A SÚMULA 377 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O NOVO CÓDIGO CIVIL Inacio de Carvalho Neto* I – Intróito Este singelo texto tem a pretensão de confrontar a Súmula nº. 377 do Supremo Tribunal Federal com o novo Código Civil, para demonstrar as razões pelas quais entendemos que a dita Súmula não mais vigora na atualidade. 1 Para tanto, entendemos conveniente enunciar, em primeiro lugar, a origem da Súmula (item II), que é essencial para revelar a razão pela qual entendemos estar ela revogada, o que fazemos no item IV, ao confrontar a Súmula com o novo Código. Ademais, entramos na discussão sobre o mérito da Súmula (item III), para tentar demonstrar que ela jamais deveria ter vigorado, sendo contrária, até mesmo, ao direito então em vigor. II – Origem da Súmula A Súmula nº. 377 do Supremo Tribunal Federal tem sua base legal fixada no art. 259 do Código Civil de 1916. Estabelecia este dispositivo que, “embora o regime não seja o da comunhão de bens, prevalecerão, no silêncio do contrato, os princípios dela, quanto à comunicabilidade dos adquiridos na constância do casamento”2. * Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Unipar. Mestre em Direito Civil pela Universidade Estadual de Maringá – UEM. Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo – USP. Professor de Direito Civil da Universidade Estadual de Londrina (UEL), da Faccar, da Escola do Ministério Público e da Escola da Magistratura do Paraná. Promotor de Justiça no Paraná. Autor dos livros Separação e divórcio: teoria e prática, ed. Juruá, 5ª. edição; Aplicação da pena, ed. Forense, 2ª. edição; Responsabilidade do Estado por atos de seus agentes, ed. Atlas; Ação declaratória de constitucionalidade, ed. Juruá, 2ª. edição; Abuso do direito, ed. Juruá, 3ª. edição; Extinção indireta das obrigações, ed. Juruá, 2ª. edição; Novo Código Civil comparado e comentado, ed. Juruá, em 7 volumes (alguns em 2ª. edição); Responsabilidade civil no direito de família, ed. Juruá, 2ª. edição; e de diversos artigos publicados em diversas revistas jurídicas. E-mail do autor: [email protected]. 1 “Súmula 377 - No regime de separação legal de bens comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”. 2 Este dispositivo, que não constava do Projeto original de Clóvis Bevilaqua, foi incluído no Congresso Nacional por adaptação do anterior direito português (art. 1125 do Código Civil de 1867). O atual Código Civil português (Decreto-Lei nº. 47.344/66) não contém dispositivo semelhante. Por este dispositivo, portanto, casando-se duas pessoas sob o regime de separação de bens, mas não estabelecendo o pacto antenupcial expressamente que não se comunicariam os aqüestos, estariam elas, na verdade, se casando sob o regime de comunhão parcial, já que seriam comuns os bens adquiridos na constância do casamento. A regra era, como se vê, odiosa, já que feria a boa-fé dos nubentes, conduzindo-os a um regime não desejado3. Não se pode imaginar, portanto, dar a ela uma aplicação extensiva. E foi exatamente o que fez o Supremo Tribunal Federal, ao editar a Súmula nº. 377. Baseando-se no citado art. 259 do velho Código, enunciou o Supremo Tribunal Federal que, no regime da separação legal de bens, comunicar-se-iam os aqüestos. III – Discussão sobre o mérito da Súmula A tese esposada na Súmula, entretanto, não pode ser aceita. O citado art. 259, referindo-se ao silêncio do contrato, tinha naturalmente, em vista o regime da separação contratual, ou seja, a separação convencional. No regime de separação legal, não havendo contrato, não há que se falar em aplicação do citado dispositivo, como bem lecionava Caio Mário da Silva PEREIRA: “O mesmo não ocorre com o regime de separação obrigatória, apesar do parecer de opinados autores, favoráveis à comunicação, neste caso amparados pela jurisprudência predominante no Supremo Tribunal Federal (Súmula nº. 377). A nós nos parece que se o Código institui a comunicabilidade ‘no silêncio do contrato’, somente teve em vista a situação contratual, pois, se desejasse abranger, no mesmo efeito, a separação compulsória, aludiria à espécie em termos amplos, e não restritivos ao caso, em que o contrato é admitido”4. Este entendimento é sufragado pela imensa maioria dos doutrinadores: 3 A propósito, lecionava RODRIGUES, Silvio (Direito civil: direito de família. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, v. 6, p. 165-166): “Tal regra, que surge como um alçapão posto na lei para ludibriar a boa-fé dos nubentes e conduzi-los a um regime de bens não desejado, só encontra explicação na indisfarçável preferência do legislador de 1916 pelo regime da comunhão e na sua desmedida tutela do interesse particular, injustificável em assunto que não diz respeito à ordem pública”. 