DESAFIOS PARA A PESQUISA EM
EDUCAÇÃO MATEMÁTICA NA SALA DE AULA
José Aires de Castro Filho
Marcelo Câmara dos Santos
Marilena Bittar
Universidade Federal do Ceará
Colégio de Aplicação da UFPE
[email protected]
[email protected]
Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul
[email protected]
1
Introdução
A pesquisa em Educação Matemática tem evoluído muito nos últimos anos.
Anualmente acontecem no Brasil cerca de 20 eventos na área, sem contar as
publicações especializadas e pesquisas realizadas nos programas de pós-graduação
strictu-sensu (mestrado e doutorado). Em muitas áreas, o Brasil já se destaca no
cenário internacional.
Diversas pesquisas têm contribuído para compreender melhor as dificuldades dos
alunos com vários conteúdos, como a interpretação de gráficos, o trabalho com
números e suas operações, com a geometria e com as grandezas e suas medidas.
Outros trabalhos também têm ajudado a compreender as concepções dos alunos
sobre conteúdos matemáticos, como números, frações, equações (NUNES e
BRYANT, 1999). Também há trabalhos que enfocam o conhecimento matemático
apresentado fora da escola, como é o caso das pesquisas sobre matemática na vida
cotidiana (CARRAHER, CARRAHER & SCHLIEMANN, 1988) e sobre Etnomatemática
(D´AMBRÓSIO, 1990) mostrando que mesmo alunos com baixo desempenho
utilizam-se de raciocínio matemático, as vezes bastante complexo, em suas
atividades cotidianas.
Algumas pesquisas já têm conseguido aproximar-se da sala de aula ou pelo menos
de documentos oficiais e materiais didáticos. Por exemplo, as pesquisas sobre a
Teoria dos Campos Conceituais (VERGNAUD, 1990) alcançaram uma amplitude tal,
em termos dos diversos resultados a ela ligados, que hoje vemos seus reflexos nas
orientações para a educação básica. É possível verificar a influência dos estudos
sobre essa teoria, em especial os resultados sobre campo aditivo e multiplicativo, nos
Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997) e conseqüentemente em alguns
livros didáticos.
Entretanto, a maioria dos resultados obtidos em pesquisas fica restrita aos círculos
acadêmicos a não ser por ação de alguns professores que têm acesso a revistas
específicas, participam de eventos ou até mesmo se dispõem, por iniciativa pessoal, a
fazer uma pós-graduação na área.
Podemos apontar várias razões para a distância entre a pesquisa básica e a
aplicação de seus resultados na escola, como a própria academia, que valoriza mais
as publicações científicas, não tendo como objetivo principal as aplicações diretas em
sala de aula, a falta de políticas sistemáticas de formação de professores (não só na
matemática, mas também em outras áreas do conhecimento), etc.
O presente artigo reflete sobre essas dificuldades ao mesmo tempo em que
apresenta caminhos para enfrentá-las. O texto apresenta reflexões importantes
quando tratamos da transferência de resultados de pesquisa para a escola. A primeira
é a produção de material didático e de orientações didáticas para professores com
base nos resultados de pesquisa. Tal tópico é discutido na seção 2, quando tratamos
do uso de tecnologias e objetos de aprendizagem na escola. Argumentamos que as
tecnologias podem ser um instrumento para oportunizar aprendizagem não apenas
para os alunos, mas também para os professores. A formação de professores é o foco
da seção 3 e é talvez a área mais crítica nessa discussão e sobre a qual todo
pesquisador deva se debruçar. É por meio do professor que os resultados de
pesquisa irão efetivamente chegar ao aluno, objetivo final de todo esforço para
melhoria do ensino de matemática. Por último, mas não menos importante, é a
reflexão sobre que matemática queremos para nossos alunos. Essa reflexão é feita na
seção 4, quando exemplificamos os descompassos entre a produção de
conhecimento matemático e sua chegada na escola. Após as três seções, retomamos
a questão da relação entre pesquisa e ensino de matemática na conclusão do texto.
