A EJA MEDIADA PELO TEXTO LITERÁRIO Marcelo Chiaretto - UFMG Se a possibilidade de reflexão sobre si, sobre seu estar no mundo, associada indissoluvelmente à sua ação sobre o mundo, não existe no ser, seu estar no mundo se reduz a um não poder transpor os limites que lhes são impostos pelo próprio mundo do que resulta que este ser não é capaz de compromisso. É um ser imerso no mundo, no seu estar, adaptado a ele e sem ter dele consciência. Sua imersão na realidade, da qual não pode sair, nem “distanciar-se” para admirá-la e, assim, transformá-la. Faz dele um ser “fora” do tempo ou “sob” o tempo ou, ainda, num tempo que não é seu. O tempo para tal ser “seria” um perpétuo presente, um eterno hoje. Ahistórico, um ser como este não pode comprometer-se; em lugar de relacionar-se com o mundo, pois deles não resultam produtos significativos, capazes de (inclusive, voltando-se sobre ele) marcá-los. Somente um ser que é capaz de sair de seu contexto, de “distanciar-se” dele para ficar com ele: capaz de admirá-lo para, objetivando-o, transformá-lo e, transformando-o, saber-se transformado pela sua própria criação; um ser que é e está sendo no tempo que é o seu, um ser histórico, somente é capaz, por tudo isto, de comprometer-se. Paulo Freire (1981), em Educação e Mudança Considerando o perfil estratégico da educação de jovens e adultos, não há dúvida de que o professor envolvido nesse processo deve demonstrar em sua prática um olhar atento ao fortalecimento da luta coletiva e ao exercício da cidadania plena. Sabe-se que um professor em EJA deve afirmar sua responsabilidade no momento de exaltar o protagonismo em seus alunos, buscando assim com essa postura crítica provocar em sua audiência o gosto pela aquisição do conhecimento e pela execução do papel de sujeito da aprendizagem contra todos os modos que possam caracterizar ou legitimar uma conduta passiva e indiferente. Percebe-se assim que professor e aluno em EJA têm papéis profissionais e sociais complementares, não cabendo a um professor ser controlador e o aluno acomodado, assim como não cabe um aluno instigador para um professor distante e apático. È indispensável uma sintonia de interesses para que a escola, enquanto instituição promotora da educação de cidadãos, funcione de fato. Uma característica fundamental de uma escola para a educação de jovens e adultos é a verificação de um ímpeto constante por motivar seus alunos na busca por 2 oportunidades com o fim de integrá-los concretamente na vida política, econômica, social e cultural das comunidades em que se sentem inseridos, assim como nas sociedades legitimadas pela classe dominante. Dessa forma se manifestaria uma situação clara de busca pela justiça social e, para a educação de jovens e adultos, tal intento deve estar em harmonia com toda a prática pedagógica dos diversos professores responsáveis pelas várias disciplinas. Um professor situado de fato nessa realidade sabe que sua função seria criar possibilidades (não restringir), debater e contradizer (não encobrir), assim como motivar, incitar, estimular e mesmo perturbar (para não deixar seus alunos sonolentos e confortáveis). As percepções e perspectivas dos alunos devem ter o mesmo peso e a mesma relevância que as do professor e tal conjuntura é basilar para que o conhecimento circule dinamicamente, sem que a escolarização e o academicismo, ou seja, a teoria desprovida de práxis possa neutralizar e anestesiar a vontade de pensar e de agir do alunado, em outras palavras, a vontade de serem sujeitos de suas histórias. Um professor visto como facilitador, um professor que adota práticas libertadoras demanda, obviamente, alunos necessitados de uma prática de ensino que seja crítica e afetiva (afetar, provocar, incitar, abalar, comover). Não haveria assim espaço para a concepção do aluno passivamente visto e assumido como “discriminado, excluído e vítima da sociedade”. Seria uma prática que exaltaria a democracia em direção oposta ao aluno que se consola com técnicas e métodos paternalistas, que entende a educação de jovens e adultos como filantropia e que se entende como cliente de uma empresa (e não como sócio responsável pelo sucesso e pelo fracasso de todo o processo pedagógico). Por sua vez, as instituições encarregadas da educação de jovens e adultos reconhecem que em seu público há prevalência das camadas populares, do mesmo modo que há prevalência de uma população que vivencia de forma precária o atendimento a questões básicas de sobrevivência, como