UM OLHAR SOBRE A VELHICE EM “SANGUE DA AVÓ MANCHANDO A ALCATIFA” DE MIA COUTO Maria Aparecida do NASCIMENTO DIAS Universidade Estadual da Paraíba - UEPB RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo principal a análise da crônica Sangue da avó manchando a alcatifa do autor moçambicano Mia Couto, a fim de observamos como na construção da personagem idosa, Dona Carolina, pontuam-se marcas de exclusão ao sujeito idoso, sobretudo no espaço citadino, onde o consumismo e a supervalorização dos aparatos tecnológicos impõem uma nova maneira como os outros passam a tratar o velho dentro do seu grupo de convívio. Para este estudo, serão revisados alguns aportes teóricos evidenciados por Bosi (1994); Elias (2001); Fonseca (2008); Magalhães (1989); Serrano e Waldman (2001); dentre outros autores que discorrem sobre questões relacionadas à velhice corroborando com a temática abordada. 1. Introdução “Quando morre um africano idoso é como se se queimasse uma biblioteca”. É com estas palavras que o poeta do Mali, Amadou Hampaté-Bâ, resume o valor atribuído ao velho na sociedade tradicional africana, cuja principal função é transmitir, oralmente, às demais gerações, a cultura e a sabedoria popular vividas no seio de cada comunidade. Nesse sentido, os idosos configuram-se como guardiões da memória e tudo que por eles é contado, deveria ser avidamente ouvido e preservado com muito zelo pelos mais jovens. Assim, o ancião é símbolo de autoridade e ocupa um lugar bem definido dentro de sua categoria social: repassar a sabedoria dos antepassados e perpetuar a cultura. Esse lugar de representatividade, conferido ao idoso, vai sendo aos poucos abalado pelos projetos de modernização implantados na África, especificamente em Moçambique, com o processo de pós-independência. Se antes, na aldeia, os familiares sentavam-se ao redor de uma árvore ou perto de uma fogueira para partilhar as vivências cotidianas e escutar os ensinamentos do idoso, na cidade acontece o contrário: os filhos adquirem novos hábitos pautados no consumismo e na modernização. Sentamse ao redor da tevê para adquirir as informações necessárias e o idoso, nesta situação, não tem “muita valia” no que se refere ao grau de importância da sabedoria que ele guarda para transmitir aos outros. Por conseguinte, lançamos os seguintes questionamentos que subsidiarão o nosso trabalho: até que ponto o idoso é resignado a um papel silencioso de elemento tolerado pelos outros, enquanto espera a morte? Até que ponto os indivíduos anciãos assumem papéis de resignados, recebendo por vezes discursos taxativos e preconceituosos que refletem o abandono social conferido aos mesmos? Como os velhos resistem ao um sistema opressor que intenciona deixá-los sem vez e nem voz? Objetivando responder a questão acima assinalada, o presente trabalho, nessa perspectiva, se propõe analisar, a partir da crônica “Sangue da avó, manchando a alcatifa”, de autoria de Mia Couto, o papel social do idoso e a forma como este papel foi sendo deslocado na sociedade tradicional africana, após o processo de pósindependência, traçando assim um novo perfil identitário para estas pessoas dentro da estrutura social da África. Por essa razão, consideramos relevante observar o descentramento dos sujeitos idosos ao chegarem ao ambiente citadino e se depararem com realidades tecnológicas não experimentadas por eles antes, na aldeia. Assim, denotamos, em nossa análise, a repercussão que estes aparatos, bem como os espaços físicos cidade e aldeia, ocasionam maneiras diferentes de valorização do velho dentro de suas relações familiares. 2. Perfil identitário do idoso na África: Da tradição oral ao silenciamento advindo da modernização No âmbito dos estudos culturais um assunto muito discutido, é a questão da identidade ou identidades culturais. Um ponto em comum que a maioria dos teóricos parece assumir ao conceituarem identidade é o fato de que há uma ambivalência na própria constituição do termo, uma vez que identidade refere-se tanto a uma característica peculiar e essencial pela qual são reconhecidos os sujeitos e os grupos, como também algo que está sempre em construção, por isso, passível de mudanças. De acordo com a primeira interpretação do termo identidade, Escoteguy (2001, p.139) argumenta que este tema tem a ver com “os indivíduos e suas identidades pessoais – como nos constituímos, percebemo-nos, interpretamos e nos apresentamos para nós mesmos e para os outros”. Já na segunda acepção (idem 2001, p.142), argumenta que identidade trata-se de “uma