REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 11, N. 22, P. 81-102, DEZ. 2004
Títulos Públicos Indexados ao
PIB: Proposta e Simulações
FABIO GIAMBIAGI*
RESUMO
O artigo, inspirado em
um trabalho de Borensztein e Mauro,
desenvolve a proposta de criar um
novo título público, de aceitação
voluntária, indexado ao PIB. Isso seria
uma forma de socializar os riscos
associados a uma possível
combinação indesejável de taxa de
juros elevada e crescimento baixo,
prejudicial para a dinâmica da relação
Dívida pública/PIB. Pela proposta, os
detentores de títulos teriam a sua
remuneração ampliada em fases de
crescimento elevado e diminuída em
fases de declínio da taxa de expansão
da economia. Se vinculada a um
sistema de piso e teto para o nível da
taxa de juros, a proposta pode ser uma
forma de tornar os credores do
governo sócios do desenvolvimento,
no contexto de uma engenharia
financeira de mercado.
This article, based on
a paper of Borensztein and Mauro,
develops a proposal of creating a new
bond, voluntary accepted, indexed to
the GDP growth rate. This would be a
way of socializing the risks associated
to a possible indesirable combination
of high interest rate and low growth,
negative to the dynamic of the Public
debt/GDP ratio. In the proposal,
owners of bonds would have their
yield increased when the economy has
high growth and reduced when
growth is low. If linked to a system of
floor and cap for the level of the
interest rate, the proposal could be a
way of converting creditors into
partners of development, in the
context of a market friendly financial
engineering.
ABSTRACT
* Do BNDES, cedido ao Ipea. O autor agradece os comentários de dois pareceristas anônimos, cujas
observações muito contribuíram para aperfeiçoar o trabalho. Como de praxe, a responsabilidade pelo
conteúdo da versão final do texto cabe inteiramente ao autor.
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TÍTULOS PÚBLICOS INDEXADOS AO PIB: PROPOSTA E SIMULAÇÕES
“A palavra ‘risco’ deriva do italiano antigo [e] significa ‘ousar’. Neste sentido, o risco é
uma opção, e não um destino. É das ações que ousamos tomar, que dependem de nosso
grau de liberdade de opção, que a história do risco trata” [Bernstein (1997, p. 8)].
1. Introdução
E
m 1999, a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) elaborou um
documento com diretrizes para a administração da dívida pública
[STN (1999)]. Desde então, muito tem sido feito nessa área em termos de
melhora na gestão da dívida pública. O presente trabalho se insere nesse
processo e visa dar subsídios para a discussão do aperfeiçoamento dessa
gestão, mediante a criação de novos instrumentos financeiros que possam
ser úteis para melhorar o perfil do endividamento público interno do Brasil.1
O artigo recolhe a sugestão do estudo pioneiro de Borensztein e Mauro
(2002) de lançar títulos públicos indexados ao PIB. Há quatro razões que
nos inspiram a fazer a proposta nesse sentido. A primeira é o paper citado.
A segunda é que, conforme os próprios autores mencionam, Costa Rica,
Bulgária e Bósnia emitiram títulos soberanos contendo cláusulas de indexação ao PIB. A terceira é a existência de um papel com essas características no menu de alternativas oferecido recentemente pelo governo argentino
aos credores internacionais, por ocasião da renegociação da dívida externa
em relação à qual o país tinha decretado default em dezembro de 2001.2
A quarta razão, que é a justificativa principal para o artigo e o seu “pano de
fundo”, é a discussão acerca da evolução da dívida pública brasileira. Ao
longo dos últimos anos, diversos analistas mostraram que, com hipóteses na
época julgadas como realistas, a relação dívida pública/PIB do Brasil, depois
de anos de sucessivos aumentos, deveria começar a cair. Mais recentemente,
Goldfajn (2002) fez exercícios com esse caráter, similares aos que em anos
anteriores tinham sido feitos por outros autores. Contudo, até 2003, na
prática, tais profecias nunca se cumpriram, porque: a) a taxa de juros real
foi maior do que os níveis com os quais se tinha trabalhado; b) a desvalori1 A proposta se refere especificamente aos títulos da dívida pública interna.
2 A rigor, o caso argentino é referência obrigatória para os próprios Borensztein e Mauro, por
questões que ficarão claras no trabalho: “Embora seja uma questão em aberto se a dívida pública
argentina se tornou insustentável devido ao baixo crescimento, somado a uma política fiscal frouxa,
a recessão pela qual passou o país depois de 1998 certamente contribuiu para detonar a crise
recente” [Borensztein e Mauro (2002, p. 2, tradução nossa)]. Na Argentina, a discussão envolve a
dívida externa, pelo fato de que esta representa o componente principal da dívida pública, mas no
caso brasileiro o relevante é tratar do caso do endividamento interno, que é predominante.
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zação atingiu valores maiores do que os previstos, pressionando a relação
dívida/PIB pelo efeito sobre os títulos vinculados ao dólar; c) houve um
reconhecimento inesperado de “esqueletos” (hidden liabilities) não contemplados nas simulações; e/ou d) o PIB revelou um crescimento baixo. O
primeiro item foi dominante no período 1995/98 e em 2003, enquanto os
itens b e c explicam o que aconteceu no período 1999/2002 e o quarto item
contribuiu de forma importante para a dinâmica da relação dívida/PIB nos
anos de crescimento particularmente baixo de 2001/03. É a repetição desse
tipo de fenômeno que alimenta o pessimismo daqueles que, como Goldstein
(2003) manifestam dúvidas acerca da evolução do processo de endividamento a médio e longo prazos. Em 2004, pela primeira vez desde 1994, a
relação dívida pública/PIB deverá cair. Contudo, a permanência desse
indicador em um nível elevado permite supor que o tema estará sujeito a
certo grau de “politização” ainda durante alguns anos.3
O artigo está dividido em cinco seções, incluindo esta introdução. Depois
dela, a segunda seção apresenta a proposta de Borensztein e Mauro. A
terceira seção discute as razões de uma proposta em moldes similares para
o caso brasileiro, baseada na argumentação apresentada na seção anterior.
Na quarta seção são feitas algumas simulações para mostrar a razão de ser
da proposta e como ela poderia funcionar. Por último, na quinta seção
sintetizam-se as conclusões.
2. A Proposta de Borensztein e Mauro
Borensztein e Mauro (2002) discutiram a possibilidade de os países lançarem títulos indexados ao crescimento da economia, como forma de conseguir uma solução de mercado cooperativa para evitar situações críticas dos
processos de endividamento. Posteriormente, esse tipo de idéia veio a ser
incorporado ao menu de alternativas proposto pelo governo argentino aos
credores internacionais, como um dos bônus de saída para a moratória da
dívida do país vizinho.