2
Pesquisa sobre tecnologias e objetos de aprendizagem em sala de
aula
José Aires de Castro Filho
Como abordado na introdução, uma das dificuldades na transferência de resultados
para a sala de aula é a ausência de materiais didáticos baseados nas pesquisas. A
tecnologia é um caso singular. Visto serem novas e estarem sempre sendo
desenvolvidas, elas podem se beneficiar mais rapidamente dos resultados de
pesquisa. Além disso, as tecnologias podem ser elas próprias frutos de pesquisas.
Tais pesquisas podem ter foco nos alunos ou nos professores. Iremos discutir essas
vertentes a seguir.
2.1 Pesquisas com foco nos alunos
Com relação aos alunos, as pesquisas têm focado na contribuição de tecnologia,
tais como softwares educativos e ambientes computacionais (sensores acoplados a
computadores) para o desenvolvimento de conceitos matemáticos.
Por exemplo, Freire e Castro-Filho (2006) compararam as estratégias adotadas por
alunos de 3º e 5º ano na resolução de problemas algébricos utilizando-se uma
balança de dois pratos e um objeto de aprendizagem (OA)1 intitulado Balança
Interativa2.
O estudo mostrou que o número de estratégias utilizadas durante a
resolução do OA foi maior do que na utilização da balança concreta. Além disso,
todas as estratégias utilizadas na balança envolviam estimativas, o que não foi
observado nas estratégias encontradas no uso do OA. Isso levou os autores a
concluírem que o raciocínio adotado na utilização do OA estava mais próximo do
algébrico, ao passo que estimar valores estava mais próximo de um raciocínio
aritmético.
Nem toda tecnologia irá trazer vantagens em relação a materiais manipulativos ou
ao lápis e papel. Muitos softwares são apenas programas de exercício e prática, no
qual os alunos irão treinar respostas a conteúdos previamente estudados. Tais formas
de utilização trazem poucos ganhos em relação a práticas tradicionais. O uso de um
software ou tecnologia deve trazer vantagens em relação à materiais tradicionais,
devendo se refletir numa compreensão diferenciada dos alunos em relação aos
conteúdos abordados.
Outros estudos indicam benefícios ao se trabalhar com múltiplas representações de
funções (equações, tabelas, gráficos e animações) para desenvolvimento de
conceitos algébricos, tais como família de funções, transformação de funções e taxa
de variação. Softwares de geometria dinâmica, tais como Cabri ou Geogebra
possibilitam aos alunos realizar construções geométricas e levantar hipóteses sobre
leis da geometria. Tais softwares permitem focalizar mais nos aspectos conceituais do
que na produção de figuras, como acontecem quando se usa somente lápis e papel.
Os benefícios da tecnologia só serão efetivos se tivermos professores preparados.
Por isso, é necessário também investigar a formação de professores para utilização
das tecnologias, discutido a seguir.
2.2 O uso da tecnologia por professores.
O foco na utilização de tecnologia pelos professores permite diversos tipos de
pesquisas. A primeira delas é sobre como realizar a formação de professores para
uso das tecnologias. Castro-Filho (2000), por exemplo, sugere que a formação deve
iniciar com tecnologias que sejam mais simples de usar, como os objetos de
1
Recursos digitais (vídeo, animação, simulação etc.), os quais permitem que professores e
alunos explorem conceitos específicos nas mais diversas áreas do conhecimento.
2
Disponível nos endereços rived.proinfo.mec.gov.br e www.proativa.vdl.ufc.br.
aprendizagem (OA). O autor afirma que softwares completos como CABRI ou LOGO
demandam um tempo muito grande para serem aprendidos.
