denominador comum e que este se manifesta na própria
concepção “holística” da bioética global de Potter.
2. o
qUE UnE
ÉtiCa apliCada, bioÉtiCa
E
ÉtiCa ambiEntal?
Ética aplicada, bioética e ética ambiental têm em comum a referência à
ética, que deve, portanto, ser identificada.
Dito da maneira mais sintética possível, a ética pode ser entendida como
“ciência” da moralidade (como se pode ler em muitos dicionários) ou, de acordo
com uma interpretação da filosofia analítica, como “discurso de segunda ordem”
aplicado aos “discursos de primeira ordem” sobre o fenômeno chamado ethos.
Em outros termos, de acordo com a distinção da filosofia analítica, teríamos o
fenômeno constituído pelos comportamentos humanos, os discursos de “primeira
ordem” que acompanham e têm por objeto tais comportamentos (para analisálos e julgá-los), e os discursos de “segunda ordem” (ou metadiscursos) que têm
por objeto o primeiro tipo de discursos, isto é, as avaliações e justificativas dos
comportamentos, que deverão ser abordados com as ferramentas da filosofia
analítica. Este tipo de categorização é em princípio correto, mas mostra também seus limites quando perguntarmos acerca das inter-relações possíveis entre
ethos e ética, os efeitos de retroação (feedback) da ética sobre o ethos e, de maneira
geral, da relação complexa entre ethos e ética. Uma primeira solução desse
problema epistemológico pode ser aquela proposta por Ricardo Maliandi, que
sugere pensar a relação ethos - ética como uma relação (que poderíamos chamar
topológica) que considera a ética como sendo ao mesmo tempo “tematização do
ethos” e “tematização de si mesma”; incorporando, portanto, a ética ao próprio
ethos, mas sem reduzi-la a este (Maliandi, 2004). A sugestão parece pertinente
se pensarmos na própria gênese, na Grécia Antiga, da ética, que foi “prática”
ou “aplicada” desde seus primórdios, tornando-se própria e sistematicamente
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“analítica” somente a partir do século XX com a emergência das Ciências da
Linguagem. Com efeito, contrariamente a uma opinião bastante comum, a ética
de fato nunca se separa completamente do ethos, a não ser por abstração, pois
ela mantém uma facticidade normativa por “aplicar-se” aos casos concretos do
comportamento humano, a seus projetos de vida, à vida relacional e à criação e
ao exercício da cidadania democrática, mantendo, assim, o espírito público que
ela tinha na polis ateniense (Castoriadis, 2004). Em suma, entendida como âmbito específico da filosofia, a Ética tem, desde sua origem, uma dimensão teórica
e outra prática, uma prova disso e ela incorporar em sua caixa de ferramentas
os dois tipos de raciocínio da lógica clássica: o silogismo categórico e o silogismo
prático. Este foi o caso de Aristóteles, que produziu a Política e a Ética a Nicômaco,
cuja intenção “não [era] simplesmente transmitir a verdade, mas também afetar a ação”
(Barnes, 2001, p. 123).
Por outro lado, ética aplicada, bioética e ética ambiental (ou ecoética 2) são o
produto de dois movimentos: (1) a especialização crescente dos saberes iniciada
com a separação da ciência do senso comum, ocorrida a partir da Modernidade
com Galileu (que realiza ”a unidade da experiência e da matemática”) (Desanti,
1995: 76) e a posterior diferenciação funcional do campo das ciências, iniciada
na segunda metade do Século XIX por Wilhelm Dilthey ao separar “ciências
naturais” (Naturwissenschaften) e “ciências do espírito” (Geistwissenschaften) (Dilthey,
1883); (2) a reação ao ceticismo moral vigente desde o final do século XIX e
surgido com as críticas movidas por Henry Sidwick (Sidwick, 1981) e Friedrich Nietzsche (Nietzsche, 1998) à ética tradicional, críticas que, em substância,
negavam a possibilidade de uma ética normativa, o que reduzira o campo de
atuação dos “eticistas” ao âmbito dos aspectos formais dos enunciados morais,
âmbito conhecido, desde então, como metaética, como aconteceu em substância
com a ética analítica.
1958: o SUrgimEnto daS ÉtiCaS apliCadaS
No final dos anos 50 do século XX surge o movimento conhecido como
“renascimento da ética aplicada” (Cremaschi, 2005), que pretende tanto refutar
o ceticismo de Sidwick e Nietzsche como ampliar (ou, melhor dito, re-ampliar)
o horizonte da Ética para além da mera metaética, mas integrando as exigências metodológicas desta (rigor na análise, cogência na argumentação). Esta
integração entre exigências analíticas e exigências fenomenológico-existenciais
– trazidas, sobretudo, pela tradição continental da hermenêutica e da filosofia
Não farei aqui a distinção entre ética ambiental e ecoética, embora ela seja pertinente quando queiramos distinguir o
aspecto de integração do humano em um quadro sistêmico (ecoética) daquele mais tradicional e antropocêntrico (ética
ambiental). Ver Lesch, 2001, Op. Cit
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da existência – permite em princípio responder a padrões de profissionalismo
análogos àqueles das ciências, evitando, portanto, “achismos” e generalidades.