busca permanente, está em constante construção, trava relações com o presente e com o passado, tem história e, por isso mesmo, não pode ser fixa, determinada num ponto para sempre, implica movimento”. Nas duas citações acima se encontram alguns pontos importantes que merecem serem discutidos. Um deles refere-se ao fato de que o termo identidade trava relação com o individual, ou seja, ao conjunto de comportamentos e “maneiras de ser” que delineiam a vivência de uma pessoa e, por isso, tem certa constância. O outro defende que as identidades vão sendo modificadas e “minadas” à medida que interferências externas de outras pessoas, de outras culturas, de transações político-econômicas atuam diretamente no desaparecimento e surgimento de novos perfis identitários. Conforme este raciocínio se fizermos um recorte dos conceitos de identidade acima refletidos e aplicarmos à situação social do idoso na África, mais especificamente em Moçambique, notaremos que houve sim uma desvencilhamento identitário, ocorrido, principalmente, depois do fenômeno pós-independência, quando os processos de comunicação de massa, ou seja, a introdução de artefatos tecnológicos como a tevê e o rádio alteraram a maneira como o idoso passou a ser “enxergado” ou valorizado pelas pessoas de outras faixas-etárias ou mesmo dos seus familiares, especialmente no contexto urbano. Antes da inserção desses aparatos tecnológicos, o idoso era visto como uma fonte de sabedoria e, por consequência, digno de atenção redobrada por parte das outras pessoas, visto que todo o aprendizado e experiências já vividos pelo ancião eram ensinados aos mais jovens com o intuito de as novas gerações propagarem os hábitos comuns da comunidade. Depois que “interferências mercadológicas e tecnológicas” entraram no país, o idoso perdeu um pouco seu lugar de representatividade e os objetos de comunicação de massa, além do consumismo exacerbado, passaram a ser o “centro das atenções” dos que antes tinham na figura do velho a fonte de informações, estas absorvidas através do ato de contar oralmente as estórias, como abordaremos mais adiante. Vale frisar que o nosso intuito neste trabalho não é generalizar a questão da modernização como sendo algo ruim para a África, notadamente Moçambique, ou ainda afirmar que a entrada de objetos tecnológicos foi de um todo maléfica para os cidadãos moçambicanos, mas, sobretudo, enfatizar que estes instrumentos e os valores pautados no consumismo mudaram o papel social do idoso em algumas sociedades tradicionais. Na cultura africana, principalmente antes dos projetos de modernização, o velho tinha um lugar de destaque no que diz respeito ser ele o guardador das tradições, ou mesmo o griot, como assim era denominado. Nesse sentido, o indivíduo idoso tinha a incumbência de repassar os conhecimentos de ordem existencial e espiritual, próprios do seu povo, às demais pessoas da comunidade a que pertencia. Esses saberes eram geralmente passados oralmente aos mais jovens e às suas famílias, a fim de sustentar a identidade do povo, por meio de tradições, modos de vida e de cultura disseminados na comunidade durante décadas. Assim, junto ao amplo conjunto de sociedades tradicionais africanas que esposaram a oralidade, a transmissão da herança cultural tornou vital a importância do elo que une o indivíduo à palavra. É pela palavra que se reconstitui a história tradicional de um povo. Além disso, a própria coesão da sociedade também depende do valor e respeito que impregnam a palavra (SERRANO e WALDMAM, 2008, p.145-146) Na esteira desse raciocínio, verificamos que a idade é um elemento muito importante, visto que, diferentemente do que acontece em outras sociedades em que aquela se configura como um fator de exclusão do idoso, na sociedade africana tradicional, ela é justamente sinônimo de acúmulo de conhecimento e experiências vividas, projetando-se assim como um elemento de status para os velhos dentro de sua categoria social. Conforme pontua Fonseca (2008, p.138) sobre a velhice na África: “Aquele que representa o saber da comunidade, o contador, o griot, está inscrito numa tradição em que o ‘ser idoso’ e o ter conhecimento aprofundado das histórias dos antepassados são elementos que valorizam o indivíduo no grupo a que pertence”. Nessa ótica, assinala-se que sinais corpóreos inerentes à maioria dos indivíduos idosos, como enrugamento da pele e aparecimento de cabelos brancos, não atuam como fatores excludentes nas sociedades africanas tradicionais. Pelo contrário, esses sinais conferem um nível