LEONARDO FRÓES: POESIA, DEVIR & ÊXTASE
Por
Mauro Cezar de Souza Junior
Aluno do Curso de Mestrado em Teoria Literária
(Ciência da Literatura)
Dissertação orientada pelo Prof. Dr. João
Camillo Penna e apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Ciência da Literatura
da Faculdade de Letras da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como requisito
para a concessão do título de Mestre em
Teoria Literária.
Faculdade de Letras – UFRJ
Primeiro semestre de 2007
2
Sem muitas, este trabalho é dedicado ao meu amigo Leonardo Fróes. Evoé.
3
AGRADECIMENTOS:
Primeiramente, ao meu amigo e orientador João Camillo Penna, pela liberdade
oferecida para o desenvolvimento do presente estudo e pela confiança depositada em mim;
Ao meu grande amigo Thiago Noya, que não apenas me apresentou à poesia de
Leonardo Fróes, mas à Poesia como um todo;
Ao Fernando Assis, que me fez experimentar de uma tranqüilidade inédita em
minha vida – e extremamente necessária para os tensos últimos meses de composição desta
dissertação;
À minha mãe, Marilia, ao meu pai, Mauro, aos meus irmãos, Pedro e Juliana, e à
minha avó Nilza, pelo apoio, carinho, admiração e compreensão;
Ao professor Alberto Pucheu, que, além de ter contribuído fundamentalmente para
muito do que se segue nas próximas páginas, aceitou gentilmente participar da banca de
avaliação deste trabalho;
À professora Paula Glenadel, que, de maneira extremamente generosa, aceitou
suprir a falta, na banca de avaliação, do professor Marco Lucchesi – que, por um
imprevisto, infelizmente não pôde confirmar sua presença;
Aos meus amigos Agatha Bacelar, André Nag, Ângelo Antônio, Bruno Molleri,
Carolina Soares, Cindy Leopoldo, Elson Bemfeito, Fábio Henrique Pinheiro, Fábio Ricardo
Campos, Flávia Ferreira, Franklin Amorim, Franklin Costa, Geisy Leopoldo, Gisele
Portella, Heloísa Gomes, Lílian Pinto, Luciane Gaspar, Márcia Quintella, Michele Allonso,
Paulo Vitor, Tatiana Pequeno, Thiago Castro e Thiago Motta;
Aos professores Ana Alencar, Lúcia Ricotta, Marcelo Jacques, Marco Lucchesi,
Sérgio Martagão Gesteira e Vera Lins, cujas idéias sugeridas através de seus cursos – e
4
também através de deliciosos papos informais – foram essenciais para o desenvolvimento
desta dissertação;
Ao CNPq, que nos cedeu uma bolsa de estudos sem a qual o presente trabalho não
poderia ter sido plenamente realizado.
5
SINOPSE:
Investigação de uma das mais fundamentais questões da poética de Leonardo Fróes:
o êxtase e o devir proporcionados pela experiência poética (PUCHEU: 1999). Diálogo com o
conceito de “despersonalização”, de Hugo FRIEDRICH (1978), e com as idéias de “morte do
Autor”, de Roland BARTHES (1988), e de “êxtase lírico”, de Michel COLLOT (2004),
verdadeiras atualizações do paradigma grego arcaico-platônico do poeta éntheos
(DETIENNE: 1988; PLATÃO: 1988; PLATON: 1933). O viés ontológico do êxtase poético
(NIETZSCHE: 2001, 2005; COLLOT: op. cit.). O devir e a noção de natureza dele decorrente
na poesia de Leonardo Fróes, em diálogo (1) com os conceitos de “imanência” e “devir”, de
Gilles DELEUZE (1997, 2004), (2) com certos aspectos da Naturwissenschaft goetheana
(GOETHE: 1958, 1987, 2003), (3) com as críticas ao antropocentrismo, ao antropomorfismo
e à ciência de base iluminista contidas na poética de Isidore Ducasse, o Comte de
LAUTRÉAMONT (1997), e herdadas pelos surrealistas (MORAES: 2002), e, finalmente, (4)
com os posicionamentos de Gary SNYDER (2005) acerca da indissociação entre o que se
convencionou classificar como “natureza” e “cultura”.
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7
O mundo só é miserável para aqueles que
projetam nele sua própria miséria.
(Michel MAFFESOLI)
8
ÍNDICE
9
Introdução ........................................................................................................................... 11
I – A Despovoação da Pessoa ............................................................................................. 20
1 – Um brevíssimo panorama histórico da relação entre êxtase e poesia ............... 21
1. 1 – O aedo éntheos da poesia grega arcaica e sua herança nos
pensamentos de Demócrito e Platão .................................................. 21
1. 2 – De Platão para a poesia moderna: a despersonalização e morte do
Autor como estratégias do poeta voyant ............................................ 25
2 – A potência estético-ontológica do êxtase poético ............................................. 32
2. 1 – O êxtase enquanto força artística da própria natureza e revelação da
verdade além das aparências .............................................................. 32
2. 2 – O viés ontológico do êxtase lírico para a modernidade ..................... 36
3 – Leonardo Fróes, poeta em êxtase ...................................................................... 41
II – A Confusa Hibridação .................................................................................................. 54
1 – Imanência, devir, metamorfose e a ilusão antropocêntrico-antropomórfica ..... 55
1. 1 – Literatura e Vida como casos de devir .............................................. 55
1. 2 – Natureza, experiência e Metamorphose ............................................. 58
1. 3 – A crise do antropomorfismo .............................................................. 67
1. 4 – O chamado selvagem ......................................................................... 78
2 – As possibilidades para o corpo na poesia de Leonardo Fróes ........................... 93
10
Conclusão .......................................................................................................................... 108
Bibliografia ....................................................................................................................... 114
Notas ................................................................................................................................. 121
11
INTRODUÇÃO
12
Caso pudéssemos, de acordo com o que sugere Johann Wolfgang von Goethe com
seu conceito de Versuchi (“experiência”, “ensaio”), nos aproximar de modo radical daquilo
que tradicionalmente se espera que nos limitemos a assegurar, já, como o mero objeto de
estudo do presente trabalho – e, para isso, buscássemos, no muro das convenções que cerca
o texto acadêmico, fissuras através das quais fosse possível nos aventurarmos numa escrita
que afrouxaria as fronteiras entre nós e esse suposto objeto –, pareceria tentador que
convertêssemos nossa introdução de dissertação numa espécie de invocação desse objeto
enquanto alteridade viva, capaz de compartilhar conosco a responsabilidade por tudo o que
aqui estaria exposto. E como o nosso objeto de estudo – que seria, portanto, nessa
aproximação radical, nessa incorporação, também um sujeito – não passa do êxtase e do
devir experimentados a partir da poética de Leonardo Fróes, acabaríamos equalizados,
fundidos num único corpo também com o modo por que optamos estruturar nosso estudo,
isto é, com a nossa “metodologia”, esta que agora estaríamos a delinear, fosse ela possível.
Soa redundante concluir que abordaríamos o êxtase e o devir estando em êxtase e devir,
encarnando o êxtase e o devir.
Alheios ao caráter forçoso de tal possibilidade, talvez chegássemos, ainda, baseados
exatamente na suposta capacidade apresentada por nosso objeto de se nos incorporar, a
vislumbrá-lo como uma espécie de divindade, à semelhança dos antigos gregos que, de
acordo com Nietzsche, teriam tornado sua visão de arte acessível não por meio de
conceitos, mas através das “figuras penetrantemente claras de seu mundo dos deuses”
(NIETZSCHE: 2001, p. 27); teríamos, assim, a pretensão de que nos fora conferida a ingênua
missão de resgatar e adaptar à realidade do texto crítico a estratégia de composição dos
aedos e rapsodos da Antigüidade, que recorriam às potestades para ter acesso à palavra
13
poética – e, no caso específico dos rapsodos, para estarem também aptos a dissertarem
sobre a poesia.
A acusação a que estaríamos expostos se assim procedêssemos seria não apenas de
inocência excessiva, mas também de incongruência. Houvesse, no panorama das religiões
ocidentais, uma potência divina que, por excelência, nos remetesse às práticas do êxtase e
do devir, encarnasse “não o domínio de si, a moderação, a consciência de seus limites, mas
a busca de uma loucura divina, de uma possessão extática”, e nos desse acesso a “um
desterro radical de si mesmo” (VERNANT: 1999, p. 158) – houvesse um deus que tramasse
as linhas que se seguiriam no presente trabalho, seria aquele cuja aparição é imprevisível e,
logo, nada passível de invocaçãoii. Talvez não tenha sido apenas por conta do dinamismo
característico da religiosidade de base oral que, em terreno grego antigo, tenha esse deus
recebido tantos nomes e tantos epítetos – Diónysos, Bákkhos, Brómiosiii, Zagreúsiv,
Íakkhosv, Hemerídesvi, Orthósvii, Dasýlliosviii, Hugiátesix, Aisymnéterx, Aíxxi, Polygethésxii,
Mainómenosxiii, Kathársiosxiv, Lýsiosxv, Autophyésxvi, Sphaleótasxvii, Meilíkhiosxviii,
Perikióniosxix, Melánaigisxx, Horaîosxxi, Auksetósxxii etc. –; por vezes, nem mesmo tais
nomes eram suficientes para invocá-loxxiii. “Divindade sempre em movimento, forma em
perpétua mudança” (DETIENNE: 1988, p. 15), “é um deus que impõe, aqui embaixo, sua
presença imperiosa, exigente, invasora: um deus da parousía” (VERNANT: op. cit., p. 342).
A imprevisibilidade de sua aparição reside exatamente no fato de que, do panteão helênico,
ele é o menos sedentário dos numes, não se sentindo em casa nem mesmo – poderíamos
dizer: sobretudoxxiv – na Tebas onde nasceu por duas vezesxxv (DETIENNE: op. cit., pp. 8 e
35-40).
Estrangeiro em qualquer lugar (id, p. 16), é o deus que chegaxxvi, “que vem de fora”,
“de Outro Lugar” (ibid, p. 19), “o deus que salta, que pulaxxvii” (ibid, p. 83) – sua aparição
14
só se dá “sob o signo do jaculatório” (ibid, p. 110). “Deus nômade, seu reino não tem sede”
(ibid, p. 8) e “o abrigo ocasional, sobretudo, é de seu particular agrado” (ibid, p. 81). As
teofanias de um deus assim vagabundo, diferentemente das dos demais deuses da antiga
Hélade, exigem inteira liberdade (ibid, p. 24) – vale retomar um dos termos técnicos de sua
epifania, autómaton, que o coloca claramente no “domínio soberano do espontâneo e do
súbito”, consagrando-o “príncipe do imediatismo” e deus autophyés, “que faz brotar a si
mesmo” como “uma potência autônoma cuja força natural irrompe de repente e que
permanece incompreensível, rebelde a qualquer classificaçãoxxviii” (ibid, pp. 94-95). De
fato, enquanto os demais Olímpicos desfrutam do krátos, do “poder sobre os outros”, esse
deus apresenta, e compartilha com seus seguidores, a dýnamis, a “‘força’ vista em sua
autonomia, em sua potencialidade” (ibid, p. 106), simbolizada pelo jorro espontâneo do
sangue efervescente e do vinho palpitante (ibid, p. 110), e definida por Aristóteles, na
Metafísica, como “princípio da mudança que existe no mesmo ser enquanto outroxxix”
(ARISTÓTELES apud DETIENNE: op. cit., p. 107). Somente através da passividade, da entrega
extática, era permitido ao fiel desse nume o encontro com a dýnamis, o que desencadeava a
“visão recíproca do bacante e do seu deusxxx”, o “estado que é um denominador comum
entre o deus e o homem” (DETIENNE: op. cit., p. 44) – a plenitude da “completa e feliz
comunhão com o divinoxxxi” (VERNANT e FRONTISI-DUCROUX: 1999, p. 178).
Essa comunhão não se exprimia através de um desejo ascético de evasão para o
Além, tampouco na esperança de uma outra vida, situada pós-mortexxxii (VERNANT: op. cit.,
p. 340): o deus de que falamos, não se opondo “à inconsistência e à inconstância da vida
humana” (id, p. 342), “insere o sobrenatural em plena natureza” (ibid, p. 347), introduz a
dimensão imprevisível do Além na vida cotidiana a partir da revelação da
complementaridade do que ordinariamente nos parece em oposição (VERNANT e FRONTISI-
15
DUCROUX: op. cit., p. 173), fazendo “comungar o que estava isolado” (VERNANT: op. cit.,
p. 342) e, logo, ensinando àqueles que não se recusam a segui-loxxxiii a “questionar as
categorias, suprimir as fronteiras que separam o animal do homem, o homem dos deuses,
esquecer os papéis sociais, os sexos e as idadesxxxiv” (VERNANT e FRONTISI-DUCROUX: op.
cit., p. 175). “No esquecimento de si dos estados dionisíacos dava-se o ocaso do indivíduo
com seus limites e medidas” (NIETZSCHE: 2005, p. 24); e aquele, portanto, que era
incorporado pela divindade-símbolo dos efeitos da pulsão da primavera e da bebida
narcótica – os dois “poderes que principalmente elevam o homem (…) até o esquecimento
de si característico de embriaguez” (id, p. 8) – tem ingresso num “universo de alegria onde
são abolidos os limites da condição humana” (VERNANT: op. cit., p. 176), numa “bemaventurada alteridade” (id, p. 340) através da qual “o indivíduo possuído não deixa este
mundo, é neste mundo que ele se torna outro pela força que o habita” (ibid, p. 341). Como
se aqui mesmo pudesse ser reencontrada a idade do ouro (ibid, p. 348), “os homens devem
(…) aceitar sua condição mortal, saber que nada são diante das forças que transbordam de
toda parte e que têm o poder de esmagá-los” (ibid, p. 359). Se “Dioniso está aqui quando o
mundo estável dos objetos familiares, das figuras tranqüilizadoras, oscila para se tornar um
jogo de fantasmagorias onde o ilusório, o impossível, o absurdo tornam-se realidade” (ibid,
p. 348), o objetivo do bacante é, em suma, “obter (…) uma mudança de estado” (ibid, p.
341), metamorfosear-se como o próprio deus a que se entrega. Como invocar um deus
assim mutante, que tudo confunde, que “nunca é encerrado numa forma definitivaxxxv”
(ibid, p. 346)?
Brutal e repentino, trazendo consigo, enquanto “deus da mania” (DETIENNE: op. cit.,
p. 35), a “dádiva do vinho”, verdadeiro phármakonxxxvi (id, p. 45), e “o vírus do transe, uma
religiosidade selvagemxxxvii” (ibid, p. 16), trata-se do mais epidêmico dos numes
16
gregosxxxviii (ibid, pp. 13-15): “é por excelência o deus que vem; aparece, manifesta-se, fazse reconhecer”, podendo ser encontrado, com isso, por toda parte (ibid, p. 14). Um deus que
“não está onde parece estar, (…) está também muito além, dentro das pessoas e em lugar
nenhum” (VERNANT: op. cit., p. 158): sua “intangível ubiqüidade” se traduz numa
“irremediável alteridade” (VERNANT e FRONTISI-DUCROUX: op. cit., p. 175). “Dioniso
revela-se se escondendo, ele se deixa ver dissimulando-se diante do olhar de todos os que
crêem apenas no que vêemxxxix” (VERNANT: op. cit., p. 343) – característica esta que lhe
confere um conhecimento íntimo das afinidades entre estar presente e ausentexl (DETIENNE:
op. cit., p 19), tornando-o um ksénos em duplo sentido: “estranho” e “estrangeiro” (id, p.
21). Um grego considerava ksénos, “estrangeiro”, não o bárbaro de fala ininteligível
(bárbaros), mas o cidadão de uma comunidade próxima, inserida no mundo helênico (ibid):
vale lembrar que estamos nos referindo à divindade cuja figura é “inatingível, ainda que
próxima” (VERNANT: op. cit., p. 158) também num sentido, digamos, topográficoxli. Já a
primeira acepção de ksénos, “estranho”, deve-se, sobretudo, à insígnia báquica: a
máscaraxlii, através da qual “afirma sua natureza epifânica de deus que não pára de oscilar
entre presença e ausência” (DETIENNE: op. cit., p. 23), de “força divina cuja presença parece
inelutavelmente marcada pela ausência” (VERNANT e FRONTISI-DUCROUX: op. cit., p. 163),
de “forma a ser identificada, um rosto para ser descoberto, uma máscara que o esconde
tanto quanto o revelaxliii” (DETIENNE: op. cit., p. 23).
***
Furtivo, imprevisível, mutante: se nosso objeto de estudo impõe uma incapacidade
de invocá-lo, abandonemo-nos a ele, deixemos que ele fale e, à vontade, nos carregue e nos
17
transforme. Tenhamos “a mente fulminada pelo vinho” (oínoi synkaraunotheìs phrénas),
como sugere Arquíloco de Paros, no fragmento 120W (in: Poesia Grega Antiga: 1998, pp.
20-21). Entretanto, lembremos o que alerta Nietzsche: “o servidor de Dioniso precisa estar
embriagado e ao mesmo tempo ficar à espreita atrás de si, como observador”, posto que “o
caráter artístico dionisíaco não se mostra na alternância de lucidez e embriaguez, mas sim
em sua conjugação” (NIETZSCHE: 2005, p. 10). Como canta Anacreonte de Teos, no
fragmento 428W: “e enlouqueço e não enlouqueço” (kaì maínomai koû maínomai, in:
Poesia Grega Antiga: 1998, pp. 76-77). Esta conjugação, buscaremos nas páginas a seguir,
sem muitas promessas.
***
Quanto à poética de Leonardo Fróes, adiantemos logo que parece ser bastante
acertada a analogia sugerida por Ivan Junqueira entre ela e a imagem do carvalho
heideggeriano, “daquela árvore que permanece idêntica a si mesma no transcurso invisível
de sua mutabilidade”: de fato, a obra do poeta de Petrópolis se renova “na repetição, no
aprofundamento de seus temas e problemas” (JUNQUEIRA in: FRÓES: 1998, p. 237). Talvez
seja possível compreender a insistência característica da obra de Fróes a partir da profunda
contemplação a que o poeta se dedica em relação ao mutável universo fenomênico: uma das
mais elementares questões que permeiam sua poética, veremos, é a consciência de que tudo
o que existe está em contínua transformação – consciência cuja conseqüência imediata é a
negação de qualquer acabamento, qualquer formatação, qualquer definição que,
ingenuamente tirânica, se disponha a dar por encerrados processos fadados a uma
infinidade de desdobramentos. Como as coisas da vida, as da poesia seriam inesgotáveis.
18
Daí Alberto Pucheu, em sua resenha para Vertigens, a obra reunida de Leonardo
Fróes – que cobre mais de trinta anos de poesia –, ter encontrado “questões fundamentais”
da poética deste, como a “tentativa de indistinção entre o literário e o não-literário” e a
chamada “despersonalização extática”, que arremessa o sujeito lírico posto em busca de si
mesmo em direção ao “constante devir” (PUCHEU: 1999). Esta última é a questão que, no
presente trabalho, nos dispusemos a examinar de maneira mais detida. Para isso,
propusemos duas seções; na primeira, analisaremos o êxtase enquanto estratégia poética de
redimensionamento da simples subjetividade – aquela que é, inclusive, tradicionalmente
relacionada à experiência lírica –, estabelecendo, antes, um panorama histórico que,
partindo dos aedos da Grécia Arcaica e chegando aos poetas precursores da lírica moderna
– Baudelaire, Rimbaud – demonstra a relação entre êxtase e poesia, e sugere a existência de
uma tradição que, pelo menos desde Platão, aborda o fenômeno poético não como
expressão individual do artista, mas como incorporação da alteridade. Para isso, foram
fundamentais as leituras de Hugo Friedrich (1978), Roland Barthes (1988) e Michel Collot
(2004). As questões levantadas por este último, juntamente com as de Friedrich Nietzsche
(2001, 2005), também integram outra parte da nossa primeira seção, parte em que
procuraremos flagrar a potência ontológico-reveladora do êxtase poético. Quanto à segunda
seção da nossa dissertação, nela buscamos dialogar o devir vivenciado pelo sujeito extático
da poesia froesiana – bem como a visão de mundo e de natureza dele decorrentes – (1) com
os conceitos de Gilles Deleuze (1997, 2004) de “imanência” e “devir”, (2) com certos
aspectos da Naturwissenschaft (“ciência ou filosofia da natureza”) desenvolvida por Johann
Wolfgang von Goethe (1958, 1987, 2003), (3) com as críticas ao antropocentrismo, ao
antropomorfismo e à ciência de base iluminista contidas na poética de Isidore Ducasse, o
Comte de Lautréamont (1997), e herdada pelos surrealistas – para este item, note-se,
19
buscamos apoio em Eliane Robert Moraes (2002) –, e, finalmente, (4) com os
posicionamentos de Gary Snyder (2005) acerca da indissociação entre o que se
convencionou classificar como “natureza” e “cultura”.
20
I – A DESPOVOAÇÃO DA PESSOAxliv
21
1 – UM BREVÍSSIMO PANORAMA HISTÓRICO DA RELAÇÃO ENTRE ÊXTASE E POESIA
1. 1 – O aedo éntheos da poesia grega arcaica e sua herança nos pensamentos de
Demócrito e Platão
É tentador para o leitor moderno buscar refúgio no distanciamento histórico ao se
deparar com o que dizem os primeiros versos das epopéias homéricas quanto à origem da
palavra poética: quem “canta” (aeíde, HOMÈRE: 1998, v. 1) a cólera de Aquiles e “diz”
(énnepe, HOMÈRE: 2001, v. 1) as façanhas de Odisseu não é o lendário aedo cego, mas sim
uma divindade, a Musa (Theá, “Deusa”, HOMÈRE: 1998, V. 1, ou Moûsa mesmo, HOMÈRE:
2001, V. 1), filha de Zeus e da Memória (Mnemosýne). Assim, nesses hexâmetros, seria
possível avistar aquele contexto em que, de acordo com o helenista Marcel Detienne, o
poeta era um “possuído pela divindade” (éntheos, isto é, aquele que, para Platãoxlv, seria
portador da faculdade da enthousíasis ou do enthousiasmós, “entusiasmo”) e alcançava o
status de “mestre da verdade” (alétheia) exatamente por ter acesso, através de tal
possessão, ao verbo mágico-religioso, portador dos valores, das regras e dos costumes
(nómoi) (DETIENNE: 1988, p. 15). Mesmo que se transpusessem apressadamente para a
Grécia Arcaica as categorias literárias modernas que, ávidas por classificar os poemas
homéricos como “épicos”, os circunscrevessem numa perspectiva objetiva que, além de
mais “propícia” à incorporação divina, se oporia à expressão da dita subjetividade lírica,
esta, enquanto garantia de autoria, talvez não possa ser facilmente encontrada na totalidade
da poesia helênica de então.
Com isso, pretendemos mais do que sublinhar discrepâncias históricas elementares
que, de antemão, revelariam o quão inocente é a tarefa de buscar categorias de uma época
22
noutra – é óbvio que nem tudo aquilo que, para nós, poderia ser reunido sob a designação
genérica de “poesia lírica” soava de fato “lírico” para um grego antigo, e o próprio adjetivo
lyrikós, note-se, é usado apenas no período alexandrino, referindo-se aos poemas que
teriam sido cantados principalmente ao som da lýra, e não àqueles que apresentariam como
traço elementar a expressão individual do artista (ROCHA PEREIRA: 1998, p. 194). A questão
fundamental é que certamente há, entre os poetas gregos pré-clássicos in totum, talvez por
seguirem o modelo homérico, uma íntima relação entre possessão extática e poesia, sejam
quais forem a modalidade e o acompanhamento musical desta. Pode nos servir como
exemplo o fato de que, na chamada “poesia didática” de Hesíodo, ocorre a mesma filiação
da palavra poética às Musas, sejam elas habitantes da região da Piéria, como em Os
trabalhos e os dias (HESÍODO: 1991, p. 23, v. 1), ou do Monte Hélicon, como na Teogonia
(HESÍODO: 1995, p. 105, vv. 1-2). De modo semelhante ao que, neste segundo poema,
Hesíodo afirma terem sido as filhas de Zeus e da Memória que o “ensinaram o belo canto”
(id, p. 107, vv. 22-23), dedicando a elas os primeiros cento e quinze versos de sua obra, no
famoso fragmento 1W de Arquíloco de Paros, o poeta iâmbico se apresenta como um
“conhecedor (epistámenos) do amável dom das Musas (Mouséon eratòn dôron)” (in:
Poesia Grega Antiga: 1998, pp. 14-15). Vale destacar, ainda, os fragmentos 93 e 94LP de
Safo de Lesbos: naquele, a poetisa invoca (ági, “vem”) uma “lira divina” (xély dîa); neste,
as próprias Musas (Moûsai) (in: FONTES: 1992, pp. 144-145).
No século V a.C., dois pensadores gregos parecem herdar a concepção arcaica do
fenômeno poético enquanto possessão. Um deles é Demócrito de Abdera; embora sua
contribuição para o paradigma que, na presente dissertação, procuraremos flagrar, seja
discutível, graças à menor relevância de seu pensamento para a filosofia ocidental em
comparação ao de Platão – o outro filósofo em questão –, vale destacar que dois de seus
23
fragmentos versam sobre o tema: no de número 18, diz o filósofo atomista que “tudo o que
um poeta escrever com entusiasmo e sob inspiração divina é certamente belo”; no
fragmento 21, Demócrito considera que Homero teria recebido uma “natureza divina”, sem
a qual não teria construído um “cosmos de versos variados” (DEMÓCRITO in BORNHEIM
(org.): 1999, p. 108). É digno de nota, ainda, que Demócrito teria sido “o primeiro a propor
uma explicação científica (isto é, materialista) do entusiasmo” (CORNFORD: 1989, p. 103):
o gênio poético, a adivinhação intuitiva, a previsão dos acontecimentos
futuros que se realiza em sonhos, a comunicação do místico com o divino e
certas afecções nervosas e mentais se devem a um temperamento anormal,
particularmente ardente e emotivo, no qual os átomos psíquicos estão
constantemente animados de um movimento muito vivo. Um temperamento
assim torna possível aos homens entrarem em comunicação com outros seres
possuidores de um caráter igualmente fogoso e animado, particularmente
com esses grandes “espectros” a que vulgarmente se dá o nome de deuses e
“daimons”, e receberem deles efluências causadoras de impressões violentas.