Outras pesquisas podem focar no ganho de conhecimentos dos professores obtidos
com a utilização das tecnologias. Os softwares educativos ou objetos de
aprendizagem que tragam múltiplas representações, simulações e transformações
dinâmicas podem ser boas oportunidades para que os professores desenvolvam seu
conhecimento matemático. Castro-filho et al (1999) discutiram o desenvolvimento dos
conceitos de função e taxa de variação por professores do Ensino Médio de uma
escola nos EUA durante a utilização de um software chamado Conta Bancária e de
sensores de movimento. Os autores apontaram que a tecnologia utilizada permitiu aos
professores questionarem e refinarem seu próprio conhecimento sobre função. Essa
mudança aconteceu não apenas nas seções de treinamento, mas também durante a
implementação da tecnologia com os alunos. Por último, apontam a importância dos
professores discutirem entre si, questões pedagógicas e conceituais.
Uma última vertente de pesquisas com foco nos professores é a incorporação da
tecnologia na prática pedagógica. O que pode ser observado é se a tecnologia
provocou mudanças no processo de ensino adotado pelo professor. Leite (2006), por
exemplo, investigou a mediação do professor durante a utilização do OA Balança
Interativa com alunos do 8º ano de uma escola pública de fortaleza, CE. Os
pesquisadores registraram as trocas conversacionais entre o professor e quatro
duplas de alunos na resolução de situações-problema apresentadas no software. A
autora verificou que houve uma preponderância de diálogos diretamente relacionados
ao conteúdo, fato que nem sempre é observado em sala de aula. Portanto, deve-se
verificar se o uso da tecnologia pode propiciar situações em que a mediação do
professor possa ser focada nos aspectos de conteúdo e não somente em aspectos
técnicos como orientação para utilização do programa. Para que Isso seja possível, é
necessário um professor de matemática que conheça o conteúdo e que também
esteja familiarizado com o OA.
Nessa seção, discutimos a pesquisa sobre o uso de tecnologia na escola. Do que foi
abordado, pode-se concluir que a pesquisa deve enfatizar a aprendizagem conceitual
dos alunos. No caso dos professores, a pesquisa deve ainda focar na sua prática
pedagógica e na sua formação, antes e durante a utilização da tecnologia com os
alunos. Esse aspecto da formação dos professores será discutido com mais detalhes
na próxima seção.
3
Formação de professores: um projeto de pesquisa-ação
Marilena Bittar
A formação de professores, tanto a inicial como a continuada, há muito sofre
influências de concepções behavioristas. Ou seja, no geral, o professor ainda é
considerado objeto de estudo e pessoa a ser mudada via participação em cursos, cujo
objetivo central é, de modo geral, ocasionar mudanças em sua prática mediante a
aquisição de conhecimentos. Esta tendência, entretanto, vem sendo contestada a
partir dos anos oitenta, quando a atenção na pesquisa sobre a formação do professor
passou a ser dirigida aos “[...] objetos e modelos culturais” (WARDE, 2000, p.14), bem
como às “práticas diferenciadas de apropriação deles” (ibid). Instaura-se, deste modo,
a busca por novos modos de se olhar a problemática da formação de professores: a
pesquisa-ação surge como uma dessas alternativas. De uma metodologia
experimental para a ação, segundo o entendimento dos precursores do uso dessa
metodologia, ela passou a ser utilizada como um revés sobre as abordagens
científicas positivistas. Busca-se superar a separação idealista entre pensamento e
ação. Outra expectativa é a de superar o caráter de especialização e de aplicação das
ciências sociais, assumindo a necessária implicação do homem com os fatos sociais.
É nessa direção que propomos discutir, nesse texto, uma proposta de pesquisa-ação
que temos realizado, sobre a integração da tecnologia na formação do professor de
Matemática.