de importância dentro da categoria social dos anciãos, haja vista, nessas sociedades, o poder da palavra ser mais importante do que a força de trabalho. Nas culturas que delegam ao velho o poder de alterar, com sua palavra sábia, os acontecimentos do mundo, o corpo, com o passar dos anos, torna-se indiferenciado, e a velhice é acolhida com naturalidade. Os sinais de velhice não são percebidos como degradação ou a partir de preconceitos que denigrem a passagem do tempo. Esses sinais são venerados juntamente com as palavras do ancião, pois testemunham experiência e sabedoria. (FONSECA, 2008, p. 136) Tendo esta citação em vista, reiteramos que, diferentemente de outras sociedades em que o envelhecimento corpóreo é observado pelo viés do preconceito, pois pode ser interpretado como um sinal de improdutividade, principalmente para o Estado, na África tradicional a pessoa idosa não seria excluída por causa de suas limitações corporais ou mesmo da sua pouca força de trabalho, visto que, o valor cultural dado aos idosos residia na perpetuação dos saberes. Por essa razão, os velhos eram “venerados como guardiões das tradições, eram considerados uma enciclopédia do saber que deveria ser passado às novas gerações” (FONSECA, 2008, p.138) Na África tradicional, os conhecimentos e hábitos comuns oriundos das experiências vividas pelas pessoas no seio de cada comunidade tinham por principal canal de voz o idoso. A idade avançada representava um sinal de destaque para o ancião, uma vez que aquela se configurava como um indicador de muita sapiência da pessoa velha, sendo esta, portanto, digna de merecer o respeito, a obediência e a credibilidade por parte dos demais, sobretudo os fatos narrados pelos guardiões da memória. Esses ensinamentos eram disseminados de forma oral através da voz do idoso que perpetuava, assim, crenças, muitas delas milenares, cultivadas no interior de cada aldeia, além de valores culturais e intrínsecos a cada povo. Sob este aspecto, Fonseca (2008, p.138) argumenta que “o velho que conta as histórias dos antepassados do seu povo assegura, com isso, a existência de um conjunto interligado de fatos sociais, mágicos e religiosos, que obrigam a respeitar o que se ouviu tal como foi ouvido”. Desse modo, o respeito pela palavra proferida pelo ancião tem um caráter divino e por isso imbuído de muita valorização. De acordo com Serrano e Waldman (2001, p.147), “o valor e o poder da palavra ocorre nas reuniões dos membros mais velhos das comunidades tradicionais africanas, nas quais são decididos diversos eventos” Nesta perspectiva, os velhos na África tradicional eram mantenedores dos costumes vividos no seio da comunidade, utilizando-se do principal instrumento que eles tinham: ou seja, a voz. Assim, perpassavam de forma oral tudo que fora aprendido no decorrer da vida. Conforme nos apresenta ainda Fonseca (2008, p.143) A palavra do velho e o lugar da velhice significam a fidelidade e a manutenção do conhecimento, condições de manutenção da vida coletiva em sociedades orais. Nessas sociedades, o homem é sempre significado pelo que aprendeu com os mais velhos, e esse aprendizado é naturalmente passado aos que vêm depois dele, como forma de garantir a coesão do grupo. Do mesmo modo o culto à palavra dos antepassados encarna-se no culto ao mais velho, que é respeitado em virtude do saber que detém. Esse saber é construído pela observação, desde muito cedo, dos fatos que lhe foram contados e recontados pelos que o precederam. Ou seja, aquilo que era dito por um idoso não era contestado, mas sim escutado com respeito e credibilidade pelas demais pessoas, por ser o resultado de experiências vividas durante muitos anos e, por conseguinte, sinônimo de muita sabedoria acumulada que reconhecidamente era aceita. [...] os mais velhos transformam-se nos cronistas dos acontecimentos que devem ser passados aos mais novos e, nesses rituais, personificam o antepassado que viveu a história contada. [...] E se ao velho falta força para o trabalho, sobra-lhe experiência para ser transmitida aos mais novos. (FONSECA, 2008, p. 137). Esta tradição oral de o idoso espalhar seus aprendizados às gerações mais novas foi sendo “apagada” mediante interferências externas, oriundas dos mecanismos de modernização introduzidos no espaço citadino, principalmente depois do processo de pós-independência, quando muitas pessoas, inclusive os velhos, tiveram de migrar do espaço rural para o urbano e, por conseguinte, passaram por uma forte imposição dos valores modernos cultuados na cidade, muito