O fato de receberem estes espectros carregados de idéias, de emoções e de
impulsos confere a esses homens, durante um certo tempo e num certo grau,
o caráter de seres de onde emanam; e é numa crise de exaltação semelhante à
loucura, que as obras de arte são criadas e que a verdade misteriosa é
revelada na comunhão com o divino (id, p. 104).
Quanto a Platão de Atenas, a relação entre entusiasmo e poesia se faz presente em
pelo menos dois de seus mais eminentes diálogos, Fedro e Íon. No primeiro, encontramo-la
na célebre passagem em que Sócrates, ao enumerar para o jovem Fedro os tipos de delírio
(manía) cujas origens seriam divinasxlvi (PLATON: 1933, p. 31, 244a), inclui, entre elas,
aquela que, ao mesmo tempo chamada de “loucura” (manía) e de “possessão” (katokokhé),
viria “das Musas” (apò Mousôn), “elevando” e “transportando em delírio” (egeírousa kaì
ekbakkheúousa) a alma (psykhé) que, então, estaria apta a exprimir-se poeticamente (id, pp.
32-33, 245a). Em Íon, o mesmo Sócrates convence o famoso rapsodoxlvii Íon de Éfeso de
que não existe a arte (tékhne), tampouco a ciência (epistéme) do aedo e do rapsodo: estes
24
seriam “inspirados e possuídos” (éntheoi kaì katekhómenoi) por uma “força divina” (theía
dýnamis), a verdadeira responsável pela composição das obras poéticas (PLATÃO: 1988, pp.
49-55, 533d-534e).
Se, como no caso do adivinho (khresmodós) e do profeta (mántis), o poeta é usado
pela divindade como um ministro (hyperétes) através do qual ela se pronuncia, ele, o poeta,
diz Sócrates, é “uma coisa leve (koûphon khrêma), alada (ptenón), sagrada (hierón)”, que
“não pode criar antes de sentir a inspiração, de estar fora de si (ékphron) e de perder o uso
da razão (noûs)” (id, pp. 50-53, 534d-e). Daí a comparação entre o poeta e os Coribantes e
as Bacantes:
todos os poetas épicos (epôn poietaí), os bons poetas, não é por efeito de
uma arte (tékhne), mas porque são inspirados e possuídos, que eles compõem
todos esses belos poemas; e igualmente os bons poetas líricos (melopoioí),
tal como os Coribantes não dançam senão quando estão fora de si, também
os poetas líricos não estão em si (ouk émphrones) quando compõem esses
belos poemas; mas, logo que entram na harmonia (harmonía) e no ritmo
(rhythmón), são transformados e possuídos como as Bacantes que, quando
estão possuídas, bebem nos rios o leite e o mel, mas não, quando estão em
sua razão (émphrones), e é assim a alma (psykhé) dos poetas líricos, segundo
eles dizem (ibid, pp. 48-51, 534a).
É interessante que o personagem Íon, querendo afirmar que possui a capacidade de recitar
com espontaneidade os hexâmetros homéricos, bem como dissertar sobre eles, utiliza a
forma verbal euporô (ibid, pp. 38 e 41, 532c; pp. 46-47, 533d), que também pode significar
“tenho boa passagem”, “tenho fácil aberturaxlviii”: talvez esteja inscrito, aí, o que Sócrates
chama de “dom divino” (theía moîra, ibid, pp. 62-63, 536c), que dá entrada aos poetas ao
cargo de “intérpretes dos deuses” (hermenês tôn theôn) e dimensiona os poemas como
artefatos que “não são humanos nem são obras de homens”, e sim “divinos e dos deuses”
(ibid, pp. 52 e 55, 534e).
25
1. 2 – De Platão para a Poesia Moderna: a despersonalização e morte do Autor como
estratégias do poeta voyant
Como o conjunto de idéias arcaicas apresentado nos referidos diálogos de Platão
seria, mais tarde, retomado pelo neoplatonismo renascentista e, a partir daí, sintetizado num
ensaio por Montaigne, através do qual chegou aos autores modernos, como Rimbaud
(FRIEDRICH: 1978, p. 62), pode-se afirmar que o filósofo ateniense acabou por estabelecer,
no Ocidente, um verdadeiro paradigma poético no qual “o sujeito lírico não se possui, na
medida em que ele é possuído por uma instância ao mesmo tempo a mais íntima de si e
radicalmente estrangeira” (COLLOT: 2004, p. 166). Trata-se, em suma, de um paradigma
que, atualizado, se contrapôs a “toda uma tradição que, certamente, tem uma de suas
origens e maiores expressões na teoria hegeliana do lirismo, concebida, por oposição à
poesia épica, como ‘expressão da subjetividade como tal (…), e não de um objeto exterior’”
(id., p. 165). Vimos que, na Grécia Arcaica, de maneira similar, sabe-se, que nas chamadas
sociedades etnográficas, a autoria de um texto “nunca é assumida por uma pessoa, mas por
um mediador, um xamã ou recitante – um rapsodo –, de quem, a rigor, se pode admirar a
performance (…), mas nunca o ‘gênio’” (BARTHES: 1988, pp. 65-66); por isso, o principal
antípoda moderno com o qual a atualização da experiência do êxtase lírico teria se deparado
residiria na idéia de Autor – aquele que, segundo Rolando Barthes, não passaria de
uma personagem moderna, produzida sem dúvida por uma sociedade na
medida em que, ao sair da Idade Média, com o empirismo inglês, o
racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestígio do
indivíduo ou, como se diz nobremente, da “pessoa humana”. (id, p. 66)
26
Barthes denuncia, desse modo, que “a imagem da literatura que se pode encontrar na
cultura corrente estaria tiranicamente centralizada no autor, sua pessoa, sua história, seus
gostos e suas paixões”; daí “a explicação da obra” ser “sempre buscada do lado de quem a
produziu” (ibid).
Para que fosse alcançado o que Barthes chama de “escritura” – “a destruição de toda
a voz, de toda origem”, “o branco-e-preto onde vem se perder toda identidade, a começar
pela do corpo que escreve” (ibid, p. 65) – seria necessária a “morte do Autor”:
desde que um fato é contado, para fins intransitivos, e não para agir
diretamente sobre o real, isto é, finalmente, fora de qualquer função que não
seja o exercício do símbolo, produz-se esse desligamento, a voz perde a sua
origem, o autor entra na sua própria morte, a escritura começa (ibid).
O texto sem Autor se torna, para Barthes, “um espaço de dimensões múltiplas, onde se
casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um tecido
de citações, saídas dos mil focos da cultura” (ibid, pp. 68-69), e o escritor (que não se
confunde com o Autor)
só pode imitar um gesto sempre anterior, jamais original; seu único poder
está em mesclar as escrituras, em fazê-las contrariar umas pelas outras, de
modo a nunca se apoiar em apenas uma delas; quisera ele exprimir-se, pelo
menos deveria saber que a “coisa” interior que tem a pretensão de traduzir
não é senão um dicionário todo composto, cujas palavras só se podem
explicar através de outras palavras, e isto indefinidamentexlix (ibid, p. 69).
Pelo menos desde as origens da lírica moderna, a “morte do Autor” já vinha sendo
planejada – e, posto que, até o século XIX, e, em parte, até depois, a poesia se encontrava
num “âmbito de ressonância da sociedade”, sendo “esperada como um quadro idealizante
de assuntos ou de situações costumeiras”, tais origens remontariam, segundo Hugo
Friedrich, às mudanças que se verificaram na poesia dos anos de 1800, quando teria ela se
27
colocado em “oposição a uma sociedade preocupada com a segurança econômica da vida”,
tornando-se “o lamento pela decifração científica do universo e pela generalizada ausência
de poesia” (FRIEDRICH: 1978, p. 20). Disso, teria derivado uma “aguda ruptura com a
tradição” (id); daí, o caráter “dissonante” da poesia moderna: nela se opera uma “junção de
incompreensibilidade e de fascinação”, que “gera uma tensão que tende mais à inquietude
que à serenidade” (ibid, p. 15). Os primórdios dessa dissonância estariam, em parte, na obra
de Jean-Jacques Rousseau (ibid, p. 24). Marcada por uma “tensão indissolúvel” entre “a
agudeza intelectual e a excitação afetiva, entre o pendor à seqüência lógica do pensamento
e a submissão às utopias do sentimento”, a obra de Rousseau encarnaria “a primeira forma
radical da ruptura moderna com a tradição”, e, ao mesmo tempo, “uma ruptura com o
mundo circunstante” (ibid, p. 23), sublinhando a “irreconciliabilidade entre o eu e o
mundo” (ibid, p. 24). Essa “lírica que se esquiva à realidade opressora” acaba tendo como
conseqüências a “supressão da diferença entre fantasia e realidade” e a idéia de uma
“fantasia criativa” que teria o direito de criar “o não-existente e de colocá-lo acima do
existente” (ibid): na poesia moderna, enfim, “a fantasia torna-se absoluta” (ibid, p. 25). A
outra parte originária da dissonância da lírica moderna estaria na tese de Denis Diderot
acerca do “gênio”, em que se observa a “coincidência da imoralidade com a genialidade, da
inaptidão social com a grandeza espiritual”, atribuindo-se, dessa forma, “uma ordem
autônoma ao gênio artístico” (ibid). A “genialidade”, pois, “consiste em um poder
visionário natural que pode romper todas as regras” (ibid), e a poesia “deve volver para
objetos remotos, assustadores e que inspirem mistério” (ibid, p. 26), o que desencadeia uma
ampliação do conceito de beleza (ibid, p. 27).
Se a poesia moderna, portanto, “conduz ao âmbito do não familiar” e “não quer
mais ser medida em base ao que comumente se chama realidade” (ibid, p. 16), “das três
28
maneiras possíveis de comportamento da composição lírica – sentir, observar, transformar
– é esta última que domina” (ibid, p. 17). Logo, não seria conveniente aquela definição de
lírica, “colhida da poesia romântica” – ou pelo menos do que se convencionou chamar
assiml –, “como linguagem do estado de ânimo, da alma pessoal” (ibid), já que “o conceito
de estado de ânimo indica distensão, mediante o recolhimento, em um espaço anímico, que
mesmo o homem mais solitário compartilha com todos aqueles que conseguem sentir”,
enquanto que a poesia moderna evita exatamente essa “intimidade comunicativa” (ibid),
pois
prescinde da humanidade no sentido tradicional, da “experiência vivida”, do
sentimento e (…) até mesmo do eu pessoal do artista. Este não mais
participa em sua criação como pessoa particular, porém como inteligência
que poetiza, como operador da língua, como artista que experimentou os atos
de transformação de sua fantasia imperiosa ou de seu modo irreal de ver num
assunto qualquer, pobre de significado em si mesmo (ibid).
O lirismo moderno é “algo diferente de estado de ânimo” – trata-se “de uma polifonia e
uma incondicionalidade da subjetividade pura que não mais pode se decompor em isolados
valores de sensibilidadeli” (ibid).
Esta incondicionalidade, que Barthes considerou como a “morte do Autor”, será
chamada por Hugo Friedrich de “despersonalização” (ibid, p. 36), estratégia de divórcio
entre pessoa empírica e fazer poético que um dos pilares da poesia moderna, Charles
Baudelaire, teria incorporado de suas leituras da obra de Edgar Allan Poe – esta
caracterizada pela separação entre “lírica e coração” e pela busca de um sujeito lírico
possuidor de uma “excitação entusiástica”, que “nada tivesse a ver com a paixão pessoal
nem com the intoxication of the heart (a embriaguez do coração)”, mas que fosse uma
espécie de “disposição ampla” (ibid, p. 37). Baudelaire afirmou ser a arte moderna
29
capacitada para criar “uma mágica sugestiva que contenha simultaneamente o objeto e o
sujeito, o mundo exterior ao artista e o próprio artista” (BAUDELAIRE apud COLLOT: op. cit.,
p. 169) – daí sua obra máxima, Les Fleurs du Mal, publicada em 1857, prescindir do
lirismo enquanto confissão: por mais que haja nela “o sofrimento de um homem solitário,
infeliz e doente”, nenhum dos poemas que a compõem necessita, para “explicar-se”, dos
dados biográficos de quem a escreveu (FRIEDRICH: op. cit., p. 36). Opondo “a capacidade
de sentir do coração” à “capacidade de sentir da fantasia”, e afirmando que a primeira “não
convém ao trabalho poético” (BAUDELAIRE apud FRIEDRICH: op. cit., p. 37), Baudelaire
parece conceber a segunda “como uma elaboração guiada pelo intelecto” (FRIEDRICH: op.
cit., p. 37), embora seja ela equiparável ao sonho, “a capacidade criativa por excelência”
(id, p. 55): o poeta, com “seu ‘asco pelo real’”, pela “realidade quando é banal ou
simplesmente natural – ambas equivalentes, para ele, à negação do espírito” –, quer uma
lírica que não aspire “à cópia fácil, mas sim à transformação”, à “desrealização do real”
(ibid, p. 53). Baudelaire diz que “a fantasia decompõe (décompose) toda a criação; segundo
leis que provêm do mais profundo interior da alma, recolhe e articula as partes (daí
resultantes) e cria um mundo novo” (BAUDELAIRE apud FRIEDRICH: op. cit., p. 55) – por
isso, suas formulações acerca da poesia
exigem que se prescinda de todo sentimentalismo pessoal a favor de uma
fantasia clarividente (…). Baudelaire aplica ao poeta o lema: “Minha tarefa é
extra-humana”. Em uma carta, ele fala da “intencionada impessoalidade de
minhas poesias”, com o que se entende que elas podem expressar qualquer
possível estado de consciência do homem, com preferência os mais
extremos. (…) Baudelaire justifica a poesia em sua capacidade de neutralizar
o coração pessoallii (FRIEDRICH: op. cit., p. 37).
De acordo com Hugo Friedrich, a plena realização dos “esboços teóricos de
Baudelaire” poderia ser observada nas “dissonâncias absolutas” da poesia de efeito
30
“desconcertante” de um dos mais ávidos leitores de Les Fleurs du Mal, Arthur Rimbaud
(id, p. 60). Na “lírica dinâmica” (ibid, p. 59) do “vulcânico” (ibid, p. 60) Rimbaud, a
“palavra-chave” é “explosão” (ibid, p. 59), e seu núcleo “quase não é mais de caráter
temático”, mas sim uma “excitação efervescente” (ibid, p. 60) – note-se que o próprio
vocabulário relacionado por Hugo Friedrich a Rimbaud já nos revela muito do caráter ígneo
e, portanto, mutante da poesia deste. Nesta, observam-se “conteúdos caóticos em frases que
são simplificadas até o primitivismo” (ibid), o que culmina em “fragmentos, linhas
truncadas, imagens agudas, perceptíveis aos sentidos, mas irreais” (ibid.), dando voz às
“forças artísticas e espirituais carentes de mistério” (ibid, p. 61). Trata-se, pois, de “uma
poesia obscura, que se evade do mundo explicável do pensamento extremamente científico
para lançar-se ao mundo extremamente enigmático da fantasia”, e que “pode ter o efeito de
uma missão que proporcione, a quem é sensível a ela, a mesma evasão” (ibid). Uma poesia,
conclui Friedrich, que contém “forças análogas ao êxtase religioso”, de um poeta que se
impele a “uma beatitude supraterrena, como se viesse de outro mundo, extasiado” (ibid).
Dessa beatitude decorre, afinal, o conceito de “vidente” (voyant), verdadeira
redefinição do sujeito lírico (COLLOT: op. cit., p. 168) a qual não passaria de uma
atualização moderna para o paradigma homérico-platônico do poeta éntheos – atualização
porque, para a indagação “o que vê o poeta vidente e como se converte em tal?”, Rimbaud
dá respostas que nada teriam de gregas (FRIEDRICH: op. cit., p. 62). Com a famosa frase “eu
é um outroliii” (je est un autre), o eu é “reduzido a um pronome que o designa sem o
significar, deportado da primeira para a terceira pessoa do singular” (COLLOT: op. cit., p.
169). Diz Rimbaud: “assisto ao desabrochar de meu pensamento, eu o vejo, eu o escuto.
(…) É falso dizer: penso. Dever-se-ia dizer: pensa-se em mim” (RIMBAUD apud FRIEDRICH:
op. cit., p. 62).
31
O sujeito verdadeiro não é, portanto, o eu empírico. Outras forças atuam em
seu lugar, forças subterrâneas de caráter “pré-pessoal”, mas de uma violência
de disposição que coage. E só elas são o órgão apropriado para a visão do
desconhecido. É verdade que em tais frases se pode reconhecer o esquema
místico: o auto-abandono do eu porque a inspiração divina o subjuga. Mas a
subjugação agora vem de baixo. O eu emerge e é desarmado por camadas
profundas coletivas (l’âme universelle) (FRIEDRICH: op. cit., pp. 62-63).
O voyant riumbaudeano, chamado por Friedrich de “eu artificial”, é um sujeito polifônico,
tornado “planetário” através do autodespojo do eu empírico, o que lhe confere liberdade
para “vestir todas as máscaras, estender-se a todas as formas de existência, a todos os
tempos e povos” (id, p. 69). Este autodespojo poderia ser alcançado mediante um ato
operativo dirigido pela vontade (ibid, p. 63), de acordo com o que o próprio Rimbaud
declara na seguinte frase: “Quero vir a ser poeta e trabalho para sê-lo” (RIMBAUD apud
FRIEDRICH: op. cit., p. 63). O trabalho mencionado aqui, no entanto, não teria o mesmo teor
que aquele de base intelectual proposto por Baudelaire, já que consistiria “em desordenar
lenta, infinita e arrazoadamente, todos os sentidos” (id.). “O impulso poético” do homem
moderno, continua Hugo Friedrich, “é ativado por meio de sua automutilação (…). Tudo
para ‘chegar ao desconhecido’” (FRIEDRICH: op. cit., p. 63). Com isso, “a poesia liga-se
agora ao pressuposto de que a vontade distorce a tessitura anímica, pois tal desfiguração
possibilita a cega evasão para o profundo ‘pré-pessoal’”, alcançando-se a “nova
linguagem”, que não passa de uma “linguagem universal” (id). E o poeta, “aquele que olha
o desconhecido” (ibid), pôde, assim, ser definido por Rimbaud como “o grande enfermo, o
grande delinqüente, o grande proscrito – e o sumo sábioliv” (RIMBAUD apud FRIEDRICH: op.
cit., p. 63).
32
2 – A POTÊNCIA ESTÉTICO-ONTOLÓGICA DO ÊXTASE POÉTICO
2. 1 – O êxtase enquanto força artística da própria natureza e revelação da verdade
além das aparências
Contemporâneo deste Rimbaud para quem a poesia, enquanto fenômeno de ordem
extática, é “linguagem universal” – e, portanto, linguagem que extravasa os limites da
humanidade –, Friedrich Nietzsche, também com base nos antigos gregos, procurou elevar
a idéia de êxtase à categoria dos “poderes artísticos que, sem a mediação do artista humano,
irrompem da própria natureza”, e em face dos quais “todo artista é um ‘imitador’”
(NIETZSCHE: 2001, p. 32). Além do êxtase, ou “embriaguez”, também o “sonho”: seriam
duas, de acordo com o filósofo, as forças naturais que possibilitariam estados em que o
homem pode jogar com a arte – ou seja, pode vivenciar “o sentimento de delícia em relação
à existência” (NIETZSCHE: 2005, p. 5). “O sonho é o jogo do homem individual com o real”
(id, p. 6) – em outras palavras, no sonho atua uma força criativa individualizada, produtora
de imagens e formas similares às do real –; quanto à embriaguez, trata-se do “jogo da
naturezalv com o homem” (ibid, p. 9) – isto é, aqui a força criativa é total, e a obra de arte é
o próprio ser humanolvi. Para cada uma dessas forças, sustenta Nietzsche, os gregos teriam
sugerido símbolos: suas divindades da arte (NIETZSCHE: 2001, p. 27). Apolo, deus da
figuração plástica, foi ligado ao sonholvii – que, para o pensador, é “pré-condição de toda
arte plástica” e “de uma importante metade da poesia”, exatamente daquela essencialmente
figurativa, a epopéialviii (id, p. 28) –; Dioniso, deus da “arte não-figurada da músicalix”, foi
relacionado à embriaguez extáticalx (ibid, p. 27). Daí, a famosa terminologia: “apolíneo” e
“dionisíaco”lxi. Complementa o filósofo: “a arte do escultor (em sentido lato)” – ou melhor:
33
a arte figurativa – “é o jogo com o sonho” (NIETZSCHE: 2005, p. 6); já o “criar do artista
dionisíaco é o jogo com a embriaguez” (id, p. 9).
De acordo com Nietzsche, o impulso onírico-figurador divinizado em Apolo teria
engendrado todo o mundo individualizado, inclusive o dos deuses olímpico-homéricos
(NIETZSCHE: 2001, p. 35). Estes, “criação do incomparável povo de artistas”, seriam
caracterizados por uma religiosidade que prescindia de noções como ascese, espiritualidade
ou dever – noções oriundas de uma experiência sagrada marcada pela penúria e pela
necessidade (NIETZSCHE: 2005, p. 15) –, servindo como símbolos de “uma opulenta e
triunfante existência”, de uma “fantástica exaltação da vida”, “onde tudo o que se faz
presente é divinizado, não importando que seja bom ou mau” (NIETZSCHE: 2001, p. 36). Os
gregos puderam, assim, “desfrutar da vida a ponto de se depararem, para onde quer que
olhassem, com o riso de Helena – a imagem ideal (…) da própria existência deles” (id) –,
mas todo este louvor à vida teria resultado da inversão de uma antiga sabedoria popular,
revelada através do mito do rapto de Sileno (ibid, p. 37). Após ter sido aprisionado por
Midas, o sábio sátiro é indagado acerca do que seria o melhor para o homem, ao que
responde: é “não ter nascido, não ser, nada ser”, ou, no mínimo, “logo morrer” (ibid, p. 36).
“O grego conheceu e sentiu os temores e os horrores do existir”, e
para que lhe fosse possível de algum modo viver, teve de colocar ali, entre
ele e a vida, a resplendente criação onírica dos deuses olímpicos. Aquela
inaudita desconfiança ante os poderes titânicos da natureza, aquela Moira
[destino] a reinar impiedosa sobre todos os conhecimentos (…) foi, através
daquele artístico mundo intermédio dos Olímpicos, constantemente
sobrepujada de novo pelos gregos ou, pelo menos, encoberto e subtraído ao
olhar (ibid, pp. 36-37).
O apolíneo agiria, então, como um “espelho transfigurador” a amenizar o lado mais
sombrio do dionisíaco, da entrega embriagada ao mundo situado além das individuações: o
34
aniquilamento total, a morte (ibid, p. 37). “Para poderem viver”, afirma Nietzsche, “tiveram
os gregos (…) de criar tais deuses, de modo que, da primitiva cosmogonia titânica dos
terrores, se desenvolvesse, em morosas transições, a teogonia olímpica do júbilo, por meio
do impulso apolíneo da beleza” (ibid). O fato de os próprios deuses viverem legitima a vida
humana (ibid); por isso, “no mundo homérico, (…) a vida é conhecida como o que é em si
digno de ser almejado”, e “a dor do homem homérico reporta-se ao abandono dessa
existência, antes de tudo ao ter que abandoná-la cedo” (NIETZSCHE: 2005, p. 17). No
entanto, “se se subtraísse a aparência artística daquele mundo intermediário” dos numes,
“ter-se-ia que seguir a sabedoria do deus silvestre, do companheiro de Dioniso” (id, p. 16) –
daí serem a visão, o belo e a aparência os delimitadores dos domínios da arte apolínea, do
“mundo transfigurado dos olhos que, no sonho, com as pálpebras fechadas, criam
artisticamente” (ibid, p. 20).
Para o principium individuationis simbolizado pela figura de Apolo, a medida é uma
“exigência ética”, e só é possível quando o limite é cognoscível e observável – daí a
“advertência apolínea gnôthi seautón”, “conheça a ti mesmo” (ibid, p. 22). Entretanto,
como o espelho em que o grego apolíneo reconhecia sua aparência era o mundo dos deuses
olímpicos, onde ela se encontrava “envolvida pela bela aparência do sonho”, fica claro que
“a meta mais íntima de uma cultura voltada para a aparência e a medida não pode ser senão
o velamento da verdade” (ibid). “Em um mundo construído dessa maneira e artificialmente
protegido”, diz Nietzsche, “penetrou então o som extático da celebração de Dioniso, no
qual a inteira desmedida da natureza se revelava ao mesmo tempo em prazer, em dor e em
conhecimento” (ibid, p. 23). Conhecimento porque “tudo o que até agora valia como limite,
como determinação de medida, mostrou-se aqui como aparência artificial: a ‘desmedida’
desvelava-se como verdade” (ibid). A arte dionisíaca seria aquela que revelaria o aspecto
35
lacunar da realidade – “todo o esplendor dos deuses olímpicos empalidecia diante da
sabedoria do Sileno” (ibid, p. 24):
nunca (…) a luta entre verdade [da sabedoria do Sileno] e beleza [do mundo
apolíneo olímpico] foi maior do que na invasão do culto de Dioniso: nele a
natureza se desvelou e falou de seu segredo com uma terrível clareza, com o
tom diante do qual a aparência sedutora quase perdeu seu poder (ibid, p. 19).
De modo similar ao que levou Rimbaud a promover o poeta voyant a “sumo sábio”
(RIMBAUD apud FRIEDRICH: op. cit., p. 63), Nietzsche vislumbra a potência reveladora da
embriaguez extática provocada pelo deus que, “fazendo oscilar, repentinamente, o edifício
das aparências para mostrar sua falsa solidez, (…) planta, debaixo do nariz dos
espectadores ofuscados, o cenário insólito de suas magias e mistificações” (VERNANT:
1999, p. 349).
É rompido o principium individuationis: “no esquecimento de si dos estados
dionisíacos dava-se o ocaso do indivíduo com seus limites e medidas” (NIETZSCHE: 2005, p.