Os estudos realizados nesse campo têm evidenciado que, importantes resultados
têm sido alcançados, por meio do uso de softwares de Matemática, conforme citado
na seção anterior. No entanto, pesquisas mostram que os professores dos diversos
níveis de escolaridade não têm efetivamente integrado a tecnologia em suas aulas, o
que acontece inclusive nos cursos de formação de professores, conforme relatam
algumas pesquisas (BITTAR, 2000 e BRANDÃO, 2005). Ou seja, o uso da tecnologia
tem sido apontado como deficiente tanto nos cursos de formação inicial de
professores como nos cursos de formação continuada e as discussões realizadas
nesse âmbito têm sido insuficientes para uma integração que venha, de fato,
contribuir com a aprendizagem do aluno. Além disso, muitas vezes a informática é
usada como "apêndice" do curso habitual; ou seja, o professor dá a aula da maneira
tradicional (papel, lápis, quadro-negro) e depois ilustra algumas atividades no
computador. Neste caso, esse uso não assume caráter diferente de outros, e o
computador (software) não está sendo explorado em sua potencialidade máxima,
como um meio que pode oportunizar mudanças no processo de ensino e de
aprendizagem relativas ao conhecimento. A verdadeira integração da tecnologia
somente acontecerá quando o professor vivenciar o processo, ou seja, quando a
tecnologia representar um instrumento, um meio importante na aprendizagem para
todos, inclusive, para o professor, afinal somos reflexo de nossas experiências.
Os professores devem se apropriar dos recursos oferecidos pela tecnologia e
estudar possibilidades de uso dessa ferramenta como mais um recurso didático
facilitador do processo de aprendizagem. Inserir um novo instrumento em sala de aula
implica mudanças pedagógicas, mudanças do ponto de vista da visão de ensino e de
aprendizagem, que devem ser estudadas e consideradas pelos professores na
preparação e encaminhamento de suas aulas: Como preparar uma aula utilizando
esse novo recurso? Que mudanças ocorrem quando se introduz a tecnologia nas
aulas de Matemática? Eis algumas questões que devem ser discutidas pelos
professores visando à inserção efetiva e crítica do computador no processo de ensino
e aprendizagem. Para ter elementos de respostas a essas e outras questões, é
importante conhecer as várias possibilidades existentes no uso da informática na
Educação. Porém, essa condição não é suficiente para a integração da tecnologia na
Educação. Acreditamos que somente com experiências significativas para os
professores essa integração poderá ocorrer. Com efeito, quando trabalhamos com a
formação inicial de professores percebemos que, mesmo se essa parte dita técnica
lhes é familiar, falta o componente da prática pedagógica que o professor que está
atuando tem. Nas duas últimas décadas, temos tido oportunidade de trabalhar ou
realizar pesquisas em cursos de formação continuada, de diversos formatos, com
professores de Matemática de Campo Grande/MS e a análise dessas experiências
tem evidenciado a necessidade de um trabalho de formação que seja efetivamente
inserido na realidade da escola e desenvolvido dentro dela. É nesse sentido que a
metodologia da pesquisa-ação parece fornecer um quadro coerente para o
desenvolvimento
de
pesquisas
visando
atingir
objetivos
como
os
citados
anteriormente.
A constituição de grupos compostos por pesquisadores e professores poderá trazer
subsídios para uma inserção crítica e significativa da tecnologia na Educação.
Acreditamos que a pesquisa dos profissionais (professores) sobre sua prática em
colaboração com outros profissionais pode constituir uma estratégia que contribui
para a resolução dos problemas enfrentados cotidianamente na escola. Concordamos
com Ponte (2004) que:
Não se trata de transformar os professores em pesquisadores profissionais. Trata-se de
reforçar a competência profissional do professor, habilitando-o a usar a pesquisa como
uma forma, entre outras, de lidar com os problemas que defronta (p. 37).
Nossa orientação não é de fornecer respostas, como geralmente ocorre na
formação tradicional, para problemáticas não formuladas. Na verdade, em
consonância com a metodologia da pesquisa-ação (BARBIER, 2002) acreditamos que
[...] o problema nasce, num contexto preciso, de um grupo em crise. O pesquisador não
o provoca, mas constata-o, e seu papel consiste em ajudar a coletividade a determinar
todos os detalhes mais cruciais ligados ao problema, por uma tomada de consciência
dos atores do problema numa ação coletiva (p. 54).
Com base no objetivo exposto e na metodologia da pesquisa-ação nossa
investigação, iniciada em fevereiro de 2007, tem sido desenvolvida em algumas fases
cuja duração varia em função dos interesses e das necessidades dos envolvidos.