deles diferentes dos vividos na aldeia. Isso ocorreu em grande parte após o processo de pós-independência e da guerra civil em Moçambique. Como já foi aqui discutido o papel social do idoso na África, por muito tempo, garantiu-lhe um lugar de destaque, haja vista a função dos velhos ser bem delineada: transmitir oralmente os rituais e culturas do seu povo aos mais jovens, constituindo-se assim uma verdadeira “biblioteca viva”. Todavia, essa tradição aos poucos foi sendo apagada, principalmente pelos projetos de modernização oriundos do contexto pósindependência que, ao introduzir novas tecnologias como a tevê, “ofuscaram” o perfil identitário do ancião. De acordo com esse raciocínio, percebemos que antes o idoso tinha o seu lugar definido e a sua função específica dentro da sociedade africana, todavia, à medida que esta foi passando por mudanças de ordem econômica e política, a identidade primeira do idoso – de ser o centro divulgador das informações – foi sendo substituída por outros artefatos tecnológicos. Vejamos o que diz Fonseca (2008, p.133) a respeito da mudança ocorrida no papel social do idoso antes pontuado: “reitere-se que, nos dias atuais, em muitas culturas, a tradição ancestral convive com as inevitáveis alterações trazidas pela modernização, temida, mas necessária à entrada das culturas africanas nas novas leis de mercado”. Nesse sentido, os valores culturais intrínsecos no seio da comunidade africana vão sendo trocados pelas transmutações mercantis, pela rotação do capital, e, por conseguinte, vão sendo criadas novas formas de relações interpessoais. Nesse ínterim, a constituição identitária do idoso vai pouco a pouco sendo substituída e apagada como analisaremos a seguir na crônica de Mia Couto “Sangue da avó, manchando a alcatifa”. 3. Avó Carolina: sem voz, sem vez Logo no início da crônica “Sangue da avó, manchando a alcatifa”, Mia Couto, ao mostrar os motivos pelos quais a avó Carolina, personagem principal da história, foi trazida para Maputo – capital de Moçambique – deixa em evidência a realidade social pela qual passava o país em períodos de guerra pela independência, como também mostra a própria situação precária da velha senhora que, ao carecer de cuidados, recorre à terra dos filhos, na cidade: Mandaram vir para Maputo a avó Carolina. Razões de guerra. A velha mantinha magras sobrevivências lá, no interior, em terra mais freqüentada por balas que por chuva. Além disso, a avó estava bastante cheia de idade. Carolina merecia as penas. (COUTO, 1999, p.29). Percebe-se que o narrador já pontua que a avó carecia de “penas”, ou seja, de um pseudo-auxílio para não morrer à míngua no contexto da guerra. De fato, a guerra tinha motivado a transferência da anciã para Maputo, numa suposta “caridade” pela velha senhora. Ao chegar à cidade, onde aí residem os filhos e netos, a avó Carolina logo avista, na casa que passaria a morar, utensílios e objetos de luxo como “alcatifas, mármores, carros, uísques”. (idem, p.29). Aos olhos dela, mesmo tudo aquilo se configurando como “coisas externas” ou incomuns à sua vivência na aldeia, tornam-se motivos de orgulho, haja vista seus “meninos” estarem gozando de abundância ou de algum conforto material conquistado principalmente após a Independência de Moçambique. Assim, a própria personagem mais adianta menciona, a Independência, afinal, não tinha sido para o povo viver bem?. (idem, p.29). Todavia, ao passo que vai averiguando as maneiras dos filhos e observando seus comportamentos tão influenciados pelo consumo, vai estranhando aquele modo de viver tão supérfluo. Mas agora ela se inquietava olhando aquela casa empanturrada de luxos. A filha vinha da loja com sacos cheios, abarrotados. – Esse abastecimento não é tão de mais. – Cala vovó. Vai lá ver televisão. (idem, p.30). Quando a avó Carolina questiona à filha sobre o excesso de abastecimento, considerando aquilo tudo um exagero, a filha responde incisivamente desconsiderando a velha senhora. Por meio deste trecho, nota-se que os valores tradicionais pautados na figura do velho, principalmente no que diz respeito ser ele valorizado por seus ensinamentos, não são mais escutados por seus familiares, uma vez que a filha esnoba a idosa. Ao dizer, “cala vovó” vai de encontro justamente com aquilo que é mais valioso ao idoso, que é o de transmitir seus conselhos e ser “ouvido” pelos mais jovens. Quando a filha manda a idosa assistir televisão é porque não interessam mais suas sugestões e assim a velha é menosprezada. Neste trecho percebemos que o