OS ELEMENTOS SUBJETIVOS E OBJETIVOS DA DEMANDA Clayton Moreira de Castro* Sílvio Ernane Moura de Sousa** RESUMO Embora a demanda seja um instituto jurídico importante para compreensão de problemas como a cumulação de ações, a modificação da demanda, a litispendência e a coisa julgada, ao longo do tempo o seu estudo foi olvidado pela doutrina brasileira, que mais se dedicou à análise do instituto da ação. Nesse contexto, o objetivo deste trabalho é aprofundar no estudo do instituto da demanda, evidenciando o seu conceito; estudar os elementos subjetivos (partes) e objetivos (causa de pedir e pedido) da demanda, analisando a abrangência, as peculiaridades e as finalidades ou funções de cada um deles; e verificar a relevância do instituto da demanda para compreensão de diversos problemas no âmbito do Direito Processual Civil. Para consecução dos objetivos propostos, adotou-se o método científico de interpretação sistemática. No tocante ao procedimento técnico, optou-se pela pesquisa teórica dogmática, com compilação e revisão rigorosa de material doutrinário bibliográfico. Adotou-se, ainda, a pesquisa documental, com análise em profundidade da legislação pertinente. Verificou-se que o termo “demanda” possui duas acepções jurídicas. Concluiu-se que os elementos da demanda possuem as seguintes finalidades ou funções: garantir a segurança jurídica ou a estabilidade das relações jurídicas; possibilitar a análise das condições da “ação”; delimitar objetivamente a demanda, impondo ao juiz decidir a lide nos limites em que foi proposta (princípio da congruência ou princípio da adstrição); estabelecer os limites subjetivos e objetivos da coisa julgada; e delinear as relações que podem existir entre duas demandas: litispendência, continência, conexão e reiteração. Palavras-chave: Demanda. Elementos da demanda. Partes. Causa de Pedir. Pedido. ABSTRACT Demand is an important legal procedure for the understanding of problems such as the joinder of actions, changes in demand, lis pendens and res judicata. Over time, however, its analysis has been neglected by the Brazilian doctrine, which devoted itself to analyzing the institute of action. In this context, this paper aimed to delve into the study of demand, evidencing its * Graduado em Direito (UNIPAC/ARAGUARI), Administração Pública (UFOP) e Engenharia Civil (UFU). Mestre em Engenharia Civil (Engenharia de Estruturas) pela Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Direito Processual Civil e Direito Administrativo (UCAM). Servidor Público do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. E-mail: [email protected] ** Mestre em direito público pela UNIFRAN/SP, com graduação e especialização lato sensu em Direito Processual Civil pela UFU. Professor de Direito Processual Civil e Processo nos Juizados Especiais do Curso de Direito da UNIPAC/ARAGUARI. Autor da obra jurídica “Duplo Grau Civil de Jurisdição” (Ed. Pilares/2010) e coautor do livro “Juizados Especiais Cíveis e Criminais” (Ed. Iglu/2000). E-mail: [email protected] 1 concept; to examine both its subjective (parts) and objective (causa petendi and requests) elements, analyzing their scope, singularities and functions; finally, to verify the relevance of the institute of demand in the understanding of several problems within the sphere of Civil Procedure Law. In order to achieve these proposed objectives, the research adopted a scientific method of systematic interpretation. Regarding the technical procedure, the authors opted to conduct a legal dogmatic research, through which they compiled and thoroughly revised legal bibliographic material. The work also conducted documentary research, analyzing the relevant legislation. The results demonstrate that the term “demand” has two legal meanings. Moreover, they conclude that its elements have various purposes or functions. These include ensuring legal security or the stability of legal relations, enabling the analysis of the conditions of “action”, formally determining what is that demand, requiring that the court specifies its limits (the matching or the congruency principles), establishing both the subjective and objective limits of res judicata, and, lastly, outlining the potential relations between two demands. These relations encompass lis pendens, continence, connection and reiteration. Keywords: Demand. Elements of demand. Parts. Causa petendi. Request. 