24); “o subjetivo desaparece inteiramente diante do poder irruptivo do humano-geral, do
natural-universal” (id, p. 8). Por isso, “as festas de Dioniso não firmam apenas a ligação
entre os homens, elas também reconciliam homem e natureza” (ibid):
na embriaguez dionisíaca, (…) a natureza se expressa em sua força mais
elevada: ela torna a unir os seres isolados e os deixa se sentirem como um
único; de modo que principium individuationis surge como um estado
persistente de fraqueza da Vontade. Quanto mais a Vontade está degradada,
tanto mais se despedaça em indivíduos isolados, tanto mais egoísta e
arbitrário é desenvolvido o indivíduo, tanto mais fraco é o organismo social
ao qual ele serve. Por isso, naqueles estados irrompe como que um impulso
sentimental da Vontade, um “suspirar da criatura” por algo que foi perdido
(ibid, pp. 12-13).
36
A alegria do reencontro: “em multidões sempre crescentes o evangelho da ‘harmonia dos
mundos’ dança em rodopios de lugar para lugar: cantando e dançando expressa-se o
homem como membro de uma comunidade ideal mais elevada: ele desaprendeu a andar e a
falar” (ibid, p. 9). O homem em êxtase dionisíaco se sente como um deus: “o que outrora
vivia somente em sua força imaginativa, agora ele sente em si mesmo” (ibid).
2. 2 – O viés ontológico do êxtase lírico para a modernidade
Diante do panorama histórico traçado no item 1 – panorama em que figuram os
nomes mais fundamentais da poesia moderna – e das idéias nietzscheanas – sabe-se,
seminais para a modernidade – acerca da potência dionisíaca e de seu caráter revelador
apresentadas no item 2. 1, talvez não estivéssemos nos excedendo caso quiséssemos não
somente vislumbrar possibilidades para a atualização do paradigma arcaico-platônico do
poeta éntheos, mas também confirmar a hipótese levantada por Michel Collot de que a
“regra” para a poesia moderna seria a saída do sujeito lírico das fronteiras de si – saída esta
que indicaria a encarnação da alteridade, posto que “estar fora de si é ter pedido o controle
de seus movimentos interiores e, a partir daí, ser projetado em direção ao exterior”
(COLLOT: op. cit., pp. 165-166). Com a elevação do referido fenômeno ao patamar de regra,
Collot não deseja “seguir apenas e simplesmente a modernidade” que consagra o sujeito
lírico “à errância e à desaparição” – sugerindo um viés ontológicolxii para o êxtase,
pergunta-se, antes, se “a própria verdade [do sujeito moderno] não reside precisamente em
uma tal saída, que pode ser tanto ek-stase quanto exílio” (id, p. 165):
talvez seja (…) precisamente ao se distinguir de um eu que sempre se quis
idêntico a si mesmo e senhor de si e do universo, que o sujeito lírico pode se
37
realizar: não é na pretensão de sua-majestade-o-Eu à autonomia que reside a
pior ilusão? A verdade do sujeito não se constitui em uma relação íntima
com a alteridade? Perdendo sua caução transcendente, o ek-stase lírico se
depara, em muitos pontos, com a redefinição do sujeito pelo pensamento
contemporâneo. Reinterpretado, o lirismo pode aparecer como um dos
modos de expressão possíveis e legítimos do sujeito moderno (ibid, p. 166).
De acordo com Collot, a emoção lírica seria constituída de dois sentidos que portam
“o sujeito ao encontro do que trasborda de si e para fora de si”: transporte (ou êxtase) e
deportação (ou exílio) (ibid). Ambos desencadeariam um desapossamento e, ao mesmo
tempo, uma possessão do eu empírico do poeta, processos os quais “são tradicionalmente
referidos a ação de um Outro, quer se trate, no lirismo místico ou erótico, de um deus ou do
ser amado, no lirismo elegíaco, à ação do Tempo, ou ao chamado do mundo que arrebata o
poeta cósmico” (ibid). Contudo, estes “outros” enumerados por Collot não se separam da
ação de um “outro” mais elementar dentro da experiência poética: o canto (ou a
linguagem), “que mais se apodera do poeta do que dele próprio emana” (ibid). “Longe de
ser o sujeito soberano da palavra” – lembremos do Autor sobre o qual fala Barthes –, o
sujeito lírico, complementa Collot, “se encontra sujeito a ela [à palavra] e a tudo o que o
inspira. Há uma passividade fundamental na posição lírica, que pode ser similar a uma
submissão” (ibid).
Graças à ausência de fundamentos transcendentes ou transcendentais, característica
da contemporaneidade, Collot chama esse “arrebatamento em direção ao outro” de
“alienação” (ibid). “Sem poder mais cantar Deus ou o Ser Ideal através das palavras e das
maravilhas tanto da criação quanto da criatura”, diz Collot, “o sujeito que se precipita para
fora de si se encontra lançado em um mundo e em uma linguagem desencantados”lxiii (ibid).
Se a tendência é vermos a transcendência como mera “máscara de uma contingência, de
uma ilusão lírica”, “ceder ao canto e ao êxtase” seria simplesmente “deixar se embalar pela
38
língua, entregar-se ao mundo e aos outros” (ibid). Parecem ecoar, mais uma vez, as
palavras de Barthes, que afirma ser o Autor uma simples “personagem moderna”
(BARTHES: op. cit., p. 66), pois para Collot não haveria, no processo de composição lírica,
“nada de tão brilhante assim”, nada de genial, não existindo por que reclamar para si um
sujeito que se abandona e se submete ao outro da linguagem (COLLOT: op.cit., p. 166). A
“alienação” de que fala o poeta e crítico não seria, em suma, uma idéia pejorativa: trata-se,
antes, da assunção do caráter sobretudo performativo da experiência lírica – o fim da tirania
do Autor, conforme nos diria Roland Barthes.
Como via para a reinterpretação do sujeito lírico, Michel Collot sugere a
fenomenologia, “que não considera mais o sujeito em termos de substância, de interioridade
e de identidade, mas em sua relação constitutiva com um fora que (…) o altera, colocando a
acentuação em sua ek-sistencelxiv, em seu ser no mundo e para o outro” (id, pp. 166-167). O
conceito de carne, cunhado por Merleau-Ponty, “permite pensar conjuntamente seus
pertencimentos [os pertencimentos do sujeito] ao mundo, ao outro, à linguagem, não sob o
modo de exterioridade, mas como uma relação de inclusão recíproca” (ibid, p. 167):
é pelo corpo que o sujeito se comunica com a carne do mundo, abraçando-a
e sendo por ela abraçado. Ele abre um horizonte que o engloba e o
ultrapassa. Ele é, simultaneamente, vidente e visível, sujeito de sua visão e
sujeito à visão do outro, corpo próprio e, entretanto, impróprio, participando
de uma complexa intercorporeidade que fundamenta a intersubjetividade que
se desdobra na palavra, que é, para Merleau-Ponty, ela mesma, um gesto do
corpo. O sujeito não pode se exprimir senão através dessa carne sutil que é a
linguagem, doadora do corpo a seu pensamento, mas que permanece um
corpo estrangeiro (ibid).
Collot conclui que, participando da intercorporeidade, da intersubjetividade e da linguagem
– pertencendo, pois, triplamente a uma carne que não o pertence de fato –, “o sujeito
encarnado não saberá se pertencer completamente”, estando impedido de “acessar uma
39
plena e inteira consciência de si mesmo”, e “sua abertura ao mundo e ao outro o torna um
estranho” (ibid). Com isso, o sujeito não pode
reaver sua verdade mais íntima pelas vias da reflexão e da introspecção. É
fora de si que ele a pode encontrar. Talvez, a e-moção lírica apenas
prolongue ou reapresente esse movimento que constantemente porta e
deporta o sujeito em direção a seu fora, através do qual ele pode ek-sistir e se
exprimir. É apenas saindo de si que ele coincide consigo mesmo, não como
identidade, mas como uma ipseidade que, ao invés de excluir, inclui a
alteridade, (…) não para se contemplar em um narcisismo do eu, mas para
realizar-se como um outro (ibid).
Relacionando a noção do sujeito encarnado com o conceito de matéria-emoção de
René Charlxv, no qual “o poema lírico será esse objeto verbal graças ao qual o sujeito chega
a dar consistência à sua emoção”, Collot destaca que “o sujeito lírico virá a ser ‘si mesmo’
apenas através ‘da forma realizada do poema’, que encarna sua emoção em uma matéria
que é ao mesmo tempo do mundo e de palavras” (ibid). Assim sendo, seriam abolidas as
dicotomias entre fora e dentro, matéria e idéia, emoção e conhecimento, objeto e sujeito,
corpo e espírito, letra e significação (ibid, p. 168), estabelecendo-se um “lirismo de pura
imanência”, um “lirismo materialista” (GLEIZE apud COLLOT: op. cit., p. 168). É o que
poderia ser encontrado nas poéticas de Arthur Rimbaud e de Francis Ponge, poetas que:
partilham entre si uma recusa violenta do lirismo entendido como expressão
de um eu, da subjetividade pessoal, e a tentativa de promover uma “poesia
objetiva” que valorize a materialidade das palavras e das coisas. Para eles,
esse privilégio concedido ao objeto da sensação e da linguagem não implica
a pura e simples desaparição do sujeito em benefício de uma improvável
objetividade, mas, antes, sua transformação (COLLOT: op. cit., p. 168).
Com base na já referida idéia rimbaudiana de que através do “desregramento de todos os
sentidos” se “chega ao desconhecido”, Collot afirma que é perdendo o “controle da língua e
seu corpo” que o sujeito se encontra – é “objetivando-se nas palavras e nas ‘coisas inauditas
40
e inomináveis’” que “ele se inventa sujeito” – é “projetando-se sobre a cena lírica através
das palavras e imagens do poema” que “ele chega a aprender do fora seu pensamento mais
íntimo, inacessível à introspecção” (id, p. 169). Para dar voz a esse “outro em si”, é
necessário que o poeta recarregue a linguagem de sensorialidade, “mobilizando toda uma
física da palavra” que dê corpo ao pensamento (ibid).
Da poética de Francis Ponge, Collot retoma as reflexões empreendidas a partir
daquilo que o poeta chamou de “‘drama da expressão’: a impossibilidade de expressar seus
sentimentos mais íntimos na linguagem de todo mundo ou nas convenções do lirismo
tradicional” (ibid, pp. 170-171). Se “os sentimentos ‘experimentados atualmente pelos
homens mais sensíveis’ se reduzem a um ‘pequeno catálogo’ limitado pela pobreza do
léxico à sua disposição”, continua Collot citando Ponge, é “saindo de si” que o poeta
“espera escapar do ‘adestramento’ (manège) no qual o pensamento, reificado por um
discurso social estereotipado, se transforma” (ibid, p. 171). O êxtase ganha contornos de
uma “espécie de revolução copernicana”: através dele, “o sujeito, ao invés de impor ao
mundo seus valores e significados preestabelecidos, aceita ‘transferir-se às coisas’ para
descobrir nelas ‘um milhão de qualidades inéditas’, das quais ele poderá se apropriar se
chegar a formulá-las” (ibid). Em outras palavras, resta aos sujeitos
“conhecer milhões de sentimentos” diferentes, o que não poderão fazer a
partir do contato com seus semelhantes, prisioneiros das mesmas expressões
e representações estanques, mas a partir do contato com as coisas, cuja
infinidade nunca foi verdadeiramente levada em conta pela linguagem. Pois
os homens não fazem senão projetar nelas seus miseráveis estados de alma
(ibid).
O sujeito lírico da poesia de Ponge – sujeito cuja afetividade é “inseparável dos objetos que
afetam seu corpo” (ibid, p. 173) –, “coloca-se em jogo” exatamente “apagando-se atrás da
41
descrição das coisas” (ibid, p. 172). Assim como para fenomenologia de Merleau-Ponty,
para Ponge a subjetividade humana não se restringe à interioridade: ela é “mais ligada ao
mundo” (PONGE apud COLLOT: op. cit., p. 173) – “ela é simultaneamente, material e
relacional: o sub-jetivo é ‘isso que me empurra do fundo, do debaixo de mim: do meu
corpo’, para me projetar para fora” (COLLOT: op. cit., p. 173). “O corpo é o suporte dessa
intencionalidade que constitui o sujeito em relação necessária ao objeto” (id). “De cada
objeto nós possuímos toda ‘uma idéia profunda’ formada pela ‘sedimentação incessante’ de
‘impressões’ que ‘recebemos’ ‘desde a infância’”; a poesia seria a extração dessa “idéia
profunda”, a expressão simultânea da coisa e do que se encontra implicado, do sujeito, nela
(ibid). Trata-se, enfim, de um “lirismo transpessoal”, que, de acordo com Collot, não
estabeleceria uma exceção dentro do universo da poesia, mas a própria regra: antilírico
seria, ao contrário, o “lirismo pessoal”, aquele que, no fim da Idade Média, emergiu com
uma poesia autobiográfica “ao preço da perda do canto que acompanhava a lírica anterior,
transpessoal” (ibid, p. 175).
3 – Leonardo Fróes, poeta em êxtase
Um exemplo da hipótese levantada por Michel Collot de que todo lirismo é
transpessoal poderia ser encontrado na poesia de Leonardo Fróes. Outro poeta crítico,
Alberto Pucheu, resenhando a antologia poética Vertigens, já havia assinalado que, dentre
“as questões fundamentais da poesia de Fróes”, se destaca “a do poeta que, lançado em
busca de si mesmo, encontra somente a perdição e o constante devir” (PUCHEU: 1999):
De mim não contenho o cerco
42
e, justo quando me ultrapasso,
meu corpo é saudade, e o perco (FRÓES: 1998, p. 50).
ninguém é jamais um próprio:
nós todos um só se chamam (id, p. 51).
Perdendo-se em caminhos vertiginosos – “eu vinha perguntando por mim há várias
quadras” (ibid, p. 222) – e se negando a procurar seu eu apenas dentro dos limites do corpo,
o sujeito lírico froesiano, afirma Pucheu, impossibilita “a dicotomia entre mundo exterior e
mundo interior” e, com isso, acaba dissolvendo “a subjetividade no comunitário ou, mais
freqüentemente, na natureza”, o que oferece ao leitor uma oportunidade para se aventurar
“em uma ambiência de ‘desrespeito aos limites’” – em devires de uma experiência de
“despersonalização extática”, na qual se fundiriam os reinos animal, vegetal, mineral e até
das máquinas (PUCHEU: 1999). Nas palavras de Fróes, o êxtase é o “susto de poder se
anular” (FRÓES: 1998, p. 71), o “movimento espontâneo” que “já carregou a minha
segurança de gente” (id, p. 187); experimentando-o, “estou agindo porque obedeço sem
mim” (ibid, p. 167) – e “mim no máximo serão lembranças vazias tiques articulações
maneiras ansiedades” (ibid, p. 220):
na hora sem mim deságuam bocas
quebram-se as barreiras de eu ter
pensado, prensado, prendido o corpo, premeditado
o que naturalmente fracassa (ibid, p. 221).
O sujeito lírico que participa da “exalação de coisas que se aceitam na inconsciência
do êxtase” (ibid, p. 232) e não se reconhece em sua individuação corpórea chega a travar
consigo mesmo “relações de estranhamento” (ibid, p. 83):
43
os espelhos
(…) de repente derramam nossos olhos
pela face barbeada de um estranho (ibid)
Movido pelo “desejo de conquistar um lado meu que jamais se revela” (ibid, p. 67), num
“encontro tonto sem dentro nem fora” (id, p. 118), o poeta é aquele que, “tentando existir,
faz um esforço e se anula” (ibid, p. 54):
eu não existo
nem sou nem tenho tempo nem espero escrever
as brancas confissões de ninguém na cela em branco (ibid, p. 200).
Ser poeta, com isso, é “não estar convencido da realidade dos corpos” (ibid., pp. 158-159),
nem “da realidade dos meus conteúdos mentais” (ibid., p. 160); assim se pronuncia, quanto
a isso, Leonardo Fróes em sua entrevista à revista Azougue:
por muito tempo eu não soube o que é experiência poética. Hoje tem sido
para mim uma via de conhecimento, como qualquer outra. Não é pelo valor
do objeto que ela te comunica, mas por aquela espécie de transe que você
passa, quando está com a atenção muito concentrada e vai recebendo uma
série de informações, que vem de lá de não sei onde, que mostram o
seguinte, que sua personalidade, o que você acha que é, é na realidade sua
arma de defesa. (…) E se descobre que, na melhor das hipóteses, o que
chamamos de personalidade não passa de um lapso de memória (FRÓES:
2003, p. 11).
Trata-se, em suma, do caráter revelador da manía extática, que despedaça o “espelho
transfigurador” das aparências (NIETZSCHE: 2001, p. 37), tão ávido pelo “velamento da
verdade” (NIETZSCHE: 2005, p. 22):
Desmanchar-me pouco a pouco,
pedra a pedra, palmo a palmo,
44
para ser sincero e louco
Desnudar-me peça a peça,
gesto a gesto, corpo a corpo,
para ir ao que interessa (FRÓES: 1998, p. 45; grifos nossos).
As “imersões de ausência” (FRÓES: 1998, p. 161) possibilitariam ao homem
relembrar de suas verdadeiras dimensões – e para se alcançar essa memória transpessoal,
participar do “esquecimento mineral de tudo” (id, p. 197), faz-se necessário abdicar da
memória pessoal. Como em estado poético não conto com “as representações transitórias
que por simples conveniência mental você nomeia de parede ou de pele” (ibid, p. 131),
movo-me apenas pela
aceitação das aparências que estão
na tela da situação presente sem
as egocêntricas interjeições da memória
que significam, nos encontros, um freio (ibid, p. 138).
A memória pessoal é perdida quando participo do “planeta sem fios”, que me permite
“dançar – descer – deitar no Outro calmamente sem o despojar e humilhar”, livre dos “fios
da cabeça que enrolam com freqüência meus gestos, ligando-os a um passado atrapalhado
cheio e inexistente que me faz colocar o pé atrás” (ibid, p. 149). Reencontro-me em um
estado no qual não há “lâminas de recordações deslizando para embutir-se entre o que eram
costelas” (ibid, p. 131): sem os cortes efetuados pela memória, tenho inaugurada em meu
corpo uma nova realidade, que “não é a realidade nostálgica como a de ficar à janela
mastigando lembranças: é a realidade do prazer, que devora todo mundo e não pertence a
ninguém” (ibid., p. 130). Nela, é “possível agir sem premeditar”, entregar-se ao acaso (ibid,
45
p. 148) e aos seus “temperos caóticos” (ibid, p. 157) – gozar do simples “urro da aceitação
animal” (ibid, p. 74).
Para Fróes, portanto, vivenciar a poesia, o “baque que derruba a gente no
estranhamento” (ibid, p. 162), requer constatar que eu não pertenço “nem a mim, nem à
ordem das coisas ou à classificação dos inícios, fins e fases intermediárias” (ibid, p. 216):
ser um poeta estar detectando as quebradas as pequenas frações fraturas
teimosias imensas de emoções aberrantes abertas despetaladas na vitrine do
ego onde eu encontro um manequim um fantoche que tem de executar essa
dança e sair ileso sem culpa
sem nada propriamente de si (ibid., p. 178)
A experiência do lirismo extático desencadeia um “momento sem posse em que nós nos
entregamos ao mundo” (ibid, p. 230): “escrevo obedecendo a um registro. A fala que me
conscientiza já é estranha totalmente à idéia habitual de quem sou” (ibid, p. 134). Como um
momento erótico em que “você no máximo percebe que está entrando, gozando em outros
organismos, desaparecendo, sumindo dessa idéia diária de existir um você” (ibid, p. 130), a
escrita poética é “pulo sobre o ego” (ibid, p. 28) que revela o caráter ilusório da suposta
fronteira existente entre mim e o outro: “sou cada vez mais eu sendo vosso e ainda vário”
(ibid, p. 20) – “o que é mim é nosso” (ibid, p. 51):
ninguém parece mim e no entanto
saímos juntos, batalhamos juntos na mesma
idiotice cotidiana do trabalho (ibid, p. 137).
E todos em si nos somos
qual forma que se reparte
e é uma: a laranja e os gomos (ibid, p. 52).
Com a “anexação de tudo” (ibid, p. 211), é possível aproximar poesia e alquimialxvi:
46
aquele impulso, puro assombro
ou lúcida ilusão de eliminar-se
na esdrúxula alquimia de outro ombro (ibid, p. 27).
Na transubstanciação alquímico-poética, opera-se não apenas a equalização entre o sujeito e
o outro, mas também a reintegração do que ordinariamente parece me pertencer de maneira
exclusiva – daquilo que de fato nos pertence: sou “solidário” (ibid, p. 18). “Nasço de vós,
convosco vou” (ibid, p. 21), “vou convosco nas veias, vou convosco na carne” (ibid, p. 22),
“vos pertenço” (ibid, p. 21), “nada tenho de meu” (ibid), “vosso sangue é o mesmo que
jorra dos meus brados” (ibid), “vosso sangue sou eu, e eu sou dos vossos, nada em nós é
distinto” (ibid), “vosso é o meu desvario, somos unos” (ibid, p. 22): o poema que escrevo
tem ritmo “arbitrário” (ibid, p. 19) e deixa de me pertencer quando faz com que eu saia de
mim – “me suplanto, me extasio, me dissolvo libertário” (ibid, p. 20). “O poema, sendo
vário, é sempre uma coisa minha de fundo comunitário” (ibid, p. 18); não passo de um “fiel
escriturário” do “mundo imaginário” (ibid, p. 20), de um “modesto operário”, que assume
nunca ter sido “feliz proprietário” de um “talento” (ibid). Minha satisfação é contemplar o
poema, nosso, entranhado na totalidade dos “meandros planetários” (ibid, p. 19) e, ao
mesmo tempo, pungindo “dentro do peito de onde é originário” (ibid) – o peito de “nósmim” (ibid, p. 153).
Minha dissolução no outro, minha potência comunitária pode encontrar um
obstáculo quando se instala, entre nós, uma indisposição. É o que se vê, p. e., no poema
“Compromisso” (ibid, pp. 21-22): “vossos ídolos mortos me repugnam”, “vosso luto me
enoja” (ibid, p. 21), “vossas tropas me caçam” (ibid, p. 22); vós possuís “lucros e perdas”,
“ânsia”, “grades de ferro”, “ouro” que me “tenta mas não cedo”; quanto a mim, “caminho
47
por esse labirinto de argamassa, tédio, tijolo e fezes”, “e nem sei como ando, antes me
empurro, vou por força do hábito”, “apenas fujo, chego à beira do abismo”, “vou sem rumo
direto, vou sem armas, vou apenas por ir” (ibid, p. 21), “de albergue em albergue, sem
destino”, e “em cada canto de mim vosso retrato clama por mais afeto, exige amor” (ibid, p.
22). A propósito, já que o próprio Leonardo Fróes admite, em sua entrevista à revista
Azougue, que, “na verdade, a vivência é muito importante pra mim” (FRÓES: 2003, p. 8),
deixando claro que, em sua poesia, tudo surge a partir do biográfico, poderíamos identificar
o outro que se indispõe à dissolução extática em “Compromisso”: poema publicado em
1968, quando, situa Fróes, “estávamos no pior período da ditadura militar, você andava de
carro e as ruas estavam cheias de batidas policiais” (id., p. 10), nele parece figurar, como
uma espécie de antípoda para o sujeito fora de si, a realidade de um país ditatorial.
Desse modo, cabe destacar que, embora tenhamos visto que falar de um sujeito
lírico “despersonalizado” tradicionalmente requer demonstrar como se opera uma quebra
com a poesia baseada no relato empírico da vida do poeta, a importância do dado biográfico
e cotidiano na poesia de Fróes não invalidaria a terminologia cunhada por Pucheu,
“despersonalização extática”: o adjetivo, aqui, sugere que o rompimento das barreiras
individuais se revela no ingresso numa “zona de vizinhança” (DELEUZE: 1997, p. 11) que
não apenas excede ao eu, mas o atravessa. “Na hora do milagre existo e não existo com
uma segurança total” (Fróes: 1998, p. 149):
o corpo é se desfazendo
– virtudes, paixão, olvido –
que vai se tornando e se tendo (id, p. 44).
seja sempre você me diz o mim
pois é assim que você chega a não-ser
nem mais nem menos do que a liberdade idiota
de participar serenamente do ar (ibid, p. 220).
48
De um ao outro transferir-se
para, enquanto completando-se,
poder se dar e pedir-se (ibid, p. 44).
Não é preciso dizer, com isso, que o modo como Leonardo Fróes dimensiona o aspecto
empírico em sua poesia implica numa poetização do cotidiano e numa cotidianização da
poesia; o biografismo extático daí resultante não poderia prescindir, portanto, da
imprevisibilidade de conteúdos característica da poesia moderna (FRIEDRICH: 1978, p. 6),
tampouco estabelecer-se-ia na figura onipresente e onipotente de um Autor que viesse a
prejudicar ou diminuir a participação do leitor na construção do texto (BARTHES: 1988, p.
66). O êxtase supõe uma “passividade fundamental na posição lírica”, uma “submissão” de
seu sujeito (COLLOT: 2004: p. 166), seguida de sua “transformação”, não de seu mero
apagamento (id, p. 168); afirma Fróes em sua já mencionada entrevista à Azougue: “não
sou capaz de dizer tudo sobre a minha obra. O leitor vai observar coisas que me escapam.
Esse é o momento em que a literatura passa a existir, quando ela significa alguma coisa
para alguém de fora que não o autor” (FRÓES: 2003, p. 8). Assim, na “dissolução inevitável
e doce”, (FRÓES: 1998, p. 124), “os dias me vão vivendo” (id, p. 44), já que “de mim não
controlo o jogo” (ibid, p. 50): como num “Feitiço Fantoche”,
não ajo, sou agido,
sigo as molas do corpo e a noite rola
por cima da ilusão do que penso
puxando para onde bem quer os meus cordões de fantoche (ibid, p. 200).
Se o êxtase não passa de um “coice da aceitação calada e dissipadora que nos reúne
a outro nível, o de todas as caras, nuvens” (ibid, p. 172), o poeta fora de si – dotado, como o
sujeito lírico encontrado na obra de Edgar Allan Poe, daquela “excitação entusiástica” apta
49
para uma “disposição ampla” (FRIEDRICH: 1978, p. 37) – pode ingressar nas “aberturas tão
enormes que me fazem o outro” (ibid, p. 170), participando da “dissolução dos vínculos
pessoais no sono cósmico” (ibid, p. 127):
minha cabeça antes de tudo não é cabeça nem minha
ela não passa de uma jarra vazia e eu que a carrego sou tudo
sou muito mais e muito menos porque a loucura do corpo
tanto se trai comedida como se expande indefinidamente (ibid, p. 183).