antigo valor social dado ao ancião, de “ser ouvido” e respeitado, vai sendo pouco a pouco “erodido” após receber interferências tecnológicas externas. A senhora idosa vai sendo considerada um peso, um estorvo para seus familiares que agora se ocupam com futilidades e só pensam nos objetos ditos modernos que os acercavam no espaço urbano. A televisão passa a ser o centro das atenções e uma espécie de paliativo para abafar a voz da avó Carolina. Sua forma de resistência é o questionamento daqueles bens supérfluos adquiridos pelos filhos. Contudo, estes não querem se ocupar mais com os antigos valores ou “sugestões” repassados por D. Carolina. Segundo Fonseca (2008, p.139) Essa tradição que assegura ao velho e à velhice um lugar definido pela valorização da palavra oral tem sofrido abalos significativos com o advento de mudanças introduzidas pelos projetos de modernização e pelas interrelações culturais. O comportamento citado pela filha demonstra que sua geração só está preocupada com o consumismo e com entretenimento trazido pelas novas tecnologias. Sob este aspecto, Fonseca (2008, p.132) sinaliza que são notórias as “alterações provocadas pelos novos tempos, nos quais a fala sábia do ancião convive com novas idéias e novos hábitos”. Há nesse trecho a observância de um conflito geracional. A televisão é o centro, uma espécie de “brinquedo” para que a velha senhora não incomodasse os convivas. No trecho subsequente da crônica, percebe-se como a velha senhora era tratada com desprezo pelos seus filhos. Sentavam a avó frente ao aparelho e ela ficava prisioneira das Luzes. Apoiada numa velha bengala adormecia no sofá. E ali lhe deixavam. [...] Filhos e netos se fechavam numa roda, assistindo vídeo. Quase lhe vinha um sentimento doce, a memória da fogueira arredondando os corações. E lhe subia uma vontade de contar estórias. Mas ninguém lhe escutava. (COUTO,1999, p.30) Essa citação mostra como há uma disparidade entre os valores tradicionais cultuados pela avó Carolina e os valores emergidos da modernidade, tão apreciados pelos seus familiares. Na África tradicional, os filhos sentavam-se em volta de uma fogueira ou perto de uma árvore onde o idoso começava a contar estórias e a compartilhar suas experiências que eram escutadas pelos mais jovens. Conforme Serrano e Waldman (2008, p.146), “Nas tradições africanas, a palavra falada, além do seu valor moral fundamental, possui caráter sagrado, que a associa com uma origem divina e com as forças ocultas nela depositadas”. Todavia, no trecho da crônica acima descrito, percebemos como a avó Carolina parece perder a importância do papel social que compete aos mais velhos, uma vez que ninguém dava atenção a ela, tratando-a como se nem existisse. A avó Carolina é prisioneira das “Luzes” que emergiam da tevê. Não mais das luzes da fogueira onde sua presença era de muita importância ao redor dos seus entes queridos. Quase lhe vinha um sentimento doce, a memória da fogueira arredondando os corações, mas agora os filhos [...] fechavam numa roda assistindo vídeo. (idem, p.30). Nesse sentido, a avó Carolina parece evocar através da memória momentos felizes vividos antes da guerra. Momentos nos quais todos compartilhavam um lugar-comum, sem tanta discriminação. Conforme Glissant 2005, p.42 “A crioulização, na medida em que está baseada na memória do rastro/resíduo possui uma relação com a noção de “lugar comum” [...] Há uma explicita relação entre os valores da tradição personificados na avó e a modernidade imbuída na cidade. Desse modo, a tevê tem um valor simbólico muito forte na crônica uma vez que a atenção agora é direcionada a “máquina” e não mais ao idoso como outrora. Assim, a partir da modernização, há uma transferência de valores. O valor agora é dado aos meios de comunicação, uma vez que o visual a (tevê) ganha maior evidência que a (voz) do outro. A máquina substitui o homem, neste caso substitui o velho e seu papel social na África. Nesta perspectiva, Fonseca (2008, p.142) afirma que “as alterações trazidas pelo progresso acabam por silenciar a voz da sabedoria, e o velho é expurgado do convívio com os mais novos que, antes, recebiam dele os ensinamentos indispensáveis à vida na comunidade”. Neste sentido, a crônica por ora analisada registra que há uma tentativa de silenciamento da velhice figurado na personagem da avó Carolina. Os novos aparatos tecnológicos tão cultuados pelos seus entes queridos acabam por neutralizar a figura da avó que sentia vontade de contar suas estórias, Mas ninguém lhe escutava. Os miúdos