1 INTRODUÇÃO Ao longo do tempo, o estudo da demanda foi olvidado pela doutrina brasileira, que mais se dedicou à análise do instituto da ação. Não obstante, a demanda trata-se de instituto jurídico importante para compreensão de diversos problemas como a cumulação de ações, a modificação da demanda, a litispendência e a coisa julgada. É bastante comum, mesmo com os bons e experientes militantes do direito, ocorrerem erros na definição exata de vários conceitos jurídicos, ou na abrangência deles, o que dificulta o perfeito entendimento de questões sutis, prejudicando, outrossim, a racionalização e sistematização do conhecimento das Ciências Jurídicas. Demanda não é sinônimo de lide (relação jurídica material posta em juízo e controvertida pelo réu ou terceiro, nos casos permitidos em lei), não se confunde com ação (ato jurídico consistente no exercício do direito abstrato de ação), é um pressuposto objetivo de existência processual, fica consubstanciada na apresentação da petição inicial (instrumento da demanda) e guarda intima correspondência com a relação jurídica de direito material. Nesse diapasão, os temas a serem tratados no presente trabalho é o instituto jurídico da demanda e os seus elementos identificadores. O tema pode ser delimitado adotando-se como objeto principal de pesquisa os elementos subjetivos (partes) e objetivos (causa de pedir e pedido) que identificam a demanda. Definido e delimitado o tema, é possível apresentar o problema ou a questão central da pesquisa, isto é, em meio ao tema escolhido, a questão (ou questões) que se pretende 2 responder. Dessa forma, os seguintes problemas podem ser apresentados: Qual é o conceito jurídico de demanda? A demanda possui características suficientes para individualizá-la? Em caso positivo, quais são essas características? É possível elencar algumas finalidades ou funções dos elementos: partes, causa de pedir e pedido? A expressão “elementos da ação” bastante utilizada pela doutrina possui alguma relação com os elementos que identificam a demanda? Diante dos problemas anteriormente formulados, podem ser apresentadas as seguintes hipóteses de estudo, que consistem nas respostas provisórias aos problemas da pesquisa: a) a demanda possui características suficientes para individualizá-la (verdadeiras identidades): trata-se dos elementos da demanda (partes, causa de pedir e pedido); b) é comum ocorrer confusão entre os conceitos dos institutos jurídicos da ação e da demanda, não havendo que se falar em “elementos da ação”, e sim nos elementos que identificam a demanda (“elementos da demanda”); e c) os elementos da demanda são importantes para compreensão de diversos problemas como a cumulação de ações, a modificação da demanda, a litispendência e a coisa julgada. A justificativa da escolha do tema de estudo fica evidenciada quando se percebe a escassez de trabalhos técnico-científicos voltados ao instituto jurídico da demanda. Repita-se, embora a demanda seja um fenômeno importante para compreensão de diversos problemas, ao longo do tempo, o seu estudo foi olvidado pela doutrina brasileira, que mais se dedicou à análise do instituto da ação. Nesse contexto, o tema deste estudo insere-se entre os mais sérios e atuais no âmbito do Direito Processual Civil, evidenciando o seu alcance social e jurídico. O objetivo geral ou mediato do presente trabalho é estudar o instituto da demanda, mormente por intermédio da análise de seus elementos identificadores. Os objetivos específicos ou imediatos do trabalho são: 3 a) aprofundar no estudo do instituto jurídico da demanda, evidenciando o seu conceito e buscando interpretar sistematicamente o ordenamento jurídico brasileiro, bem como apurar os posicionamentos doutrinários sobre o tema; b) estudar os elementos subjetivos e objetivos da demanda, analisando a abrangência, as peculiaridades e as finalidades ou funções de cada um deles; e c) verificar a relevância do instituto da demanda para compreensão de diversos problemas como a cumulação de ações, a modificação da demanda, a litispendência e a coisa julgada. Para consecução dos objetivos propostos, adotou-se o método científico de interpretação sistemática, por meio do qual se busca estabelecer o alcance do conteúdo das normas estudadas, de forma a compreender-lhes o sentido, o objetivo e a razão de existir. No tocante ao procedimento técnico, optou-se pela pesquisa teórica dogmática, com compilação e revisão rigorosa de material doutrinário bibliográfico acerca dos temas propostos. Foram revisados conceitos e ideias importantes para a perfeita compreensão de toda a extensão deste trabalho. Paralelamente, adotou-se a pesquisa documental, com análise em profundidade da legislação pertinente. 