saúde, trabalho, alimentação e educação. Todavia, tal público não pode ser contemplado e explorado como sendo uma esfera de “coitados, míseros ou infelizes”. Não há como negar a carência de tal público, uma carência econômica, social e sobretudo afetiva, porém uma educação de jovens e adultos não pode sonegar ou deixar em segundo plano seu compromisso com a transformação social e com a crítica do que está estabelecido e supostamente consolidado pelas elites governantes. Simular a inclusão de tal público para torná-lo mais “produtivo”, mais atento ao seu bem pessoal, para assegurá-lo como um melhor 3 contribuinte e um bom consumidor é trabalhar para aqueles que apenas perceberam interesse na EJA quando esta aperfeiçoou o trabalho de seus eternos empregados. Imaginar-se ou, o que seria mais danoso, evidenciar-se que a educação de adultos existe somente para a integração de parte da população a processos de modernização conduzidos por forças superiores é de antemão condenar ao tormento e a aflições um grupo social reconhecidamente vulnerável. Para que o público da EJA encontre então espaço para a sua história e para os seus desejos, há uma saída: o educando investido de uma concepção ativa de civismo, que se identifica no trabalho de ser sujeito da aprendizagem e atento ao bem comum, um sujeito que se esforçaria por compreender o espaço da sala de aula como um lugar de democracia, a rigor, o sistema político que se fortalece com conflitos, debates e confluências. Uma proposta de prática crítica, democrática e, talvez, libertadora Conforme uma proposta de gestão democrática, a sala de aula de literatura em EJA poderia funcionar como um prolongamento da esfera pública tradicional, uma vez que os alunos, tendo como ponto disjuntor a leitura de um texto literário, teriam então a chance de explorar suas idéias em uma situação de prática social discursiva, como um debate aberto às diferenças sociais e políticas. Tal “esfera pública” não poderia assumir uma mesma fonte de idéias, mas enfatizar a noção de uma arena de debate e crítica, fomentada por uma sociedade civil, soberana, cidadã, consciente da dignidade da pessoa humana, da livre iniciativa, do pluralismo de idéias e principalmente consciente da premência do colaboracionismo. O produto principal deste modelo democrático participativo de ensino seria a concepção da prática escolar enquanto prática social dependente de um contato intersubjetivo, ao mesmo tempo solidário e conflituoso, entre os membros da comunidade de leitores jovens e adultos. Assim, o maior objetivo de uma prática pedagógica como tal não seria somente enfatizar a necessidade da leitura para os públicos de EJA, mas sobretudo defender a imagem do professor de literatura como sendo um educador social, um agente cultural e um produtor de identidades. Seria um profissional consciente das carências e da riqueza de seus educandos, educandos esses que devem ser afetados e instigados por tal prática democrática para que possam, por 4 sua vez, encontrar com seus próprios recursos o conhecimento indispensável para a sua vida plena de cidadão. A leitura de textos literários cuidadosamente escolhidos em conformidade com as metas determinadas pode exercer uma função fundamental, ao colocar lado a lado professores e alunos em contato com um texto instigante que anseia por uma compreensão de sua leitura como uma prática eminentemente social (e não unicamente subjetiva e particular). Tal prática seria apta a proporcionar continuamente experiências históricas de recepção de textos, em constante variação no tempo e no espaço conforme o interesse das comunidades de leitores de EJA e suas respectivas culturas. Nessa perspectiva, os textos literários seriam abordados conforme um intento político, servindo de modelo ou de estímulo para uma expressão ou para uma argumentação convincente e interessante, uma argumentação que possa combinar, associar, interrogar e avaliar. Seria um contato com o texto literário capaz de incomodar e convocar à arena pública aqueles alunos comodamente admitidos como discriminados e excluídos. Convém salientar que este professor de literatura em EJA assumirá um compromisso político explícito, uma vez que seu trabalho precípuo é a ação de aproximar seus alunos de textos estimulantes para o exercício da reflexão, para o apuro das emoções, para a descoberta do senso de beleza e para a percepção da complexidade do mundo (conforme a teoria da complexidade de Edgar Morin) e dos seres. A seguir, expõe-se uma seqüência