“Cada passo meu é como um rastro de todos” (ibid, p. 93): da mesma maneira que o eulírico presente na poética de Rimbaud (FRIEDRICH: 1978, p. 69), o sujeito extático froesiano
é um eu-planetário, total, “capaz de liquefazer o mundo inteiro na sua respiração generosa”
e o colocar “dentro de si mesmo como um passarinho sem asas” (FRÓES: 1998, p. 118);
trata-se, pois, de eu movido pela
certeza
de ser todo mundo
sem comparação de estreiteza (id, p. 170).
Haveria, dessa maneira, um
perfil
cósmico de certos momentos
preguiçosamente gastos
num abandono ao prazer (ibid, p. 63).
E, se o desvio gramatical presente na famosa definição rimbaudiana Je est un autre desloca
a idéia de sujeito da primeira para a terceira pessoa do singular, num dos poemas de Fróes
encontramos desvios mais eloqüentes quanto ao caráter plural do eu extático:
50
Sinto que eu somos uma espécie de choque.
Que eu somos uma espécie de fratura batida
e que eu podemos tirar os personagens do bolso,
(…) e eu nem sempre sabemos como articular a garganta
(…).
Do alto da montanha onde eu viramos alguém
como um vulcão de fantasias
(…).
Eu conseguimos um pouquinho de areia,
meia dúzia de rostos para aparecer e sumir (…)
com isso eu colocamos no ar uma pessoa infreqüente
(…).
Eu como sempre estamos sempre perdidos
porque não há o que encontrar realmente
entre os pensamentos e a porta
que corta a nossa imagem mordida em fatias urradas
ou, se você preferir, em personagens.
(…) eu temos a unidade por alvo
(…).
Sinto que eu somos uma espécie
de fagulha enlatada
ou que eu somos ainda um grande cisco
que caiu no seu olho. (…)
Porque sou eu que tínhamos alguma coisa a dizer,
mas mudei de idéia.
Eu mudamos de repente (…).
Eu somos uma gramática lisa e epidérmica
que finge dramaticamente pessoas,
(…).
Eu mudamos de repente como um grande manequim de brinquedo
cujas articulações ignoro.
Eu somos uma espécie ofegante de tartaruga hipodérmica que há
muitos séculos caminha com essa humanidade nas costas e não sabe se
mergulha ou se foge à beira do rio (ibid, pp. 153-155; grifos nossos).
Explodindo as fronteiras da realidade individualizada, a poética de Leonardo Fróes
se deixa atravessar pelo continuum que é a própria vida, propondo que o homem
se oriente
para ouvir a canção (…)
além de sua própria pessoa (FRÓES: 2005, p. 51).
51
Se não estamos seguros numa forma fisionômica exclusiva, tampouco numa personalidade
delimitadora, resta a evidência da completa insignificância do ser humano enquanto
indivíduo. Entretanto, insignificância, aqui, é sinônimo de liberdade – trata-se de uma
“insignificância perfeita” (FRÓES: 1998, p. 120). O poema “Despovoação da pessoa” é
explícito quanto a isso:
Tudo o que havia contribuído
para forjar, no tempo, uma pessoa,
tentando dar coerência
à sua instabilidade crônica,
tudo que, medido e marcado,
era um acréscimo de regulação
para o funcionamento ordinário
– nome, renome, cadastro etc. –
foi de repente estilhaçado
e, como cacos de vento
no caminho incerto e novo,
nada do que fazia persiste
na sensação de liberdade
que esta pessoa de perfil nulo conquista,
ou melhor, conhece, atravessada
por lufadas de pó (FRÓES: 2005, p. 33).
O êxtase possibilita, em suma, “uma ausência feliz atomizada” (FRÓES: 1998, p.
308): “só depois de viajar e sofrer, depois também de me alegrar, entrar e passear nas
pessoas, foi que eu pude afinal ficar isento de mim. Aí então (…) eu percebo que a própria
solidez do meu corpo é uma convenção como as outraslxvii” (id, p. 167). Como a noção de
subjetividade encarcerada num corpo e numa personalidade individuais é posta em xeque,
instala-se o risco dionisíaco da morte, da entrega enfurecida e derradeira ao mundo situado
52
além das individuações aparentes. Desse modo, encontrar-se em estado poético pode ser o
mesmo que
ir se dando em despedida
como se a qualquer momento
fosse dar fim à vida (FRÓES: 1998, p. 42).
Como a vida, a poesia é uma aventura imprevisível – e não parece ser à-toa que o último
livro de Leonardo Fróes, Chinês com sono, tenha início com uma espécie de advertência
quanto ao perigo da aniquilação total. Tendo sido atraído por uma “forte energia” até uma
“trilha em terra estranha”, cercando-se de “carcaças de boi” em que “trepadeiras silvestres
se entrelaçam”, num “nicho entre florido e macabro” (FRÓES: 2005, p. 13) – vida e morte
abraçadas –, o poeta ouve uma voz:
Voz de boi morto, com certeza,
e que na mesma língua breve adverte
que, se eu for em frente,
não terei retorno (id).
Tal idéia de morte, porém, só é relevante caso a vida seja considerada em sua porção
individualizada; caso contrário, considerando-se a vida como algo que perpassa todos os
seres e fenômenos, sair de si pode significar nascer, criar:
Ir, envolto, se expelindo
como se um útero (o mundo)
fosse à força se abrindo (FRÓES: 1998, p. 43).
Saí-me, não sei por quê,
e, só mas liberto em mim,
dou vida ao que não se vê:
53
um eu de secreta saga
que já vai além do tempo (id, p. 46).
Sair-me custou um pouco
mas agora, que estou fora
de mim, extraído e louco,
morrer é criar o mundo,
percorrê-lo e revirá-lo,
ir ao azul profundo
em permanente quermesse.
Morrer é criar o mundo
que, por acaso, acontece (ibid).
Fora de si e promovido simultaneamente a artista e a obra de arte, o homem se encontra
fora das dimensões temporais ordinárias – está “além do tempo”, in illo tempore:
Despojar-me dentro e fora,
caso a caso, coisa a coisa,
para estar depois e agora (ibid; grifos nossos).
É quando o êxtase se revela como uma “dissolução da hora presente sem finalidade” (ibid,
p. 120), como uma participação dos “círculos da vida que a modelam mutante e tudo o que
acontece é uma hora só para ela” (ibid, p. 173). Na próxima seção, trataremos mais
especificamente sobre tal concepção de vida “mutante”, conseqüência da visão de mundo
extática.
54
II – A CONFUSA HIBRIDAÇÃOlxviii
55
1
–
IMANÊNCIA,
DEVIR,
METAMORFOSE
E
A
ILUSÃO
ANTROPOCÊNTRICO-
ANTROPOMÓRFICA
1. 1 – Literatura e Vida como casos de devir
Assim Gilles Deleuze, procurando demonstrar o divórcio entre literatura e expressão
subjetiva, dá início ao ensaio “A literatura e a vida”: “escrever não é certamente impor uma
forma (de expressão) a uma matéria vivida” (DELEUZE: 1997, p. 11). Entretanto, de acordo
com o pensador, isto não implicaria num afastamento entre os conceitos postos em par no
título do referido texto: “literatura” e “vida” seriam incompatíveis não consigo mesmas,
mas com a forma, com o acabamento da expressão:
a literatura está antes do lado do informe, ou do inacabamento (…). Escrever
é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que
extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma
passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido (id).
Expressar-se seria se estabelecer numa forma, sinônimo de imposição e de dominação – e a
literatura não se reduziria à forma, tampouco “Vida” se confundiria com o vivível ou com o
vivido: esta se trata de “imanência absoluta”, não estando em coisa alguma, tampouco
pertencendo a um sujeito (DELEUZE: 2004, p. 161). “A pura imanência é UMA VIDA, nada
mais. Ela não é imanência à vida, mas o imanente que não é imanente a nada específico
(…). Uma vida é a imanência da imanência”, uma “consciência imediata absoluta, cuja
própria atividade não se remete a um ser, mas não cessa de se colocar numa vida” (id). O
artigo indefinido que ocorre no sintagma “uma vida”, de acordo com Deleuze, não traria
para o substantivo “a indeterminação da pessoa sem antes ser a determinação do singular”
56
(ibid, p. 162) e “índice de uma multiplicidade” (ibid, p. 163). “Uma vida”, “neutra, para
além do bem e do mal”, portanto, é apagamento da individualidade “em prol da vida
singular imanente”, quando a vida empírica do indivíduo dá lugar “a uma vida impessoal,
contudo singular, que libera um puro acontecimento sem acidentes da vida interior e
exterior, isto é, da subjetividade e da objetividade”, e que “está por todos os lugares, por
todos os momentos que atravessam este ou aquele sujeito vivo e que medem tais objetos
vividos” (ibid, p. 162). Em suma, uma vida “não sobrevém nem sucede, mas apresenta a
imensidão do tempo vazio em que se vê o acontecimento ainda por vir e já transcorrido, no
absoluto de uma consciência imediata” (ibid).
Como devir “não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimese), mas
encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação”, seu locus é
“sempre ‘entre’ ou ‘no meio’” (DELEUZE: 1997, p. 11) – daí Deleuze afirmar que o
“atletismo” que toda literatura comportaria “se exerce na fuga e na defecção orgânicas”,
isto é, naquilo que não identifica o atleta como atleta, naquilo que o faz morrer, naquilo que
não o formaliza de maneira opressora (id, p. 12):
escrever não é contar as próprias lembranças, suas viagens, seus amores e
lutos, sonhos e fantasmas. (…) a literatura segue a via inversa, e só se instala
descobrindo sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal, que de
modo algum é uma generalidade, mas uma singularidade no mais alto grau
(…). As duas primeiras pessoas do singular não servem de condição à
enunciação literária; a literatura só começa quando nasce em nós uma
terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu (ibid, pp. 12-13).
A potência de saúde apresentada, segundo Gilles Deleuze, pelo devir e, por conseguinte,
pela literatura reside exatamente na possibilidade que ambos ofereceriam de desobstruir o
processo de atravessamento da vida, demonstrando a precariedade da forma:
57
não se escreve com as próprias neuroses. A neurose, a psicose não são
passagens de vida, mas estados em que se cai quando o processo é
interrompido, impedido, colmatado. A doença não é processo, mas a parada
do processo (…). Por isso, o escritor, enquanto tal, não é doente, mas antes
médico, médico de si próprio e do mundo. (…) A literatura aparece, então,
como um empreendimento de saúde: não que o escritor tenha forçosamente
uma saúde de ferro (haveria aqui a mesma ambigüidade que no atletismo),
mas ele goza de uma frágil saúde irresistível, que provém do fato de ter visto
e ouvido coisas demasiado grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis, cuja
passagem o esgota, dando-lhe contudo devires que uma gorda saúde
dominante tornaria impossíveis. (…) Qual saúde bastaria para libertar a vida
em toda parte onde esteja aprisionada pelo homem e no homem, pelos
organismos e gêneros e no interior deles? (ibid, pp. 13-14).
As dimensões dessa potência de saúde atingiriam proporções coletivas, demográficas: “a
saúde como literatura, como escrita, consiste em inventar um povo que falta. (…) Não se
escreve com as próprias lembranças, a menos que delas se faça a origem ou a destinação
coletivas de um povo por vir ainda enterrado em suas traições e renegações” (ibid, p. 14).
Tal povo, inventado e sem identidade,
não é um povo chamado a dominar o mundo. É um povo menor, eternamente
menor, tomado num devir-revolucionário. Talvez ele só exista nos átomos
do escritor, povo bastardo, inferior, dominado, sempre em devir, sempre
inacabado (ibid).
Definindo a literatura platonicamente como “delírio” (ibid, p. 15), Deleuze destaca
que “todo delírio é histórico-mundial” (ibid) e, graças a tal abrangência, o “destino” da
literatura “se decide entre dois pólos do delírio”:
o delírio é uma doença, a doença por excelência a cada vez que erige uma
raça pretensamente pura e dominante. Mas ele é a medida de saúde quando
invoca essa raça bastarda oprimida que não pára de agitar-se sob as
dominações, de resistir a tudo o que esmaga e aprisiona e de, como processo,
58
abrir um sulco para si na literatura. Também aí um estado doentio ameaça
sempre interromper o processo ou o devir; e se reencontra a mesma
ambigüidade que se nota no caso da saúde e do atletismo, o risco constante
de que um delírio de dominação se misture ao delírio bastardo e arraste a
literatura em direção a um fascismo larvado, a uma doença contra a qual se
luta, pronta para diagnosticá-la em si mesma e para lutar contra si mesma
(ibid).
Com isso, o “fim último da literatura”, segundo Deleuze, seria “pôr em evidência no
delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, isto é, uma
possibilidade de vidalxix” (ibid).
1. 2 – Natureza, experiência e Metamorphose
Também Johann Wolfgang von Goethe vislumbrará a literatura como uma
possibilidade de vida – mas antes de traçarmos tal ponto de contato entre as idéias
deleuzeanas demonstradas supra e o pensamento goetheano, faz-se necessário apresentar
certos aspectos mais elementares deste último, mais especificamente aqueles relacionados à
chamada Naturwissenschaft, “ciência ou filosofia da natureza”. Desde já, fique claro que,
graças ao fato de que esta resulta de uma abrangente atividade intelectual que Goethe
cultivou ao longo de toda a sua vida, paralelamente à produção literárialxx (GONÇALVES in
GOETHE: 2003, p. VIII), o presente trabalho, tendo de abdicar da missão de se deter em
todos os escritos do poeta de Frankfurt que seriam, aqui, relevantes, pretende buscar a idéia
de natureza que se encontraria subjacente em sua obra in totum a partir, sobretudo, da
leitura dos aforismos reunidos sob o título de Maximen und Reflexionenlxxi dedicados direta
ou indiretamente ao tema.
59
Note-se que, embora resultem de meditações empreendidas por Goethe em seus
últimos trinta anos de vida, muitos destes aforismos parecem se estabelecer como
desdobramentos daquela que seria a mais fundamental das idéias defendidas pelo Sturm
und Drang, movimento capitaneado pelo poeta em sua juventude, em parceria com o
filósofo Johann Gottfried Herder: a integridade entre espírito e natureza (id, pp. VII-VIII).
Herder destacou que o conhecimento humano não se circunscreveria à atuação de uma alma
apartada do mundo sensível, sendo, na verdade, um nítido “resultado” dos “estados de
sensibilidade” (Empfindung) experimentados na esfera corpórealxxii (HERDER apud
GONÇALVES in GOETHE: 2003, pp. VII-VIII) – isso porque, para o pensador, a razão seria
um produto da linguagem, e não o contrário, e esta teria uma origem fisiológica e natural
(GONÇALVES in GOETHE: 2003, pp. VII-VIII). De maneira bastante similar, Goethe afirma,
no aforismo 1.021 das Maximen und Reflexionen, que
não é a linguagem em si e por si que é correta, efetiva e graciosa, mas sim o
espírito que se corporifica nela. Assim, não depende de cada um se ele quer
ou não emprestar aos seus cálculos, discursos ou poemas as propriedades
desejáveis: a questão é muito mais se a natureza lhe emprestou as
propriedades espirituais e éticas para tanto (GOETHE: 2003, p. 157).
No aforismo 1.345, Goethe resume tal visão: “comunicar-se é natureza” (id, p. 194). Os
atributos tradicionalmente categorizados e atribuídos uns ao espírito humano e outros ao
universo natural – incluído neste, o corpo sensível – trabalhariam numa “unidade sintética,
simbiótica e circular” (GONÇALVES in GOETHE: 2003, p. VII), o que desencadearia uma
necessidade de se repensar os limites entre natureza e cultura. Não seria gratuita, portanto, a
comparação estabelecida pelo jovem Goethe, já em 1773, entre a obra de Erwin von
Steinbach, um dois arquitetos da catedral de Strasburgo, e as “árvores do Senhor”, “obras
60
da eterna Natureza” (GOETHE in LOBO: 1987, pp. 21 e 23) – tampouco a aproximação entre
sua poesia e um fruto, nos seguintes versos:
A casca rebenta, e cai
Alegre pra o chão o fruto;
Tais minhas canções aos montes
Te vão cair no regaço (GOETHE: 1958, p. 181).
Saber e sabor parecem resgatar seu parentesco etimológico – no aforismo 295,
Goethe denuncia: “os sentidos não enganam: o juízo engana” (GOETHE: 2003, p. 47). O
privilégio dado por Goethe à empiria, com base nos sentidos e na ação – esta enquanto
antípoda da pura teoria –, é outra conseqüência da unidade espírito-corpolxxiii. O poeta
chega a definir a Naturwissenschaft, no aforismo 565, como
elevado
O empirismo
até a incondicionalidade (id, p. 86).
ampliado
No aforismo 235, o poeta é categórico: “não é suficiente saber, é preciso aplicar; não é
suficiente querer, é preciso também fazer” (id, p. 38; cf. também os aforismos 304, p. 48;
408, p. 63; 565, p. 86); “quem se satisfaz”, diz Goethe no aforismo 296, “com a pura
experiência e age de acordo com ela tem suficientemente o verdadeiro” (ibid, p. 47). O tom
pessoal do aforismo 278 imprime maior agudez à questão: “meus estudos da natureza
repousam todos sobre a pura base da experiência viva” (id, p. 44). No aforismo 497, Goethe
declara que, estando a teoria, a experiência (Versuch) e o fenômeno “um em frente do outro
em constante conflito”, “toda unificação na reflexão é uma ilusão; eles só podem ser
unificados pela ação” (ibid, p. 76). A utilidade da reflexão teórica é demarcada no aforismo
563:
61
A experiência pode ser ampliada até o infinito, a teoria não pode se purificar
no mesmo sentido e se tornar cada vez mais perfeita. Para a experiência, o
Universo se encontra aberto em todas as direções; a teoria permanece
encerrada no interior dos limites das aptidões humanas (ibid, p. 85).
Mereceria destaque, ainda, a definição de saber encontrada no aforismo 306: “o que
é significante na experiência e o que sempre aponta para o universal” (ibid, p. 48). De fato,
no conceito de Versuch, “experiência”, se encontra não apenas a base metodológica da
Naturwissenschaft goetheana, mas também, de acordo com as formulações estéticofilosóficas do poeta, a “verdadeira essência da criação artística e poética ou poiética,
enquanto eterno ato de criação” (GONÇALVES in GOETHE: 2003, p. XI). Comum à ciência, à
arte e à própria vida, seja esta entendida como história individual ou universal (id, p. XII), o
Versuch é definido como uma ativa e criativalxxiv experiência de segundo nívellxxv (ibid, p.
X), isto é, aquela através da qual seria viável o Aperçu, a verdadeira observação dos
fenômenos (ibid, p. XII): deve-se penetrá-los em sua profundidade para, então, se ter acesso
ao que extrapolaria sua singularidade (ibid, pp. X-XI). Retomando-se o aforismo 500,
“nenhum fenômeno esclarece-se em si e a partir de si mesmo; somente muitas coisas,
consideradas conjuntamente, ordenadas metodicamente, são capazes de fornecer por fim
algo que poderia ser válido como teoria” (GOETHE: 2003, p. 77). “Um fenômeno, um
experimento”, continua Goethe no aforismo 501, “não está em condições de demonstrar
nada, ele é o elo de uma grande corrente, que só vigora em conexão” (ibid, p. 77). Com o
“jogo eterno da experiência”, seria permitido, em suma, vislumbrar, alegrementelxxvi, a
unificação (Vereinigung) ou ligação (Verbindung) que existiria não somente entre todos os
objetos: o Versuch seria o mediador (Vermittler) também entre o objeto e o sujeitolxxvii
(GONÇALVES in GOETHE: 2003, pp. X-XI). “O fenômeno”, afirma o poeta no aforismo 512,
62
“não está apartado do observador, mas sim muito mais tragado e implicado em sua própria
individualidade” (GOETHE: 2003, p. 78); no aforismo 515, diz Goethe: “tudo o que há no
sujeito há no objeto e ainda algo mais. Tudo o que há no objeto há no sujeito e ainda algo
maislxxviii” (id, p. 79). Num de seus versos, canta o poeta: “dentro de nós há também um
Universo” (GOETHE: 1958, p. 229). A mesma noção se encontra expressa no aforismo 248:
“é um negócio agradável pesquisar ao mesmo tempo a si mesmo e a natureza, não
violentando nem o seu espírito nem a ela, mas equilibrando-os por meio de uma suave
influência recíproca” (GOETHE: 2003, p. 39). “Conhecer a ordem da Natureza (no sentido
goetheano de reconhecer os nexos presentes no mundo sensível) seria o equivalente,
portanto, a harmonizar o espírito com ela” (MATTOS: 2006, p. 86). No aforismo 501,
Goethe exclama: “procurai em vós e vós encontrareis todas as coisas; e alegrai-vos se aí
fora existir uma natureza que diz sim e amém a tudo o que encontrardes em vós como quer
que vós venhais a denominá-la!” (GOETHE: 2003, p. 78). Isso porque, tomando as palavras
do aforismo 491, “o universal e o particular coincidem: o particular é o universal que se
manifesta sob diversas condições” (id, p. 76). No aforismo seguinte, Goethe complementa:
“o particular subjaz eternamente ao universal; o universal tem eternamente de se juntar ao
particular” (ibid).
Goethe acreditava, portanto, que é no universo sensível, fenomênico – numa
palavra: na natureza – que se revela o eterno; é o que deixa explícito o aforismo 5: “não
importa para que lado se olhe, da natureza sempre emerge algo infinito” (GOETHE: 2003, p.
1). O mesmo se encontra na construção antitética dos seguintes versos: “Se queres
caminhar para o Infinito, / Anda para todos os lados do Finito” (GOETHE: 1958, p. 203). A
aproximação entre Deus e mundo natural, articulada nos aforismos 1, 2, 3 e 4, certamente
se baseia nesta concepção de natureza, definida no aforismo 41 como um conjunto de
63
“grandes forças originárias desenvolvidas desde a eternidade ou no tempo”, que “atuam
ininterruptamente” (GOETHE: 2003, p. 7). Quanto aos valores parciais que as tradições
religiosas atribuem à divindade, são eles devidamente desvinculados da totalidade natural:
“o fato de elas [as grandes forças originárias] atuarem de maneira proveitosa ou nociva é
casual” (id). A indiferença da sempiterna natureza em relação ao limitado mundo humano
fica explícita no seguinte fragmento de um famoso poema de Goethe, “Das Göttliche” (“O
Divino”):
Pois insensível é a natureza:
O sol ’spalha luz
Sobre maus e bons,
E ao criminoso
Brilham como ao santo
A lua e as ’strelas. (GOETHE: 1958, p. 51)
É similar o que se lê no aforismo 247 das Maximen und Reflexionen: “o que temos são
sempre apenas os nossos olhos, os nossos modos de representação; a natureza sabe
totalmente por si o que ela quer e o que ela quis” (GOETHE: 2003, p.39). Se, “com sua
produtividade ilimitada”, conforme afirma o poeta no aforismo 27, “a natureza preenche
todos os espaços” (id, p. 5), e, com tamanha grandiosidade, tenha ela, a natureza, reservado
para si, como é declarado no aforismo 245, “tanta liberdade que não estamos em condições
de competir com ela em toda a sua extensão ou de acossá-la com o nosso saber e nossa
ciência” (ibid., p. 39), o pan-naturismo por que se traduz a Naturwissenschaft goetheana
acaba por se revelar numa espécie de panteísmo. É o que fica claro no aforismo 49:
“pesquisando a natureza, somos panteístaslxxix” (ibid, p. 9). Haveria, para o poeta, de acordo
com o aforismo 52, uma religião verdadeira, “sagrada, que habita em nós e em torno de
nós, totalmente amorfa” (ibid); diante dela, o erro do homem, como é dito no aforismo 6,
64
seria “não conseguir encontrar sua relação consigo mesmo, com os outros e com as coisas”
(ibid, p. 1), ou seja, não sentir a ligação, referida no aforismo 8, que existiria entre o divino
individual e o divino do Universo (ibid, p. 2). “Os homens”, diz Goethe no aforismo 588,
“são de tal modo sobrecarregados pelas condições infinitas do fenômeno que eles não
conseguem se dar conta da coisa una que condiciona originariamentelxxx” (ibid, p. 89).
“Natureza e idéia”, declara o poeta no aforismo 890, “não se deixam cindir sem que
a arte, assim como a vida, seja destruída” (ibid, p. 137). Note-se que a idéia, princípio
fundador da metafísica ocidental, mantém-se eterna e única no pensamento de Goethe, mas
se encontra manifesta, como afirma no aforismo 11, em “tudo aquilo de que podemos nos
dar conta e que podemos falarlxxxi” (ibid, p. 2), e vem, segundo o aforismo 13, “ao nosso
encontro como a lei de todos os fenômenos” (ibid). Visto que, como declara Goethe no
aforismo 488, “não se deve buscar nada por detrás dos fenômenos: eles mesmos são a
doutrina” (ibid, p. 75), basta intuirmos, conforme sugere o aforismo 14, o “diverso como
idêntico” que “idéia e fenômeno se encontram” (ibid, pp. 2-3). A empiria, como afirma o
aforismo seguinte, não passa do “crescimento ilimitado do mesmo” (ibid, p. 3) – e a
natureza, diz Goethe no aforismo 22, “é sempre a mesma no que há de maior e no que há de
menor”, (ibid, p. 4). O aforismo 23 complementa: “cada existente é um análogo de todo
existente; portanto a existência sempre aparece para nós ao mesmo tempo separada e
conjugada” (ibid). Por isso, de acordo com o aforismo 15, o Urphänomen, “fenômeno
originário”, encontrado a partir do Versuch é, simultaneamente,
ideal enquanto o derradeiro cognoscível,
real enquanto conhecido,
simbólico porque compreende todos os casos,
idêntico a todos os casos (ibid, p. 3)
65
Experimentar dos Urphänomenen seria, pois, o mesmo que superar os limites impressos
pela experiência cotidiana e imediata que toma os fenômenos isoladamente. A própria
restrição do indivíduo seria, como afirma o poeta no aforismo 20, uma “limitação
hipotética” (ibid). Assim Goethe enumera, no aforismo 21, as
propriedades fundamentais da unidade viva: cindir-se, unificar-se, expandirse até o universal, perseverar no singular, transformar-se, especificar-se; e
como o vivente pode se tornar manifesto sob mil condições, ele pode
aparecer e desaparecer, solidificar e derreter, cristalizar e fluir, estender-se e
contrair-se. E porque todos estes efeitos se dão no mesmo momento do
tempo, todas as coisas em geral e cada uma delas em particular podem entrar
em cena ao mesmo tempo. Surgir e perecer, criar e aniquilar, nascimento e
morte, alegria e tristeza: todos atuam uns por meio dos outros, no mesmo
sentido e na mesma medida. Assim, mesmo a coisa mais particular que possa
acontecer sempre aparece como imagem e alegoria da mais universal (ibid,
p. 4).