Nesse trabalho, abordaremos as cinco primeiras: 1ª) constituição e consolidação do
grupo composto por professores que atuam na Educação Básica, tendo como único
critério o fato de ensinarem Matemática nesse segmento. Consideramos essa, como
sendo uma fase importante dentro da perspectiva da metodologia de pesquisa-ação,
pois se trata da real constituição do grupo de estudo. Essa fase foi composta por uma
discussão inicial geral sobre questões ligadas à tecnologia e à prática pedagógica. O
objetivo dessa fase foi, dentre os problemas vivenciados, identificados e discutidos
pelos professores, no grupo, escolher um tema para ser estudado com mais
profundidade; 2ª) estudo coletivo do tema definido na fase anterior – softwares
educativos e suas possibilidades para a aprendizagem matemática – por meio de
leitura de textos e apresentação de slides. A partir desse estudo passamos à fase
seguinte; 3ª) estudo e análise de um software que pode contribuir com a
aprendizagem da Matemática – o grupo escolheu trabalhar com o LOGO; 4ª) leitura
de artigos ligados ao ensino e a aprendizagem da Geometria, do bloco Espaço e
Forma, contido nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Matemática (BRASIL,
1997) e, em seguida, análise do conteúdo de Geometria apresentado nos livros
didáticos de Matemática destinados aos anos iniciais do Ensino Fundamental; 5ª)
elaboração de seqüências didáticas (BROUSSEAU, 1986) envolvendo o uso de
softwares educativos ou calculadora. Nessa fase houve a subdivisão por subgrupos,
segundo o interesse dos participantes.
Ao longo dos encontros percebemos alguns momentos de colaboração, em especial
naqueles destinados à exploração do LOGO. Foi dada uma rápida explicação sobre o
software e, a partir de então o grupo começou a trabalhar de forma livre; não se
tratava de um curso sobre o uso do software. Cada vez que um participante tinha uma
dúvida ou se sentia bloqueado diante de uma dificuldade, ele procurava outra pessoa
para discutir. Além disso, à medida que algum participante fazia um questionamento
acerca das possibilidades de uso desse software, ou a respeito de alguma
descoberta, boa parte dos envolvidos sentia-se instigado a descobrir essas e novas
possibilidades, a explorar as ferramentas e a confrontar essa experiência ao trabalho
que poderiam realizar com seus alunos em suas respectivas escolas, tendo em vista o
ensino e a aprendizagem da Geometria. Na ocasião, duas professoras tomaram a
iniciativa de desenvolver, com seus alunos, uma aula fazendo o uso do LOGO. Para
tanto, prepararam algumas atividades, expuseram ao grupo o que haviam planejado e
o que já haviam realizado. O grupo fez alguns questionamentos e deu novas
sugestões para ampliar o trabalho.
As reflexões realizadas ao longo de todo o trabalho desenvolvido durante o ano de
2007 indicam que foi despertada, em todos, a vontade de explorar de forma crítica a
tecnologia para que, de fato, ela possa constituir mais um instrumento a ser
incorporado na prática pedagógica do professor. Na avaliação feita ao final do ano,
todos manifestaram contentamento com o que foi desenvolvido e também interesse
no prosseguimento da pesquisa. Parece-nos que uma primeira parte, fundamental
para o trabalho proposto, foi cumprida: a constituição de um grupo de pesquisa-ação,
que trabalha em colaboração e que chegou a certo entendimento sobre o significado e
interesse acerca do uso da tecnologia na educação. Isso está sendo comprovado
nesse primeiro semestre de 2008, quando estamos preparando, aplicando,
analisando, reaplicando e discutindo as seqüências didáticas (BROUSSEAU, 1986)
elaboradas pelos subgrupos. Ou seja, estamos alcançando um dos objetivos
pretendidos: a realização das idas e vindas entre as reflexões do grupo e as ações
desenvolvidas em sala de aula.