Mas permite, também, abordar conteúdos, valores e objetivos da vida concreta.
Tal confluência entre ética analítica e ética prática (ou aplicada) – que Maurizio
Mori chama de “filosofia analítica dos problemas concretos” (Mori, 1980) – levará a métodos como o “principialismo” de Tom Beauchamp e James Childress
– que pretende tornar compatível a discordância moral sobre os “princípios
primeiros” e a convergência sobre “princípios intermediários” (Beauchamp et
al., 1979) – e o “equilíbrio reflexivo” de John Rawls, consistente em ajustar os
princípios gerais e os juízos sobre os casos concretos; ou seja, garantindo simultaneamente a coerência argumentativa e o ajuste às contingências em que se dão
os conflitos existenciais inscritos no ethos (Rawls, 1971).
O renascimento da ética aplicada tem também um evento e um ato oficial em
1956, quando a assistente de Wittgenstein, Elizabeth G. Anscombe, antecipando
ou inaugurando o movimento anti-nuclear e o espírito da desobediência civil
dos anos 60 (motivado inclusive por razões morais), publica um panfleto para
contestar a legitimidade da atribuição, pela Universidade de Oxford, do título
de doutorado honoris causa a Harry Truman, o presidente norte-americano responsável pela decisão de lançar a bomba atômica no Japão (Anscombe, 1981).
Pouco tempo depois emergem os movimentos como aquele contra a guerra no
Vietnã, o movimento para os direitos civis, os movimentos feministas e ecologistas, os movimentos terceiro-mundistas, dentre outros; todos eles tendo um forte
conteúdo moral e libertário.
A bioética surge também como movimento, mas seu impulso inicial é dado
mais ao interior do campo da prática científica e médica do que no campo
da própria filosofia, como parece mostrar o fato de ser proposta inicialmente
por um pesquisador em oncologia. Entretanto, ao debruçar-se sobre questões
existenciais e filosóficas relacionados com as inovações na prática médica (como
o transplante de coração, em 1967) e sobre a pesquisa biomédica envolvendo
seres humanos (que já tem uma história oficial pelo menos desde o Processo de
Nürenberg), assim como sobre seus efeitos em termos de qualidade da vida e
bem-estar (que será um dos tópicos do diálogo com a cultura sanitária a partir
dos anos 80), ela pertence de direito também ao campo inquieto da filosofia, sobretudo depois do mal-estar perante o “reducionismo” metaético frente aos novos conflitos e dilemas morais resultantes das novas formas de poder e biopoder
humano. Em outros termos, os questionamentos vindos do imaginário social,
diferentemente configurado, ampliaram o campo de atuação da ética aplicada a
partir dos anos 60, quando os filósofos morais tiveram a ocasião de “testar” as
ferramentas acumuladas nos debates em metaética e de tentar responder aos de516
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safios da vita activa, considerados por filósofos como Hannah Arendt prioritários
com relação à vida contemplativa (Arendt, 1991).
1970:
a bioÉtiCa
Em campo historiográfico existem pelo menos três teses plausíveis sobre a
origem da bioética: (1) a tese dos limites, a serem considerados na avaliação da
ação de médicos e cientistas, que faz nascer a bioética da comoção suscitada
pelo Processo de Nürenberg (Hottois, 2001), o que pode ser considerado pertinente se pensarmos em seu âmbito conhecido como ética em pesquisa, mas que
é dificilmente extensível a todo o campo da bioética que diz respeito à privacidade, à autonomia, às singularidades; (2) a tese contrária – e de certa maneira
complementar – das novas possibilidades terapêuticas e da qualidade de vida, que vê nos
avanços da biotecnociência novas possibilidades de bem-estar individual e coletivo, o que é substancialmente correto, mas que deveria dar conta também dos
riscos e danos envolvidos, inclusive em termos de justiça sanitária; (3) a tese formal,
que faz nascer a bioética junto com seu nome – o neologismo bioethics, criado em
1970 – e a abordagem interdisciplinar associada, e a forma argumentativa da
justificação que deixa espaço às várias posições morais envolvidas nos conflitos
e se preocupa com seu esclarecimento conceitual; entretanto, esta terceira tese
esquece que o neologismo existia, em alemão, desde os anos 20 e que método
da interdisciplinaridade já existia desde os anos 30, inclusive em medicina, e
que a bioética teve, desde seu começo, uma importante pretensão normativa.