2 O CONCEITO JURÍDICO DE DEMANDA Para começar, vale, aqui, apresentar o significado da palavra “demanda”, segundo De Plácido e Silva: Derivado do verbo latino demandare (confiar, cometer), significa o ato pelo qual uma pessoa confia ou entrega ao julgamento da justiça a solução do direito, que se encontra prejudicado ou ameaçado de perturbação, formulando, assim, o seu pedido, fundado no legítimo interesse de agir. (SILVA, 2010, p. 245, grifo do autor). O termo “demanda”, em um primeiro sentido, refere-se ao próprio ato que dá início ao exercício do direito de ação, pelo qual o autor (demandante) coloca sua pretensão diante do Estado-juiz, visando à apreciação da demanda pelo órgão jurisdicional. Nessa acepção, “demanda” significa o exercício pelo autor do direito fundamental de ação, consistindo, pois, no ato jurídico de provocar a atividade jurisdicional. Observe-se que a atividade jurisdicional necessita ser provocada para iniciar-se, uma 4 vez que se trata de prestação estatal inerte, consoante dispõe o art. 2º do Código de Processo Civil (CPC), o qual estabelece: “Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e forma legais.” (BRASIL, 1973). Para Câmara (2008, p. 305), “demanda é o ato inicial de impulso da atividade jurisdicional do Estado, exigida em razão da inércia característica desta função, que resulta no princípio consagrado no art. 2º do CPC (adequadamente chamado, aliás, princípio da demanda).” Nessa primeira acepção (demanda-ato), o vocábulo “demanda” faz menção ao ato jurídico exclusivo do autor, consistente no exercício do direito de ação, quando do impulso inicial da atividade jurisdicional do Estado, por meio da petição inicial. Lado outro, um segundo significado de “demanda” refere-se ao conteúdo da relação jurídica de direito material posta em juízo (demanda-conteúdo), quando da concretização do direito de ação, por intermédio da petição inicial. Nesse sentido, Gonçalves (2012, p. 137) assevera que demanda é sinônimo de “pretensão veiculada pela petição inicial”, em uma clara menção ao conteúdo da demanda. De acordo com Fredie Didier Júnior: O vocábulo “demanda” tem duas acepções: a) é o ato de ir a juízo provocar a atividade jurisdicional e b) é também o conteúdo dessa postulação. Neste último sentido (demanda-conteúdo), demanda é sinônimo de ação concretamente exercida. Toda ação concretamente exercida pressupõe a existência de, pelo menos, uma relação jurídica de direito substancial. Ocorrido o fato da vida previsto no substrato fático de uma determinada norma jurídica, ter-se-á, pela incidência da norma, um fato jurídico. Somente a partir de então é que se poderá falar de situações jurídicas e de todas as demais categorias de efeitos jurídicos (eficácia jurídica). Nesse contexto, a demanda (entendida como conteúdo da postulação) é o nome processual que recebe a relação jurídica substancial quanto posta à apreciação do Poder Judiciário. Inexistindo ao menos a afirmação de uma relação jurídica de direito material, inexistirá demanda-conteúdo e a demandaato será um recipiente vazio. (DIDIER JÚNIOR, 2009, p. 177, grifo nosso). Como se vê, o termo “demanda” possui duas acepções jurídicas: primeiro, pode significar o ato jurídico de provocar a atividade jurisdicional, quando o direito fundamental de ação é concretizado; e, segundo, pode referir-se ao conteúdo da relação jurídica de direito material posta em juízo, que ficará caracterizada pela formulação do pedido, adução da causa de pedir e indicação das partes. 3 OS ELEMENTOS DA DEMANDA 5 A demanda fica perfeitamente identificada por seus elementos subjetivos (partes) e objetivos (causa de pedir e pedido), os quais são verdadeiras identidades, ou seja, características suficientes para individualizá-la. Os elementos subjetivos e objetivos da demanda são imprescindíveis para a sua correta identificação, de forma que, como instrumento da demanda, a petição inicial deverá indicar as partes (sujeitos ativo e passivo), a causa de pedir (fundamentos de fato e de direito em que se funda o pedido) e o pedido (provimento jurisdicional postulado e o bem da vida que se almeja). Nesse diapasão, é possível elencar algumas finalidades ou funções dos elementos da demanda: a) garantir a segurança jurídica ou a estabilidade