Podemos afirmar que participar de um grupo de pesquisa-ação oportuniza aos
professores refletirem sobre sua prática de forma coletiva, investigando problemas
que tenham significado para eles. De fato,
Os professores que vivenciam processos de pesquisa-ação têm a possibilidade de
refletir sobre as suas próprias práticas, sua condição de trabalhador, bem como os
limites e possibilidades do seu trabalho. Nesse sentido, ela se constitui em uma
estratégia pedagógica de conscientização, análise e crítica e propõe, a partir da reflexão
propiciada na interlocução com os pesquisadores-observadores e na participação nas
discussões com o grupo de pesquisa, alterações de suas práticas, sendo delas os
autores. (GARRIDO, 2005, p. 527)
Finalmente, queremos salientar que a análise da pesquisa que temos desenvolvido
parece mostrar que não se trata apenas de instigar nos professores o desejo pela
integração da tecnologia em suas aulas de Matemática, mas sim de investir em uma
mudança mais profunda que implica reflexões sobre sua prática pedagógica. Essa
análise corrobora nossas escolhas metodológicas e evidenciam que o caminho
escolhido está nos levando aos resultados pretendidos: contribuir com o
desenvolvimento profissional do professor em uma parceria Universidade X Escola,
onde nenhuma das partes é submissa à outra. O grande desafio nessa formação é
refletir sobre que matemática queremos em nossa sala de aula. A próxima seção trata
dessa questão.
4
A matemática na sala de aula ou como transformar singelas
vaquinhas em diabólicos monômios.
Marcelo Câmara dos Santos
Os textos anteriores colocaram em evidência, de forma bastante pertinente,
questões ligadas ao ensino de matemática. Em particular, articuladas à utilização de
recursos tecnológicos, salientando-se os objetos de aprendizagem, destacados por
José Aires, e à formação de professores de matemática, em especial por meio da
pesquisa-ação, em um interessante trabalho apresentado por Marilena.
De minha parte, me aventuro a levantar uma discussão sobre a presença dos
saberes matemáticos em nossas salas de aula. Em especial, parto das apresentações
anteriores na medida em que os professores citados anteriormente têm como função
básica levar seus alunos a construírem conceitos matemáticos. Mas como esses
objetos matemáticos estão sendo tratados nessas salas de aula? Que efeitos certas
escolhas feitas por nós, professores, geram nos comportamentos dos alunos?
Evidentemente não tenho a mínima pretensão de, em um texto de caráter tão
limitado, estabelecer respostas, mesmo que não definitivas, a tais questões, mas o
momento me parece bastante apropriado para avançarmos algumas provocações a
esses questionamentos.
Quando observamos o desenvolvimento do saber matemático ao longo da história,
podemos verificar que esse saber foi construído a partir de problemas do cotidiano da
sociedade na busca pelo desenvolvimento do ser humano. Nesse processo, esses
saberes foram sendo paulatinamente sistematizados, com novas construções
realizadas, construções essas dando origem a novos problemas, e assim
sucessivamente. Porém, me parece importante destacar que esses saberes
produzidos se caracterizam essencialmente pela descontextualização, processo
necessário até mesmo para permitir a universalização desses saberes.
Por outro lado, nossos alunos estão imersos em uma sociedade na qual a
matemática aparece intimamente ligada ao cotidiano de cada um de nós. Nós
fazemos matemática em cada um dos atos de nossas vidas. Mesmo o sujeito que
nunca freqüentou a escola utiliza a matemática em sua sobrevivência, seja realizando
operações, fazendo medições e estimativas, trabalhando com grandezas, etc. Nesse
caso, é preciso destacar que se trata de uma matemática fortemente contextualizada,
quase que uma “matemática pessoal” de cada cidadão.