de textos literários que poderiam ser utilizados nessa abordagem pedagógica: de Machado de Assis, os contos “A carteira”, “Um apólogo”, “O caso da vara”, “Idéias do canário”, “Pai contra mãe”; de Lima Barreto, os contos “Numa e a ninfa”, “Milagre do Natal”, “Quase ela deu o „sim‟, mas...”, “Sua Excelência”, “O número da sepultura”; de Lygia Fagundes Telles, os contos “As cerejas”, “As pérolas”, “Herbarium”, “A chave”, “O encontro”, “A estrutura da bolha de sabão”; de Rubem Fonseca, os contos “O cobrador”, “A carne e os ossos”, “Encontro no Amazonas”, “Livro de ocorrências”, “Duzentos e vinte e cinco gramas”. Quatro autores de épocas relativamente diferentes com temáticas que ora se tocam, ora se distanciam radicalmente. E para que as leituras sejam mais ágeis e dinâmicas (considerando carga horária e tempo disponível para leitura), a opção pela prescrição de contos. De modos contrastantes, são contos aptos a provocar interrogações, contradições e sobretudo o desconforto do leitor, levado então a rever seus conceitos, preconceitos, suas experiências de oprimir e ser oprimido, de ofender e ser ofendido, de assediar e ser assediado, em uma exploração de temas na maioria das 5 vezes intocados pela classe. São textos aptos principalmente a instigar o leitor para o exercício do papel de agente na sociedade e no Estado, como um membro pleno da sociedade civil com direitos (civis, políticos e sociais) e deveres (ou responsabilidades). Seriam leituras literárias atentas ao fomento do exercício da liberdade de expressão e de compreensão do outro. Aos leitores jovens e adultos, caberia a leitura dos textos e, o mais essencial, caberia também o estudo das leituras, ou melhor, comparar, avaliar e perceber o contato dos outros colegas de classe com o mundo da palavra em tais textos literários. Este estudo das leituras seria ainda mais atraente se fosse concretizado com outros suportes e outras linguagens (com fotos, filmes, comerciais ou músicas), capazes de tornar mais socializável o contato com os textos literários. Surgiria desse modo o espaço de estudo do texto pelas palavras dos leitores, que podem amar e odiar, aprovar ou reprovar, que devem ser afetados pelo professor de literatura com o fim de que não fiquem indiferentes às obras literárias fundadas assim como ponto de partida, e não como finalidade. O aluno de EJA estaria então na aula de literatura antes de tudo para se expor, para se socializar, rejeitando o isolacionismo típico do leitor literário em prol da efervescência do coletivo. O campo da literatura, por seu lado, seria o campo da opinião, retirando assim a aura do leitor erudito, “ideal”. A meta permaneceria a mesma: um ensino civilizador que possibilite ao aluno o aperfeiçoamento humano em vista de uma melhor atuação no espaço político das coletividades. E civilizar conforme a concepção de Deleuze, ou seja, “ensinar conceitos manipuláveis”. Em ação Tais investigações pedagógicas no campo do ensino de literatura, atentas à complexa relação existente entre professor/texto literário/aluno no campo da EJA, já estão gerando novas práticas de ensino no Projeto de Ensino Médio para Jovens e Adultos da UFMG. Busca-se dessa maneira, com a leitura e discussão de textos literários, uma resposta aos desafios impostos pela disseminação generalizada de cada vez novos modelos de exclusão. Pretende-se ainda encontrar caminhos para amenizar as injustiças sociais quando não se consegue vencê-las de fato. Procuram-se, enfim, outros 6 meios de expressão que promovam a atividade reflexiva e socializadora em vista da transformação da realidade pessoal e coletiva dos alunos e professores em EJA. Referências bibliográficas AGAMBEN, G. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002. ALVARENGA, Márcia S. Educação de jovens e adultos: percursos dialógicos em face às desigualdades. In: GRACINDO, Regina V. Educação como exercício de diversidade. Brasília: ANPed, MEC, SECAD, 2007, v.1. ARROYO, Miguel. Educação de jovens e adultos: um campo de direitos e de responsabilidade pública. In: SOARES, L. et al. (Org.). Diálogos na educação de jovens e adultos. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. CHIAPPINI, Lígia. Reinvenção da Catedral. São Paulo: Cortez Editora, 2005. DELEUZE, G & PARNET, C. Diálogos. Lisboa: Relógio D‟água, 2004. DIONÍSIO, Maria de Lourdes. A construção escolar de comunidades de leitores: leituras do Manual de Português. Coimbra: Almedina, 2000. 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