das relações jurídicas; b) possibilitar a análise das condições da “ação” (art. 267, VI, CPC); c) delimitar objetivamente a demanda, vinculando o juiz quando do julgamento, de forma a decidir “a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte”, nos termos do art. 128 do CPC (princípio da congruência ou princípio da adstrição); d) estabelecer os limites subjetivos e objetivos da coisa julgada (art. 301, §§1º, 2º e 3º, CPC); e e) delinear as relações que podem existir entre duas demandas: a litispendência (arts. 253, I, 301, §§1º, 2º e 3º, do CPC); a continência (arts. 104, 105, 253, I, do CPC); a conexão (arts. 103, 105, 253, I, do CPC); e a reiteração de demanda, ainda que em litisconsórcio com outros autores ou que sejam parcialmente alterados os réus, quando o processo tiver sido extinto sem resolução de mérito (art. 253, II, CPC). Sobre os elementos da demanda, merecem destaques os ensinamentos de Gonçalves (2010, p. 87, grifo nosso): O juiz, ao proferir a sentença, fica adstrito àquilo que consta da petição inicial e aos elementos da demanda. Não pode apreciar pedido mediato ou imediato distinto do que foi postulado, nem fundar-se em causa de pedir que não a apresentada na petição inicial, ou proferir julgamento em relação a quem não ficou como parte. Os elementos funcionam, pois, como delimitação objetiva da demanda, vinculando o juiz quando do julgamento. São relevantes também no estabelecimento dos limites subjetivos e objetivos da coisa julgada e permitem delinear as relações que 6 podem existir entre duas demandas: a litispendência, a continência, a conexão e eventual prejudicialidade. Sendo os elementos da demanda alguns de seus requisitos formais, nos termos do art. 282, incisos II, III e IV, do CPC, a petição inicial indicará o autor e o réu (partes); “o fato e os fundamentos jurídicos do pedido” (causa de pedir); e “o pedido, com as suas especificações”. (BRASIL, 1973). Na hipótese de não ser indicado cada um dos elementos da demanda, observado o disposto no art. 284 do Código de Processo Civil, a petição inicial deverá ser indeferida, por inépcia, acarretando a extinção do processo, sem resolução de mérito, em conformidade com o art. 295, inciso I e parágrafo único, do CPC. Impende observar que, em manifesta falta de acuidade técnica, é comum a doutrina referir-se a elementos da “ação” (e não da “demanda”), os quais seriam capazes de distinguir uma “ação” de outra. Claramente há uma confusão entre os conceitos dos institutos da ação e da demanda. Em verdade, não há que se falar em “elementos da ação”, e sim nos elementos que identificam a demanda, aqui entendida como o conteúdo da relação jurídica de direito material posta em juízo (demanda-conteúdo). Como exemplo do referido posicionamento, data venia, pode-se citar, com objetivo exclusivamente científico, o insigne doutrinador Darlan Barroso: “Em toda ação é possível identificar três elementos básicos: as partes, a causa de pedir e o pedido (ou objeto), os quais, segundo a doutrina clássica, compõem a teoria das três identidades, capazes de dissociar uma ação da outra.” (BARROSO, 2007, p. 96). O próprio Código de Processo Civil utiliza inadequadamente o termo “ação”, referindo-se, na verdade, à “demanda”, como ocorre no §2º do art. 301: “Uma ação é idêntica à outra quando tem as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido.” (BRASIL, 1973). Por fim, repise-se, uma vez mais, que, tecnicamente, partes, causa de pedir e pedido são elementos da demanda, instituto aqui tomado com a acepção de demanda-conteúdo, o qual muito difere do da ação, que consiste no poder de provocar a jurisdição. 3.1 As partes da demanda São partes da demanda o demandante e o demandado, os quais figuram, 7 respectivamente, no polo ativo e no polo passivo da demanda. De forma geral, o demandante é a pessoa natural ou jurídica que propõe a demanda e o demandado é a pessoa contra quem ela é proposta. O demandante e o demandado, respectivamente, são designados como autor e réu no processo de conhecimento; exequente e executado no processo de execução; requerente e requerido nas ações cautelares; embargante e embargado, nos casos de embargos de devedor e de terceiro; impetrante e impetrado em mandados de segurança e habeas corpus; reconvinte e reconvindo, na hipótese de reconvenção; excipiente e excepto, em exceção de incompetência, impedimento ou suspeição. Gonçalves (2012, p. 147) afirma que “parte é quem pede a tutela jurisdicional