Surge então um dos grandes dilemas da matemática escolar: em que medida a
matemática que estamos ensinando aos nossos alunos está contribuindo para a
melhoria da qualidade de vidas deles? Em que medida a “matemática pessoal” de
nossos alunos encontra eco em nossas salas de aula. Ou, nos termos de Gelsa
Knijnick (2006), como os “saberes impuros” convivem (ou não) com os “saberes
puros” em nossas salas de aula. Isso me faz lembrar de uma entrevista de Yves
Chevallard que dizia que a sociedade iria parar se não houvesse energia elétrica, mas
não sofreria o mínimo dano se a matemática fosse retirada de nossas escolas. Eu
faria um pequeno adendo a essa frase, a sociedade não sentiria a mínima falta dessa
matemática que estamos fazendo em nossas escolas (CÂMARA, 2006).
Para ilustrar, e ao mesmo tempo dar sentido ao título desse texto, vou trazer um
problema tipicamente escolar, no trabalho com sistemas de equações do primeiro
grau com duas variáveis, objeto de ensino tão presente em nossas salas de aula de
sexta série, atualmente promovido ao sétimo ano do ensino fundamental:
Em um sítio existem vacas e galinhas, num total de 10 cabeças e 26 patas. Quantos
animais de cada tipo existem nesse sítio?
Ora, como todos bem sabemos, trata-se de um problema que exige a aplicação do
conteúdo “sistema de equações”. Ora, mas para resolver uma “equação” eu precisa
antes saber o que é uma “expressão algébrica”. Então vamos aprender o que são
“polinômios”. Mas um polinômio é uma “soma algébrica de monômios”, logo eu
preciso primeiro aprender o que são “monômios”.
Essa é fácil, monômios são produtos envolvendo letras e números. Portanto são
formados por uma parte numérica, chamada de “coeficiente”, e uma “parte literal”.
Evidentemente os monômios têm “grau”. Bem, o grau de um monômio é dado pela
soma dos expoentes da parte literal. Legal, agora vamos definir “monômios
semelhantes”, são aqueles que têm a mesma parte literal. Bom, com isso eu já posso
aprender a “somar monômios”, evidentemente apenas monômios que são
semelhantes: somamos os coeficientes e mantemos a parte literal.
Mas já que estamos somando monômios, por que não estudar também as outras
operações? Vamos lá, para multiplicar ou dividir monômios (mas atenção, agora eles
não precisam mais ser semelhantes), multiplicamos ou dividimos normalmente os
coeficientes e, para a parte literal, aplicamos as propriedades das potências de
mesma base. Você não sabe essas propriedades? Mas isso já foi estudado na quinta
série, vá fazer uma revisão! A mesma coisa podemos fazer em relação à potenciação
e à radiciação de monômios. Agora podemos aplicar tudo isso que aprendemos em
expressões. Determine o valor de:
SOCORRO!!!
Agora que já sabemos tudo sobre monômios, podemos voltar. Vamos aos
polinômios, que se classificam em binômios, trinômios e os polinômios propriamente
ditos. Vamos ver então, como fizemos com os monômios, como identificar o “grau” de
um polinômio. Em seguida vemos as “operações” com polinômios, adição algébrica,
multiplicação, divisão, potenciação e radiciação. Mas para isso precisamos estudar
também os “produtos notáveis”.
Já sabemos tudo sobre polinômios? Vamos estudar as “equações”, de todos os
tipos e formatos, incluindo com frações, heim! Agora é só aprendermos os diferentes
métodos de resolução de um “sistema”, adição, substituição, comparação e método
gráfico, e, finalmente, seremos capazes de resolver o problema das singelas
vaquinhas!
Temos então o trabalho com esse objeto de ensino em sua manifestação “pura”.
Mas como seria esse mesmo objeto em sua versão “impura”? Vou apresentar agora
como crianças, que ainda não “aprenderam” tudo aquilo colocado antes, tratam dessa
questão de vaquinhas.
Forma pura
Galinhas: x
Forma impura
Vacas: y
Temos os 10 animais
Damos duas patas para cada
logo,
animal
Subtraindo, sobram 6 patas
Portanto, temos 3 vacas e 7
galinhas.
Dividindo as patas que sobraram.