(Mori, 1994a) Numa ponderação razoável, mas não exaustiva, pode-se dizer que
cada tese aponta algum elemento constitutivo da bioética e deve, portanto, ser
considerado, por isso, como uma parte de saber in fieri à procura tanto de uma
identidade como de uma legitimação social.
O neologismo “bioética” (bioethics) é formado pelas palavras gregas bíos
(“vida humana”), distinta da “vida” em geral, indicada pelo termo zoé, e ethos
(“guarida”, “caráter”, “hábito”). Aparece na literatura científica, pela primeira
vez, em 1970, num artigo publicado pelo oncologista Van Rensselaer Potter com o
sentido de “ciência da sobrevivência” e como objetivo a “qualidade da vida” (Potter,
1970). Mas admite-se que a bioética teve também uma segunda paternidade, devida
ao obstetra André Hellegers, fundador, em 1971, do Centro de Reprodução Humana e Bioética do Kennedy Institute na Georgetown University, e para quem a bioética teria como objetivo repensar a relação médico-paciente no contexto das profundas transformações advindas na prática da biomedicina (Reich, 1994). Na origem
existem, portanto, duas concepções diferentes de bioética: ampla ou “ecológica”
(Potter) e restrita ou “biomédica” (Hellegers), a segunda será dominante durante
aproximadamente duas décadas (anos 70 e 80 do século XX).
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Mas existe, também, um denominador comum, uma “identidade de intenções” nos pontos de vista “macro” e “micro”, pois ambas as interpretações
compartilham a idéia de que a bioética tem por objeto a moralidade das práticas
humanas que podem ter efeitos irreversíveis e significativos sobre seres humanos
e, mais em geral, sobre qualquer ser vivo e o ambiente natural, ainda que existam discordâncias sobre o âmbito de pertinência (que no fundo é um problema
metodológico). Assim, se dão as condições de possibilidade para estabelecer uma
relação de interseção com a ética ambiental e a ecoética. Mas esta interseção
entre bioética e ética ambiental não é necessária, pois se pode muito bem considerar uma versão ampla de bioética sem incluir diretamente o ambiente e
limitar o foco às práticas dos agentes em biomedicina e na pesquisa com seres
humanos, nos efeitos sobre os pacientes reais e potenciais e nas políticas públicas
de Ciência & Tecnologia. Só que, neste caso, fica de fora aquela problemática
referente à relação correta ou incorreta no (ou com o) ambiente e seus efeitos
significativos, enfrentados pela Saúde Ambiental e que, a rigor, se ocupa dos
seres vivos e ambientes naturais atuais, mas, também, da transformação e preservação do fenômeno vida no futuro.
Este é o caso da definição proposta em 1978 por Warren T. Reich do
Kennedy Institute, para quem a bioética seria “o estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e dos cuidados em saúde, examinada à luz de valores e
princípios morais” (Reich, 1978, p.19). Outra definição, nesse sentido, ampliando
a primeira, é aquela de Miguel Kottow, para quem a bioética se refere aos
“atos humanos, livres e responsáveis, que alteram radicalmente os processos irreversíveis dos sistemas vivo”, ou seja, que “afetam seu fundamento” e cujos efeitos
têm influências “profundas e irreversíveis, de maneira real ou potencial, sobre os processos
vitais” (Kottow, 2005, p. 68). Ambas as definições remetem, de alguma maneira,
à concepção abrangente de Potter que, em 1988, reiterou sua concepção, renomeando a bioética como “global bioethics” (Potter, 1988).
ÉtiCa
ambiEntal
A conceituação de ética ambiental está em parte contida naquela referente
à bioética, entendida em seu sentido amplo ou global e referido aos atos humanos que têm efeitos irreversíveis significativos sobre a biosfera. Entretanto, sua
delimitação é, atualmente, mais complexa e problemática.
É mais complexa devido a seus vínculos com a problemática ecológica, por
um lado, e a sua proximidade com a temática da assim chamada globalização,
por outro. Isso faz com que deva ser pensada a relação entre ethos e oikos, tendo
em conta toda a problemática sobre os efeitos dos dispositivos biopolíticos e de
biopoder, e sua avaliação moral e ponderação política.
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BioétiCa gloBal
É problemática porque, em sua versão mais radical, pressupõe um ponto
de vista que supere o tradicional antropocentrismo e seja capaz de constituir
“a mais ampla expansão da moralidade ocorrida no decorrer do pensamento
humano”, razão pela qual se pode reconhecer que “do ponto de vista da história
cultural, a ética ambiental (...) é revolucionária” (Nash, 1989, p. 7).