Tem-se, desta maneira, o jogo entre constância e contradição, para o qual o
aforismo 38 estabelece uma verdadeira transposição lingüística:
Constância
(enquanto) com (e no entanto)
Contradição (ibid, p. 8)
A analogia será considerada por Goethe como uma possibilidade para se lidar com um
mundo em que os contrários estabelecem, fundamentalmente, um continuum, já que ela se
coloca como um pensamento que, como atestam os aforismos 25 e 26, “não quer se impor,
não quer demonstrar nada” (ibid, p. 5), apresentando “a vantagem de não se concluir” e de
“não querer propriamente nada de derradeiro” (ibid). Trata-se de um dos pontos-chave do
método científico goetheano, que, baseando-se na morfologia comparadalxxxii, ao invés de
impor uma lei às formas – tal como já fazia a ciência de base iluminista em sua época –,
66
procurava deduzir a lei da própria forma sensível (MATTOS: 2006, p. 84). Com isso, Goethe
pretendia – e, para tanto, foram fundamentais suas leituras de Espinosa, o mesmo filósofo
citado algumas vezes por Deleuze num dos textos que utilizamos em 1. 1lxxxiii – “vislumbrar
os nexos entre as diversas instâncias do real, ou, em outras palavras, a ordem imanente da
Natureza” (id). A ciência, entendida, assim, como um conhecimento sobre a fisionomia do
fenômeno, terá como instrumento essencial o olhar, “que trabalha fazendo a operação de
separar aquilo que lhe parece diferente e juntar o semelhante” (ibid, p. 86). Claro fica,
então, que a melhor maneira de se expor o conhecimento científico seria através da arte, ou
seja, através de uma imagem da Natureza (ibid). Daí, as definições de belo e de arte
contidas, respectivamente, nos aforismos 719 e 729: (p. 112): “o belo é uma manifestação
de leis secretas da natureza que, sem fenomenalidade, teriam permanecido eternamente
veladas para nós” (GOETHE: 2003, p. 112); “a arte é mediadora do inexprimível” (id, p.
113). Por isso, como atesta o aforismo 720, “aquele para quem a natureza começa a
descortinar seu mistério revelado sente uma saudade irresistível de sua mais digna
intérprete: a arte” (ibid, p. 112). Vale ainda a leitura do aforismo 872:
algumas coisas belas encontram-se isoladas no mundo, mas é o espírito que
tem de descobrir conexões e produzir a partir daí obras de arte. – A flor só
conquista seu encanto por meio do inseto que se liga a ela, pelas gotas de
orvalho que a umedecem, pelo vaso do qual ela talvez retire seu derradeiro
alimento. Não há nenhum arbusto, nenhuma árvore, à qual não se pudesse
dar significação pela vizinhança de um rochedo, de uma fonte; à qual não se
pudesse emprestar um maior encantolxxxiv (ibid, p. 135).
Como, para Goethe, de maneira bastante dialogável com as idéias de Gilles
Deleuze, “a natureza seria um organismo vivo em constante evolução e a forma, portanto,
apenas um acontecimento momentâneo de contínua transformação” (MATTOS: 2006, pp.
67
92-93), além de se articularem com tudo o que existe, os seres apresentariam o atributo da
Metamorphose, que lhes garantiria a eternidade; assim se expressa o poeta no aforismo 985:
“o apelo ao mundo por vir emerge do sentimento puro e vital de que há algo imperecível”
(ibid, p. 152). Trata-se de um desenvolvimento da já mencionada noção de uma idéia que
permanece sempre a mesma na multiplicidade dos fenômenos. No poema “Nostalgia da
Bem-aventurança”, Goethe articula a idéia de morrer à de devir:
E enquanto não entenderes
Isto: – Morre e devém! –,
Serás só turvo conviva
Nas trevas da terra-mãe (GOETHE: 1958, p. 169).
Note-se que, para Goethe, a “sublimação” (Steigerung) da alma “não se dá fora do mundo”
(QUINTELA in GOETHE: 1958, p. 361) – isto porque o conceito de Metamorphose implica
noutros dois conceitos: polarização (Polarität) e elevação (Steigerung) (MATTOS: 2006, p.
93). Seria preciso que toda a matéria estivesse organizada em pólos, que gerariam “um
impulso em direção à sua superação em um nível mais elevado, onde, por sua vez, novas
polaridades se apresentariam, constituindo o movimento de pulsação da própria vida” (id).
Dessa maneira, encontrar-se em oposição seria necessário para que, superando-a, se pulse,
se viva.
1. 3 – A crise do antropomorfismo
Uma concepção de metamorfose bastante similar àquela sistematizada por Goethe –
e também ao conceito de devir dado por Deleuze – poderia ser abundantemente encontrada
na obra atribuída ao chamado Comte de Lautréamont. Para os três, o “vir a ser” denunciaria
68
a limitação do homem enquanto individuação – limitação esta que teria sido traduzida pela
civilização ocidental através do projeto antropocêntrico. Assinale-se, já, que
a questão da insuficiência da tradicional visão antropocêntrica atravessa toda
a cultura européia. Pelo menos desde o século XVI, a ciência e a filosofia,
recorrendo a autores clássicos, lançam-se ao debate sobre a pluralidade dos
mundos e das formas de vida, que ganhará vigor nos séculos seguintes. (…)
A partir de meados do século XVII a noção de centralidade do homem no
universo tende a perder sentido, sobretudo com a expansão da anatomia
comparada (…). Grande parte dos cientistas e filósofos passam a refutar
abertamente a legitimidade de um ponto de vista antropocêntrico,
enfraquecendo sobremaneira a doutrina ortodoxa da singularidade humana
(MORAES: 2002, p. 81).
Destacar-se-iam, nessa crítica ao antropocentrismo, os pensadores céticos e libertinos, que
se recusaram a “acatar a idéia de um universo construído para o homem e em função do
homem” (id, pp. 81-82) – recusa esta que ganhará intensidade no pensamento materialista
francês do século XVIII, a partir do qual chega a Sade, “que dela se serve para justificar
seus princípios” (ibid, p. 82). Afirmando a “equivalência entre todos os seres do universo
sem conferir nenhum privilégio ao homem”, Sade “anuncia o intento de ‘desumanização’
que será perseguido por Nietzsche, Artaud, Roussel, Breton ou Bataille” (ibid, p. 83) –
enfim, por todos os grandes vultos que se empenharam em subverter o projeto que,
sobretudo a partir dos fins do Século das Luzes, como uma “verdadeira obsessão”,
procurou “‘fixar’ a face do homem” e “confinar o ser humano num retrato imóvel e
definitivo” (ibid, p. 19): o antropomorfismo a serviço do antropocentrismo, a opressão da
forma – como diria Deleuze – a serviço da opressão da consciência do “estar no mundo”.
Embora originado com o Romantismolxxxv e recorrente já na arte e no pensamento
franceses no final do século XIX, o imaginário de dilaceramento e de desfiguração
anatômicas decorrente da subversão do ideal antropomórfico só “ganha maior evidência
69
com as indagações que os surrealistas lançam ao princípio da identidade, submetendo-o aos
imperativos do desejo” (ibid, p. 21). Max Ernst, sintetizando o sentimento estético de sua
geraçãolxxxvi, assim parodiou a fórmula surreal de André Breton: “a identidade será
convulsiva ou não será” (ERNST apud MORAES: op. cit., p. 74). Os criadores do surrealismo
e seus contemporâneos, porém, já tinham se deparado com “um ataque frontal” ao princípio
da identidade na enigmática obra do também enigmático Isidore Ducasse, o Comte de
Lautréamont (MORAES: op. cit., p. 40), em cujos Chants de Maldoror
é impossível discernir o autor do personagem, sendo que cada qual remete a
uma sucessão de desdobramentos. Se a figura do autor perde-se em
mistérios, dado sua sumaríssima biografia, não menos enigmática será a do
Conde de Lautréamont, seu pseudônimo, inspirado no personagem
homônimo criado por Eugène Sue em Os mistérios de Paris. A epopéia de
Maldoror é ora narrada pelo suposto autor, ora pelo próprio herói, ele mesmo
reduplicado em uma série de metamorfoses. A indeterminação entre as
figuras de Ducasse, Lautréamont e Maldoror parece realizar o próprio desejo
de apagamento manifesto em sua obra e resumido numa frase que os
surrealistas não cansaram de repetir: “a poesia deve ser feita por todos, e não
por um” (id).
A “poética de agressão pura” que estrutura os Cantos de Maldoror veio a calhar
para os contemporâneos de Breton, insuflados de revolta diante dos horrores da guerra e
desejosos por “novos campos de experiência poética” (ibid). Maldoror é “aquele que tudo
renegou” (LAUTRÉAMONT: 1997, p. 229), mas que julga ilógico afastar-se da humanidade, a
quem tanto detesta (id, p. 225): já que, “além da violência física propriamente dita, faz
parte dos Cantos a agressão contra a ordem natural” (WILLER, in: LAUTRÉAMONT: op. cit.,
p. 24), o ódio e a indignação parecem funcionar como catalisadores na concepção de uma
“poesia inteiramente à margem da marcha costumeira da natureza, e cujo hábito pernicioso
pareça subverter até mesmo as verdades absolutas” (LAUTRÉAMONT: op. cit., p. 248).
“Lautréamont descreve um mundo que se metamorfoseia, onde sempre se observa um
70
desvio das leis da natureza, regido por uma lógica semelhante à do sonho” (WILLER, in:
LAUTRÉAMONT: op. cit., p. 24). Não é preciso dizer que a natureza contra a qual se dirige a
violência de Maldoror não coincide com a Natur goetheana: aquela seria a natureza
possuidora das leis fixadas pela ciência de base iluminista.
Maldoror denuncia que “a consciência só sabe mostrar suas garras de aço”, sendo
preciso esmagá-la, decapitá-la, expulsá-la a chicotadas (LAUTRÉAMONT: op. cit., pp. 142143): assim seria possível reencontrar um campo sem fronteiras do qual só seria possível
fazer menção através de um pensamento complexo que desse conta de todas as
possibilidades de interação e correspondência entre o que estaria supostamente dividido.
Tal pensamento seria o analógico, “o único, segundo Breton, capaz de produzir efeitos
poéticos” (MORAES: op. cit., p. 41). “Belo como (…) o encontro fortuito sobre uma mesa de
dissecção de uma máquina de costura e um guarda-chuva” (LAUTRÉAMONT: op. cit., p.
228): funcionando como um emblema para o primado desse pensamento, a famosa frase de
Ducasse colaborou para a concepção da imagem poética surrealista, determinando que, ao
poeta, não cabia apenas estabelecer correspondências ao comparar os diversos elementos do
universo – era preciso deixar que o desejo as inventasse arbitrariamentelxxxvii (MORAES: op.
cit., pp. 40- 41). Além de driblar a subjetividade que poderia agir como fator limitador na
procura e interpretação das correspondênciaslxxxviii, tal proposta denunciava certa autonomia
da linguagem em relação ao mundo – o que acarreta uma drástica revisão da noção de belo,
que não teria mais como ser reduzida a mero reconhecimento de uma suposta realidade (id,
p. 41).
O “encontro fortuito” a que eram submetidos os elementos na composição artística
desenvolvida pelos surrealistas – i. é, no chamado “automatismo psíquico” – apresentaria,
contudo, uma espécie de sentido, posto que, mesmo entre situações ordinárias,
71
aparentemente sem qualquer ligação umas com as outras, poderia ser observado “um
denominador comum”, um elo “entre o insignificante e o significativo”, entre duas séries
aparentemente distintas – “uma, casual, de caráter totalmente fortuito, e a outra, causal,
resultante de determinações objetivas” (ibid). Trata-se do que Breton chamou de “acaso
objetivo”, articulação empreendida pelo desejo que obedeceria “às mesmas leis que
presidem à organização dos sonhos, colocando igualmente o sujeito em comunicação
misteriosa com o mundo” (ibid, p. 43). A visão que aqui se tem de invençãolxxxix é algo que,
portanto, oscila “entre a descoberta de um sentido oculto e a produção de um sentido
totalmente novo” (ibid, p. 45): a dinâmica para a obtenção do objeto surrealista
pressupunha, por um lado, que “a afetividade do artista viria dotar o objeto exterior de um
novo sentido”, e por outro, que “a subjetividade do suposto inventor seria incorporada à
realidade exterior” (ibid, pp. 63-64). Mais uma vez, não se tem o mero apagamento da
subjetividade, mas uma ampliação desta.
Os surrealistas chegaram à noção de que, como em qualquer objeto já se inscrevem
possibilidades de percepção, dado que dele só temos o aspecto visível (ibid, p. 65), uma
maneira de libertá-lo da economia burguesa seria, então, ocultá-lo: “cache-toi, objet”, uma
das palavras de ordem que Breton e seus seguidores destacaram dos Chants de Maldoror
(ibid, p. 63). Sob tal ótica, “inventar um objeto implicava, a princípio, escondê-lo” – e,
assim, criar uma ambivalência que lançaria o observador a “um campo fantasmático,
obrigando-o a atravessar o objeto para conhecê-lo mais profundamente” (ibid, p. 64):
o objeto ausente evocava o vazio, a não-matéria, o não-objeto. Mas,
justamente pela impossibilidade de ser atravessado pelo olhar ou pelas mãos,
ele adquiria o estatuto de objeto. Se permanecia imperceptível e impalpável,
se sua presença não oferecia nenhuma evidência material, é porque ele
resistia em transformar-se num objeto comum, para conservar sua
integridade e sua realidade total. O objeto ausente responderia, assim, aos
72
desejos mais inconscientes do homem, atingindo suas nostalgias mais
profundas (ibid, p. 65).
Além do objet caché, os surrealistas desenvolveram, a partir de Ducasse, a noção de
objet dépaysé – o híbrido cheio de convulsões de identidade ao que se chega a partir da
aproximação casual e desreferencializante entre objetos e/ou pedaços de objetosxc. Dentre
os objetos reconfigurados como cachês e dépaysés, destacou-se o corpo, que, podendo ser
tomado como “a unidade material mais imediata do homem, formando um todo através do
qual o sujeito se compõe e se reconhece como individualidade”, se tornou “o primeiro alvo
a ser atacado” “num mundo voltado para a destruição das integridades” (ibid, p. 60).
Constata-se que, da mesma maneira que se fragmentou a consciência do homem moderno,
fragmentou-se também o seu corpo (ibid, p. 59). De fato, pode-se flagrar nas primeiras
décadas do século XX um verdadeiro triunfo do “empenho de decomposição do corpo
humano” – e como decompor a forma humana significa desumanizar a arte, observa-se o
quanto Breton e seus contemporâneos, dando continuidade ao projeto dos Chants de
Maldoror, procuraram demolir com igual vigor dois pilares do fazer artístico ocidental: o
realismo e o humanismo (ibid). Num “continente até então confinado aos limites das
descrições realistas e das representações figurativas”, “o artista moderno caminhava contra
a realidade na medida em que se propunha decididamente a deformá-la, romper seu aspecto
humano, enfim, desumanizá-la” – ou seja, desantropomorfizá-la (ibid, p. 61). Tal
exploração “resultou num corpo totalmente desprovido de dimensões estáveis. Um corpo
em crise” (ibid, p. 62).
No entanto, se “o homem deixa de ser o ponto a partir do qual a percepção do
mundo se organiza” e “suas proporções deixam de servir como medida universal do
cosmos”, graças à “indagação de seus próprios limites” – e se surgem de tal corpo “novos
73
espaços no pensamento, para o surgimento de formas e seres desconhecidos” (ibid, p. 107),
um corpo em crise também é um corpo livre, transfigurado em “corpo do desejo”,
irredutível às suas formas supostamente naturais (ibid, p. 66). “Ao afirmar a proeminência
do corpo do desejo sobre o corpo natural, o surrealismo colocava em cena imagens nas
quais os diversos membros e órgãos tornavam-se intercambiáveis, multiplicavam-se ou
eram sumariamente suprimidos” (ibid, p. 69). Para lidar com o corpo do desejo, sempre em
devir, sofrendo transformações constantes ou se escondendo eroticamente, os surrealistas
fundaram uma “anatomia do desejo”, cujas matrizes imagéticas foram buscadas “nas
imagens do prazer e da dor. Ou, numa só palavra: no êxtase” (ibid, p. 71), que ofereceria,
logo, a chave para a ampliação da consciência (ibid, p. 72).
Com o “inesgotável poder de migração” que os corpos e objetos do desejo passam a
ter, é instaurada “uma atmosfera de indeterminação e incerteza que evoca um tempo
primeiro, quando as coisas não conheciam estados definitivos, não havia oposições nem
contrários” (ibid, p. 76). A retomada da analogia: seria possível atualizar “um tempo de
incessantes metamorfoses”, “uma era primordial em que leis, biológicas e sociais, ainda
não pesavam sobre a vida, restando uma total indiferença entre as coisas e os seres” (ibid),
uma “disposição de intercâmbio entre os diferentes reinos da natureza, ou entre o natural e
o artificial, numa visão unitária que se funda sobre o princípio superior de equivalência
entre todos os elementos da realidade múltipla” (ibid, pp. 76-77). Vale lembrar, aqui, que o
mutante Maldoror, num certo trecho do canto VI, se coloca como alguém que não participa
das dimensões físicas ordinárias, podendo estar em qualquer lugar do mundo e em qualquer
tempo, tendo nascido “com os primeiros antepassados da nossa raça”, nos “tempos
recuados, além da história” (LAUTRÉAMONT: op. cit., p. 226).
74
Essa possibilidade de atualização do in illo tempore, oposta ao dualismo
classificatório da consciência ocidental e de sua lógica da identidade, contemplaria,
segundo os surrealistas, “a essência da imagem poética: a poesia é um procedimento de
totalização do sentido e, como tal, uma ‘linguagem sem negação’” (MORAES: op. cit., p.
77). Encontra-se o ponto de convergência entre poesia e alquimiaxci,
ambas perseguindo um desígnio comum em, pelo menos, três níveis: na
preocupação de remontar à matéria original do mundo e da linguagem; na
operação de transformar as substâncias do universo e do verbo; e no trabalho
de interpretação através da grade inesgotável das analogias, chave de todo
ato de decifração (id, p. 77).
Na base dessa convergência, situa-se o princípio único da analogia universal (ibid, p. 78).
“Ao substituir o princípio de identidade e de contradição pela analogia universal, o
pensamento surrealista (…) acaba por retornar a uma forma do saber que desaparece na
época moderna” – um verdadeiro contradiscurso (ibid, p. 80). Entretanto, o princípio
analógico é retomado por Breton com uma modificação essencial: enquanto na analogia de
base renascentista, e que fundamentava o saber ocidental até meados do século XVIIxcii, era
reservado ao homem um “ponto privilegiado, saturado de analogias” – posto que “nas suas
dimensões restritas, o corpo humano reproduzia a ordem do universo”, representando um
microcosmo a partir do qual é garantido o encontro com um macrocosmo especular e, ainda
que imenso, seguro porque reconhecível – (ibid, p. 79), no princípio analógico surrealista,
de base ducassiana, o homem não ocupa centro algum; aliás, não há qualquer possibilidade
de centro. Isso porque é operado um “entrelaçamento (…) entre o sistema global das
correspondências e as doutrinas que contestam o antropomorfismo”: a “centralidade das
relações de semelhança”, assegurada por aquele, é anulada por estas, garantindo-se, então,
75
“a concepção de um jogo de analogias completamente livre de qualquer idéia de ‘medida
humana’” (ibid, p. 82).
Essa liberdade não apenas permite que ocorram, mas desperta a percepção de que
em tudo estariam subscritas combinações, mutações – inclusive entre a figura humana e
uma infinidade de outros seres e matériasxciii (ibid., p. 107). Tendo se transformado num
tubarão (LAUTRÉAMONT: op. cit., p. 181), num grilo (id, p. 225), num cisne negro (ibid, p.
232), ou, em sonho, num porco (ibid, p. 184), Maldoror era portador de “uma faculdade
especial para tomar formas irreconhecíveis aos olhos mais treinados” (ibid, p. 225) – e,
inclusive, tece uma apologia do devir: “a metamorfose nunca apareceu a meus olhos senão
como elevada e magnânima ressonância de uma felicidade perfeita, que esperava havia
muito” (ibid, p. 184). De acordo com Gaston Bachelard, o “frenesi da metamorfose”
presente na obra ducassiana deixa claro que “o ato de violência não encontra sua razão de
ser na mera destruição, e sim na conquista de novas formas e movimentos”: “no projeto de
‘desumanização’ dos Chants de Maldoror o que importa efetivamente não é ‘o aspecto
humano que destrói’, mas sobretudo ‘a fauna heteróclita a que chega’” (MORAES, op. cit., p.
86). Confrontando a obra de Ducasse com a de Franz Kafka, Bachelard afirma que cada um
deles se situa num dos “pólos da experiência moderna da metamorfose”: enquanto em
Lautréamont as “transformações são urgentes e diretas”, pois ocorrem num “processo
vertiginoso de polarização das forças vitais” em que uma forma é destruída para que
imediatamente seja criada outra, num movimento ininterrupto que expressa um “violento
desejo de viver”, em Kafka, ao contrário, “assiste-se a um espetáculo lento e progressivo de
catatonia”, no qual a metamorfose surge como mero “resultado de um retardamento da
vida, em que o psiquismo se encolhe e se descoordena”, correspondendo a um “estado de
desânimo e impotência que prenuncia a morte” (ibid). Bachelard conclui: “as formas
76
empobrecem em Kafka porque o querer-viver vai se esgotando; multiplicam-se em
Lautréamont porque o querer-viver se exaltaxciv” (BACHELARD apud MORAES: op. cit., p.
86).
Segundo Lautréamont, a capacidade de metamorfose do homem teria relação com
sua “natureza múltipla”, isto é, com sua capacidade de pode viver “na água como
hipocampo; nas camadas superiores do ar como a águia marinha; e debaixo da terá como a
toupeira, o bicho da conta e o sublime vermezinho” (LAUTRÉAMONT apud MORAES: op. cit.,
pp. 107-108). É ampliando – e não negando – sua condição biológica que o homem
ducassiano ultrapassa seus limites: mais uma vez retomando Bachelard, em Lautréamont “o
homem aparece como uma soma de possibilidades vitais, como um ‘superanimal’; tem toda
a animalidade à sua disposição” (BACHELARD apud MORAES: op. cit., p. 108). Os Chants de
Maldoror inauguram, assim, uma “nova disposição com relação à natureza, que consiste
fundamentalmente em abolir as fronteiras convencionais entre seus diversos reinos” – e, a
partir desse ponto, “a figura humana se bestializa, dando forma a seres híbridos que vêm
compor um inesperado bestiário moderno” (MORAES: op. cit., p. 108): seria um exemplo
emblemático o homem-peixe que figura no canto IV (LAUTRÉAMONT: op. cit., pp. 185191). Tal abordagem da natureza será herdada pelos surrealistas, que igualmente negaram
as “taxonomias tradicionais que têm como pressuposto a auto-suficiência dos três reinos
naturaisxcv” (MORAES: op. cit., p. 109). São palavras de Aragon: “é preciso sair da loja do
naturalista para provar a vertigem da floresta virgem e reencontrar o caos primitivo”
(ARAGON apud MORAES: op. cit., p. 109).
Se sua principal fonte, Lautréamont, afirmava que a humanidade não passa de uma
“raça que estendeu um domínio injusto sobre os outros animais da criação”
(LAUTRÉAMONT: op. cit., p. 151), e estes, nos Chants de Maldoror, possuem, inclusive, a
77
faculdade da linguagemxcvi, talvez nem seja preciso dizer que, para o surrealismo, não seria
restrita ao homem qualquer capacidade, sobretudo a do “superanimal”: todos os seres vivos
– e até nos minerais e nos objetos inanimados haveria vidaxcvii – seriam “movidos pela
mesma repugnância ao repouso que Bachelard identifica em Maldoror” (MORAES: op. cit.,
p. 111). Dito de outra forma: tudo o que existe e que a consciência humana capta
erroneamente como mero conjunto de individuações revelaria, como vimos com Deleuze e
Goethe, um “caos primitivo” em que “os seres se contaminam uns aos outrosxcviii” (id, p.
112): “é um homem ou uma pedra ou uma árvore quem vai começar o quarto canto”,
afirma Maldoror (LAUTRÉAMONT: op. cit., p. 167). A história natural engendrada pelos
surrealistas – em muitos pontos, bastante dialogável com a Naturwissenschaft goetheana –
tem como base a idéia de que “dos parasitas às baleias, dos vermes aos elefantes, nenhum
ser vivo – incluindo o homem – escapa ao princípio soberano da metamorfose” (MORAES:
op. cit., p. 112). E este princípio seria intensificado pela ação da imaginação humana, dado
que, no inconsciente que a move, “as leis que regem a floresta virgem revelam-se ainda
mais operantes” (id): tornam-se ilusórias as fronteiras entre os universos natural e cultural.
Como a imaginação “só compreende uma forma quando a transforma, quando lhe dinamiza
o devir e quando a apanha no fluxo da causalidade formal, do mesmo modo que o físico só
compreende um fenômeno quando o apanha no fluxo da causalidade eficiente”, “a
metamorfose torna-se função específica da imaginação” (BACHELARD apud MORAES: op.
cit., p 112). O radical hibridismo dela resultante concretiza o ideal surrealista da imagem
poética dinâmica do devir, testemunhando “a eternidade da luta entre as potências
agregantes e desagregantes que reivindicam a verdadeira realidade da vida” (BRETON apud
MORAES, p. 113).