4 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, v. 5, p. 131. “O que me parece de absoluta evidência é que a regra do art. 259, acima transcrita, se aplica exclusivamente ao regime convencional da separação de bens”5. “O art. 259 não incide se o regime da separação é o obrigatório. Então os bens são adquiridos pelos cônjuges separadamente e há dois patrimônios sem ligação”6. “O legislador ao dispor pela forma que o fez, pressupôs a existência de um contrato antenupcial. E somente quando o contrato silencia, manda que se aplique o dispositivo supra. Donde a conclusão de que, se se trata de regime obrigatório da separação de bens, em virtude do que estatui o art. 258, parágrafo único, não se aplica o dispositivo do art. 259. Permitir que se comunicassem os bens adquiridos, no caso de ser obrigatório o regime de separação, seria tolerar que a lei fosse burlada, seria, em suma, admitir que os cônjuges fugissem daquele regime que a lei lhes impôs, para caírem no regime da comunhão de bens”7. Mas há ainda outros argumentos a justificar a não aplicação do art. 259 do Código Civil de 1916 ao regime de separação legal de bens. O legislador, estabelecendo tal regime, quis naturalmente uma separação absoluta de bens, tanto é que proibiu, inclusive, a doação entre os cônjuges8. E mais: o legislador de 1962, conhecendo da controvérsia, já que a súmula já havia, à época, sido editada, e já era contestada, poderia, se quisesse adotar sua tese, alterar a redação do art. 259 citado, para fazê-lo abranger também o regime da separação legal. Mas não o fez. Ao contrário, criou o denominado usufruto vidual (art. 1611, § 1º., com a redação dada pela Lei nº. 4121/62). Ou seja, o legislador do Estatuto da Mulher Casada queria proteger o viúvo casado sob o regime da separação, mas não queria alterar os princípios deste regime, criando, então, instituto novo9. Não pode, portanto, a jurisprudência alterar o que o legislador quis manter intocável. Outro motivo pelo qual não se poderia aplicar o art. 259 em comento ao regime da separação legal é que isto implicaria, inevitavelmente, convertê-lo em regime de comunhão parcial. Com efeito, dizer comunicarem-se os aqüestos no regime de separação legal 5 RODRIGUES, Silvio. Op. cit., p. 166. 6 PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Tratado de Direito Privado. 3 ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, t. 8, p. 346. 7 CARVALHO SANTOS, João Manoel de. Código Brasileiro Interpretado. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1937, v. 5, p. 55. 8 “....e ainda proibiu a doação de um cônjuge a outro o que revela o propósito, interdizendo a liberalidades, de querer uma separação pura de patrimônios” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 131). 9 “Este objetivo ainda vem corroborado pela legislação subseqüente: no momento em que votou a Lei nº. 4.121 de 1962, e conhecendo a controvérsia, podia o legislador estatuir desde logo a comunhão de aqüestos nos casos de separação obrigatória. Longe disto, e ao revés, preferiu atribuir a viúva o usufruto do espólio a romper as linhas da separação. Apesar de todas as opiniões em contrário, continuamos fiel à tese que defendemos” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 131-132). equivale a dizer que o regime passa a ser o da comunhão parcial. Naturalmente não foi esta a intenção do legislador, que visou a uma punição aos cônjuges quando previu o regime de separação legal, ou mesmo, em alguns casos (como o do sexagenário à época do casamento), a proteção de um dos cônjuges. Se se admitisse a comunhão dos aqüestos, esta punição (ou a proteção) restaria nula, já que o regime da comunhão parcial já é o regime comum desde 1977: “Mais forte é o nosso argumento, tendo em vista que o regime legal é o da comunhão parcial: se a penalidade consistisse na imposição deste regime, deixaria de existir”10. Ademais, ainda é criticável a Súmula pelo fato de que os acórdãos na quais ela se baseou não são veementes ao acolher a tese nela esposada. Somente para exemplificar, o Acórdão proferido no Recurso Extraordinário nº. 7.243, que serviu de base à Súmula, assim dispõe: “Reconhece-se a comunhão acerca dos bens adquiridos pelo esforço comum dos cônjuges sujeitos a regime matrimonial diverso do comum”11. Fica claro, neste Acórdão, a exigência de que os bens tenham sido adquiridos pelo esforço comum para que se comuniquem os aqüestos, opinião de que comunga o Ministro Décio Miranda: “Na leitura do acórdão-líder, depreende-se que os bens sobrevindos ao casamento serão comuns quando a sua aquisição resultar do esforço comum;...”12. Não obstante, a Súmula foi editada em termos bem mais amplos, afirmando comunicarem-se os aqüestos em qualquer caso de separação legal de bens, sem a exigência de terem os bens sido adquiridos pelo esforço comum: “A verdade é esta: quando o regime da separação resulta da imposição da lei, quando ele é obrigatório por haver ocorrido um dos casos previtos, no art. 258, em hipótese alguma os bens dos cônjuges se comunicarão. Nem mesmo os bens adquiridos na constância do casamento com o produto da indústria e do trabalho de cada um dos cônjuges”13. 