Essa ideia de Nash é de fato a reelaboração de uma idéia original de Aldo
Leopold, considerado o primeiro formulador de uma Ética da Terra (land ethics) e
para quem “[a ética da terra] muda o papel do homo sapiens de conquistador da Terra para
aquele de membro efetivo e cidadão dela” (Leopold, 1949, p. 204).
De acordo com Nash, o traço mais saliente da ética ambiental, sobretudo em
sua versão ecoética que tenta adotar um ponto de vista não antropocêntrico em
favor de outro – chamado ecocêntrico – é seu objetivo de ampliar o horizonte da
consideração moral até incluir a própria natureza como um todo, que poderíamos chamar – em homenagem à Hannah Arendt – de ponto de vista do planeta
azul. Mas isso implica em atribuir à natureza um valor intrínseco e não um mero
valor instrumental para fins que só poderiam ser humanos; ou seja, em dar valor
à proteção ambiental não porque redundaria em benefícios para o bem-estar
dos humanos (antropocentrismo) e, eventualmente, dos outros seres sencientes
(sencientocentrismo), mas porque a natureza, em sua totalidade - e considerando
seus constituintes - teria valor em si mesma. O problema a ser resolvido é, no
plano conceitual, o que pode ser entendido consensualmente como “valor em
si” e “natural” em um mundo de coexistência, mais ou menos pacífica, entre
Weltanschauungen e referentes morais não necessariamente compatíveis, nem a
priori, nem a posteriori (como é o caso nos autênticos dilemas morais). Se quisermos fazer comparações, talvez um pouco heterodoxas, poder-se-ia dizer que
esta concepção naturalista da ética tem, por um lado, uma dimensão libertária,
porque anti-hierárquica, e, por outro, algo muito parecido como um imperativo
categórico kantiano, ampliado para além dos objetivos da uma “paz perpétua”
(Kant) ou de uma “hospitalidade incondicional” (Derrida), entendendo-se até os
limites do Mundo ou oikos extenso, problema intricado e de difícil solução em
um contexto que não seja panteísta ou spinozista. Mas, por outro lado, permite
esta “ponte” entre os dois tipos de saberes (científico, humanístico), quando a
ética estabelece uma relação interdisciplinar com a própria ecologia, tanto com
a vertente biocêntrica conhecida como “ecologia profunda” (deep ecology) como com
a vertente antropocêntrico-sencientocêntrica da “ecologia superficial” (shallow
ecology) (Mori, 1994b).
ÉtiCa ambiEntal, ECologia E globalização
A ética ambiental tem vínculos conceituais estreitos com o conceito de ecoCad. Saúde Colet., Rio
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logia, mas, por outra parte, ambiente e oikos não são necessariamente sinônimos,
nem antônimos, como não o são os conceitos de Umwelt (“meio ambiente”)
e Lebenswelt (“mundo vital”, “mundo vivido”) e, mais recentemente, com
aquele de globalização, que – segundo Baumann – seria o “destino irreversível do
mundo, um processo (...) que nos afeta a todos na mesma medida e da mesma maneira”
(Baumann, 1999, p. 7). Tais vínculos conferem um grau de complexidade
muito alto ao contexto em que a ética ambiental há de atuar e se legitimar.
A seguir, esboçarei o vínculo existente entre os conceitos de ecologia e
de globalização, e isso como maneira de delinear algumas características que
considero pertinentes.
ECologia
O termo “ecologia” (Ökologie), formado pelas palavras gregas oikos (“casa”,
“habitat”) e logos (“discurso”, “razão”), foi introduzido pelo biólogo alemão
Ernst Haeckel em 1866 com o sentido de estudo da economia e dos modos de
habitar dos organismos animais (Haekel, 1866). Hoje, ecologia pode ser entendida grosso modo de duas maneiras distintas: (a) stricto sensu, como a ciência
que estuda os ambientes naturais em que vivem e se reproduzem os seres
vivos; as interações entre tais seres vivos e as relações estabelecidas entre
tais organismos e seus ambientes naturais (Bégin, 2001); (b) lato sensu, como
ciência que inclui o estudo da mente (como propunha o antropólogo Gregory Bateson (Bateson, 1972)) ou das idéias (como propõe o sociólogo Edgar
Morin (Morin, 1991)). Mas, em ambos os casos, a problemática ecológica
acaba se confundindo com aquela das ciências da complexidade, e, com
isso, precisa ter como referência a totalidade do mundo vivido (ou “vital”),
seus processos e as representações sobre tal totalidade. Assim sendo, abrese um campo imenso para o pensamento, algo que só tem um antecedente
no passado com a mesma magnitude: o filosofar grego sobre o cosmos, mas
que, hoje tem um forte componente prático: o da responsabilidade humana para com as várias formas assumidas pela sua práxis, mas cujo efeito
imediato é uma séria dificuldade do pensamento em identificar claramente
sujeitos e objetos da responsabilidade ao interior de uma visão holística, isto
é, referente ao Todo. Talvez seja esta dificuldade do pensamento ecológico
em pensar ao mesmo tempo a totalidade e as singularidades que faz surgir
a necessidade de pensar a ecologia junto com a globalização, que veremos
rapidamente a seguir.