78
1. 4 – O chamado selvagem
Gary Snyder, poeta e ensaísta norte-americano incluído entre os chamados
escritores beats, também propôs que o fazer poético proporcionaria ao homem a percepção
da total interconexão entre tudo o que existe, desfazendo as limitações impostas pelo
pensamento ocidental, e redimensionando as noções de natureza e cultura. Todavia, antes
de adentrarmos em tais questões, parece necessário tratar de alguns tópicos introdutórios
acerca da chamada “geração beat”, a fim de destacar a especificidade de Snyder diante
dela. Os artistasxcix que fazem parte de tal geração podem ser situados, como aponta
Leonardo Fróes em seu ensaio “Histórias Beats”, na “origem vulcânica dos rebeldes anos
50, quando a poesia americana quis ser um estilo de vida” (FRÓES: 1984, p. 11), e não
teriam chegado a constituir um movimento organizado em torno de um programa estético
ou político comum (BUENO & GOES: 1984, p. 8). O que os unia era a rejeição à poesia
acadêmica e a um intelectualismo estéril dos anos 30 e 40, além da busca por uma
indiferenciação entre poesia e vida (id, p. 60) e da “incorporação (…) do movimento
constante como sinônimo de liberdade” (ibid, p. 13) – incorporação esta que lhes confere a
alcunha de “geração em movimento”, que ia “dos poemas às estradas, passando por bares e
cafés, festas e drogas, comunidades e qualquer outro palco onde estivesse a vida” (ibid, p.
10). A “linha-mestra” da poesia beat estaria na “retomada da tradição oral e da função
social do poeta” (ibid., p. 63), numa verdadeira “recuperação da palavra poética falada e
cantada” (ibid., p. 50).
Daí as famosas leituras de poesia em lugares quase sempre não muito convencionais
– bares, pequenos teatros, casas de Jazz, residências particulares etcc (ibid., p. 62) –, o que
teve como conseqüência a popularização de uma literatura “fora do circuito comercial das
79
editoras e dos trâmites do prestígio acadêmico” (ibid, p. 62), beirando o “abandono do
veículo livro e da tradição da palavra impressaci” (ibid, p. 67). E como a
oralidade/musicalidade dessa poesia era “inalcançável pela ótica square (careta,
conformista)cii”, seu beat (batida), seu feeling (sentimento) e seu swing (ginga, balanço)
foram vistos pela crítica como “‘descuido formal’, displicência no ‘acabamento’, ausência
de ‘síntese’ e excessiva ‘discursividade’” (ibid, p. 13), acarretando um longo silêncio
acadêmico em relação aos beats e um preconceito que ignora sua alta erudiçãociii.
Dentre os variadíssimos elementos que compõem o universo beat, Leonardo Fróes
considera mais essencial o ímpeto de “escrever sobre si mesmo”, alimentado pelo “desejo
de restituir à poesia uma qualidade sangüínea” (FRÓES: 1984, p. 13), torná-la, mais uma
vez, uma “prática literária que parte da realidade concreta do indivíduo”, dando voz “a uma
seqüência de instantes, aos ritmos da própria estranheza de quem se põe a escreverciv” (id,
p. 14). Por outro lado, haveria uma unidade na literatura beat em seu diálogo com o Jazz,
estilo musical que despertou o interesse dos poetas não apenas pelo fato de ter sido visto
como “a linguagem musical da América”, mas “pela sua própria capacidade de traduzir e
envolver muito além das palavras, muito além do bom-senso ou da boa intenção
moralizante”, graças à sua “forte carga sexual” (BUENO & GOES: op. cit., p. 62). Os beats,
“cujo serviço histórico mais firme”, conforme aponta Leonardo Fróes, “foi justamente
revelar que o modelo [capitalista norte-americano], vazio monumental de aparências, na
realidade não passa de uma trama com furos” (FRÓES: 1984, p. 16), “demonstraram no
tempo e no próprio corpo à América que o materialismo consumista não sacia a fome do
homem” (id, p. 12). Para eles, a cultura do Jazz se posicionava contra o macartismo
reacionário do pós-guerra, e tinha, portanto, “um sentido terapêutico”, “de Saúde, de Cura”
(BUENO & GOES: 1984, p. 19): era
80
a força do Sagrado-Profano, do não-racional, da presença firme do corpo
pulsando, das pulsões e pulsações livres e rebeldes numa sociedade careta,
de produção e troca de mercadorias, reificada e alienada numa maneira de
viver congelada e num evidente desequilíbrio vital, sinônimo de Doença (id).
Leonardo Fróes salienta que, em relação à literatura existencialista européia,
contemporânea dos beats, “a fala americana de resistência aos padrões inclui com grande
freqüência uma convicção de esperança” (FRÓES: 1984, p. 14): “a alma beat, cheia de
estilhaços doídos e loucuras de esquina, ao mesmo tempo se levanta como afirmação
musculosa, traz dos descampados absortos uma nova energia que (…) permite recobrar o
entusiasmo” (id, p. 15).
Para se libertarem do materialismo doentio, os beats, além do Jazz, ainda
incorporaram, em suas vidas e textos, a espiritualidade, sobretudo oriental – o Zenbudismo, o Hinduísmo etc. –, que, somada ao amplo uso de diversas drogas, contribuiu
para o caráter visionário e imageticamente inovador da literatura que praticaram (BUENO &
GOES: op. cit., p. 61). Dessa maneira, “não buscaram força apenas dentro da cultura do seu
país, mas também fora” (id, p. 22), misturando, a seu modo, a batida e o envolvimento
hipnótico das improvisações do Jazz – “principalmente do Bop, o Jazz posterior a Charlie
Parker” (ibid, p. 62) – e alguns ideais sobretudo do Zen-budismo, como “a possibilidade de
Silêncio, a Meditação, a Calma, a noção de Vacuidade do Ego, o Desapego Material e tudo
o mais que pudesse conduzir a alguma forma de Beatitude, de Iluminação” (ibid, p. 22) e
que, logo, se opusesse a “uma cultura verborrágica, palavrosa, cheia de retórica, mas
mentirosa e injusta, extremamente materialista”cv (ibid, p. 23). Vale destacar as palavras de
Roberto Muggiati, em seu ensaio “Beats & Zen”: “o Zen nada tem de místico ou de
religioso. É, mais do que tudo, um modo de ação”cvi (MUGGIATI: 1984, p. 106).
81
Embora Umberto Eco, citado por Muggiati, afirme a existência, dentro do Zen, de
“uma atitude fundamentalmente antiintelectualista, de elementar e decidida aceitação da
vida em sua imediação, sem tentar justapor-lhe explicações que a tornariam rígida e a
matariam, impedindo-nos de colhê-la em seu livre fluir” (ECO apud MUGGIATI: op. cit., p.
108), o Zen-Budismo, enquanto uma “disciplina ascética e moral, de recolhimento e
silêncio”, parece chocar-se contra “o pique dos Beats, anárquicos, liberando e buscando
prazer” (BUENO & GOES: op. cit., pp. 23-24). Talvez por isso “a maneira como o Zen foi
incorporado pelos Beats (…) não foi igual para todos os poetas, prosadores e teóricos da
época”, sendo Gary Snyder, estudioso de línguas orientais, “quem melhor incorporou o
espírito do Zen, ao seu trabalho poético, à sua própria vida” (id, p. 24), chegando a receber
instrução formal num mosteiro do Japão. Roberto Muggiati o chama de “zenista”
(MUGGIATI: op. cit., p. 107) e afirma que, “de todos os escritores associados ao movimento
beat, foi o que mais se aproximou do verdadeiro Zen”cvii (id, p. 108); daí seu famoso
epíteto: “Monge Budista da Geração Beatcviii” (BUENO & GOES: op. cit., p. 70).
Considerado por Leonardo Fróes um dos “beats bem mais calmos”, “pioneiro do
recolhimento e da meditaçãocix” (FRÓES: 1984, p. 12)”, Snyder se dedicou à escritura de
poemas em muitos pontos diferentes do que normalmente se espera de um poeta de sua
geração: sua poesia é “concisa, de um artesanato sutil e preciso, bastante distante do
‘derramamento oracular’ de Ginsberg ou do longo fôlego dos poemas para serem falados,
recitados, cantados” (BUENO & GOES: op. cit., p. 72), incorporando o Zen “em formas
sintéticas” que revelam uma intensa entrega à meditação, à pobreza voluntária e ao contato
com a naturezacx (id, p. 71). É exatamente a partir deste último ponto – a intensa
contemplação do elemento naturalcxi –, que observamos “um dos fundamentos da obra de
Gary Snyder”, de acordo com Luci Collin e que aqui nos interessa diretamente: “a
82
percepção da conexão e interdependência entre todas as coisas – seres, pedras, lixo,
estrelas” (COLLIN in: SNYDER: 2005, p. 10). O papel da poesia seria exatamente propiciar
tal percepção; mais uma vez com as palavras de Collin, “a poesia é, para Snyder, um fio
que liga o homem ao resto do universo, é o instante da percepção, da revelação tanto da
vida do planeta quanto do indivíduo neste planeta” (id, pp. 11-12), desencadeando uma
“ética de respeito ao humano e não-humano”, cuja leitura “promove uma entrega onde a
experiência artística é também experiência religiosa, de reconhecimento dos reinos que
formam a vida, e do homem como unidade ameaçadora e ameaçada” (ibid, p. 12).
Contemplar, nas palavras de Gary Snyder, a “interpenetração de todos” (SNYDER:
op. cit., p. 149) significa detonar as amarras criadas pela razão ocidental – entre elas a idéia
de indivíduo. Num dos poemas de Snyder (id, p. 89), a palavra “eu” aparece grafada entre
aspas, denotando sua artificialidade (FRANK & SAYRE apud COLLIN In: SNYDER: op. cit., p.
299), o que, para um poeta que, como todos de sua geração, tem sua obra marcada pela
enunciação em primeira pessoa, só não soa descabido por não passar de um eco do ideal
zen de vacuidade do Ego. No poema intitulado “Como a Poesia chega a mim”, a
subjetividade tradicionalmente atribuída à poesia lírica é questionada:
Ela vem tropegando por sobre os
Seixos à noite, fica
Acuada fora do
Alcance da minha fogueira
Vou a seu encontro no
Limite da luz (SNYDER: op. cit., p. 159).
De maneira idêntica a que vimos na primeira seção do presente trabalho, a poesia não é
originada a partir da interioridade do poeta: ela vem de fora; o poeta deve ir “a seu encontro
83
no limite da luz”. Para o poeta que se sente conectado à totalidade da natureza, o subjetivo
e o exterior são a mesma coisa.
Com seu “estilo de vida ligado à terra, à família e ao lugar” (COLLIN in: SNYDER:
op. cit., p.11), Snyder acredita que o sujeito só poderia buscar sua identidade no ambiente,
no lugar em que vive: trata-se da tentativa de recuperar o “‘onde’ do ‘quem somos nós?’”
(SNYDER: op. cit., p. 242). O princípio articulado aqui é, de acordo com Luci Collin, a idéia
de “conhecer o lugar antes mesmo de começar a jornada para o conhecimento de si
próprio” (COLLIN in: SNYDER: op. cit., p. 11) – em outras palavras, voltar a “habitar”, “rehabitar”, já que, com as palavras do poeta de São Francisco, “hoje há muitas pessoas no
planeta que não são ‘habitantes’. Longe de suas aldeias natais, afastados dos territórios
ancestrais; mudaram-se do campo para a cidade” (SNYDER: op. cit., p. 242). Urge, logo,
recuperar o “espírito do que significava estar lá”, o apego à terra, para ter a “capacidade de
ouvir a canção de Gaia naquele lugar” (id, p. 248). Caso esquecêssemos da biografia de
Gary Snyder – que, sabemos, muito caminhou, muito pegou carona, e até mesmo viveu
durante anos no Japão –, haveria aqui mais uma de suas especificidades em relação aos seus
companheiros beats, marcados que estes são por um impulso nômade, perambulante.
Entretanto, Gary Snyder deixa claro que “a habitação não significa ‘não-viajar’. O termo
em si não define o tamanho de um território” (ibid, p. 244). Na poética/ética de Snyder,
habitar tem um sentido bem mais complexo do que simplesmente ser sedentário.
Para que nos tornemos habitantes, Snyder sugere, recorrendo à nomenclatura
cunhada pelo ambientalista Raymond Dasmann, um aprendizado a partir do modelo das
“culturas de ecossistema”, “aquelas”, define o poeta, “cuja base econômica de sustentação é
uma região natural, uma bacia hidrográfica, uma zona de plantio, um território natural
dentro do qual elas têm que obter seu sustento” (ibid, p. 224). O poeta afirma que uma
84
cultura de ecossistema “está profundamente enraizada em sua própria identidade”; nela,
habita-se de maneira cuidadosa, ao contrário do que ocorre com as “culturas de biosfera”,
“que expandem seu sistema de apoio econômico, a ponto de se permitirem destruir um
ecossistema e continuar avançando”, movimento que culmina no ideal imperialistacxii (ibid).
“O que nós chamamos de civilização”, diz Snyder, “é uma fase de sucessão primitiva: um
sistema imaturo de monocultura. O que nós chamamos de primitivo é um sistema maduro
com capacidades profundas para estabilidade e proteção incorporadas” (ibid, p. 231),
Porque nenhum lugar é mais do que outro,
Todos os lugares são totais,
E nossos tornozelos, joelhos, ombros &
Quadris sabem bem onde eles estão (ibid, p. 169).
A derrocada do etnocentrismo: “todo mundo na Terra”, define Gary Snyder, “é um nativo
do planeta. Toda poesia é ‘nossa’ poesia. (…) Há quarenta mil anos somos um povo.
Somos todos igualmente primitivos” (ibid, pp. 234-235). Snyder assegura que poderíamos
aprender com as culturas de ecossistema através de uma etnopoética que, como “um novo
humanismo” (ibid, p. 220), levaria em conta “toda a longa experiência do Homo sapiens”,
pois, desde o advento da sociedade, há cerca de 40 mil anos, o homem perdeu parte de suas
“velocidade, habilidade, conhecimento e inteligência (…) comuns no Paleolítico Superior”
(ibid, p. 221). O objeto de estudo da etnopoética seria, portanto, “a literatura oral – a
balada, a lenda popular, o mito, as canções” –, que pode ser considerada “a maior
experiência literária da humanidade” (ibid, p. 222) e cuja “grande sabedoria”, por ser uma
das maiores expressões da “maturidade e estabilidade” das culturas de ecossistema, deve
ser exposta para que seja dificultada a ação do imperialismo expansionista (ibid, 231).
85
Como Snyder define ainda a etnopoética como “um campo da zoologia que estuda
espécies em extinção” (ibid, p. 221), o poeta determina que seu humanismo, além de
“novo” – por driblar o humanismo moderno que, no máximo, retrocede etnocentricamente
ao passado greco-latino –, é também “pós-humano” (ibid, p. 221), à medida que se dispõe,
ainda, a descentralizar a noção de ser, substantivo ao qual insistimos em pospor o adjetivo
“humano” quando nos referimos à arte e à cultura. Dito de maneira mais clara, a
etnopoética “faria um esforço para incluir nossos parentes não-humanos”, defendendo
“igualmente as culturas e as espécies em extinção” (ibid). Por isso o uivo do coiote é
chamado, por Snyder, de “música” (ibid, p. 111), a trilha de odores deixada por um cervo é
considerada uma “narrativa” (ibid, p. 266), etc.
A utopia snyderiana de que cabe a uma poética a tarefa de libertar o homem
ocidental de amarras ideológicas tamanhas como o imperialismo, o etnocentrismo e o
antropocentrismo advém da noção de que, de acordo com as palavras do poeta norteamericano, a “preocupação com a natureza e a integridade dos muitos reinos de criaturas é
uma preocupação muito antiga e profundamente arraigada do poeta”, pois, para Snyder,
a tarefa do cantor [nas culturas de ecossistema] era cantar a voz do milho, a
voz das Plêiades, a voz do bisão, a voz do antílope. Contatar, de um modo
muito especial, um “outro” que não estava dentro da esfera humana; algo
que não poderia ser aprendido pela consulta contínua a outros guias
humanos, e só poderia ser aprendido ao se aventurar para fora dos limites
humanos, penetrando na vastidão da sua própria mente, na vastidão do
inconsciente. Assim, os poetas sempre foram “pagãos” (ibid, p. 236).
Como poeta eu conservo os valores mais arcaicos da Terra. Eles remontam o
período paleolítico: a fertilidade do solo, a magia dos animais, a profunda
visão revelada pela solidão, os assustadores processos de iniciação e
renascimento, o amor e o êxtase da dança, o trabalho comunal da tribo
(SNYDER apud COLLIN in: SNYDER: op. cit., pp. 290-291).
86
A poesia seria, a-historicamente, sinônimo de reconhecimento e incorporação da alteridade.
A existência parcial do homem diante da natureza o impede de vislumbrar a totalidade
desta por meio dos sentidos conduzidos pelo ainda mais parcial modelo de objetividade da
razão ocidental – aqueles que o tentam fazer são, conforme critica Snyder,
“ingenuamente realistas” pelo que aceitam, sem questionar, o que capta o
olho humano, frontal e bifocal, o nosso pobre olfato e outras características
de nossa espécie, acrescentando a isso a suposição de que a mente pode, sem
muita auto-avaliação, direta e objetivamente “conhecer” o que quer que ela
veja (SNYDER: op. cit., p. 260).
Ver uma corruíra num arbusto, chamá-la de “corruíra” e continuar
caminhando é (conferindo-se auto-importância) não ter visto nada. Ver um
pássaro e parar, observar, sentir, esquecer de si por um momento,
permanecer nas sombras do arbusto, talvez então sentir-se a “corruíra” – isso
é ter se fundido, num momento mais amplo, com o mundo (id, p. 275).
A poesia e o canto disponibilizariam tal faculdade insubstituível para a relação entre
homem e mundo. Gary Snyder insiste na tese de que, nas culturas ditas primitivas, ainda se
mantém a consciência desse papel, que não passa de uma verdadeira ecologia, de uma
busca por uma “poética da terra” (ibid, p. 238), pois há, nestas culturas, um “sentido de
mutualidade da vida e da morte na cadeia alimentar”, acompanhado por um “sentido da
qualidade sacramental daquela relação” (ibid, p. 244). Ambos os sentidos foram perdidos
pela civilização ocidental graças ao acúmulo de riquezas e à centralização do poder que
tiveram, nas palavras de Snyder, “resultados bizarros”: “filosofias e religiões baseadas no
fascínio pela sociedade, a hierarquia, a manipulação e o ‘absoluto’” (ibid, p. 245), além de
uma literatura que apenas focaliza “os dilemas morais, os versos heróicos, os assuntos do
coração e as buscas espirituais de pessoas muito talentosas e, com freqüência, poderosas,
geralmente do sexo masculino. Histórias de elites” (ibid, p. 260). E mesmo “todas as
87
grandes religiões do mundo”, continua Snyder, “permanecem fundamentalmente centradas
no humano” (ibid, p. 245). Daí o resgate, característico da poesia snyderiana, de tradições
sagradas cujas divindades se situam em paragens não-humanas.
Snyder se volta à natureza como a uma divina “Grande Família” (ibid, p. 117), ora
entoando, à maneira indígena (cf. ibid, p. 306), uma prece de gratidão a seus membros,
desde a “Mãe Terra (…) e a seu solo” até o “Grande Céu”, infinito e onipresente, passando
pelas Plantas, Chuva, Ar (“sopro da nossa canção”), Seres Selvagens (“nossos irmãos e
irmãs”), Água (“nuvens, lagos, rios, geleiras”) e Sol (ibid, pp. 117 e 119), ora lhes
prometendo devoçãocxiii:
Prometo devoção à terra
da Ilha da Tartaruga
e aos seres que vivem sobre ela
um ecossistema
em diversidade
sob o sol
Com radiante interpenetração de todos (ibid, p. 149)
A devoção é dirigida à terra onde o poeta habita, mencionada através do sintagma “Ilha da
Tartaruga”, “o antigo/novo nome para o continente [americano], baseado em vários mitos
de criação dos povos que estiveram aqui por milênios, e reaplicado por alguns deles à
‘América do Norte’ em anos recentes” (SNYDER apud COLLIN in: SNYDER: op. cit., pp. 303304). Opera-se, aqui, a retomada de uma cosmovisão mítica, que, de acordo com as
palavras de Snyder, seria “uma fonte muito maior de autenticidade e proximidade do que é
a história recente, empiricamente verificável” (id). É preciso se retirar um pouco do
paradigma histórico e conhecer o mito e a era geológica (SNYDER: op. cit., p. 213), para
que, em suma, seja recuperado tudo que foi destruído por homens “que cantavam hinos em
88
louvor de si mesmos, e não a deuses” (id, p. 291). A partir daí, é estabelecida uma relação
entre poesia, ecologia, mito e xamanismo: a função do canto do xamã, utilizando as
palavras de Snyder, é “conduzir a mente profundamente em direção ao coração do mundo
natural”, (SNYDER apud COLLIN in: SNYDER: op. cit., p. 291), “em busca de uma visão ou
de um mito” (DEAN apud COLLIN in: SNYDER: op. cit., p. 291), desarticulando referenciais
humanos, como se vê no “Primeiro Canto do Xamã”:
Sento sem pensamentos perto da estrada de troncos
Chocando um novo mito
Olhando as salamandras (SNYDER: op. cit., p. 35)
O xamã tem o poder de abandonar o próprio corpo e se fundir à natureza; no “Segundo
Canto do Xamã”, de acordo com o próprio Snyder, é descrita a “percepção que a persona
tem de seu próprio corpo sentado sobre o chão, no charco; esta percepção é seguida pela
constatação do mundo ao redor, onde o humano, gradualmente, se transforma em
planta/pedra/carne/charco” (SNYDER apud COLLIN in: SNYDER: op. cit., p. 292):
Tremendo em nervo e músculo
Suspenso na estrutura pélvica
Ossos escorados em raízes
Um cego pulsar de nervos
Serena mão se move sozinha
Florescendo e folhando
virando quartzo
(…)
O longo corpo do charco (SNYDER: op. cit., p. 41).
Existe, para Snyder, a possibilidade de se justapor a consciência ecológica contemporânea
ao mito, à religiosidade e às práticas xamânicas porque
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as ciências bio-ecológicas têm exposto (implicitamente) uma dimensão
espiritual. Temos que encontrar nossos modos de perceber os ciclos
minerais, os ciclos de água, os ciclos de ar, os ciclos de nutrientes como
sendo sacramentais – e devemos incorporar esse insight à nossa própria
busca espiritual, integrá-lo a todos os ensinamentos de sabedoria que
recebemos do passado recente. Isso expressa algo simples: sentir gratidão
por tudo; assumir a responsabilidade por seus próprios atos; manter contato
com as fontes de energia que fluem em direção às nossas próprias vidas (id,
pp. 246-247).
Com a incorporação do universo não-humano, Gary Snyder acredita que podemos
aprender “que nós temos muitas personalidades que se examinam entre si, através do
mesmo olho” e “que vivemos em um sistema que é, de certo modo, fechado, que tem seus
próprios tipos de limites e que somos interdependentes dele” (ibid, p. 246). A ecologia,
portanto, “sugere um salto para o sentido maior de eu e de famíliacxiv” (ibid, p. 254), “um
momento de deixar para trás o ego complexo e apenar ver, apenas ser, em comunhão com
alguma outra criatura” (ibid, p. 255). Assim, a natureza “não é só um ajuntamento de
espécies separadas, todas competindo entre si pela sobrevivência (uma interpretação urbana
do mundo?)” (ibid, p. 253), tal qual demonstrada pelo paradigma darwinista; na verdade
o mundo orgânico é composto de muitas comunidades de seres diversos, nas
quais todas as espécies desempenham papéis diferentes mas essenciais. Isso
poderia ser tomado como um modelo de aldeia do mundo (…). Embora os
ecossistemas possam ser descritos como hierárquicos, do ponto de vista do
conjunto todos os seus participantes são iguais (…). Toda a natureza
biológica pode ser vista como uma puja, uma cerimônia de oferta e
compartilhamento (ibid).
E, como se o sistema natural dispusesse de uma espécie de consciência da vacuidade do ego
e da passagem dos anos, Snyder complementa:
todos nós somos seres compostos, não só fisicamente, mas intelectualmente,
cuja característica individual e exclusiva, que nos identifica, é uma forma ou
90
estrutura particular que muda constantemente no tempo. Não há nenhum
“eu” a ser encontrado nisso e, ainda assim, bastante estranhamente, há. Parte
de você está lá fora esperando para ser incorporada e outra parte de você está
a seu lado, e o “agora” do momento sempre presente sustenta todos os
pequenos eus transitórios em seu espelho (ibid, p. 247).
A vontade, a liberdade humana se subordina à sabedoria biológico-naturalcxv:
O cume e a floresta
Se apresentam aos nossos olhos e pés
Que decidem por si mesmos
Em sua sabedoria ancestral de ir
Aonde a vida selvagem nos levará. Nós já
Estivemos aqui antes (ibid, p. 167).
Gary Snyder observa que natureza se coloca de maneira sempre assombrosa,
englobando toda e qualquer coisa – até mesmo o que tradicionalmente se lhe opõem sob o
nome de “cultura”:
Os seres humanos, como nos revelam a biologia e a ecologia, estão
completamente situados dentro da esfera da natureza. A organização social,
a língua, as práticas culturais e outros traços que consideramos ser
características distintivas das espécies humanas, também estão dentro da
mais ampla esfera da natureza (ibid, p. 252).
O mundo natural está profundamente presente e é parte inevitável das
grandes obras arte. A experiência humana, durante a maior parte de sua
história, tem se desenvolvido em íntima relação com o mundo natural. Isto é
óbvio demais para que se diga, e, no entanto, é freqüente e estranhamente
esquecido. A história, a filosofia e a literatura naturalmente colocam em
primeiro plano as questões humanas, a dinâmica social, os dilemas da fé e os
construtos intelectuais. Mas um subtema crítico, implícito a tudo isso, está
ligado à definição do relacionamento do homem com o resto da natureza
(ibid, p. 261).