10 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 99-100. 11 STF – RE 7243 – Rel. Min. Filadelfo Azevedo – j. 12.07.43 – RF 98/67. 12 STF – ERE 89.480 – j. 26/08/81 – Rel. Min. Décio Miranda – RTJ 100/1121 – no corpo do acórdão. 13 CARVALHO SANTOS, João Manoel de. Op. cit., p. 55. Mas ainda que se aceitasse a comunicação dos bens adquiridos com o esforço comum , não se poderia aceitar os termos amplos da Súmula. 14 IV – A Súmula 377 em face do novo Código Civil Não obstante todos os argumentos anteriormente expendidos, podemos agora alinhar um outro argumento que nos parece decisivo: o art. 1.641 do novo Código pretendia deixar clara a revogação da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, dizendo não haver comunhão de aqüestos no regime de separação legal de bens. Na última revisão redacional do novo Código, suprimiu-se do projeto a expressão “sem a comunhão de aqüestos” que se pretendia acrescer ao caput, para deixar claro que no regime de separação legal não se comunicam os bens adquiridos na constância do casamento, sepultando definitivamente a Súmula nº. 377 do Supremo Tribunal Federal. É de se questionar, em primeiro lugar, a constitucionalidade formal dessa supressão, após aprovação plenária do Projeto, contrariando os objetivos e os limites da revisão redacional. Parece-nos possível ler o caput do art. 1.641 do novo Código da forma como originariamente estava redigido, ou seja: “É obrigatório o regime da separação de bens no casamento, sem a comunhão de aqüestos”. Mas não nos parece que se tenha pretendido (e nem seria possível tal pretensão em sede de revisão redacional) alterar a orientação legal para admitir a comunicação dos aqüestos, pois o regime é de separação total de bens e qualquer comunicação de bens neste regime constituiria exceção à regra da incomunicabilidade, dependendo de texto expresso em lei. Neste sentido é que a edição da obra de Caio Mário PEREIRA, atualizada com o novo Código, já diz que “com a redação do presente artigo (art. 1.641), restaurou-se o 14 Há corrente doutrinária e jurisprudencial neste sentido: “Com efeito, já de há muito censuro a amplitude da Súmula n. 377, pois entendo que ela deve ser restrita apenas aos bens adquiridos na vigência do matrimônio, pelo esforço comum dos cônjuges” (RODRIGUES, Silvio. Op. cit, p. 169). “Civil. Regime de bens do casamento. Comunicação dos aqüestos, no regime matrimonial de separação compulsória de bens. Estão sujeitos à comunhão de bens adquiridos por esforço comum na constância do casamento” (STF – ERE 89.480 – j. 26/08/81 – Rel. Min. Décio Miranda – RTJ 100/1121). “A leitura dos precedentes que informam a súmula 377 conforta o entendimento do Tribunal a quo, adverso à generalidade aparente de seu enunciado. Como aqui observou, certa feita, o eminente Ministro Adalício Nogueira, esforço comum é o traço que imprime aos aqüestos a força da sua comunicabilidade, não sendo outro o pensamento que anima a nossa jurisprudência” (STF – Min. Xavier de Albuquerque – voto proferido no acórdão citado). antigo preceito com toda severidade, porque ele enuncia exatamente o oposto, estabelecendo que no regime de separação legal, por ele estabelecido, não haverá comunhão de aqüestos”15. Ademais, como não repetiu o novo Código a regra do art. 259 do antigo Código, que servia de base à Súmula, esta deve ser tida por revogada independentemente da interpretação que se dê ao dispositivo em comento16. Com efeito, suprimida que foi a regra legal que dava base à Súmula, não há mais que se falar em sua vigência, pois a Súmula não pode subsistir contra a lei ou sem ela. V – Conclusão Por todos os argumentos anteriormente expendidos, somos da opinião de que a Súmula nº. 377 do Supremo Tribunal Federal está revogada, não mais podendo se falar em comunicação de aqüestos no regime de separação legal de bens. Deve-se atentar para o fato de que o regime de separação legal de bens é um típico regime de separação, só se diferenciando do regime de separação convencional pelo fato de ser imposto pela lei. Assim, deve-se aplicar ao regime de separação legal todos os princípios do regime de separação convencional. E o principal destes princípios é justamente a não comunicação dos aqüestos, que é, na verdade, a característica mais marcante do regime de separação de bens. 15 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. Atualizadora: Tânia da Silva PEREIRA. 14 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 195. 16 Cf. CARVALHO NETO, Inacio de; FUGIE, Érika Harumi. Novo Código Civil comparado e comentado: direito de família. Curitiba: Juruá, 2003, v. 6, p. 179.