enchiam as orelhas de auscultadores. O genro, de óculos escuros, se despropositava ressonante. (idem, p.30). Desse modo, os auscultadores funcionam como uma tentativa de isolar-se, de ausentar-se da idosa. Os parentes preferiam escutar qualquer outra coisa, menos as palavras proferidas pela anciã. Ela tinha de vontade de interagir, mas não tinha espaço. No trecho seguinte, a avó Carolina recorda os tempos de outrora antes da guerra em que ela era bem valorizada. Agora só tinham restado as recordações resgatadas pela memória. A avó regressava à sua ilha, recordando a aldeia. Lá, no incêndio da guerra, tudo se perdera. Ficaram sofrimentos, cinzas e nadas. (idem, p.30). De acordo com Fonseca, (2008, p.133), Ao resgatar a figura do velho e o seu lugar na estrutura social, transportando para a escrita os rituais de uma tradição aprendida com os ancestrais, essa literatura evidencia, certamente, uma forma peculiar de convivência entre os africanos. Mas ao mesmo tempo, faz-se espaço de denúncia da exclusão do velho e dos modernos hábitos levados à África, os quais, com alguma freqüência, contribuem para o silenciamento das formas de educação tradicional, que têm no mais-velho a figura mais importante. No trecho que se segue, percebemos que os filhos tentam incorporar os valores citadinos na avó Carolina, como que parecendo não concordar com seus trajes, ditos ultrapassados para a sociedade moderna que eles agora viviam. Então, os filhos lhe ofereceram roupas bonitas, sapatos de muito tacão e até um par de óculos para corrigir as atenções da idosa senhora. Carolina cedeu a tentação. Bonitou-se. Pela primeira vez saiu a ver a cidade. (p.30). Nesta passagem, até parece que a avó Carolina submete-se aos desejos dos filhos em “mudar um pouco seu perfil”, no entanto, quando ela sai para olhar a cidade e viu os meninos farrapudos, a miséria mendigando (idem, p.31) se entristece ao verificar que a independência não tinha sido um negócio lucrativo e honesto para todos. Assim ao chegar em casa, retorna às suas vestes comuns, sobretudo as capulanas, que remetem a sua primeira identidade tão valorizada antes na aldeia. “Regressada a casa, ela despiu as roupas, atirou no chão os enfeites. Da mala de cartão retirou as consagradas capulanas, cobriu o cabelo com o lenço estampado”. (idem, p.31) O fato de abandonar as roupas dadas pelos filhos e retornar as suas antigas capulanas também configura-se como uma resistência, isto é, uma tentativa de reafirmar a sua identidade primeira e lutar contra a opressão dos filhos, verificada até mesmo nas suas vestes. Ainda nesta perspectiva, o narrador provoca uma reflexão e descreve a situação tradicional e moderna de Moçambique, visto que embora a avó Carolina desloque-se para Maputo, ela leva consigo suas maneiras, seu jeito de ser, seus costumes e, mesmo que filhos e netos queiram impregnar sutilmente um modo de vida diferente, não há uma desintegração identitária total por parte da avó. No trecho da crônica, E juntou-se à sala, inexistindo, entre o parêntesis dos parentes. (idem, p.31) fica bem notório que mesmo a avó estando entre seus parentes, ela sentia-se sozinha, pois “inexistia”, para seus filhos, naquele recinto, uma vez que a reciprocidade afetiva estava abalada e os laços familiares pareciam ter “afrouxados” diante daquelas circunstâncias. De acordo com Elias (2001) ainda que uma pessoa esteja rodeada de muitas pessoas, mas não possa compartilhar afetividade, ela pode sentir-se solitária. É o que ele chama de solidão social. Outra forma de solidão, que é social no sentido mais estrito, ocorre quando as pessoas vivem num lugar ou tem uma posição que não lhes permite encontrar outras pessoas da espécie que sentem precisar. Neste, e em muitos casos afins, o conceito de solidão refere-se a uma pessoa que por essa ou aquela razão é deixada só. Tais pessoas podem viver entre as outras, mas não tem significado afetivo para elas. (ELIAS, 2001, p.75) Num gesto de resistência àquela imposição cultural advinda da modernidade, a avó Carolina quebra a televisão simbolizando assim a sua não-aceitação àquele sistema. [...] a velha atirou a sua pesada bengala de encontro ao aparelho de televisão. (idem, p.31). Toda a família reage com susto e ao mesmo tempo raiva diante daquele gesto repentino da avó. A preocupação deles emergia muito mais pelo dano causado ao aparelho tão apreciado pelos mesmos e que fora danificado pela avó, do que por algum indício de compaixão com a anciã pela sua atitude inesperada: Primeiro todos se estupefactaram. Os