A proposta dos mencionados autores se relaciona com os títulos transacionados no mercado de dívida externa, enquanto a proposta concreta da
3 Exemplo disso é uma recente e bastante comentada entrevista do ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso à revista Primeira Leitura, na qual ele manifesta que “a dívida comanda o governo. Não
tem mais como não ser assim. Ainda vai levar algum tempo para que todo mundo entenda que, para
voltar a crescer – que é o que nós todos queremos – vamos ter de resolver essa questão” [Cardoso
(2004, p. 29)]. Na mesma entrevista, ele afirma que “uma solução que não seja o calote” sobre a
dívida terá que vir através de uma não muito bem definida “pedagogia democrática” (p. 28).
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TÍTULOS PÚBLICOS INDEXADOS AO PIB: PROPOSTA E SIMULAÇÕES
Argentina foi feita após a decretação da moratória, o que significa que o
caráter “voluntário” do papel em questão é naturalmente questionável – dado
que a premissa é que os papéis originais não serão pagos conforme os termos
originais, o que caracteriza o default. Entretanto, nada impede que uma
proposta de um título indexado ao crescimento seja adotada para: a) a dívida
interna; e b) situações inteiramente voluntárias, ou seja, sem que haja um
default prévio.
A questão que suscita a proposta em questão é: o que os países – ou os
governos – podem fazer no futuro para se proteger dos possíveis efeitos de
um baixo crescimento que possam, potencialmente, gerar crises de endividamento? Nesse sentido, de acordo com os autores, “a principal vantagem dos títulos indexados ao PIB é que eles restringem a margem de
variação da relação dívida/PIB, portanto reduzindo a possibilidade de ocorrer uma crise da dívida” [Borensztein e Mauro (2002, p. 5, tradução nossa)].
Em que consiste a proposta, então? A idéia básica é que a taxa de juros paga
pelos papéis do governo esteja diretamente associada ao desempenho da
economia. Em outras palavras, a partir de um crescimento “normal” esperado de x%, se a expansão da economia for menor (maior) que a prevista,
os juros seriam inferiores (superiores) aos de um cupom de referência
definido. Conseqüentemente, sendo os juros menores, a dinâmica da relação
dívida pública/PIB não seria prejudicada pelo contexto desfavorável, ao
passo que, sendo os juros maiores, o crescimento permitiria absorver esse
pagamento, sem comprometer a referida dinâmica.
Complementarmente, “ao longo da fase de baixa de um ciclo econômico, os
países emergentes são freqüentemente levados a apertar a política fiscal,
para conservar a credibilidade e o acesso ao mercado financeiro internacional... Títulos indexados ao PIB reduziriam a necessidade de países emergentes de se engajar em políticas fiscais procíclicas... Portanto, títulos
indexados ao PIB tendem a gerar trajetórias mais suaves do superávit
primário, da carga tributária e do gasto primário, durante o ciclo econômico”
[Borensztein e Mauro (2002, p. 6-7, tradução nossa)].
Os autores listam, após a definição da sua proposta, um conjunto de objeções
que poderiam ser feitas acerca da viabilidade ou da conveniência da mesma,
encarregando-se eles mesmos, porém, de apresentar os contra-argumentos
correspondentes. Entre os principais pontos discutidos estão:
• Possibilidade de o mecanismo de títulos indexados ao PIB ser excessivamente complicado. Os autores alegam que esse ponto não pode ser
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superestimado, uma vez que a prática da indexação dos títulos a alguma
variável é um procedimento corrente do mercado financeiro, assim como
é a indexação à Libor ou a um índice de preços. Note-se que a preocupação
dos autores está em mostrar como se poderia facilitar a colocação desses
papéis junto a investidores de outros países não familiarizados com os
procedimentos contábeis nacionais, o que significa que esse temor seria
muito menor se associado à colocação de papéis no próprio mercado
doméstico junto a investidores que moram no próprio país.
• Risco de subestimação deliberada das taxas de crescimento, com vistas
a reduzir a necessidade de pagamentos. Também nesse ponto os autores
sugerem que ele não deve ser exagerado, uma vez que a tentação dos
governos em geral é fazer exatamente o oposto, ou seja, “engordar” as
taxas de crescimento. Além disso, como foi mencionado no item anterior,
investidores nacionais estariam em melhores condições que os estrangeiros para identificar rapidamente eventuais problemas de mensuração
ocorridos com o “termômetro” do PIB, por terem equipes específicas que
acompanham essas variáveis em detalhes.
• Conveniência de, alternativamente, indexar o título a alguma variável de
preço de commodities. Na opinião dos autores, se entendermos o novo
papel como uma opção que minimiza os riscos, os mercados financeiros
e futuros já contam com mecanismos de diversificação desse tipo de
riscos associados à flutuação dos preços desses produtos, enquanto um
papel indexado ao PIB criaria um mercado para outro tipo de investidor
diversificar os seus riscos. Essa discussão é mais relevante para papéis
da dívida externa, uma vez que no Brasil – onde não há uma commodity
cuja evolução afete muito intensamente o resultado fiscal – o tipo de
investidor que compra papéis do governo não teria muitos incentivos para
procurar uma indexação ligada ao preço de algum bem.
• Vantagens e desvantagens da indexação ao PIB vis-à-vis outra variável
real. Os autores não descartam a possibilidade de uma indexação à
evolução das exportações. Novamente, porém, isso faz mais sentido para
títulos da dívida externa, mas no caso de papéis da dívida interna a
proposta conceitualmente alternativa – baseada em uma lógica similar à
da proposta – seria promover uma indexação à evolução da receita.
Assumindo, porém, que esta evolua aproximadamente em linha com o
PIB, na prática não haveria muita diferença entre indexar o título à receita
real ou ao PIB.
• Ameaça de não cumprimento dos contratos, em caso de crescimento
superior ao previsto. Como os autores se encarregam de destacar, são
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TÍTULOS PÚBLICOS INDEXADOS AO PIB: PROPOSTA E SIMULAÇÕES
raros os casos em que os países entram em default nas suas obrigações
quando o seu desempenho econômico é bom. Além disso, a preocupação
se aplica aos casos em que o foro de solução de um conflito judicial é
incerto, por se tratar de papéis da dívida soberana de um país, emitidos
junto à jurisdição de terceiros países. Já no caso da alternativa de emissão
de um título indexado ao PIB e lançado junto a investidores nacionais, a
instância máxima de deliberação seria inequivocamente o Supremo Tribunal Federal. Portanto, além de o temor não fazer sentido econômico,
diante do não pagamento nas circunstâncias mencionadas a Justiça muito
provavelmente definiria em favor do pleno cumprimento do que estabelecem os termos iniciais do lançamento do título, entendendo que
constituem um ato jurídico perfeito.