e em face de quem ela é postulada”; sintetiza, ainda, que autor é quem pede e réu é aquele em face de quem o pedido é formulado. De acordo com Darlan Barroso, Como regra, em toda ação [demanda, na verdade] haverá uma parte autora [demandante], que é aquela que provocou a jurisdição em busca de uma tutela para solução do litígio, e outra parte ré [demandada], ou seja, aquela contra a qual o Estado-juiz exercerá a jurisdição, pessoa que exercerá a resistência contra a pretensão do autor. (BARROSO, 2007, p. 97). Conforme ressalta Fredie Didier Júnior, existem demandas principais (que se referem à relação jurídica de direito material posta em juízo) e demandas incidentais, podendo as partes dessas duas espécies de demanda não ser as mesmas: Há as partes da demanda principal, autor e réu, e há as partes de demandas incidentais, que podem não ser as mesmas da demanda principal. Por exemplo: no incidente de arguição da suspeição do juiz, as partes são o excipiente (autor ou réu) e o próprio juiz, que, neste incidente, é parte. Perceba que o juiz não é parte na demanda principal, mas o é na incidente em que se discute a sua imparcialidade. (DIDIER JÚNIOR, 2009, p. 179). Em relação à demanda principal, em regra, partes da demanda são os sujeitos da relação jurídica de direito material discutida em juízo. Sem dúvida, “as partes na demanda normalmente coincidem com os sujeitos da relação jurídica substancial (à exceção dos casos de legitimação extraordinária ou se houver ilegitimidade ad causam).” (DIDIER JÚNIOR, 2009, p. 177, grifo do autor). Para Nunes (2009, p. 123), em regra, pessoa alguma pode pleitear direito alheio em nome próprio, de forma que somente possui legitimidade para propor demanda quem for o 8 detentor do direito material controvertido, com exceção dos casos de substituição processual e legitimação extraordinária ou anômala. É interessante registrar que Marcus Vinícius Rios Gonçalves lembra que em casos raros é possível uma demanda não ter autor ou réu: É possível que uma ação [demanda] não tenha autor, ou réu, embora as hipóteses sejam raras. Só haverá ação [demanda] sem autor quando o processo puder ser iniciado de ofício, como ocorre, por exemplo, com o inventário. Entre os procedimentos de jurisdição voluntária, alguns não terão réu, como no caso da separação consensual, em que ambos os cônjuges, de comum acordo, vão juntos a juízo. No entanto, é concebível a existência de ações [demandas] sem réu mesmo no campo da jurisdição contenciosa, como nas de investigação de paternidade, quando o suposto pai já faleceu e não deixou herdeiros. Por sua natureza pessoal, e não patrimonial, essa demanda não pode ser dirigida contra o espólio, que é a massa de bens deixada pelo falecido. Ela, em caso de morte do suposto pai, deve ser proposta em face dos herdeiros. Caso eles não existam, a ação [demanda] não terá réu. Também não têm réu as ações declaratórias de constitucionalidade, propostas perante o Supremo Tribunal Federal. (GONÇALVES, 2010, p. 87-88). Por derradeiro, observe-se que pode haver pluralidade de partes em qualquer um dos polos da demanda, hipótese em que se teria litisconsórcio. 3.2 A causa de pedir Causa é o que faz uma coisa ou algo existir, acontecer ou ser. É o fundamento, o motivo, a razão, a origem. Quanto à palavra “causa”, De Plácido e Silva assevera que: Como expressão jurídica, não possui o vocábulo significado diverso do de sua origem: é o motivo, a razão, o princípio, o fundamento, ou seja, tudo aquilo que motiva ou faz com que a coisa exista ou o fato aconteça. É, assim, a coisa que é o princípio ou fundamento de outra, que não substituirá sem essa justa razão, sem esse fundamento, que promana da causa, em que se funda ou de que se gera. A causa jurídica entende-se, pois, a razão de ser do ato a ser praticado ou do fato que evidencia, mostrando-se, ainda, como o fim, que se tem em vista na prática do ato ou na elaboração do contrato. E, desse modo, chega a expressar, na linguagem jurídica, o sentido do próprio objeto da obrigação, que não pode falar, visto não se admitir obrigação sem causa, o que equivale a dizer obrigação sem objeto. (SILVA, 2010, p. 150, grifo do autor). Nessa senda, pode-se dizer que causa de pedir (ou causa petendi) são os fatos e os fundamentos jurídicos do pedido (art. 282, inciso III, CPC). Da doutrina colhe-se a seguinte passagem: “A causa de pedir ou causa petendi 9 representa os motivos, de fato e de direito, que levam