globalização
O termo globalização – surgido na literatura econômica, política, sociológica
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e na mídia durante a década dos anos 90 do século XX (Zolo, 2004) – é mais
extenso e problemático ainda. É mais extenso porque não inclui somente o
mundo natural ou os sistemas autopoiéticos do cosmos e que se confunde com o
sinônimo “mundialização”, incluindo portanto os objetos produzidos pela assim
chamada segunda natureza humana: a cultura em geral, que abrange a ciência
e a técnica, inclusive a competência biotecnocientífica que torna o homo sapiens
sapiens um homo creator, mas que pode torná-lo também um homo demens, como
pretende o pensador Edgar Morin, numa clara alusão às loucuras humanas
(Morin, 1998). Da globalização-mundialização existe uma variante ideológica:
o “mundialismo” (Safranski, 2003), entendido como imagem de uma sociedade
mundial mais integrada e uniforme daquilo que de fato é, podendo, assim, ser
considerado um termo polissêmico em princípio aplicável a contextos diferentes,
mas, também, de difícil operacionalização quando se trata de identificar claramente os agentes e os pacientes morais envolvidos quando se pretende abordar
os aspectos morais.
De fato, de acordo com o filósofo Peter Sloterdijk, toda a história do Ocidente poderia ser concebida como uma seqüência de três fases principais de
globalização do Mundo, que o autor indica como a imagem das “três esferas”:
a Esfera Ideal da metafísica clássica grega; a Esfera Terrestre da Modernidade
ocidental; a Esfera Virtual da Pós-modernidade (Sloterdijk, 2001). As três esferas corresponderiam a três tipos de ações humanas: (1) a representação metafísica
do Universo, denominado kosmos ou hyperuránios, atividade com baixo poder de
transformação da realidade; (2) a pragmática e calculadora não mais do Universo,
mas da Terra ou Globo, na qual a preocupação com o ideal foi substituída por
aquela com o interessante e interesseiro; e (3) a representação virtual do mundo
através das ciências da informação e das redes. Entretanto, esta conceituação
da globalização precisa ser completada com o sentido que ela tem (ou pode ter)
com nosso enfoque, aquele dos aspectos morais e éticos.
o
qUE a
“globalização”
E a
“ECologia”
têm a vEr Com ÉtiCa apliCada,
bioÉtiCa E ÉtiCa ambiEntal?
Em primeiro lugar, todos esses saberes têm alguma forma de preocupação
(teórica e prática) com o mundo vital ou vivido. Em segundo lugar, tal problemática é abordada seja com uma pluralidade de métodos próprios a cada
forma de saber, mas com a possibilidade de estabelecer vínculos entre si frente
a problemas comuns, como são, por exemplo, os problemas econômicos, os ambientais, os de saúde pública e de biossegurança, entre outros. Em suma, éticas,
ecologia e globalização se referem, todas, direta ou indiretamente, às práticas
humanas que transformam, de maneira significativa, a Terra (ou Globo), o amCad. Saúde Colet., Rio
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biente (ou oikos) e os processos vitais, entendidos tanto como os tipicamente humanos (bíos) quanto aqueles da vida meramente orgânica (zoé). Com isso, parece
que o novo campo conceitual, delimitado pela antiga representação mitopoiética
dos gregos e aquela, virtual, dos contemporâneos se fundem e confundem numa
espécie de realidade hipercomplexa, ao mesmo tempo real e virtual, de difícil
inteligibilidade.
Entretanto, embora seja de difícil inteligibilidade, a bioética tem tido a intuição e a sensibilidade para pensar, de forma ampla e inclusiva, a moralidade
da práxis humana transformadora do mundo vital e vivido (no duplo sentido da
Lebenswelt e da Umwelt) e este é o caso da concepção bioética de V. R. Potter.
3. a
bioÉtiCa global E ECológiCa dE
v. r. pottEr
Potter era um pesquisador em oncologia e considerava que a espécie humana, ao desenvolver de maneira cada vez mais radical uma civilização tecnocientífica aplicada ao planeta como um todo e a todas as suas partes e seres, terse-ia tornado uma verdadeira ameaça (o autor utiliza a metáfora “câncer”!) da
natureza e, consequentemente, um perigo para a qualidade de vida na biosfera
e a própria sobrevivência da espécie humana. Potter, de maneira aparentemente
pessimista, considerava também que o instinto moral tradicional do homo sapiens
não fosse mais suficiente para enfrentar corretamente os novos perigos criados
pelas novas formas assumidas pela práxis humana na idade da biotecnociência.