Em outras palavras, resumidamente: primeiro, a maioria dos pontos que
poderiam ser levantados contra a proposta são convincentemente refutados
pelos autores; e, segundo, trata-se de objeções que levam em conta situações
em que títulos da dívida externa soberana de um país são adquiridos por
estrangeiros, enquanto que, sendo essa aquisição feita por investidores nacionais e no mercado doméstico, do ponto de vista do investidor os motivos
para guardar receio são muito menores. Isso porque o conhecimento das características do país é maior, as chances de o governo “burlar” esses investidores é menor e o amparo judicial é mais claro, pela existência de um foro
decisório incontestável, como é o Supremo Tribunal Federal.4
3. As Razões de uma Proposta para o Caso
3. Brasileiro
Desde 1994, por nove anos consecutivos e de forma sistemática, a relação
dívida/PIB brasileira no final do ano foi superior à do ano imediatamente
anterior (Tabela 1).
O Brasil tem reagido a essa circunstância, desde 1998, mediante o aumento
do esforço de geração de superávits primários do setor público. Entre 1997
e 2003, o “deslocamento” dessa variável foi de mais de 5% do PIB, em
relação ao déficit de 1% do PIB verificado nessa rubrica naquele ano.
4 É diferente da situação de um investidor que compra um título externo da República mas, em caso
de moratória, tem pela frente um longo processo judicial em que não se sabe bem qual é o foro
privilegiado a quem apelar. Exemplo disso são os problemas vividos nos últimos meses pelos
investidores em papéis da dívida pública da Argentina, que pleiteiam junto à Justiça de outros países
direitos que o governo argentino se nega a reconhecer como tais.
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REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 11, N. 22, P. 81-102, DEZ. 2004
Tabela 1
Brasil: Dívida Líquida do Setor Público – Dez. 1994/Dez. 2003
(Em % do PIB)
ANO
DÍVIDA LÍQUIDA DO SETOR PÚBLICO
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
30,0
30,6
33,3
34,3
41,7
48,7
48,8
52,6
55,5
58,7
Fonte: Banco Central.
O problema que se coloca para a sustentação dessa estratégia, de acordo com
alguns críticos, é de natureza política e se relaciona com a sensação de
“fadiga”. Recente trabalho do FMI (2003) mostra que a predisposição dos
países emergentes para ajustarem as suas políticas fiscais mediante apertos
no superávit primário declina a partir de certo nível de endividamento, após
o qual a exigência de novos incrementos sobre a variável tende a se tornar
socialmente mais difícil. Pode-se dizer que no mundo da economia política
o custo marginal de novos ajustes é crescente. Intuitivamente, é razoável
entender que é mais fácil passar de um superávit primário nulo a um de 2%
do PIB do que de 4% para 6% do PIB. Segundo o FMI, “a resposta do
superávit primário se torna mais fraca à medida que a relação dívida
pública/PIB aumenta nas economias emergentes e deixa de ocorrer quando
a dívida é de mais de 50% do PIB. Isso sugere que – na média – a condução
da política fiscal em economias emergentes não é consistente com a garantia
de sustentabilidade, uma vez que a dívida pública ultrapassa 50% do PIB”
[FMI (2003, tradução nossa)].
Por esse raciocínio, com uma dívida pública da ordem de 55% do PIB, o
Brasil pode ser considerado como um caso em que ajustes adicionais, embora tecnicamente recomendáveis, podem não ser politicamente viáveis.
O desafio intelectual colocado para aqueles que lidam com a temática fiscal,
bem como para os especialistas em temas do mercado financeiro, é como
encontrar uma solução para esse problema que, simultaneamente:
• seja cooperativa, no sentido de tornar os credores do setor público (os
detentores de papéis) sócios do mesmo destino do governo; e
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TÍTULOS PÚBLICOS INDEXADOS AO PIB: PROPOSTA E SIMULAÇÕES
• seja de mercado e, portanto, respeite as características do mercado financeiro, sem envolver qualquer arbitrariedade ou quebra de contrato.
O caso remete, de certa forma, por uma questão de paralelismo, à literatura
sobre “regras fiscais”, cujo objetivo é “... alcançar a confiança por meio da
garantia de que os fundamentos [macroeconômicos] permanecerão previsíveis e robustos, independentemente de quem for o governo” [Kopits (2001,
p. 3, tradução nossa)]. Isso em geral se aplica a uma determinação que comprometa os governos com um determinado resultado fiscal independentemente das circunstâncias, o que tem uma série de aspectos positivos em
termos de previsibilidade, credibilidade etc. Contudo, o contexto atual pode
requerer uma reflexão sobre mecanismos que induzam a que o peso dos
ajustamentos requeridos diante de uma realidade adversa seja compartilhado
pelos detentores de títulos, em vez de incidir apenas sobre o resultado
primário.
Como parte do contexto dessa discussão, é importante ressaltar que a
existência de uma relação dívida/PIB maior em 2003 que em 2002, apesar
da ampliação do superávit primário – fato esse devido à combinação de juros
elevados e baixo crescimento –, despertou em alguns meios o raciocínio de
que o sacrifício incorrido pode estar sendo inútil, o que tende a provocar
propostas que, na prática, mais ou menos veladamente, implicam flertar com
a tese do default. Apenas para citar uma delas, dado o eco que tem na opinião
pública, cabe este comentário do jornalista Luis Nassif, na sua coluna diária
na Folha de S.Paulo, que sintetiza tal estado de espírito: “Por que a Rússia
deu o calote alguns anos atrás e está pagando spread menor que o Brasil?
Qual o ponto que faz a diferença em favor da Rússia? O fato de que, com a
crise, a Rússia interrompeu o pagamento da dívida, chamou os credores e
mostrou que não poderia mais pagar o combinado. Os credores engoliram
em seco, realizaram o prejuízo, o default viabilizou novamente a economia
do país e, agora, os mesmos credores voltam a emprestar, aceitando menos
pelos empréstimos realizados” [Nassif (2003)].5
Embora sem nenhuma conotação ligada a qualquer forma de moratória, a
idéia de que, em circunstâncias difíceis, o Brasil deveria ser beneficiado por
um alívio fiscal ganhou ares oficiais com a divulgação da proposta de
“superávit primário anticíclico” defendida pelo governo em 2003, embora
não tenha sido adotada até agora: “A política fiscal no Brasil nos últimos
anos tem sido essencialmente pró-cíclica em decorrência dos desequilíbrios
fiscais observados e da ausência de uma política fiscal sustentável de longo
5 O mesmo jornalista publicou ao longo das semanas seguintes outras colunas com teor similar.
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prazo. Uma modificação importante a ser realizada nos próximos anos será
construir condições para que a política fiscal amenize as flutuações cíclicas
da economia em vez de agravá-las como tem ocorrido. Nesse sentido, uma
política fiscal contracíclica que, nas fases de expansão acelerada do produto,
garanta superávits fiscais suficientes para a redução da relação dívida/PIB,
permitindo menor esforço fiscal nos momentos de desaceleração do crescimento, teria impactos positivos sobre o bem-estar social” [Ministério da
Fazenda (2003, p. 67)].