A gramática não só da língua, mas também da própria cultura e da
civilização, vem desta nossa mãe imensa, a natureza (ibid, p. 273).
91
Na poética/ética snyderiana, tudo é “selvagem”, “wild”. Dessa maneira, torna-se urgente
uma nova conceituação do que é selvagem, afinal o termo, segundo o poeta, “é comumente
definido nos dicionários por aquilo – do ponto de vista humano – que ele não é” (SNYDER
apud COLLIN in: SNYDER: op. cit., p. 305). “Selvagem”, sugere Gary Snyder, é “a natureza
essencial da natureza” (SNYDER: op. cit., p. 270), “é um nome para o modo como os
fenômenos se tornam continuamente concretos” (id, p. 265), independentemente da
capacidade humana de entender, memorizar ou analisar tal processo:
a consciência, a mente, a imaginação e a língua são fundamentalmente
selvagens. “Selvagens” como nos ecossistemas selvagens – ricamente
interligados, interdependentes e incrivelmente complexos. Diversificados,
ancestrais e cheios de informações. No fundo, a verdadeira questão é como
compreendermos os conceitos de ordem, liberdade e caos (ibid, p. 264).
Snyder considera seu livro inicial, “Riprap”, publicado em 1959, como o “primeiro
vislumbre da imagem do universo inteiro enquanto interconectado, interpenetrante,
mutuamente refletidor e mutuamente abrangente” (SNYDER apud COLLIN in: SNYDER: op.
cit., p. 287); o famoso poema homônimo tece uma comparação entre as palavras e as pedras
utilizadas na construção dos ripraps, trilhas para cavalo postas sobre rochas de difícil
percurso:
Assente estas palavras
Diante de sua mente como pedras.
postas firme, por mãos
Em busca de lugar, dispostas
Diante do corpo da mente
no tempo e no espaço (SNYDER: op. cit., p. 29).
92
Assim, “a linguagem, a mente e o pensamento são, de alguma forma, também um produto
de profundas pressões, como a pedra, e (…) processos geológicos e mentais são análogos”
(SNYDER apud COLLIN in: SNYDER: op. cit., p. 290). Tudo – da linguagem às rochas – está
em “total transformação” (SNYDER: op. cit., p. 29). “Vivemos em um reino”, diz o poeta,
“no qual muitos princípios permanecem misteriosos ou inacessíveis para nós”, o que nos
impede de perceber o quanto ele é “correto, bem proporcionado, coerente e padronizado de
acordo com seus próprios mecanismos” (id, p. 270). No entanto, como “a humanidade
precisa do selvagem mundo de processos”, já que “ele nos produziu e ele nos fortalece”
(SNYDER apud COLLIN in: SNYDER: op. cit., p. 292), a poesia se propõe a “descobrir a
semente das coisas, de revelar o caos organizado que estrutura o mundo natural” (SNYDER:
op. cit., p. 264), ajudando a “reconhecer a autonomia e a integridade da parte não-humana
do mundo, um ‘Outro’ que mal começamos a ser capazes de perceber”: “a linguagem não
impõe ordem sobre um universo caótico, mas reflete, de novo, seu próprio caráter
selvagem” (id, p. 265). Com isso, “a escritura Verdadeiramente Notável surge àqueles que
aprenderam, dominaram e superaram o Bom Uso e a Boa Escritura convencionais, e então
retornam ao prazer e à jocosidade descomplicada da Linguagem Natural” (ibid, p. 272) –
que é “mais variada, mais interessante, mais imprevisível, e se engaja a um tipo de
inteligência muito mais ampla e profundacxvi” (ibid, p. 273). É quando o homem acessa a
poesia animal do uivo do coiote: o “chamado selvagem” (the call of the wild) (ibid, p. 111).
2 – As possibilidades para o corpo na poesia de Leonardo Fróes
Até este ponto do presente trabalho, viemos demonstrando concepções de autores
bastante heterogêneos – com exceção de Deleuze, vale destacar, todos poetas –, mas que
93
apresentariam pontos de diálogo não apenas entre si, mas também, veremos, em relação à
poética de Leonardo Fróes. Se, na primeira seção da nossa dissertação, vimos que o êxtase
se constitui como uma estratégia poética para driblar a ilusória limitação subjetiva, agora
pretendemos contemplar outra dimensão do mesmo fenômeno, a qual, denunciando a
precariedade das formas, das limitações corpóreas captadas pela visão guiada pela razão
ocidental, acaba desencadeando uma outra concepção de universo. Nesta, tudo se atravessa
e se compartilha; nada é precário: tudo abunda. Com isso, propomos que, na base da
poética de Leonardo Fróes, se encontra uma aguda crítica ao antropocentrismo. O devir
imposto ao sujeito em êxtase se traduz poeticamente através de imagens que procuram
denunciar o confinamento antropomórfico, principal setor da caverna espelhada do ideal
antropocêntrico. É o fato de que na cidade, a “pequena vitrine humana em que fomos
metidos” (FRÓES: 1998, p. 65), o homem convive quase exclusivamente com outros de sua
espécie – e o isolamento em relação ao conjunto maior de seres acaba por deixá-lo artificial
e parcialmente auto-referenciado – que justifica o fugere urbem inscrito na poesia de Fróes.
Vejamos algumas palavras deste retiradas de sua entrevista à revista Azougue:
talvez o grande problema urbano contemporâneo seja exatamente este: que a
pessoa vivendo só a experiência urbana – a cidade é um grande palco – está
em cena o tempo todo, numa grande e dolorosa representação, ela começa
por achar que a natureza é algo lá fora, aqui sou eu, o drama humano, e lá a
natureza. E acha que aquilo é um caos, e não percebe a harmonia, a beleza
que te integra àquilo ali (FRÓES: 2003, p. 9).
Goethe, Ducasse e Snyder, vimos, já haviam alertado sobre a impossibilidade da dicotomia
criada entre natureza e cultura. Em diálogo com Herder, Goethe buscou demonstrar “a
integridade entre espírito e natureza” e que o próprio conhecimento humano, a razão e a
linguagem, com suas propriedades ético-espirituais, seriam de ordem sensível, fisiológica,
94
natural (GONÇALVES in GOETHE: 2003, pp. VII-VIII); mesmo a idéia e o eterno, para o
poeta alemão, estariam ocultados em fenômenos empíricos (GOETHE: 2003, p. 2). Em
Lautréamont, encontramos a noção de que a faculdade da linguagem não seria
exclusividade do homem (cf. n. xxix da presente seção), o mesmo que observamos em
Snyder, que, com sua etnopoética pós-humana, uma “poética da terra” (SNYDER: op. cit., p.
238), procura considerar não apenas todas as manifestações culturais de todos os povos,
mas também de todos os seres vivos, já que tudo seria “wild”, das práticas sexuais dos
animais às organizações sociais humanas (SNYDER: op. cit., pp.252, 261 e 273; cf. ainda
SNYDER apud COLLIN in: SNYDER: op. cit., pp. 292 e 305) – até mesmo a liberdade e a
vontade do homem estariam subordinadas a um saber natural (SNYDER: op. cit., p. 167).
Dialogáveis com estas, possibilidades de relacionamento com e de inserção no
universo natural são constantes na obra poética de Leonardo Fróes, sobretudo a partir de
seu terceiro livro, Esqueci de avisar que estou vivo, publicado em 1973 – quando o poeta já
havia se mudado do município do Rio de Janeiro para Petrópolis, mais especificamente
para o bairro rural de Secretário, onde seu crescente interesse pela ecologia ganha
contornos mais práticoscxvii. A importância da natureza na poesia de Fróes é intensamente
confirmada em sua referida entrevista à Azougue:
nos últimos anos, a influência maior [na poesia] é dessa vivência da
natureza. São já trinta anos que estou enfiado no mato. Vira e mexe estou na
mata. E a mata você não enfrenta impunemente. Ela mexe com a sua cabeça
de maneira escandalosa, e você nunca mais volta a ser a mesma pessoa.
(FRÓES: 2003, p. 7)
A natureza, como a poesia, é uma ameaça, ela pode aniquilar algo que é seu
para fazer você se transformar em outra coisa. Isso é Goethe, é o seu lema:
“morrer; tornar-se”. Ele diz que é sempre isso, uma permanente mudança, a
vida é metamorfose (id, p. 9).
95
Imprevisivelmente ígnea, a natureza, para Fróes, é a “transformação coesa e colorida de
brasas” (FRÓES: 1998, p. 216); profunda e terrestre, somente ela pode oferecer “um
momento no esquecimento mineral de tudo” (id, p. 197); polimórfica como a água, ela é a
“sensação-liquidez” (ibid, p. 219), prova da “diluição inevitável” (ibid, p. 124), da “fluidez
universal incessante” (ibid, p. 131); etérea como um “vento para confundir os limites” (ibid,
p. 314), ela oferece, enfim, a “sensação de liberdade” que uma pessoa “de perfil nulo
conquista, ou melhor, conhece, atravessada por lufadas de pó” (FRÓES: 2005, p. 33).
Transformação não seria a palavra de ordem apenas do lirismo (FRIEDRICH: 1978, p. 17): a
contemplação do próprio universo fenomênico garante, como Dioniso Lýsioscxviii, a
liberdade de todas as coisas de si mesmas (NIETZSCHE: 2005, p. 13). “No auge da
observação penetrante desaparecemos” (FRÓES: 1998, p. 171): o poeta que se projeta no
“rodopio frenético das possibilidades aqui, ou lá, ou nunca, quando a própria concepção das
figuras se desencadeava ou desengavetava num jorro” (id, p. 117) se depara com uma
natureza dinâmica, em perpétua mutação – uma natureza que nada tem a ver com aquela
fixada pela ciência de base iluminista contra a qual Goethe, Lautréamont e outros se
lançaram contra:
A natureza é engraçada,
dá sem trégua e principia
a gerar tudo de novo,
avessa à monotonia (ibid, p. 286)
É através da comunhão com o mundo natural, com sua incessante e mutante
continuidade, que são proporcionadas, tomando as palavras de José Thomaz Brum, “a
liberdade e a ausência de eu” – o “corpo a corpo com a realidade metafísica do homem:
parcialidade e perplexidade” (BRUM in FRÓES: 1998, p. 12). O que funcionaria, ainda
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segundo Brum, como um “remédio contemplativo e sublime”: há, na poética froesiana, “um
forte desejo – que podemos chamar de ‘humanista’ – de que tal universo possa auxiliar um
homem faminto de harmonia ou diálogo” (id, pp. 12-13). No poema “Amor no mato”, p. e.,
afirma-se que o prazer sexual
só se tornava
mais forte e se completava
quando, em vez de guardado
como um valor qualquer mofado,
era dado no escuro pelo pênis,
em comunhão com o gozo das espécies (FRÓES: 2005, p. 41).
Em “Desencorpando”, fala-se da entrega a uma “consciência regeneradora do todo”:
Sentado atento como um totem,
um índio ou um animal que espreita
a dança de movimentos da mata,
pela própria concentração diluído
em tranqüilo despetalar dos instintos,
não perguntando coisa alguma e se dando
à consciência regeneradora do todo.
Não abrigando sequer um sentimento
no iodo de decomposição que o circunda.
Testemunhando o nascimento das folhas
numa voracidade exaltada (id, p. 21).
É com “voracidade exaltada” que a natureza se perpetua. “A madre selva ruiva
deglutindo-se perfeitamente sozinha” (FRÓES: 1998, p. 101): na poética de Leonardo Fróes,
o mundo natural, além de não ser amoenus – sua força pode invadir e desfigurar
construções humanas, como se vê nos poemas “A um ex-hotel” (ibid, p. 43) e “Para o muro
de um solar” (ibid, p. 85) –, não é sequer mero locus: ele é autônomo. P. e., no poema
97
“Dançando na chuva” (ibid, p. 49), é narrada a ação de uma tempestade, e em “Terra
Brava” (ibid, p. 23), a ação de um furacão; em ambos, o elemento humano aparece de
maneira secundária e passiva, sofrendo as ações da natureza ou simplesmente
contemplando-as. Os fenômenos naturais, assim autônomos, acabam por incorporar
atributos situados além da compreensão racional, reorganizando e relativizando a vida dos
insignificantes homens:
quando um golpe de vento do destino
mistura as folhas marcadas
e perdidos momentos se rejuntam
na pilha de documentos ao léu,
uma neutralidade nova o impulsiona
a olhar de fora e de longe o seu passado
(como um dessemelhante que, assim,
merece sua isenção e respeito) (ibid, p. 47).
Experimentada em devir, a natureza se converte em “Sobrenatureza” (FRÓES: 1998, p. 197):
sua grandiosidade impõe uma contemplação sem questionamentos – “viva invoque
vislumbre invente mas não pergunte nada” (id, p. 72) – e um respeito em que, de acordo
com José Thomaz Brum, “há certo misticismo (…) e deslumbramento” (BRUM in FRÓES:
1998, p. 12) – e não raras vezes, temor. Talvez por isso Carlos Lima, em seu prefácio para
Chinês com sono, se refira à potência curativo-libertadora do universo natural como um
“phármakon pelo espanto” (LIMA in FRÓES: 2005, p. 8).
No “fluxo contente sem nexo” (FRÓES: 1998, p. 231), “vejo a continuidade das
coisas que são cacos derramados de sensações progressivas na variedade infinita dos
estados orgânicos” (id, p. 261); meu “mim” se torna “elástico” e “evita de beber os
conceitos da lata corporal tão pequena” (ibid, p. 154): ele
98
achou sua função, de ouvir e absorver, e nela às vezes se compara a uma
composição de borracha – ou de água maciça. Sente-se feito de um material
muito elástico que permite uma adaptação instantânea ao contorno oferecido
pelas situações (ibid, p. 283).
Experimentando dessa “viagem desencantada, e sinuosa, entre coisas que aderem à
percepção” (ibid, p. 52), seria possível
viver o que, havido, rui:
as loucas metamorfoses
e eu – que já outro fui (ibid, p. 41).
Sigo “ao mundo me combinando” (ibid, p. 52):
Devir é vir se alterando
numa feroz permanência
do que atrás vai ficando.
Devir é ser se entregando
às duras lides da osmose
por que passamos, passando
(…)
Devir é ir se voltando
ao que se foi e, se existe,
é novo e desabrochando.
Devir é filtro filtrando
memórias, momentos, manchas
que vão nos proliferando.
Devir é simples deixando
que a morte esparrame vida
na vida que vai matando (ibid, pp.46-47).
Na natureza, observando “os bichos que se comem para virar outra coisa” (ibid, p. 174), o
poeta observa que a morte e a vida são, na verdade, partes de um mesmo processo: o
99
“desviver transfigurando” (ibid, p. 47), o “desviver reinventando-se” (ibid, p. 48), o
“desviver só vinculando” (ibid, p. 47). É quando
um ser outro ser aceita,
um corpo se verte noutro
– a forma comum é feita (ibid, p. 48).
Entretanto, vimos que a tradição ocidental configurou a natureza como algo
organizado, seguro: limitado e limitante. No poema em prosa “Fileiras cerradas”, Fróes
narra, com um delicioso e necessário tom irônico, o ímpeto de certas “autoridades” – notese que o radical grego “auto” oferece ao nome a ilusória segurança de si – que insistem em
imprimir ordem a uma paisagem natural:
a paisagem caótica e desenfreada da vida não combinava com a necessidade
de ordem que dominava a autoridade (…). [Esta] achou um disparate
horroroso aquelas árvores tortas, fora de forma (…) [, pensando:] nada da
impressão misturada que desarruma os meus dogmas (…) [,] nada de olhar
para os tratores como dinossauros, insetos (ibid, p. 295).
Contudo,
dentro do caos de cada árvore havia o trânsito frenético da realidade
impalpável (…). A verdade do que estou sentindo quando as categorias
desabam e me conformo em ser isso, um sanhaço roendo o mamão, um
lagarto espichado tomando sol. Ordem inevitável das flutuações orgânicas,
maior que a dos papéis estudados (ibid, p. 296).
Denunciando, como fizeram os surrealistas herdeiros dos posicionamentos ducasseanos, o
caráter ilusório do princípio da identidade, Leonardo Fróes aconselha: é preciso “resistir
(…) à catalogação das espécies à nomenclatura das coisas” para, então, ser “perdidamente
100
desarticulado e confuso mas feliz” (ibid, p. 246). Àquela autoridade, poderia ser dirigida a
seguinte pergunta:
Não seria mais certo e compassivo
abandonar-se ao fluir da espécie inquieta como um índio calado
ou um cachorro qualquer que se coloca espiando? (ibid, p. 280).
Como em Goethe, a visão acerca do mundo natural cultivada por Fróes é oriunda da
contemplação da natureza em sua concretude viva – e, logo, extra-humana e
desestabilizadoracxix: a partir do “lento crescimento das raízes”, de seus “matizes”, do
“intento imprevisível do capim”, da “ilusão preguiçosa das nuvens que desandam”, torna-se
explícita a “nudez de coisas que se entregam à embriaguez da própria criação” (ibid., p.
72). Abundam índices desse contato íntimo e revelador na poesia de Leonardo Fróes; por
exemplo, do poema “Proximidade”, pode-se destacar:
Sinto os toques de carícia quando
a neblina se solidifica em meus ombros.
Ela é o real que me estreita em seus domínios
e o real que liberta (FRÓES: 2005, p. 53)
Dominar e libertar – a propósito, não á raro que o mundo natural apresente, na poesia de
Leonardo Fróes, um perfil antitético: a coincidentia oppositorum é uma das características
daquilo que o ser humano vislumbra como totalidadecxx. O par de opostos em questão
merece destaque porque, além de ser, mesmo que de modo indireto, freqüente, nele se
inscreve a idéia de que se abandonar ao domínio da natureza total é, simultaneamente, se
desprender da consciência de si, da individuação limitadora – é experimentar o “susto de
poder se anular” (FRÓES: 1998, p. 71) para, então, ingressar na “participação desmedida
101
entre todos os seres e coisas que naturalmente acontecem” (id, p. 126) e que podem
metamorfosear um trator em inseto ou dinossauro, um homem em pássaro ou réptil:
Quando eu me largo, porque achei
no animal que observo atentamente
um objeto mais interessante de estudo
do que eu e minhas mazelas ou
imoderadas alegrias;
e largando de lado, no processo,
todo e qualquer vestígio de quem sou,
lembranças, compromissos ou datas
ou dores que ainda ficam doendo;
quando, hirto, parado, concentrado,
para não assustá-lo, com o animal me confundo,
já sem saber a qual dos dois
pertence a consciência de mim –
– qualquer coisa maior se estabelece
nesta ausência de distinção entre nós:
a glória, a beleza, o alívio,
coesão impessoal da matéria, a eternidade (FRÓES: 2005, p. 29)
Se “não há paredes para o grito de se sentir existente” (FRÓES: 1998, p. 67), se a
consciência de si é uma prisão fictícia, é função do fazer poético, movido pelo pensamento
analógico que prescinde de qualquer modelo antropocêntrico, libertar o homem,
promovendo
a cultura do êxtase. O encadeamento despojado
dos objetos sem função quando alguém
não se procura, não se ensaia, não tece elogios, não discute (id, p. 299).
A poesia é, em suma, a “exaltação das coisas que se aceitam na inconsciência do êxtase”
(ibid, p. 232) – e Leonardo Fróes, de maneira um tanto similar àquela com que se
pronunciaram os surrealistas acerca da escrita automáticacxxi, afirma a autonomia do lirismo
102
em relação à subjetividade: “escrevo obedecendo a um registro. A fala que me conscientiza
já é estranha totalmente à idéia habitual de quem sou” (ibid, p. 134). A escrita começaria
quando “dizer se transformava de repente numa necessidade orgânica” – ela é “o prazer
animal de abandonar-se: uma escrita dos instintos: uma voz na garganta” (ibid, p. 329), a
“música residual instintiva” (ibid, p. 330).
Mas não se trata de mera entrega: com a visão não-hierarquizada promovida pela
contemplação da natureza que não cessa de demonstrar sua própria instabilidade, é possível
vislumbrar um atravessamento mútuo entre todos os fenômenos, seres e objetos –
atravessamento este que, como vimos na primeira seção do presente trabalho, não exclui a
porção individualizada do homem:
minha violência afetiva
logo desmanchada em capim
sem mim ou misericórdia (ibid, p. 201)
“Eu abuso de ser humano e mesmo assim não me satisfixo (ibid, p. 93): o afeto convertido
em capim é o apagamento da subjetividade e, ao mesmo tempo, a intervenção da mesma no
exterior. O capim não é produto do eu, mas certamente não se mantém o mesmo depois que
nele se desmancha o sujeito, “pura continuidade espontânea da eletricidade congênita”
(ibid, p. 126). A “insignificância” dos seres individuais é “perfeita” (ibid, p. 120)
exatamente porque não é sinônimo de simples desaparecimento, mas de ingresso em “parte
da possibilidade que se articula”, na “conjugação maravilhada rodando que faz da
separação entre os objetos e eu uma colocação absurda” (ibid, pp. 126-127), como um
“ponto perdido da trama perfeita que não admite definição sobre ela” (ibid, p. 127).
Por isso, para Fróes, “TUDO É TUDO”: a poesia, enquanto a faculdade do
“também, também” (ibid, p. 159), é a linguagem revelando tanto sua potência analógica de
103
equalização do que se apresenta ao homem como diferente, quanto seu caráter prévio,
engendrador em relação aos fenômenos, pois dela tudo devém ou pode devir. Num poema
que poderíamos chamar de cosmogônico, “Singular de paisagem”, Fróes narra o processo
de individuação pelo qual os fenômenos teriam passado, fazendo referência a um período
anterior, primordial, quando tudo era tudo porque era um:
Estamos
na primeira manhã do mundo. O frio é tétrico
e os dedos, que são de água,
produzem vales profundos
na pele cheia de fogo da terra. Os elementos
ainda não estão separados, nem as cores.
Nesse quadro primacial da inocência
o sol desperta a criação. Os olhos berram.
Os erros tornam-se evidentes, os choques
inevitáveis porque existem contornos.
Só agora se definem figuras
na trama lenta da qual resultam zonas
de luz e sombra. O espaço
antes nebuloso e equalizado se comporta em fatias
feitas (ibid, p. 254)
Nesta “primeira manhã do mundo”, neste “quadro primacial de inocência”, ainda estão
unos os elementos e as cores – até que “o sol desperta a criação”, trazendo os erros e os
choques provenientes do fato de que, com a luz, as coisas passam a ter contornos, formas e
se definem como figuras individuais visíveis: “os olhos berram”. Surgem, no “espaço antes
nebuloso e equalizado”, os opostos – “luz e sombra”. Em suma, são simultâneos os
surgimentos da luz, que permite a visão, e das identidades. Este não é o único poema de
Fróes que confere à luz um caráter cosmogônico:
Partículas elementares de fogo
104
num jogo de assimetrias
em contínua circulação no vazio
criam a matéria de tudo
– de todas as sensações, todos os pensamentos,
concreções e vapores, quando executam sua dança,
que a rigor é um derramar de centelhas,
com as curvas primordiais. Se não se tocam,
não se sabe jamais como elas chegam,
com o puro ritmo, a constituir tantas coisas.
Apenas se constata que as formas
resultam das combinações que a luz faz;
que a casa é feita de fagulhas, como o vidro,
a árvore, as pessoas que eu vejo, os caminhões
e até mesmo seu barulho; que vida e arte e
o que mais me rodeia são explosões dessa massa
de signos, de sentimentos em disparada, de cisma
e gozo, dessa realidade anterior que se estende
por todos os redutos, com sua música
feita de atritos circunstanciais de passagem (FRÓES: 2005, p. 97)
Através de combinações aleatórias, circunstanciais, a luz, “partículas elementares de fogo”,
cria, do vazio, tudo o que existe – inclusive os pensamentos, as sensações, a vida e a arte,
“a matéria de tudo”. “A vida é maior que a gente e mais do que a gente espia” (FRÓES:
1998, p. 285), e “provavelmente existe um rombo sem forma no espaço casual sem razão”
(id, p. 154): Leonardo Fróes não vai se cansar de pôr a percepção visual em dúvida e, como
Lautréamont e os surrealistas, tentará libertar os objetos, esvaziado-os de sua identidade, na
procura por uma “alegria do escuro” (ibid, p. 74). Como “o outro nos sedimenta em nosso
desvario” (ibid, p. 78), dessa tentativa de “agarrar o sem corpo”, dessa “perseguição
grotesca do invisível” (ibid, p. 67), podem restar, por vezes, formatos que, invocando a
presença do fenômeno que a consciência espera, acabam por acentuar sua ausência:
105
Existe o lago, ou seja, sua forma íntima, sua doce concavidade de cratera
vazia, no topo da montanha; mas não existe nem se vê água dentro, não se
completando, portanto, nessa forma, a idéia de existir um lago no topo. (…)
seja o que for que tenha sido – lago, cratera, obra – dir-se-ia que é a forma
pura (FRÓES: 2005, p. 93).
Não é preciso deter-se na aproximação entre o objet caché de Ducasse e seus
seguidores e tal “forma pura”: ambos seriam instâncias em que o objeto abandona sua
configuração ordinária e, graças a isso, acaba por amplificar seu status de objeto, tornandose “uma ausência feliz atomizada” (FRÓES: 1998, p. 308), um “rosto sem resto sem pista
sem figura composta” (id, p. 231). “A mulher esvaziada emudece, dessangra, se cristaliza,
se mineraliza. Já é quase de pedra como a pedra a seu lado” (ibid, p. 318): esvaziados, os
objetos e os corpos podem se metamorfosear, sofrer “algo como o derretimento casual das
próprias formas, anulação de macho e fêmea, árvore e cabeleira, capim com sono, falta de
vontade específica na concentração muscular de um desejo imenso de tudo” (ibid, p. 297):
vejo uma orelha que é uma concha que é uma folha enrolada que é um lençol
até o queixo para servir de casulo. Ali nos pulos de contentamento vejo essa
transformação dos joelhos em dunas preguiçosas ligadas por fiapos de luz.
Vejo a continuidade das coisas que são cacos derramados se sensações
progressivas na variedade infinita dos estados orgânicos (…). Vejo uma
linha que é uma agulha que é uma pilha de nervos que é uma haste de sêmen
que é uma confortável cratera que é uma nesga sem fim (ibid, p. 261).