o autor a movimentar a máquina judiciária. Em simples palavras, a causa de pedir é a razão de estar em juízo ou os fundamentos para a providência requerida ao Estado.” (BARROSO, 2007, p. 97). Veja o significado da locução “causa de pedir” e de expressões latinas a ela correlatas, de acordo com Silva (2010, p. 151, grifo do autor): “CAUSA DEBENDI”. Ou causa da dívida, indica a origem, a razão, o fundamento ou o motivo de ser da obrigação. CAUSA DE PEDIR OU “CAUSA PETENDI”. Indica o fundamento, motivo ou origem do pedido, ou a pretensão do autor acerca da prestação jurisdicional pertinente [...] “CAUSA PETENDI”. Expressão latina que designa a causa de pedir; o fundamento fático sobre o qual repousa a pretensão. Para Nunes (2009, p. 39): “O autor, na inicial, deverá indicar todo o quadro fático necessário à obtenção do efeito jurídico pretendido, bem como demonstrar de que maneira esses fatos autorizam o (sic) concessão desse efeito (teoria da substanciação).” Realmente, segundo a teoria da substanciação da causa de pedir, adotada pelo Código de Processo Civil brasileiro, a causa de pedir consiste na soma dos fatos da vida e da relação jurídica deles decorrente, que devem estar razoavelmente expostos na petição inicial. Assim sendo, o CPC não adotou a teoria da individualização, segundo a qual bastaria a indicação da relação jurídica, sendo despicienda a exposição dos fatos jurídicos que lhe deu causa. No que concerne a esse tema, Didier Júnior (2009, p. 177-178) posiciona-se: “A causa de pedir na demanda impõe, segundo a vertente acolhida pelo nosso sistema processual, a narrativa dos fatos da vida e da própria relação jurídica nascida a partir deles (teoria da substanciação: causa de pedir = fatos + relação jurídica)”. A causa de pedir subdivide-se em causa de pedir remota (fatos constitutivos do direito substancial alegado pelo demandante) e causa de pedir próxima (fatos geradores do interesse de agir). Para Câmara (2010, p. 78), causa de pedir remota são os fatos constitutivos do direito substancial alegado pelo demandante, enquanto causa de pedir próxima consiste nos fatos geradores do interesse de agir. Nunes (2009, p. 40) apresenta exemplos para melhor distinguir causa de pedir remota e causa de pedir próxima: Subdivide-se a causa de pedir em causa remota, que se relaciona com o fato, e causa próxima, que se relaciona com as consequências jurídicas desse fato. O abalroamento culposo, numa ação de reparação de danos por acidente de 10 veículos, constitui a causa remota; já as consequências jurídicas desse fato (obrigação de indenizar com base nos arts. 186, 187 e 927 do CC) caracterizam a causa próxima. Em uma ação de resolução de contrato, a avença e o inadimplemento constituem os fatos jurídicos, obviamente, porquanto aptos a gerar efeitos nessa esfera (causa de pedir remota). O direito à resolução, por sua vez, constitui a consequência jurídica dos fatos narrados, os fundamentos jurídicos do pedido (causa de pedir próxima). Barroso (2007, p. 375) também explica a diferença entre causa de pedir remota e a próxima: A causa de pedir remota corresponde ao fato que dá origem à ação. Por sua vez, a causa próxima é a consequência jurídica do fato; equivale, na visão do autor, à resposta que o direito dá ao fato narrado, é o fundamento jurídico da petição inicial. Por exemplo, em uma ação promovida para a obtenção de indenização por danos materiais em razão do acidente de veículo, podemos dizer que a causa de pedir remota é o próprio acidente (o fato), já a causa próxima corresponde ao dever do agente de indenizar os danos experimentados pela vítima (a resposta jurídica ao fato). Deve-se frisar que, na adução da causa de pedir, é absolutamente desnecessária a indicação dos dispositivos legais em que se funda a demanda, visto que a fundamentação jurídica não é sinônimo de fundamento legal, o qual consiste na mera menção ao texto de lei. A esse respeito, vale transcrever os ensinamentos de Humberto Theodoro Júnior: A causa petendi [...] não é a norma legal invocada pela parte, mas o fato jurídico que ampara a pretensão deduzida em juízo. Todo direito nasce do fato, ou seja, do fato a que a ordem jurídica atribui um determinado efeito. A causa de pedir, que identifica uma causa, situa-se no elemento fático e em sua qualificação jurídica. Ao fato em si mesmo dá-se a denominação de “causa remota” do pedido; e à sua repercussão jurídica, a de “causa próxima” do pedido. (THEODORO JÚNIOR, 2011, p. 83, grifo do autor). Em síntese, prescindível a indicação dos dispositivos legais em que se embasa a demanda, a causa de pedir consiste nos fatos e nos fundamentos jurídicos do pedido (art. 282, inciso III, CPC), podendo ser subdividida em causa de pedir remota (fatos constitutivos do direito substancial alegado pelo demandante; narrativa dos fatos da vida; fato em si mesmo) e causa de pedir próxima (fundamentos jurídicos do pedido; consequência jurídica dos fatos narrados; fatos geradores do interesse de agir; repercussão jurídica dos fatos; relação jurídica nascida a partir dos fatos da vida). 