meninos até choraram, assustados. O genro reabilitou-se aos custos. Soprando raivas, ergueu-se em gesto de ameaça. [...] Incrustada em espanto, a família encarava a anciã (idem, p.31). Na passagem da crônica supracitada, percebe-se que há um embate de valores. A avó não aceita a alienação trazida pela modernidade. Em contrapartida, para a família, a alienadora é a avó, que não consegue se inserir no contexto atual. Ao quebrar o aparelho de tevê, a avó atravessou a sala, vassourou os estragos, meteu os vidrinhos num saco plástico. – Estão aqui todos - disse. E entregou o saco ao genro. (p.31). Simbolicamente, esse gesto representa um repúdio, uma resistência por parte da avó, daquele dito progresso advindo dos projetos de modernização que culminou com o apagamento do papel social dos anciãos dentro da sociedade africana tradicional. Ao juntar os cacos do écran estilhaçado da tevê e colocá-los em um saco plástico, a avó corta-se. Do plástico pingavam gotas de sangue. [...] Era sangue da avó, gotas antiqüíssimas. [...] Tombaram no tapete em vermelha acusação. (idem, p.31-32). Neste sentido, o sangue tanto pode remeter a figura do velho que fora sacrificada, como também a todas as vítimas martirizadas no processo da guerra civil. De fato o título da crônica é muito significativo e esta imagem do “sangue da avó, manchando a alcatifa” pode ser interpretada também como uma tentativa de resistência dos idosos aos novos fenômenos modernos. Quando o sangue que escoou dos dedos da avó e mancha a alcatifa e o chão da casa, não consegue ser limpo pelos familiares, estes recorrem à figura do feiticeiro para apagar aquela nódoa que ficara impregnada na alcatifa. Chamaram o parecer do feiticeiro (idem, p.32). Desse modo, a família no momento do desespero se vale de uma figura emblemática “o feiticeiro” cujo cargo é ocupado por uma pessoa mais velha e assim ironicamente o autor da crônica registra uma contradição, uma vez que, os filhos excluem o velho e os seus conselhos, mas acabam por recorrer a ele quando necessitam de uma ajuda instantânea. No trecho que se segue, a mancha que se impregnou no tapete é o símbolo da dor dos excluídos. Não sai porque é simbólica. Há imagens que não podem ser apagadas porque vez por outra ressurgem em “vermelha acusação” denunciando a situação social dos que carecem de atenção e dignidade. No entanto, ainda hoje uma mancha vermelha persiste na alcatifa. Tentaram lavar: desconseguiram. Tentaram tirar os tapetes: impossível. A mancha colara-se ao soalho com tal sofreguidão que só mesmo arrancando chão. (p.32). O sangue pingado no tapete representa a resistência. O sangue que fora necessário também para compor o cenário da independência representa os valores da terra, da tradição. “Na verdade, a resistência também cresceu junto com a má positividade do sistema”. (BOSI 2000, p. 165). Podemos argumentar que a literatura como forma de resistência é uma literatura de denúncia, de crítica à exploração que algumas minorias da sociedade são submetidas, nesse caso, os sujeitos velhos. Na sequência da crônica em apreço, a avó Carolina decide voltar para o lugar onde morava anteriormente, no interior, onde lá sua identidade primeira residia. Pode-se dizer que há um reencontro com a sua identidade no espaço da aldeia onde ela podia ser quem ela queria ser. Na manhã seguinte a avó despachou o seu regresso [...] voltou à sua terra. (idem, p.32). Fonseca (2008, p.131) afirma que a “terra é o topos da identidade cultural, modelada pelos costumes preservados pela palavra dos antepassados, ensinada aos vivos desde a infância”. Vale destacar que a localização espacial na crônica é muito importante, visto que o ambiente citadino versus a aldeia contrastizam todas as maneiras e comportamentos experenciados pela avó e pelos seus filhos. Enquanto a idosa ainda figurava-se constante pelos moldes tradicionais da aldeia, e por se reconhecer digna da atenção dos filhos, que outrora escutavam as estórias contadas por ela ao redor de uma fogueira; de outro ângulo, agora, na cidade, os mesmos já tinham incorporado todos os valores suburbanos, desgarrando-se dos ensinamentos e valores que a avó pretendia transmitir. Nesta ordem, o espaço é o elemento organizador do enredo e sugere tempos distintos, sobretudo, quando notamos que os espaços físicos interferem diretamente na maneira como o idoso é valorizado pelas pessoas que o cercavam. Na aldeia e na cidade, o “espaço social” devotado à figura do velho diverge, visto que no primeiro ambiente o idoso gozava de importância