Por fim, julgava que as ferramentas tradicionais da ética ter-se-iam revelada
insuficientes para abordar corretamente as implicações morais de tal práxis e
tentar evitar os danos a médio e longo prazo. Por isso a humanidade precisaria
de uma nova “ética da vida” – a bioética – para “sobreviver”. Esta seria a
resultante do estabelecimento de uma “ponte para o futuro” e baseada numa
relação interdisciplinar entre conhecimentos científicos e valores humanos para
melhorar a qualidade da vida (Potter, 1971).
De fato, as preocupações de Potter têm uma história no próprio século XX,
pois existe uma “pré-história da bioética” que começa no Pós-guerra, quando
vêm à tona os abusos nas experimentações médicas e são formuladas as primeiras diretrizes da ética em pesquisa. Ou quando um filósofo como Karl Jaspers
considerara o uso bélico da energia nuclear a conseqüência inevitável de uma
relação errada com a natureza. (Viano, 1997). Na mesma época, o polêmico
Martin Heidegger, em suas meditações acerca do ser e da técnica como metafísica realizada, chamara a atenção sobre os perigos inerentes ao considerar a natureza como mero “fundo de reserva” (Bestand). A Escola de Frankfurt, também,
iniciara uma crítica à redução da razão a seus aspectos meramente instrumentais
em detrimento de sua função dialógica ou comunicativa, e da conseqüente ne522
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étiCa apliCada, BioétiCa
e
étiCa amBiental,
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BioétiCa gloBal
cessidade de políticas de reconhecimento do outro e de sua inclusão econômica
e política.
Isso no que se refere ao debate interno à filosofia e às ciências humanas e
sociais. Mas existem também possíveis causas externas mais próximas da formulação de uma concepção global da bioética e que pertencem à ordem dos
fatos, como a poluição ambiental, a explosão demográfica; a certeza da escassez
dos recursos naturais e a angústia relativa às reais possibilidades de criar novos
recursos “naturais” graças à competência biotecnocientífica, assim como o aumento da pobreza e de outras conseqüências, consideradas negativas, da globalização ou mundialização sobre países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.
Outras causas, que são ao mesmo tempo internas e externas e que se situam
na interface entre fatos e valores, são os fermentos (com forte conteúdo moral
e antimoral) de uma cultura alternativa, pacifista, anti-racista e anti-autoritária
nas sociedades democráticas ocidentais a partir dos anos 60. Neste sentido, Potter – ao propor o novo campo interdisciplinar da bioética como “ponte para o
futuro” – participava das preocupações ecológicas e das cosmovisões alternativas
e holísticas, que marcaram fortemente a cultura ocidental dos anos 60 e 70,
inclusive a cultura moral. Com efeito, desde seus primeiros escritos publicados
sobre a nova problemática moral, Potter integrara em seu projeto esta visão
holista e ambientalista presente no ethos “alternativo” norte-americano.
Em particular, Potter vislumbrava uma “abordagem cibernética em vista de uma
nova sabedoria do humano”, a qual deveria permitir integrar três tipos de questões:
1) os problemas médicos relativos à biologia humana, amplamente entendida;
2) os problemas sanitários resultantes da degradação do meio ambiente natural
e do habitat das outras espécies vivas; 3) os problemas morais decorrentes da
competência humana em acompanhar, ou não, a transformação da qualidade
de vida humana neste novo contexto biotecnocientífico (Potter, 1975, p. 2297).
Desta maneira, poder-se-ia afirmar que os temores e questionamentos atuais
frente aos novos poderes da tecnociência e, sobretudo, da biotecnociência, já
estavam “no ar” quando Potter concebia a bioética como uma nova Ciência
da Vida, de tipo interdisciplinar, que fosse também uma nova forma de consciência, preocupada com (a) a sobrevivência da espécie humana e capaz de
integrar os conhecimentos da biologia humana (amplamente entendida); (b) a
competência em criar e acompanhar o desenvolvimento dos valores humanos;
(c) a emergência dos problemas relativos ao meio ambiente e ao relacionamento
correto com os outros seres vivos, em prol de uma qualidade de vida aceitável
por todos os envolvidos e que possam vir a ser envolvidos (como as assim chamadas “gerações futuras”). De fato, com as expressões “ciência da sobrevivência”
e “ponte para o futuro”, o autor queria chamar a atenção para uma série de
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perigos que estariam ameaçando a espécie humana, a menos que esta tivesse
em devida consideração os ensinamentos fornecidos pelas ciências biológicas e
se desse conta da necessidade de uma nova forma de relacionamento com a
Terra. Por isso, Potter acreditava na necessidade de uma nova ética: a bioética,
cujo conteúdo programático seria aquele de relacionar o desejo de uma “nova
sabedoria que proporcion[asse] o conhecimento de como usar o conhecimento para a sobrevivência humana e o melhoramento da qualidade de vida” com a necessidade de
desenvolver “um entendimento realista do conhecimento biológico e seus limites,
afim de fazer recomendações no campo das políticas públicas” (Potter, 1970: 131).