11 3.3 O pedido Pedir é solicitar, requerer. Em sentido jurídico, o pedido evidencia a pretensão autoral, sendo, pois, a providência jurisdicional que o autor pretende para solução da demanda. Segundo Câmara (2008, p. 220), “pedido é o meio de declaração da vontade de se obter determinado resultado em juízo, ou, em outros termos, manifestação processual da pretensão.” Darlan Barroso, por sua vez, diz que “o pedido corresponde à providência jurisdicional que o autor pretende que o Estado imponha contra o réu. É a tutela jurisdicional pretendida e seus efeitos práticos em relação ao bem da vida litigioso.” (BARROSO, 2007, p. 376). O pedido veicula a pretensão processual do autor, consistindo em pedido imediato (prestação da atividade jurisdicional) e pedido mediato (tutela do bem da vida). (DIDIER JÚNIOR, 2009, p. 178). Conforme Câmara (2010, p. 78-79), pedido imediato ou objeto imediato do pedido consiste na natureza da tutela jurisdicional pleiteada e o pedido mediato ou objeto mediato do pedido é o bem jurídico que o demandante pretende obter. Exemplo esclarecedor do que venha a ser, em termos práticos, pedido imediato e pedido mediato é mostrado por Darlan Barroso: [...] quando o filho propõe uma ação contra o seu genitor objetivando receber alimentos, formula ele um pedido de tutela ao Estado, qual seja, requer expressamente em sua petição que o juiz condene (pedido imediato) o réu ao pagamento de determinado valor a título de pensão alimentícia (pedido mediato). (BARROSO, 2007, p. 98). Enfim, pedido é aquilo que o autor pretende obter da atividade jurisdicional exercida pelo Estado. Divide-se em pedido imediato (prestação da atividade jurisdicional; tutela pretendida pelo demandante; natureza da tutela jurisdicional) e pedido mediato (tutela do bem da vida; bem jurídico que o demandante pretende obter; efeitos práticos da tutela pretendida). 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo da demanda foi olvidado pela doutrina brasileira, que mais se dedicou à análise do instituto da ação. Entretanto, a demanda trata-se de instituto jurídico importante para compreensão de diversos problemas no âmbito do Direito Processual Civil. O termo “demanda” possui duas acepções jurídicas, que podem ser denominadas “demanda-ato” e “demanda-conteúdo”. 12 Em um primeiro sentido (demanda-ato), o termo “demanda” refere-se ao próprio ato que dá início ao exercício do direito de ação, pelo qual o autor (demandante) coloca sua pretensão diante do Estado-juiz, visando à apreciação da demanda pelo órgão jurisdicional. Nessa acepção, “demanda” significa o exercício pelo autor do direito fundamental de ação, consistindo, pois, no ato jurídico de provocar a atividade jurisdicional. Lado outro, o segundo significado de “demanda” refere-se ao conteúdo da relação jurídica de direito material posta em juízo (demanda-conteúdo), quando da concretização do direito de ação, por intermédio da petição inicial. Portanto, o termo “demanda” possui duas acepções jurídicas: primeiro, pode significar o ato jurídico de provocar a atividade jurisdicional, quando o direito fundamental de ação é concretizado; e, segundo, pode referir-se ao conteúdo da relação jurídica de direito material posta em juízo, que ficará caracterizada pela formulação do pedido, adução da causa de pedir e indicação das partes. A demanda fica perfeitamente identificada por seus elementos subjetivos (partes) e objetivos (causa de pedir e pedido), os quais são verdadeiras identidades, ou seja, características suficientes para individualizá-la. Cumpre registrar que existe confusão entre os conceitos dos institutos da ação e da demanda. Em manifesta falta de acuidade técnica, é comum a doutrina referir-se a “elementos da ação”, os quais seriam capazes de distinguir uma “ação” de outra. Em verdade, não há que se falar em “elementos da