para seus familiares; já no segundo ele é vítima de exclusão e menosprezo. Mesmo com a partida da avó Carolina para a aldeia, a família, na cidade, continua a viver sua vida como se nada tivesse acontecido. Apenas limitando-se a substituir o antigo aparelho de tevê por outro mais novo e a julgar com vaga lembrança da avó que todo aquele comportamento vivido por ela tinha sido fruto de, talvez, uma insanidade mental. Na cidade, a família se recompôs sem demora. Compraram um novo aparelho de televisão, até que o anterior já nem era compatível. De vez em quando recordavam a avó e todos se riam por unanimidade e aclamação. Festejavam a insanidade da velha. Coitada da avó. Complementando, podemos registrar que somente a avó Carolina recebe nome na crônica e, uma vez que o nome está diretamente ligado a identidade do indivíduo, esse detalhe estilístico pode ser interpretado simbolicamente como uma tentativa de ascensão do idoso por assumir a sua identidade primeira, mediante a sua não aceitação aos valores modernos cultuados pelos filhos no ambiente da cidade. 4. Considerações finais Com este trabalho, analisamos, através da personagem principal “D. Carolina”, da crônica de Mia Couto “Sangue da avó, manchando a alcatifa”, a forma como os projetos de modernização implantados em Moçambique, após a independência, repercutiram na maneira como o idoso passou a ser desvalorizado pelas demais pessoas de outras faixas etárias dentro de sua comunidade e, por conseguinte, acabam sendo condicionados a sujeitos passivos e sem o valor simbólico, que tinha, na figura do idoso, uma representação de respeito e sabedoria. Se antes, na sociedade africana tradicional, a função do idoso era transmitir a herança cultural do seu povo às novas gerações, com a entrada de novos artefatos tecnológicos, valores pautados no consumismo e na modernização, no ambiente citadino, o velho passa a ser visto não mais como um símbolo de autoridade e veneração, mas como um símbolo de peso e estorvo para aqueles encarregados de conviver com essas pessoas. Assim, recorremos às palavras de Hall (2007, p. 108), ao dizer que “as identidades não são nunca unificadas; que elas são na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; [...] estão sujeitas a uma historicização radical estando constantemente em processo de mudança e transformação”. Na crônica, a avó Carolina é submetida a um sistema que a coloca num nível inferior, onde sua palavra, sua função social de expandir o conhecimento à geração mais nova é repudiada, uma vez que seus filhos agora só entretinham-se com as novidades tecnológicas oriundas da modernização de Moçambique. Assim, o valor da máquina (TV) substitui a experiência humana havendo uma nova perspectiva de transmissão de valores. Todavia, a anciã não se curva aos valores e ordens que os parentes queriam lhe sujeitar. Pelo contrário, recusa as roupas doadas e prefere as suas capulanas, quebra a tevê numa atitude de não compactuação com aquele sistema de ofuscamento da sua pessoa, questiona os filhos sobre os luxos da casa enquanto tantas crianças viviam farrapudas na rua. Todas essas características pulverizam a crônica de uma ambivalência, cujo discurso literário nos permite averiguar o limiar do silenciamento e da resistência do velho a partir da crônica estudada. 5. Referências BOSI, Alfredo. Poesia-Resistência In: O ser e o tempo da poesia. 6º ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. COUTO, Mia. Sangue da avó manchando a alcatifa. In: Cronicando. Lisboa: Editorial Caminho, 1999. ELIAS, Norbert. Trad. Plínio Dentizien. A solidão dos moribundos seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 103p. ESCOSTEGUY, Ana Carolina D. Identidades culturais: uma discussão em andamento: In: Cartografias dos estudos culturais – uma versão latino americana. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p.139-184. FONSECA, Maria Nazareth Soares. Velho e velhice nas literaturas africanas de língua portuguesa. In: Literaturas africanas de Língua Portuguesa: Percursos da memória e outros trânsitos. 1.ed. Belo Horizonte: Veredas e Cenários, 2008. p.131-149. GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: EDUFJF, 2005, p. 13-69. HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tadeu Tomaz da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 7. ed –Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. p.103-131. SERRANO, Carlos, WALDMAN Maurício. A África Tradicional. In: Memória da África em sala de aula. 2ed. São Paulo: Cortez, 2008. p.126-145.