Temos 3 vacas e 7 galinhas
Isso parece mostrar que o movimento histórico de construção dos saberes
matemáticos parece ter sido completamente evacuado das escolas. Em outras
palavras, partimos de toda uma construção sistemática do saber matemático para,
então, pedirmos aos alunos que resolvam problemas (que na verdade se caracterizam
como exercícios de “fixação” dos conhecimentos recebidos).
As conseqüências de tais escolhas têm se refletido de forma bastante marcante nos
resultados de nossos alunos, além de contribuir para o grande índice de evasão em
nossas escolas, na medida em que não conseguimos dar significado à matemática
que estamos ensinando. Isso parece explicar o motivo de precisarmos, atualmente,
subornar nossos alunos com bolsas, vales e merendas para que ele, pelo menos, se
apresente na escola.
Evidentemente isso não garante que esse sujeito vá ser capaz de, um dia, mobilizar
os saberes escolares para resolver problemas de sua vida cotidiana. De fato, o que
freqüentemente encontramos é uma espécie de conduta adaptativa e de
sobrevivência, em que os alunos seriam meros estrategistas de um jogo em que cada
uma das partes executa seu papel: os professores pensam que ensinam e os alunos
fingem que aprendem ou apenas se conformam (SPÓSITO, 2004).
Finalizando, e retomando o título do texto, me parece importante que o trabalho em
Educação Matemática se interesse um pouco mais a “que matemática” estamos
fazendo em nossas salas de aula. É verdade que diversos documentos produzidos
por educadores matemáticos, tais como Parâmetros, Orientações Curriculares,
Propostas locais, etc. têm surgido, mas pouca atenção se tem dado à implementação
e acompanhamento desses documentos. Com isso, vemos cada vez mais a
matemática da escola sendo apresentada sem sentido para o aluno, em que singelas
vaquinhas são transformadas em diabólicos monômios.
5
Conclusão
Como dissemos anteriormente, pesquisas em Educação Matemática têm produzido
diversos resultados sobre a aprendizagem da Matemática nos diferentes níveis de
escolaridade. Se, por um lado, essas investigações abordam múltiplos aspectos
ligados ao processo de ensino e de aprendizagem da Matemática, por outro lado,
seus
resultados
parecem
permanecer
longe
dos
verdadeiros
interessados:
professores e alunos da Educação Básica. Esse fato nos coloca diante de um
paradoxo: para que pesquisamos? Ou, para quem pesquisamos? Não estamos
defendendo a produção de “receitas” pela comunidade de pesquisadores a serem
“consumidas” pela comunidade de professores e alunos. Estamos sim, defendendo
que as pesquisas realizadas devem, em seu conjunto, contribuir com a melhoria da
educação e, mais particularmente, da educação matemática.
Nesse sentido foi proposta essa mesa-redonda. Na preparação da mesma,
buscamos investigar um pouco mais a relação existente entre a pesquisa em
Educação Matemática e a sala de aula. Percebemos que faltam pesquisas
sistemáticas sobre essa relação. Mais do que isso: acreditamos que é fundamental
estudar como essas pesquisas têm (ou não) chegado à sala de aula. Esse tipo de
investigação pode fornecer algum caminho para discutir a formação de professores
que, em nossa opinião, é a chave para a mudança. Afinal, as pesquisas, ou os
resultados delas, só vão entrar na sala de aula por meio do professor.
Finalmente, queremos dizer que nos parece que há duas frentes a serem
desbravadas: a produção de materiais, incluindo artigos, acessíveis a professores da
Educação Básica e a realização de pesquisas sobre formação de professores em
moldes que permitam a esses experimentar, vivenciar os processos e não somente
repetir experiências vividas por outros. São esses os desafios que vislumbramos para
os próximos anos e que teremos de encontrar soluções de modo a contribuir
efetivamente para uma maior aprendizagem da Matemática pelos nossos alunos.
6
Referências:
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BITTAR, M. Informática na Educação e formação de Professores no Brasil. Revista
Série-Estudos: Periódico do Mestrado em Educação da UCDB, Campo Grande, 2000.
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do Sul, Mestrado em Educação, Campo Grande, 2005.
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