ação”, e sim nos elementos que identificam a demanda, aqui entendida como o conteúdo da relação jurídica de direito material posta em juízo (demanda- conteúdo). São partes da demanda o demandante e o demandado, o primeiro é a pessoa natural ou jurídica que propõe a demanda e este é a pessoa contra quem ela é proposta. Em relação à demanda principal, em regra, partes da demanda são os sujeitos da relação jurídica de direito material discutida em juízo. A causa de pedir consiste nos fatos e nos fundamentos jurídicos do pedido, podendo ser subdividida em causa de pedir remota (fatos constitutivos do direito substancial alegado pelo demandante; narrativa dos fatos da vida; fato em si mesmo) e causa de pedir próxima (fundamentos jurídicos do pedido; consequência jurídica dos fatos narrados; fatos geradores do interesse de agir; repercussão jurídica dos fatos; relação jurídica nascida a partir dos fatos da vida). Por sua vez, pedido é aquilo que o autor pretende obter da atividade jurisdicional 13 exercida pelo Estado. Divide-se em pedido imediato (prestação da atividade jurisdicional; tutela pretendida pelo demandante; natureza da tutela jurisdicional) e pedido mediato (tutela do bem da vida; bem jurídico que o demandante pretende obter; efeitos práticos da tutela pretendida). Os elementos subjetivos e objetivos da demanda são imprescindíveis para a sua correta identificação, de forma que, como instrumento da demanda, a petição inicial deverá indicar as partes (sujeitos ativo e passivo), a causa de pedir (fundamentos de fato e de direito em que se funda o pedido) e o pedido (provimento jurisdicional postulado e o bem da vida que se almeja). Para as Ciências Jurídicas, mormente para o Direito Processual Civil, os elementos da demanda possuem papel relevante, de forma que é possível elencar algumas de suas finalidades ou funções: a) garantir a segurança jurídica ou a estabilidade das relações jurídicas; b) possibilitar a análise das condições da “ação” (art. 267, VI, CPC); c) delimitar objetivamente a demanda, vinculando o juiz quando do julgamento, de forma a decidir “a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte”, nos termos do art. 128 do CPC (princípio da congruência ou princípio da adstrição); d) estabelecer os limites subjetivos e objetivos da coisa julgada (art. 301, §§1º, 2º e 3º, CPC); e e) delinear as relações que podem existir entre duas demandas: a litispendência (arts. 253, I, 301, §§1º, 2º e 3º, do CPC); a continência (arts. 104, 105, 253, I, do CPC); a conexão (arts. 103, 105, 253, I, do CPC); e a reiteração de demanda, ainda que em litisconsórcio com outros autores ou que sejam parcialmente alterados os réus, quando o processo tiver sido extinto sem resolução de mérito (art. 253, II, CPC). Em síntese, o estudo da demanda e seus elementos identificadores é fundamental para compreensão de problemas processuais como a cumulação de ações, a modificação da demanda, a litispendência e a coisa julgada. Dessa forma, é mister reconhecer que a doutrina brasileira precisa ocupar-se efetiva e sistematicamente com a demanda, de forma a melhor conformar a essência desse instituto jurídico. 14 REFERÊNCIAS BARROSO, Darlan. Manual de direito processual civil: teoria geral e processo de conhecimento. 2. ed. ampl. e atual. Barueri: Manole, 2007. v. 1. BRASIL. Lei n.° 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 17 jan. 1973. Seção 1, parte 1 (suplemento). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869compilada.htm>. Acesso em: 3 mar. 2014. CÂMARA, Alexandre Freitas. Juizados especiais cíveis estaduais, federais e da fazenda pública: uma abordagem crítica. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. ______. Lições de Direito Processual Civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. v. 1. DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2009. v. 1. GONÇALVES, Marcos Vinícius Rios. Direito processual civil esquematizado. 2. ed. revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2012. ______. Novo curso de direito processual civil: teoria geral e processo de conhecimento (1ª Parte). 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 1. NUNES, Elpídio Donizetti. Curso didático de direito processual civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico conciso. Atualização: Nagib Slaibi Filho, Gláucia Carvalho. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. 52. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. 1. 15