A proposta a ser desenvolvida adiante leva em conta o tipo de preocupação
que guia os argumentos como os que acabamos de mencionar, mas que tenta
evitar os problemas dessas propostas. Por um lado, propostas ligadas à idéia
de reescalonamento da dívida pública não devem ser implementadas, pelo
fato de essa medida ser traumática e dificilmente compatível com a legalidade dos contratos, além de causar uma enorme desorganização no sistema
financeiro. Algumas questões podem ser colocadas, tais como: Em que
bases legais os credores seriam “chamados para negociar”? Como o detentor
de um papel com um rendimento e um vencimento dados seria obrigado a
participar do novo arranjo? O STF validaria uma iniciativa de força? Em
outras palavras, embora a idéia de que “o governo tem de chamar os credores
e mostrar que não pode pagar” possa ser objeto de menções políticas ou
jornalísticas superficiais, não comprometidas com a implementação prática
da medida, na prática isso pode implicar ter de “fechar a porta de saída” do
sistema financeiro, criando o risco de gerar um imenso “corralito”, com
efeitos terríveis sobre a dinâmica da economia.6 Trata-se de um risco que
deve ser sumariamente rejeitado.
Por outro lado, políticas contracíclicas como as sugeridas, em um país com
um setor público altamente endividado, apresentam um problema claro,
dado que a relação dívida pública/PIB (d) é dada por
d = d(-1) . (1 + i)/(1 + q) – p – s
(1)
onde: i é a taxa de juros real da economia; q é o crescimento do PIB; p e s
representam o superávit primário e a “senhoriagem”, respectivamente, em
ambos casos expressos como proporção do PIB; e o símbolo (-1) indica
defasagem de um período. Portanto, o valor de d é uma função inversa da
taxa de crescimento da economia e do superávit primário. Isso significa que,
6 “Corralito” (“cercadinho”) foi a denominação dada ao bloqueio dos recursos das aplicações
financeiras na Argentina, por ocasião das medidas desesperadas tomadas pelo ex-ministro Cavallo
em 2001, para evitar uma fuga dos depósitos para o dólar.
90
TÍTULOS PÚBLICOS INDEXADOS AO PIB: PROPOSTA E SIMULAÇÕES
se a economia estiver crescendo pouco, para um dado nível de juros e em
função disso – pela tese do “superávit anticíclico” – o superávit primário
diminuir, a dívida estará sendo duplamente pressionada: por um lado, pelo
baixo valor de q e, por outro, pela redução de p. Ou seja, há um risco não
desprezível de, nas fases adversas, uma política baseada no superávit anticíclico gerar uma dinâmica perigosa do coeficiente de endividamento,
particularmente se, como reação a isso, na renovação da parcela da dívida
que vence a cada mês os credores começarem a exigir um prêmio de risco
crescente. Nessas condições, tem-se um caso típico de “falácia de composição”, em que a racionalidade individual conspira contra a racionalidade
coletiva. Isso porque o somatório de decisões microeconômicas racionais –
exigir um prêmio maior em face do risco – pode ser inconsistente do ponto
de vista macroeconômico, se exigir um superávit primário com o qual a
sociedade não esteja disposta a arcar.
Se o país recuperar o crescimento a taxas satisfatórias de, por exemplo, 4%
a.a. ou mais, talvez nenhuma iniciativa específica diferente da política em
curso venha a ser necessária. Porém, a questão concreta que se coloca atualmente para a economia brasileira é: como o setor público pode se preparar
adequadamente para enfrentar possíveis situações de crescimento da economia inferior ao desejado sem correr o risco de que, depois da bonança de
2004, se gere uma dinâmica ascendente da relação dívida/PIB?
A Tabela 2 ajuda a ilustrar melhor o que estamos dizendo, com alguns
exemplos numéricos. Ela foi feita com base na seguinte equação:
p = d . (i – q)/(1 + q) – s
(2)
obtida a partir de (1) e na qual os símbolos são os mesmos. A equação (2)
indica qual é o superávit primário de equilíbrio – como proporção do PIB –
que permite manter constante uma dada relação dívida/PIB (d) para dados
valores de taxa de juros real, de crescimento da economia e de fluxo de
“senhoriagem”. Considerou-se, realisticamente, uma dívida líquida do setor
público, sem base monetária, de 50% do PIB – dado que o atual nível oficial
próximo a 54% do PIB inclui a base monetária, da ordem de 4% do PIB –
e uma “senhoriagem” de 0,2% do PIB e trabalhou-se com diferentes possibilidades de taxa de juros real e de crescimento da economia. Naturalmente, quanto maior (menor) a taxa de juros e menor (maior) o crescimento da
economia, maior (menor) deve ser o superávit primário. Isso significa que,
partindo do canto inferior esquerdo, o superávit pode diminuir se a economia
se desloca para cima (juros menores) e para a direita (crescimento maior).
91
REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 11, N. 22, P. 81-102, DEZ. 2004
Tabela 2
Superávit Primário Requerido para Equilibrar a Relação Dívida/PIB
(Em % do PIB)
TAXA DE
JUROS
REAL (%)
6,0
CRESCIMENTO DA ECONOMIA (%)
2,0
3,0
4,0
5,0
1,8
1,3
0,8
0,3
8,0
2,7
2,2
1,7
1,2
10,0
3,7
3,2
2,7
2,2
12,0
4,7
4,2
3,6
3,1
Obs.: Dívida pública: 50% do PIB (sem base monetária); senhoriagem: 0,2% do PIB.
Observe-se que, para um crescimento da economia de apenas 2% e taxa de
juros real de 12%, o país precisaria de um superávit primário de 4,5% a 5%
do PIB. Já com um juro real de 6% e crescimento da economia de 5%, a
exigência de superávit diminui para ínfimos 0,3% do PIB. Em níveis mais
realistas para o médio prazo, com juros reais de 8% a 10% e crescimento da
economia de 3% a 4%, o superávit requerido fica entre 1,7% e 3,2% do PIB.
Na prática, porém, ainda nos próximos anos, esse superávit seria insuficiente
para evitar uma elevação da relação dívida/PIB, pelo fato de a equação não
comportar um termo de reconhecimento de “esqueletos”, e prevê-se que o
surgimento de dívidas antigas continue a pressionar a dívida com fluxos
adicionais da ordem de 0,5% a 1% do PIB anuais ainda por alguns anos.