A solução moral adequada ao atual estágio evolutivo seria, então, aquela
representada pela bioética, entendida como forma de “balancear os apetites
culturais frente às necessidades fisiológicas, no sentido de políticas públicas capazes de
gerar a sabedoria necessária com relação ao como usar o saber em prol do bem social”
(Potter, 1970, p. 150-151).
Tais questões serão retomadas por Potter mais tarde, ao formular explicitamente a teoria da “bioética global” (Potter, 1988) e sublinhar o
sentido de uma “moral evolutiva”, que fosse ao mesmo tempo “humilde”,
“responsável” e “competente”; ou seja, “diretamente voltada para a sobrevivência,
em longo prazo, da espécie humana; (...) a proteção da dignidade humana; (...) o controle
da fertilidade; a preservação e o restabelecimento de um ambiente saudável”. Em particular, esta “moral evolutiva” deveria propiciar ao humano a capacidade de
enfrentar o “fluxo fatal” (fatal flaw) presente na evolução; isto é, a lei evolutiva
segundo a qual a seleção natural só favorece o que é imediatamente útil para
os indivíduos altamente especializados e perfeitamente adaptados a seu meio,
mas que poderia ser fatal, em longo prazo, para uma determinada espécie,
constituindo, portanto, uma desvantagem, ou “fatalidade”, para esta. Por isso
– concluía Potter – o meio cultural deveria balancear adequadamente, por um
lado, os apetites, de curto prazo, do indivíduo e, por outro lado, as necessidades, de longo prazo, da espécie, a fim de poder vislumbrar “uma sobrevivência
aceitável, em contraste com a mera sobrevivência, ou uma sobrevivência miserável” (Potter,
1990, p. 91,98). Em suma, e contrariamente às outras espécies, para os humanos o desfecho da evolução poderia ser, em princípio, diferente, desde que
soubessem opor-se ao ‘fluxo fatal’ com os meios culturais e tecnocientíficos
disponíveis, e desde que desejassem, coletivamente, a sobrevivência.
Numa entrevista concedida a Sandro Spinsanti em 1994, Potter confirmou que seu interesse pelas relações entre saber científico e responsabilidade moral devia ser compreendido à luz de sua preocupação com os problemas ecológicos emergentes no imaginário social norte-americano durante
os anos 60. Nisso, Potter reconheceu um débito com o pensamento de Aldo
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étiCa apliCada, BioétiCa
e
étiCa amBiental,
RelaçõeS poSSíveiS: o CaSo da
BioétiCa gloBal
Leopold, que os vinha abordando desde os anos 40 em sua ética da terra,
na qual Leopold distinguia o desenvolvimento moral em três estágios: 1) o
estágio da regulação das relações entre indivíduos; 2) o estágio das relações
entre indivíduos e sociedade; 3) o estágio das relações entre o homem e a
biosfera. Com relação à sua preocupação com o futuro da humanidade,
Potter afirmou ter ficado impressionado com a leitura de um artigo da
antropóloga Margareth Mead, publicado na revista Science em 1957 (Mead,
1957) e que propunha a criação de cadeiras de ensino universitário sobre
o futuro. Retomando o projeto da antropóloga, Potter publicou em 1970
na revista Science um artigo sobre a “dupla” responsabilidade dos universitários:
não somente a responsabilidade para com a tradicional vocação na procura e na
transmissão do conhecimento “verdadeiro”, mas também com a sobrevivência
da espécie humana e a qualidade de vida futura (Potter et al., 1970). Como o
autor esclareceu na entrevista de 1994, esta “procura da verdade orientada para o futuro” implica tanto uma postura de “humildade frente ao futuro” quanto uma postura
metodológica consistente em “superar os limites disciplinares; exercer e aceitar as críticas e
desenvolver abordagens e soluções pluralistas, apoiando-se em grupos interdisciplinares”. Já do
ponto de vista estratégico, Potter, ao propor a bioética como um novo paradigma
ao “serviço da sobrevivência”, queria, em primeiro lugar, superar a contraposição
entre ciência e ética, combinando “o conhecimento biológico com os valores humanos, num
sistema biocibernético aberto de auto-avaliação”. Em outros termos, a intenção de Potter
não era a de propor mais uma síntese entre ciência e filosofia, mas, ao contrário,
a de “opor-se à perspectiva que considera a ética como vindo de fora da ciência, isto é, vindo da
reflexão filosófica e teológica”. Com isso, Potter estigmatizava a pretensão dos cientistas
de estarem “livres” de valores e considerava que a evolução moral fazia parte da
própria hominização e, como tal, constituiria um objeto legítimo da investigação
científica. Em suma, para Potter a ponte entre ciência e filosofia não implicaria em
subordinar a filosofia à ciência, nem em subordinar esta àquela, mas, ao contrário,
em vincular valores humanos e conhecimentos científicos em um autêntico diálogo
interdisciplinar e transdisciplinar. Em particular, aqueles vindos da fisiologia,
da genética e da ecologia, pois “uma sobrevivência que salve a qualidade [da vida] só
é possível se os sistemas éticos são compatíveis com o mundo real”. Resumindo, o novo
paradigma da bioética pretendia “relacionar nossa natureza biológica e o conhecimento
realista do mundo biológico com a formulação de políticas finalizadas à promoção do bemestar social” (Spinsanti, 1994, p. 236-240).