Se o país crescer em torno de 4% a.a. e a taxa de juros real média for de 8%
a 9% nos próximos anos, tudo o que estamos discutindo pode perder a
relevância. O problema é que o país precisa estar preparado para a eventualidade de surgirem acontecimentos imprevistos que prejudiquem a viabilidade desse cenário. Imaginemos que, por exemplo, a economia mundial
volte a passar por dificuldades e limite o seu crescimento a 2%, ou que depois
da recuperação atual o crescimento da economia da América Latina perca
o fôlego e caia novamente para 2% a 3%. Se nada mudar, os exercícios de
simulação de trajetórias para o endividamento público brasileiro podem ser
afetados, devido à adoção de hipóteses mais pessimistas para algumas
variáveis críticas.
Por isso, a proposta é que os detentores da dívida pública se tornem parceiros
do governo nos resultados que o país possa obter das suas políticas, compartilhando as vantagens nas fases positivas e dividindo os ônus em caso de
dificuldades. A proposta é feita em bases voluntárias e tem como pressupos-
92
TÍTULOS PÚBLICOS INDEXADOS AO PIB: PROPOSTA E SIMULAÇÕES
to a rejeição a qualquer forma de default. Ao mesmo tempo, o espírito do
artigo é similar ao que serve de embasamento à proposta de superávit
anticíclico, mas sem ter o viés de alta sobre a dívida pública em caso de o
cenário ser adverso, como anteriormente apontado.
Concretamente, sugerimos que, como proposto por Borensztein e Mauro
para outras situações, o governo brasileiro incorpore ao cardápio de alternativas oferecido nos leilões regulares de títulos públicos um novo papel,
cujos rendimentos estejam em parte indexados ao desempenho da economia.
Esse papel, de longo prazo, seria lançado com uma regra pela qual a taxa de
juros definida no leilão e acrescida da correção pela inflação (IPCA) poderia
ser modificada em função da diferença entre o crescimento da economia e
um parâmetro de referência de, por exemplo, 4%, sujeito a um piso e a um
teto de mais ou de menos 2% em relação a essa referência. Isso significa
que, definido o cupom de juro real de x% no leilão, a taxa de juros que
efetivamente seria paga sobre o papel seria de:
• x% para um crescimento da economia de 4%;
• (x – 2)% para um crescimento da economia de 2% ou menos;
• entre (x – 2)% e x% para um crescimento da economia entre 2% e 4%,
com valores proporcionais;7
• entre x% e (x + 2)% para um crescimento da economia entre 4% e 6%,
com valores proporcionais; e
• (x + 2)% para um crescimento da economia de 6% ou mais.
A remuneração associada ao desempenho da economia estaria associada à
divulgação do PIB trimestral, ressalvada apenas a especificidade de que não
haveria revisão de dados. Para tanto, seria criado um indicador financeiro
associado ao PIB em que, a cada trimestre, o índice aplicado fosse o
resultado da comparação da média – base fixa – dos quatro trimestres que
antecederam ao do anúncio do índice, em relação aos quatro trimestres
imediatamente anteriores.8 Esse índice de crescimento seria aplicado a cada
7 Por exemplo, (x – 1,5)% para um crescimento de 2,5%, (x – 1)% para um crescimento de 3% etc.
8 Por exemplo, no final do trimestre t, após o anúncio dos dados oficiais por parte do IBGE, seria
anunciado o índice de referência para o trimestre (t + 1), com base na comparação da média dos
índices de base fixa de (t – 4) a (t – 1) do IBGE para o PIB, com a média dos índices de base fixa
de (t – 8) a (t – 5).
REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 11, N. 22, P. 81-102, DEZ. 2004
93
trimestre ao índice-base do período correspondente com quatro trimestres
de defasagem e, portanto, a cada trimestre se levaria em consideração o
crescimento anterior.9
Cabe ressaltar que estamos conscientes de que o movimento de introdução
de um papel como o que aqui está sendo sugerido teria naturalmente de se
dar em bases bastante graduais. Uma razão importante para isso é que no
Brasil, por resolução do Banco Central, os fundos de renda fixa detidos por
pessoas físicas e jurídicas são obrigados a “marcar a mercado” os títulos
diariamente, o que significa que a oscilação no preço do mercado dos títulos
se reflete imediatamente no valor da cota do fundo, gerando variações
patrimoniais da carteira do investidor.10
Nesse sentido, claramente, um título indexado ao PIB teria inicialmente uma
marcação a mercado relativamente volátil, pelo relativo desconhecimento
das características do mesmo e pelas mudanças na demanda por ele, comparativamente a títulos tradicionais como a LFT. Como os detentores de
cotas teriam certa resistência a “carregar” esses papéis, a demanda por eles
seria, no começo, modesta. Com o tempo, porém, à medida que o governo
diminua a oferta de títulos tradicionais como a atual LFT, que o mercado de
títulos se sofistique e que os agentes econômicos percebam que a flutuação
da taxa de crescimento médio esperada do PIB tende a ser menor do que as
flutuações das taxas de juros, o espaço para a colocação de um papel como
o proposto tenderá gradativamente a aumentar com o passar dos anos.
4. Algumas Simulações
A Tabela 3 mostra, com base nas equações (1) e (2), a evolução das variáveis
primárias com um superávit primário de 2,2% do PIB, o qual resulta de:
aplicação de (2) a uma situação de dívida sem base monetária de 50% do
PIB; senhoriagem de 0,2% do PIB; taxa de juros real (i) de 9%, similar à
média esperada para os próximos dois ou três anos usando a Selic como
proxy da taxa de juros média incidente sobre os títulos públicos; e cres-
9 Por exemplo, se na comparação da média de 2003-III a 2004-II com a média de 2002-III a 2003-II
a expansão da economia tiver sido de 3,3%, o índice a ser divulgado em 2004-III com vigência para
2004-IV seria igual à multiplicação do índice de 2003-IV por um fator de 1,033.
10 A única exceção são os fundos exclusivos, em geral com um único cotista (caso de grandes
investidores) que podem optar pela marcação diária a mercado ou pelo valor histórico do papel,
acrescido dos juros correspondentes, podendo levar o título até o vencimento.
94
TÍTULOS PÚBLICOS INDEXADOS AO PIB: PROPOSTA E SIMULAÇÕES
Tabela 3
Variáveis Fiscais: Simulação (i = 0,09; q = 0,04; g = 0,04)
(Em % do PIB)
ANOS
JUROS
GASTO RECEITA
(Nominais)
0
SUPERÁVIT
PRIMÁRIO
NFSP
BASE
MONETÁRIA
DÍVIDA
DÍVIDA
(Sem Base (Com Base
Monetária) Monetária)
35,0
37,2
2,2
4,0
50,0
54,0
1
6,4
35,0
37,2
2,2
4,2
4,0
50,0
54,0
2
6,4
35,0
37,2
2,2
4,2
4,0
50,0
54,0
3
6,4
35,0
37,2
2,2
4,2
4,0
50,0
54,0
4
6,4
35,0
37,2
2,2
4,2
4,0
50,0
54,0
5
6,4
35,0
37,2
2,2
4,2
4,0
50,0
54,0
6
6,4
35,0
37,2
2,2
4,2
4,0
50,0
54,0
7
6,4
35,0
37,2
2,2
4,2
4,0
50,0
54,0
8
6,4
35,0
37,2
2,2
4,2
4,0
50,0
54,0
9
6,4
35,0
37,2
2,2
4,2
4,0
50,0
54,0
10
6,4
35,0
37,2
2,2
4,2
4,0
50,0
54,0
cimento da economia (q) de 4% a.a.11 Naturalmente, por hipótese, a relação
dívida/PIB se mantém constante.12 Os números do resultado primário diferem em relação aos observados na realidade, mas visam apenas informar ao
leitor o que se pode esperar da modificação de algumas hipóteses, em termos
de simulações alternativas.13
Na simulação para 10 anos, adota-se – em todos os casos – uma hipótese de
inflação constante de 4,5% a.a.14 Cabe destacar que o termo i se refere à taxa
de juros reais, mas as colunas das rubricas de “juros” e de Necessidades de
Financiamento do Setor Público (NFSP) nas diversas tabelas irão se referir
11 Para 2005, a estimativa de mercado no final de 2004 é de uma taxa Selic nominal acumulada entre
janeiro e dezembro de 16,5%, aproximadamente, o que, combinado com a inflação esperada
apurada pelo levantamento do Banco Central junto ao mercado de 5,9%, corresponde, grosso modo,
a uma taxa de juros real de 10%. Para os anos posteriores, porém, é válido esperar uma queda
desse rendimento.
12 O número de 2,2% do PIB é inferior ao que irá se verificar na prática, pelo fato de a relação
dívida/PIB provavelmente vir a diminuir em relação a 2004, enquanto na conta feita o que se visa
é apenas estabilizar a relação dívida/PIB.
13 Em particular, a diferença se deve em parte à não consideração das empresas estatais. Optamos
por essa solução formal para poder comparar os dados de receita e de gasto como proporção do
PIB, ano a ano, enquanto para as empresas estatais não dispomos da informação de quanto elas
gastam e têm de receita. A forma de apresentação das tabelas dá uma idéia clara das trajetórias
alternativas de ajuste, expressas em relação ao produto.
14 Esse valor corresponde à meta definida pelo Conselho Monetário Nacional para 2005 e 2006.
REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 11, N. 22, P. 81-102, DEZ. 2004
95
ao critério nominal, “inchado” – em relação aos juros reais – pelo componente implícito associado à inflação de 4,5% a.a. Parte-se de indicadores de
gasto e de receita que corresponderiam, grosso modo, ao que se imagina que
seja atualmente o resultado aproximado da soma dos gastos e receitas das
três esferas da administração pública (União, estados e municípios).15 O fato
de a dívida ter aumentado em 2003, apesar do superávit primário significativamente superior ao nível de 2,2% do PIB, deve-se à circunstância de que
o juro foi maior e o crescimento muito inferior ao do citado exercício. Nele,
a carga tributária se mantém constante e, como o superávit primário é
também constante como fração do PIB, o gasto público em termos reais
cresce à mesma taxa (definida como g) que o PIB, ou seja, 4% a.a. Na Tabela
3 e em todas as tabelas similares posteriores, os valores figuram em proporção do PIB. As últimas duas colunas mostram a dívida pública, sem e
com a base monetária de 4% do PIB. A dinâmica da dívida obedece à
equação (1).
A partir dessa simulação inicial, fizemos algumas mudanças para mostrar o
que pode acontecer em diferentes situações. Inicialmente, na Tabela 4, para
a mesma taxa de juros real de 9%, fizemos uma pequena mudança, reduzindo
a taxa de crescimento da economia para apenas 2% a.a., conservando a carga
tributária – o que significa menor receita real em relação ao caso anterior –,
porém mantendo a taxa de crescimento do gasto em 4% a.a. e colocando o
superávit primário como variável endógena. Como se pode ver, o efeito é
devastador: no final dos mesmos 10 anos da tabela anterior, a dívida pública
com base monetária aumenta para 118% do PIB e o resultado primário fica
negativo em 5% do PIB, devido ao maior crescimento do gasto em relação
à receita. É esse tipo de possibilidade que alimenta a procura de alternativas,
para evitar, justamente, que se chegue a cenários desse tipo em caso de
desempenho insatisfatório da economia. Muito provavelmente, tal cenário
não chegaria ao fim, uma vez que no meio do caminho haveria uma fuga
dos títulos por parte dos credores, que só aceitariam “rolar” a dívida a taxas
crescentes, o que poderia acabar precipitando uma situação-limite.
15 Implicitamente, isso equivale a assumir que o resultado primário das empresas estatais seja nulo.
Em 2004, estima-se que o gasto primário do governo central – excluindo as transferências a estados
e municípios – seja da ordem de 18% do PIB e a receita bruta de 24% do PIB, aproximadamente.
O exercício feito contempla valores da ordem de 37% do PIB de carga tributária e próximos a 17%
do PIB do gasto primário total de estados e municípios. Trata-se de valores tentativos, uma vez que
não há estatísticas consistentes que contabilizem os dados fiscais com os das Contas Nacionais. De
qualquer forma, o que interessa é o resultado líquido da subtração das despesas primárias às
receitas e a dinâmica das variáveis ao longo do tempo.
96
TÍTULOS PÚBLICOS INDEXADOS AO PIB: PROPOSTA E SIMULAÇÕES
Tabela 4
Variáveis Fiscais: Simulação (i = 0,09; q = 0,02; g = 0,04)
(Em % do PIB)
ANOS
JUROS
GASTO RECEITA
(Nominais)
0
SUPERÁVIT
PRIMÁRIO
NFSP
BASE
MONETÁRIA
DÍVIDA
DÍVIDA
(Sem Base (Com Base
Monetária) Monetária)
35,0
37,2
2,2
4,0
50,0
54,0
1
6,5
35,7
37,2
1,5
5,0
4,0
51,7
55,7
2
6,7
36,4
37,2
0,8
5,9
4,0
54,2
58,2
3
7,1
37,1
37,2
0,1
7,0
4,0
57,7
61,7
4
7,5
37,8
37,2
-0,6
8,1
4,0
62,0
66,0
5
8,1
38,6
37,2
-1,4
9,5
4,0
67,5
71,5
6
8,8
39,3
37,2
-2,1
10,9
4,0
74,0
78,0
7
9,7
40,1
37,2
-2,9
12,5
4,0
81,8
85,8
8
10,7
40,9
37,2
-3,7
14,3
4,0
90,9
94,9
9
11,9
41,7
37,2
-4,5
16,3
4,0
101,4
105,4
10
13,2
42,5
37,2
-5,3
18,5
4,0
113,5
117,5
A Tabela 5 mostra que, em termos reais, o resultado de, juntamente com o
menor crescimento do PIB e da receita, o crescimento do gasto ficar restrito,
foi de 2% a.a. Como se pode ver, o resultado primário, por definição, volta
a ser de 2,2% do PIB, que, porém, torna-se insuficiente diante das modificações dos parâmetros de (2) devido à menor taxa de crescimento, o que
demandaria um superávit primário maior. A dinâmica da dívida pública,
embora seja claramente afetada pelo comportamento frustrante do PIB, é
menos dramática que no caso anterior, porém ainda preocupante, já que a
dívida com base monetária aumenta de 54% para 68% do PIB em 10 anos.