4. ConClUSõES
Os problemas epistemológicos e metodológicos que a bioética global de
Potter levanta são muitos, a começar pelo fato de parecer esbarrar contra a lei
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de Hume e de incorrer, portanto, na falácia naturalista consistente em confundir
fatos e valores. Contudo, este tipo de “transgressão” dos limites metodológicos
estabelecidos entre campos de conhecimento distintos é hoje moeda corrente
nas concepções complexas tanto das ciências como da ética, razão pela qual a
própria lei de Hume pode ser questionada e é, de fato, questionada, como vimos
com o exemplo dos enunciados ilocutórios das promessas. Ademais, no campo
da prática política, os questionamentos parecem ressurgir nos anseios referentes
aos biopoderes e à biopolítica vigentes no contexto de globalização e da instauração crescente daquilo que Giorgio Agamben chamou de “estado de exceção”.
Mas, junto com o fenômeno da globalização (da qual a bioética global de
Potter funciona como uma espécie de metáfora antecipadora em ética), surgem
também as reações de desconfiança perante os supostos benefícios da biotecnociência, como bem mostram os movimentos sociais antiglobalização, por um
lado, e o ressurgimento de interesse nas temáticas da biopolítica. Em suma,
existe um temor frente aos cenários apocalípticos de servidão e escravidão do
humano que a biotecnociência tornaria possíveis, visto que esta nova forma de
competência - ao mesmo tempo técnica, poiética e prática - estaria, por exemplo, reduzindo a diversidade biológica e, portanto, as possibilidades de autopoiese da vida. Mas, por outro lado, existe também a corrente que considera a
vigência da biotecnociência como um fator positivo, com possibilidades imensas
de transformação da Terra e de seus seres em sentido positivo, inclusive criando
novos seres vivos. Este é o caso de quem pensa que a “segunda natureza”, constituída pelas construções humanas, possa transformar a “primeira natureza”
em sentido positivo. A este respeito, a posição de Potter parece clara: a reforma
do humano por ele mesmo é um processo evolutivo necessário e irreversível, e
não uma mera possibilidade contingente do agir, pois é dele que dependeria a
própria sobrevivência da espécie humana.
Querendo fazer uma análise racional e imparcial do debate, pode-se afirmar
que a desconfiança perante os biopoderes e a biopolítica é certamente pertinente
e, em certa medida, salutar, pois pode evitar aquela que já os filósofos gregos
metaforizaram como hybris, ou “desmedida”. Mas, desde que ela não se torne
uma posição obscurantista decorrente de avaliações erradas sobre o real alcance
da biotecnociência, tanto no que diz respeito à sua capacidade em resolver
problemas concretos da biologia humana e da biologia tout court quanto no que
se refere aos possíveis desdobramentos futuros em termos de novas formas de
biopoder e de biopolítica. Em suma, a desconfiança só pode ser razoável se for
um aspecto da virtude da prudência, já destacada também pelos filósofos gregos
como possível pharmakon contra a própria hybris.
A correta articulação entre globalização, ecologia e éticas, que tentamos
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étiCa apliCada, BioétiCa
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apresentar como uma das preocupações genuínas de Potter, talvez seja condição
necessária para enfrentar de maneira razoável as promessas (positivas) e as profecias (negativas) que povoam o imaginário tanto do senso comum como das
várias formas de saberes especializados, os quais, frente ao “abacaxi” ambiental,
se dão conta dos limites de cada saber e da necessidade de um diálogo interdisciplinar capaz de respeitar as diferenças e qualquer interesse razoável e moralmente legítimo. Se isso se tornará possível, ou não, é matéria de futurologia, não
contemplada neste trabalho.
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