As Tabelas 6 e 7 modelam os resultados da adoção de uma proposta como
a que é feita no artigo. Na primeira delas, adotam-se as hipóteses de
crescimento do PIB, da receita e do gasto da Tabela 5, ou seja, crescimento
de apenas 2% a.a., porém incorporando a hipótese de que, pelo fato de o PIB
crescer dois pontos abaixo da referência de 4%, a taxa de juros diminua na
mesma proporção de dois pontos percentuais, caindo de 9% para 7%. Como
se pode ver, isso torna a trajetória de endividamento muito mais palatável.
Note-se que o gasto não deixa de levar em conta o contexto de dificuldades,
pois ele cresce a 2% em vez de 4% como na Tabela 3, de modo que o
superávit primário se conserva em 2,2% do PIB. Contrariamente às trajetórias explosivas da dívida (com base monetária) de outras simulações, ela
97
REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 11, N. 22, P. 81-102, DEZ. 2004
Tabela 5
Variáveis Fiscais: Simulação (i = 0,09; q = 0,02; g = 0,02)
(Em % do PIB)
ANOS
JUROS
GASTO RECEITA
(Nominais)
SUPERÁVIT
PRIMÁRIO
35,0
37,2
2,2
0
NFSP
BASE
MONETÁRIA
DÍVIDA
DÍVIDA
(Sem Base (Com Base
Monetária) Monetária)
4,0
50,0
54,0
1
6,5
35,0
37,2
2,2
4,3
4,0
51,0
55,0
2
6,7
35,0
37,2
2,2
4,5
4,0
52,1
56,1
3
6,8
35,0
37,2
2,2
4,6
4,0
53,3
57,3
4
7,0
35,0
37,2
2,2
4,7
4,0
54,6
58,6
5
7,1
35,0
37,2
2,2
4,9
4,0
55,9
59,9
6
7,3
35,0
37,2
2,2
5,1
4,0
57,3
61,3
7
7,5
35,0
37,2
2,2
5,3
4,0
58,9
62,9
8
7,7
35,0
37,2
2,2
5,5
4,0
60,5
64,5
9
7,9
35,0
37,2
2,2
5,7
4,0
62,2
66,2
10
8,1
35,0
37,2
2,2
5,9
4,0
64,1
68,1
Tabela 6
Variáveis Fiscais: Simulação (i = 0,07; q = 0,02; g = 0,02)
(Em % do PIB)
ANOS
JUROS
GASTO RECEITA
(Nominais)
SUPERÁVIT
PRIMÁRIO
35,0
37,2
2,2
0
NFSP
BASE
MONETÁRIA
DÍVIDA
DÍVIDA
(Sem Base (Com Base
Monetária) Monetária)
4,0
50,0
54,0
1
5,5
35,0
37,2
2,2
3,3
4,0
50,0
54,0
2
5,5
35,0
37,2
2,2
3,3
4,0
50,1
54,1
3
5,6
35,0
37,2
2,2
3,3
4,0
50,1
54,1
4
5,6
35,0
37,2
2,2
3,4
4,0
50,2
54,2
5
5,6
35,0
37,2
2,2
3,4
4,0
50,3
54,3
6
5,6
35,0
37,2
2,2
3,4
4,0
50,3
54,3
7
5,6
35,0
37,2
2,2
3,4
4,0
50,4
54,4
8
5,6
35,0
37,2
2,2
3,4
4,0
50,4
54,4
9
5,6
35,0
37,2
2,2
3,4
4,0
50,5
54,5
10
5,6
35,0
37,2
2,2
3,4
4,0
50,6
54,6
98
TÍTULOS PÚBLICOS INDEXADOS AO PIB: PROPOSTA E SIMULAÇÕES
aumenta, porém muito modestamente, de 54% para apenas 55% do PIB em
10 anos.
Já a Tabela 7 trata do caso inverso, no qual um crescimento da economia de
6%, maior que o referencial de 4%, aumenta o rendimento dos títulos para
11% em vez de 9%. Aqui, porém, adotou-se um mecanismo diferente de
ajuste, pois foi suposto que, apesar do crescimento maior da receita, o
governo opte por conservar o crescimento do gasto em apenas 4%. Isso
geraria, naturalmente, um círculo virtuoso, pois, com o aumento proporcional do superávit primário para 8% do PIB – devido ao crescimento da receita,
em linha com o PIB, ser maior que o do gasto – até o final da projeção, a
dívida com base monetária cairia a meros 14% do PIB. Note-se que isso não
gera qualquer prejuízo para os que se beneficiam do gasto público e é
consistente com uma melhora generalizada do bem-estar associada ao maior
crescimento da economia. Nada impede, porém, que nessas circunstâncias
o gasto possa aumentar a uma taxa entre 4% e 6%, diminuindo a velocidade
de queda da dívida pública. O que se quis fazer com o exercício foi apenas
mostrar que, numa época de bonança, o maior pagamento de juros não
impediria uma dinâmica favorável da relação dívida/PIB.
Tabela 7
Variáveis Fiscais: Simulação (i = 0,11; q = 0,06; g = 0,04)
(Em % do PIB)
ANOS
JUROS
GASTO RECEITA
(Nominais)
SUPERÁVIT
PRIMÁRIO
35,0
37,2
2,2
0
NFSP
BASE
MONETÁRIA
DÍVIDA
DÍVIDA
(Sem Base (Com Base
Monetária) Monetária)
4,0
50,0
54,0
1
7,2
34,3
37,2
2,9
4,4
4,0
49,3
53,3
2
7,1
33,7
37,2
3,5
3,6
4,0
47,9
51,9
3
6,9
33,1
37,2
4,1
2,8
4,0
45,8
49,8
4
6,6
32,4
37,2
4,8
1,8
4,0
43,0
47,0
5
6,2
31,8
37,2
5,4
0,8
4,0
39,5
43,5
6
5,7
31,2
37,2
6,0
-0,3
4,0
35,1
39,1
7
5,1
30,6
37,2
6,6
-1,5
4,0
30,0
34,0
8
4,3
30,1
37,2
7,2
-2,8
4,0
24,1
28,1
9
3,5
29,5
37,2
7,7
-4,2
4,0
17,3
21,3
10
2,5
28,9
37,2
8,3
-5,8
4,0
9,6
13,6
REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 11, N. 22, P. 81-102, DEZ. 2004
99
5. Conclusões
Ao longo de todo o período de 1999 (inclusive) a 2003, sem exceção: a) o
Brasil ultrapassou os pisos de superávit primário que constavam dos sucessivos acordos com o FMI; e b) tanto as metas de superávit primário como
os resultados de cada ano, expressas como proporção do PIB, foram maiores
que as registradas no ano anterior. Apesar dessa performance exemplar sob
qualquer ponto de vista, a dívida pública, também expressa como proporção
do PIB, aumentou sistematicamente em cada um dos cinco anos considerados, chegando a 59% do PIB em 2003. As razões dessa aparente contradição
entre o cumprimento de metas teoricamente estabelecidas para estabilizar
ou mesmo permitir um declínio da relação dívida pública/PIB e o desempenho efetivo desse indicador estão ligadas, fundamentalmente: a) aos efeitos
da taxa de câmbio sobre a dinâmica da dívida; b) ao reconhecimento de
dívidas antigas (“esqueletos”); c) às taxas de juros reais elevadas, superiores
às previstas no momento em que as metas fiscais foram definidas; e d) ao
baixo crescimento da economia. Além de os ajustamentos patrimoniais
terem “engordado” a dívida em 16% do PIB em cinco anos (1998/2003), a
taxa de juro real no qüinqüênio – Selic deflacionada pelo IPCA – foi de 11%
e o crescimento médio da economia no período de menos de 2% a.a.
Adotando a premissa de que a fase de ajustamentos patrimoniais esteja perto
de se encerrar daqui a poucos anos, uma vez completado o processo de
reconhecimento de antigos passivos, a dinâmica da dívida voltará a estar
associada essencialmente ao nível do superávit primário e à evolução da
taxa de juros e do PIB. Isso ressalta a importância de que, nos próximos
anos, o país consiga, simultaneamente, diminuir, em média, os juros reais e
aumentar a taxa de crescimento da economia.
O problema é que não há garantia de que possam ser gerados os resultados
que se deseja para essas variáveis cruciais. Isso posto, se porventura as
circunstâncias forem adversas e por algum motivo a relação dívida pública/PIB voltar a aumentar, a resposta ortodoxa diante disso deveria ser um
novo “aperto de parafusos” da política fiscal, mediante novas elevações da
meta de superávit primário no futuro. Há, entretanto, alguns sinais emitidos
por agentes e formadores de opinião de que pode ser difícil ter condições
políticas de implementar doses adicionais de ajuste. A literatura sobre outras
experiências internacionais em países emergentes também confirma essa
impressão de que há uma resistência crescente a novos esforços de aperto
fiscal [FMI (2003)].
100
TÍTULOS PÚBLICOS INDEXADOS AO PIB: PROPOSTA E SIMULAÇÕES
Partindo das hipóteses de que:
• há uma percepção de esgotamento das fórmulas tradicionais de ajuste,
que dificultariam as chances de implementação de um novo aumento do
superávit primário em um cenário adverso, e
• a alternativa de pura e simplesmente impor uma solução de força ao
mercado implicaria uma forma de default,
procuramos então definir um instrumento financeiro que evite a necessidade
de sacrifícios adicionais em termos de geração de maiores superávits primários caso o PIB cresça abaixo do esperado, mas que, simultaneamente, represente uma alternativa de mercado. Essa solução deve minimizar a possibilidade de que ocorra uma trajetória explosiva do endividamento, mas
sem reduzir a dívida através de uma quebra de contrato.
O que se deseja é desenvolver uma engenharia financeira que permita
compartilhar os ônus do ajuste com os detentores de títulos, através de uma
solução voluntária e de mercado, inspirada em um artigo pioneiro escrito
por dois economistas do FMI [Borensztein e Mauro (2002)].
A proposta é lançar títulos públicos indexados parcialmente à evolução do
PIB, que rendam um cupom real – além da correção pelo IPCA – definido
através de leilão. Esse cupom seria passível de ser modificado para cima ou
para baixo, dependendo de o dinamismo do nível de atividade ser superior
ou inferior a uma taxa de referência de crescimento da economia. Assim, se
a economia se expandisse, por exemplo, acima de 4%, o rendimento do título
seria maior e, caso se expandisse abaixo disso, seria menor, desde que
houvesse um teto e um piso para a variação da citada taxa de juros.16 Isso
permitiria dividir de forma mais equânime na sociedade os custos de um
baixo crescimento e, ao mesmo tempo, evitaria que se chegue a uma crise
de endividamento.
Essa modalidade de títulos seria um mix de prefixados com pós-fixados,
uma vez que o cupom seria próprio de um título prefixado, porém com um
componente parcial de incerteza associado à dinâmica da economia. Portanto, se a remuneração definida em leilão for de 9% e na prática o desempenho
da economia se revelar frustrante, a taxa de juros real efetivamente paga
pode, por exemplo, cair para 7%. Em compensação, porém, é mais provável
16 Por exemplo, se a taxa real definida em leilão for de 9%, o teto e o piso poderiam ser 11% e 7%,
respectivamente.
REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 11, N. 22, P. 81-102, DEZ. 2004
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que a dívida pública como proporção do PIB seja mantida sob controle e
que, portanto, não haja perdas de capital.
A sugestão é que o Tesouro Nacional passe a oferecer um título adicional
além daqueles que já normalmente oferece regularmente. O novo título seria
corrigido pelo IPCA e parcialmente indexado ao PIB real, com uma variável
associada a este último que se comporia com uma taxa real definida em
leilão. Em um quadro macroeconômico favorável, isso não diferiria substancialmente da boa evolução das contas públicas que caberia esperar nesse
contexto. A vantagem da alternativa proposta é que ela operaria como uma
espécie de “seguro contra acidentes macroeconômicos” que deprimam o
desempenho da economia – e que, infelizmente, têm sido recorrentes ao
longo dos últimos 10 anos.
Complementarmente a essa inovação financeira, o governo reafirmaria o
compromisso de conservar um superávit primário elevado. Confirmado o
compromisso oficial de médio prazo, acreditamos que haveria espaço para
o governo lançar um ativo financeiro como o proposto. Ao longo do tempo,
ampliando a proporção do novo papel no fluxo de novos lançamentos, o
conjunto dos detentores de títulos se tornaria uma espécie de “sócio” do
governo, recebendo uma forma de “prêmio de sucesso” em caso de um bom
desempenho da economia e arcando, em contrapartida, com uma certa redução da taxa de juros nas épocas de menor crescimento, socializando em parte
os efeitos disso decorrentes, mediante uma redução da taxa de juros real.
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