Impõem-se, assim, possibilidades diversas para o corpo: “há pessoas inteiras que se
desagregam agora. E em seu lugar surgem narizes de águia, olhos de coruja, queixos de
lobo” (ibid, p. 273). “Havia tufos de cabelos esparsos que viravam moitas ou árvores. Na
geografia da careca, viam-se veias que eram rios, e os piolhos que eu andava catando, nesse
novo contexto, pareciam tão grandes quanto animais na floresta” (ibid, p. 242). Para o poeta
que se torna “um navegante do possível” (ibid, p. 73) e que põe “os remos da imaginação
106
ao trabalho”, “o bote” pode ser “uma extensão do corpo e do sonho” (ibid, p. 315), como se
sentisse “feito de um material muito elástico que permite uma adaptação instantânea ao
contorno oferecido pelas situações” (ibid, p. 283).
Como não seria restrita ao homem qualquer capacidade, inclusive a de se
metamorfosear, de modo idêntico ao que vimos nos Chants de Maldoror, de um pastel de
queijo podem sair “pernas bonitas de garotas fritas” (ibid, p. 294); “sapatos de feltro”
podem se reconfigurar como “canoas que bóiam na confusão do asfalto” cheias de
“mariscos” fincados no casco que não passam de “tampas de cerveja e pontas de cigarro”
(ibid, p. 292); uma beterraba pode ter seios e um repolho, “múltiplas orelhas” (ibid, p. 286);
e uma “maciça brotação de capim” pode eclodir “entre as costelas” (ibid, p. 231). Aliás, são
numerosas as mutações vegetal-humanas, talvez porque as plantas explicitariam a
continuidade metamórfica característica da vida:
Incertos os galhos tortos, você
vê, armam-se como esqueletos
de silenciosa e fria carnadura
como se, no escuro, de cada galho
surgissem numerosas pessoas
vendo você observá-las na sua
desabitada languidez vegetal
de pessoas nuas resinosas
querendo corporificar sem poder
gestos aflitos, ritos solitários
músicas de imperceptível tremor (ibid, p. 270)
A noção de uma vida que brota convulsivamente, e que também convulsivamente pode ser
contemplada por um “olho calado” – aquele que não indaga, não procura entender, não
impõe formas limitadascxxii –, aparece explícita no poema “Mulheres de milho”:
Milhares de mulheres de milho
107
brotam do meu olho calado como espigas
fortes. No ar elas se endireitam
como folhudas criaturas carnosas
que ao vento se transmudam, de fêmeas,
em formosos penachos machos.
Acho graça na cruza: penso nisso
que é ser mulher a passo
de, sob a vertigem solar, virar confusa
hibridação. Abro-me. Brinco
de me dar. Rapto-me e opto-me
como se eu mesmo fosse me comer inteiro
enquanto as coisas simplesmente nascem. (ibid, p. 89)
É resultante de associações de ordem sonora – no caso, aliterações – a “confusa hibridação”
que rompe as fronteiras entre os reinos e os sexos: tudo ocorre “sob a vertigem solar”, sob
um sol que não traz a luz engendradora das identidades contraditórias.
108
CONCLUSÃO
109
Na base do que concebemos, na presente dissertação, como fenômeno poético
encontra-se a hipótese de que o processo que Hugo Friedrich considera inaugurado na lírica
moderna com o descompromisso em relação à realidade “natural” e a decorrente
transformação da mesma, passando pela quebra com a clareza comunicativa e culminando
com a neutralização e autodespojo do eu comum e empírico – despersonalizado e
desumanizado (FRIEDRICH: 1978, pp. 15-61) – acabaria levando a uma atualização de uma
concepção poética arcaica, mais propriamente do modelo homérico do aedo éntheos, cuja
ação, de acordo com Platão, prescindiria da téchne e da epistéme características do saber
teórico: insuflado pela manía, o poeta perde a razão (noûs), agindo como um
katekhómenos, um “incorporado”, que se submete a ação de um outro, de uma theía
dýnamis, responsável, esta sim, pela poesia (PLATÃO: 1988, pp. 49-55). Fora de si
(ékphron), os poetas agiriam, portanto, como simples hermenês tòn theôn, “intérpretes dos
deuses” (id, pp. 50-55); entretanto, os deuses se foram – na modernidade são outros os
outros que se incorporam ao poeta. O mais elementar deles seria a própria poesia (COLLOT:
2004, p. 165): esta, enquanto “lamento pela decifração científica do universo” (FRIEDRICH:
op. cit., p. 20), buscaria, no princípio analógico, um “contradiscurso” para as supostas
verdades da ciência iluminista (MORAES: 2002, p. 77), flagrando um universo cujas
individuações nada seriam senão percepções limitadas da totalidade.
Daí Michel Collot afirmar que todo lirismo, embora tradicionalmente visto como
expressão da subjetividade de quem escreve, seja, de fato, “transpessoal” (COLLOT: 2004,
p. 175). O que talvez não tenha ficado tão claro nas páginas que aqui se seguiram diz
respeito ao fato de que, desencarcerado de seu suposto eu – mero artifício criado pelo
110
pensamento ocidental dominante –, o sujeito extático articulado pela poesia de Leonardo
Fróes pretende driblar não apenas o egocentrismo, mas também o antropocentrismo, e, para
isso, sua perseguição ao devir e à metamorfose constantes se traduz num fazer
revolucionário igualmente constante, em que a alegria da fusão com a “forma comum”
(FRÓES: 2005, p. 48) é a meta a ser atingida. Reconhece Fróes: “a loucura me amansa – e
estou atriste” (FRÓES: 1998, p. 173). Assim, com uma intenção idêntica a de que Johann
Wolfgang von Goethe se muniu ao afirmar a alegria proporcionada pelo Versuch, pela
experiência radical que confunde sujeito e objeto enquanto totalidade (GOETHE: 2003, p. 3,
aforismo 16), Fróes, “confuso mas feliz” (FRÓES: 1998, p. 246), parece querer com seus
poemas, verdadeiras “cartas de amor ao mundo” (id, p. 41), “selar, com saliva e garra, um
grito de amor por tudo” (ibid, p. 42), o que se articula como um questionamento das
normas, regras e formas delimitadoras impostas pela razão:
viver o a que não me vergo:
a lei sem sentido, as normas
e eu – que, a negar, enxergo (FRÓES: 1998, p. 41).
Fróes, então, se pergunta:
O manto do real, que é? Um selo
lacrando a boca infame de uma fábula
contada com cinismo ao nosso medo (id, p. 36).
“A calma das caras loucas imprime sentido a tudo” (ibid, p. 94): como nos rituais
dionisíacos, “a ‘desmedida’” se revela “como verdade” (NIETZSCHE: 2005, p. 23). Haveria
uma “gravidade ontológica da transformação” (MORAES: op. cit., p. 84; cf. também
111
COLLOT: 2004, p. 165-166): é apenas perseguindo a “liquidez completa de não encontrar
uma explicação para hoje” (FRÓES: 1998, p. 140) – é apenas se excedendo à razão que seria
possível ao poeta se encontrar e ser atravessado pela vida:
a razão se estilhaça os sentidos
se destampam os cheiros se condensam os sabores
se associam ao cuspe a vida nos penetra (id, p. 78; grifos nossos).
Friedrich Nietzsche já apontara o quanto a natureza, a totalidade imanente dos fenômenos,
iria além daquilo que se convencionou considerar como o real, mero conjunto de aparências
captadas pelo homem com base nos sentidos limitados pelo pensamento ocidental
(NIETZSCHE: 2005, p. 30); através do mesmo caminho vertiginoso, segue o sujeito extasiado
da poética de Fróes, em busca da “força que me surpreende lá fora de mim”, a “força da
espécie”, a “força firme da cara torta abandonada (…) no esquecimento mineral de tudo”
(FRÓES: 1998, p. 197). O encontro com a “sobrenatureza” (id) revela a singularidade
ocultada por trás da multiplicidade fenomênica, fazendo explodirem as ilusórias
membranas que separariam os reinos humano, animal, vegetal, mineral etc. – trata-se do
mesmo encontro que Rimbaud travara com “l’âme universelle” (RIMBAUD apud FRIEDRICH:
op.; cit., p. 63). Vale retomar a relação que Fróes estabelece, em sua entrevista à Azougue,
entre a poesia e o montanhismo, outra de suas atividades de predileção:
quando se sobe uma montanha, por exemplo, e se faz um extremo esforço
além das possibilidades físicas de resistência, aquele arcabouço mental que
achamos que nos constitui, e que na verdade são memórias ou preocupações,
ou o conjunto das duas coisas, desaparece. (…) Dá uma sede enorme, uma
fome enorme, mas o desejo de chegar ao cume também é enorme, e os
limites são testados. E aí acho que a personalidade fica completamente
amortecida. Como se milagrosamente ela pudesse ter deixado de existir.
Claro que no dia seguinte ela vai amanhecer, (…) mas já conhecemos essa
experiência ameaçadora que faz com que a personalidade vá para o espaço.
112
Acho que o momento poético é exatamente igual a subir uma montanha. É o
momento em que se atinge a plenitude do universo (FRÓES: 2003, p. 11).
A comparação entre as experiências do fazer poético e do contato íntimo com mundo
natural – como aquele desencadeado pelo montanhismo – estaria na capacitação que ambas
proporcionariam ao homem de “estar estando” (FRÓES: 1998, p. 69):
a impressão de estar, o lento
espanto que se repete. Aqui e onde, eis como
povôo ao mesmo tempo dois espaços
ou, mais que isso, passo a noite inteira
vivendo as sensações de um fragmento
que me é próprio, ou é-me o corpo todo,
e de repente vai sem deixar marca
entre o que foi e o que há de ser. Deslizo
nessa fronteira vã que não separa
nada e ninguém (id).
Pode-se dialogar tal concepção de poesia com o paralelo estabelecido por Deleuze
entre literatura e atletismo (DELEUZE: 1997, p. 12): o montanhismo/poética froesiana
conduz exatamente ao limite de resistência e de sobrevivência do montanhista/poeta – ao
amortecimento de sua identidade, que não passa do momento em que se dá a “passagem de
Vida que atravessa o vivível e o vivido” (id, p. 11). Um dos mais famosos poemas de Fróes,
“Introdução à arte das montanhas”, é bastante eloqüente quanto a esse aspecto:
Um animal passeia nas montanhas.
Arranha a cara nos espinhos do mato, perde o fôlego
mas não desiste de chegar ao ponto mais alto.
De tanto andar fazendo esforço se torna
um organismo em movimento reagindo a passadas,
e só. Não sente fome nem saudade nem sede,
confia apenas nos instintos que o destino conduz.
Puxado sempre para cima, o animal é um ímã,
numa escala de formiga, que as montanhas atraem.
Conhece alguma liberdade, quando chega ao cume.
Sente-se disperso entre as nuvens,
113
acha que reconheceu seus limites. Mas não sabe,
ainda, que agora tem de aprender a descer (FRÓES: 1998, p. 243).
Vê-se que, no poema, o sujeito lírico narra, em terceira pessoa, seus atos como se fossem os
movimentos de um animal que “passeia nas montanhas”. De animal, o sujeito/objeto se
torna um mero “organismo em movimento reagindo a passadas”, que “confia apenas nos
instintos que o destino conduz”. Sua passividade e insignificância são totais: torna-se um
“ímã” que “as montanhas atraem” “numa escala de formiga”. Atingindo o cume, sente
“alguma liberdade” exatamente por estar “disperso entre as nuvens”. Da mesma maneira
que o escritor em eterno devir não encontra sua delimitação formal (DELEUZE: 1997, p. 16),
o cume não é o limite para o sujeito/objeto/animal/organismo/ímã: “agora tem de aprender
a descer”.
114
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121
NOTAS
122
i
Na segunda seção do presente trabalho, veremos que o Versuch, “experiência”, “ensaio”, seria uma espécie
de mediador (Vermittler) entre o sujeito e o objeto (GONÇALVES in GOETHE: 2003, pp. X-XI).
ii
Não estamos nos referindo, portanto, às Musas, divindades invocadas e incorporadas pelos aedos da
Antiguidade para se ter acesso à palavra poética (cf. seção I, 1. 1). As Musas parecem ser, elas próprias, a
poesia; o que pretenderíamos incorporar seria o êxtase e o devir implicados em sua dinâmica.
iii
“Barulhento”.
iv
Zagreu, deus ligado ao orfismo, era considerado o “primeiro Dioniso”, fruto do coito entre Zeus
(metamorfoseado numa serpente) e Perséfone, e teria sofrido as conseqüências terríveis dos ciúmes de Hera:
mesmo disfarçado sob a forma de um touro, fora despedaçado e comido pelos Titãs. Numa das tradições
mitológicas, diz-se que Zeus teria conseguido resgatar o coração ainda palpitante da criança e inserido-o em
Sêmele, que, então, seria a mãe do “segundo Dioniso” (cf. GRIMAL: 1997, p. 468, verbete “Zagreu”).
v
Iaco era, ao mesmo tempo, o deus adolescente que presidia, dançando, a procissão dos iniciados de Êleusis e
o grito ritual emitido por estes (“Íakkhe!”). Uma tradição diz que é filho de Perséfone, correspondendo à
reencarnação de Zagreu; outra o coloca como filho de Dioniso e da ninfa frígia Aura. Por vezes, foi
identificado com Baco em sua faceta pueril (cf. GRIMAL: 1997, p. 237, verbete “Iaco”).
vi
Assim como Orthós (cf. nota seguinte) e Horaîos (cf. nota xx), trata-se do nome recebido por Dioniso em
seu aspecto civilizador: o deus do vinho cultivado – o Dioniso que dá início, juntamente com Deméter, a
deusa da cultura do trigo, a “uma arte de viver cuja regra se reparte entre a reflexão dietética, as práticas
culinárias e o saber médico” (DETIENNE: 1988, p. 68). Na tragédia As Bacantes, de Eurípides – “um
documento incomparável para explicitar o que deve ter sido, nos seus traços singulares, a experiência
religiosa” dionisíaca (VERNANT: 1999, p. 335) –, o famoso adivinho Tirésias aproxima Dioniso da deusa do
trigo da seguinte maneira:
dois, ó jovem,
princípios há entre os homens: Deméter Deusa
ou Terra, chama-a pelo nome que preferes,
ela com os sólidos [kseroîsin] nutre os mortais;
este veio equivalente, o filho de Sêmele:
úmido [hygrón] licor de uva inventou e apresentou
aos mortais, dos sofridos homens ele cessa
a dor quando se fartam do fluxo da uva,
dá sono e oblívio dos males cotidianos,
não há nenhum outro remédio das fadigas.
Ele é libação aos deuses, deus nascido,
de modo a terem os homens por ele bens (EURÍPIDES: 1995, pp. 62-63, vv. 274-285).
vii
Literalmente, “Reto”, referindo-se certamente ao fato de que, bebendo de maneira correta – isto é, tendo-se,
antes, diluindo o vinho –, os homens não ficariam curvados: Dioniso “proporciona à humanidade a postura
vertical” (DETIENNE: 1988, pp.67 e 86).
viii
“Folhudo”, fazendo menção à capacidade apresentada pelo deus da vinha de aumentar o volume das folhas
(cf. DETIENNE: 1988, p. 62).
ix
“Provedor de saúde”.
x
“Chefe”, “rei”, “príncipe”.
123
xi
“Cabrito”.
xii
“Doador de muita alegria”. Tal epíteto constitui uma das raras referências a Dioniso encontradas na epopéia
homérica (cf. Ilíada, XIV, v. 325). Também ocorre na poesia de Hesíodo (cf. Os trabalhos e os dias, v. 614).
xiii
“Que carrega consigo a embriaguez (
127
traje de ritual, num cenário selvagem, real ou figurado, através da dança e da música, uma mudança de
estado” (VERNANT: 1999, p. 341).
xlvii
Diferentemente dos aedos, os rapsodos não compunham os versos que declamavam, sem
acompanhamento musical e de maneira performática – Platão chega a igualá-los aos atores (PLATÃO: 1988, p.
61, 534a) –, nos concursos inseridos em festas e solenidades religiosas promovidas nas póleis. Ainda que as
epopéias homéricas constituíssem o repertório principal dos rapsodos, poderiam figurar nele poemas de
qualquer famoso aedo grego (ROCHA PEREIRA: 1998, pp. 147-148).
xlviii
Euporô é a flexão de primeira pessoa do singular do indicativo presente ativo de euporeîn, verbo formado
pela preposição eu-, “bom”, “boa”, e pelo radical do substantivo masculino póros, “passagem”.
xlix
A partir daí, pode-se pensar no locus do leitor, já que, com a atividade “contrateológica” de se ler um texto
sem Autor e, portanto, sem um único sentido, desvenda-se, segundo Barthes, “o ser total de uma escritura: um
texto é feito de escrituras múltiplas, oriundas de várias culturas e entram umas com as outras em diálogo, em
paródia, em contestação; mas há um lugar onde essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o Autor (…),
é o leitor: o leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é
feita uma escritura; a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu destino, mas esse destino não pode
mais ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; ele é apenas esse alguém
que mantém reunidos em um único campo todos os traços de que é constituído o escrito” (BARTHES: 1988, p.
70).
l
Talvez uma leitura mais cuidadosa, que não pretenderemos estabelecer no presente trabalho, revelasse que
muitos daqueles que se filiaram ou que foram filiados à estética romântica não pareciam comungar com a
idéia de lirismo enquanto expressão subjetiva. Cf. n. liii, em que são citados, de maneira panorâmica, alguns
dos vultos do Romantismo que teriam contribuído para as considerações de Rimbaud acerca do poeta voyant.
li
Seria decorrente da independência conquistada pela poesia em relação à expressão subjetiva o que Hugo
Friedrich chama de “anormalidade”, conceito com o qual o autor não pretende estabelecer um juízo de valor
para a lírica moderna: “anormal”, aqui, não significaria “degenerado”, mas indicaria que a poesia, por mais
que se passem os anos, não vem sendo assimilada por um grande público (FRIEDRICH: 1978, pp. 18-19).
Concordando com T. S. Elliot, Friedrich chega a considerar que a poesia moderna possui conteúdos os quais
“são tão imprevisíveis nas suas significações que até mesmo ao próprio poeta o conhecimento do sentido
daquilo que compôs é limitado” (id, p. 19).
lii
Friedrich sublinha, entretanto, que “quase todas as poesias de Les Fleurs du Mal falam a partir do eu”, o que
o faz afirmar que “Baudelaire é um homem completamente curvado sobre si mesmo” (FRIEDRICH: 1978, p.
37). “Todavia”, diz Friedrich, “este homem voltado para si mesmo, quando compõe poesias, mal olha para
seu eu empírico”, falando de si mesmo apenas “na medida em que se sente vítima da modernidade”, a qual
“pesa sobre ele como excomunhão” (id). Assim, “seu sofrimento não era apenas o seu”, só estando os “restos
do conteúdo de sua vida pessoal, quando ainda permanecem aderentes às suas poesias, (…) expressos de
maneira imprecisa”, num “recolhimento em um eu que eliminou a causalidade da pessoa” (ibid, pp. 37-38).
Poderíamos, em suma, concluir que, neste eu, parece se constituir um sujeito lírico que não se confundiria
com o sujeito empírico e pessoal de Charles Pierre Baudelaire.
liii
Michel Collot sublinha o quanto as Cartas do Vidente, texto de Rimbaud que apresenta a noção de poeta
voyant, devem ao Romantismo, além da homenagem que, mesmo com reservas, o jovem poeta presta a esta
estética, “a Lamartine, a Hugo e Baudelaire” (COLLOT: 2004, p. 169). Para Lamartine, salienta Collot, “o
sujeito lírico não é senão ‘um instrumento sonoro de sensações, sentimentos e idéias’, provocados nele pela
‘comoção mais ou menos forte que ele recebe das coisas exteriores e interiores’”, constituindo-se, desta
forma, “no ponto de encontro entre o interior e o exterior, entre o mundo e a linguagem” (id). Já Victor Hugo
sublinhou que “o poeta não deixa transparecer nas páginas o que é pessoal senão talvez por ser um reflexo do
geral” – o poeta, enfim, “não crê que sua individualidade (…) tenha algum motivo para ser estudada” (HUGO:
1987, p. 132), já que “nenhum de nós tem a honra de ter uma vida que seja só sua” (id, p. 133). Vale, ainda,
128
destacar a seguinte frase de Gerard de Nerval, certamente outra das fontes românticas de Rimbaud: “Eu sou o
outro” (NERVAL apud COLLOT: op. cit., p. 169).
liv
A “anormalidade desejada” (FRIEDRICH: op. cit., p. 61) presente na poesia de Rimbaud chegaria ao seu
ápice através de um processo que Hugo Friedrich chama de “desumanização” (id, p. 69). Este ocorre quando
“a lírica moderna exclui não só a pessoa particular, mas também a humanidade normal” (ibid, p. 110), e
poderia ser observado na obra de Stéphane Mallarmé, aquele que, “junto com Rimbaud, (…) introduz o mais
radical abandono da lírica baseada na vivência e na confissão” (ibid, p. 110) – aquele cuja poética, segundo
Barthes, “consiste em suprimir o autor em proveito da escritura”, em que “é a linguagem que fala, não o
autor”, e “escrever é, através de uma impessoalidade prévia (…), atingir esse ponto onde só a linguagem age,
‘performa’, e não o ‘eu’” (BARTHES: 1988, p. 66). Também Paul Valéry “não cessou de colocar em dúvida e
em derrisão o Autor, (…) e reivindicou (…) a favor da condição essencialmente verbal da literatura, face à
qual todo o recurso à interioridade do escritor lhe parecia pura superstição” (id, pp. 66-67); vale destacar
aquilo que o poeta teria experimentado durante uma caminhada e que denominou “estado de poesia”: uma
“ação contínua” através da qual, de forma irregular, inconstante e acidental, o indivíduo é “tomado” por “um
ritmo” que se impõe, por “um funcionamento estranho”, “como se alguém estivesse usando a (…) máquina de
viver” deste indivíduo; “um outro ritmo” vem, então, “reforçar o primeiro, combinando-se com ele”; a partir
daí, estabelecem-se “não sei que relações transversais entre essas duas leis”, combinando “o movimento” das
“pernas andando e não sei que canto que (…) se murmurava através de mim”, numa “composição” que “se
tornou cada vez mais complicada e logo ultrapassou em complexidade tudo o que” se “podia produzir
racionalmente” (VALÉRY: 1999, p. 198). Valéry destaca, porém, que vivenciar o complexo “estado de poesia”
não bastaria para se tornar um poeta: para tanto, seria necessário utilizar-se do pensamento abstrato para
compor o poema, a “síntese artificial desse estado”, a “produção instantânea (…) exercida em um campo tão
convencional como o da linguagem” (id). A partir do poema, o leitor ofereceria ao pretenso poeta o valor, a
“inspiração”, “os méritos transcendentes das forças e das graças que se desenvolvem nele [no leitor]” – e não
no poeta em si (ibid). O papel fundamental atribuído ao leitor nesta dinâmica é bastante similar àquele sobre o
qual fala Barthes (cf. nota v da presente seção). Este, além de Mallarmé e Valéry, adiciona, ainda, à lista
daqueles que teriam contribuído para a “morte do autor”: Marcel Proust – que, “em lugar de colocar a sua
vida no seu romance, fez da sua própria vida uma obra de que o livro foi como o modelo” –, o Surrealismo –
movimento o qual “recomendando sempre frustrar bruscamente os sentidos esperados (…), confiando à mão o
cuidado de escrever tão depressa quanto possível aquilo que a cabeça mesmo ignora (era a escritura
automática), aceitando o princípio e a experiência de uma escritura coletiva, (…) contribuiu para dessacralizar
a figura do Autor” – e a Lingüística – ciência que procurou mostrar que “a enunciação em seu todo é um
processo vazio que funciona perfeitamente sem que seja necessário preenchê-lo com a pessoa dos
interlocutores: (…) o autor nunca é mais do que aquele que escreve, assim como ‘eu’ outra coisa não é senão
aquele que diz ‘eu’: a linguagem conhece um ‘sujeito’, não uma ‘pessoa’, e esse sujeito, vazio fora da
enunciação que o define, basta para ‘sustentar’ a linguagem, isto é, para exauri-la” (BARTHES: 1988, p. 67).
lv
O que Nietzsche chama de “natureza” certamente não se confunde com o que chama de “real”, já que este
parece se referir ao diversificado conjunto de imagens inteligíveis para o homem e em relação às quais se
molda a imagética onírica; já a “natureza”, como guarda um fundo único em relação a todos os fenômenos, é
mais complexa, englobando forças não necessariamente formais e perceptíveis. Afirma o filósofo: “todo o
real dilui-se em aparência, e atrás desta se manifesta a natureza unitária da Vontade” (NIETZSCHE: 2005, p.
30).
lvi
Dioniso, de acordo com Nietzsche, implode as fronteiras entre arte e vida, e a própria natureza se torna
artista: “O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte, caminha tão extasiado e elevado como vira em
sonho os deuses caminharem. O poder artístico da natureza, não mais o de um homem, revela-se aqui: uma
argila mais nobre é aqui modelada, um mármore mais precioso é aqui talhado: o homem” (NIETZSCHE: 2005,
p. 9). O filósofo compara: o “homem, conformado pelo artista Dioniso, está para a natureza assim como a
estátua está para o artista apolíneo” (id, p. 9).
lvii
Apolo será exatamente o “deus da representação onírica” por se tratar do “deus dos poderes
configuradores” (id, p. 29), aquele que encarna “o ‘aparente’ por completo: o deus do sol e da luz na raiz mais
profunda, o deus que se revela no brilho” (NIETZSCHE: 2005, p. 7). Seu elemento é a beleza física da eterna
129
juventude – seu reino é o mundo das aparências (id). E, note-se, “também é o seu reino a bela aparência do
mundo do sonho: a verdade mais elevada, (…) em contraposição à realidade diurna lacunarmente inteligível,
elevam-no a deus vaticinador, mas tão certamente também a deus artístico. O deus da bela aparência precisa
ser ao mesmo tempo o deus do conhecimento verdadeiro” (ibid; cf. também NIETZSCHE: 2001, p. 29).
lviii
Segundo Nietzsche, o efeito das artes plásticas é o mesmo alcançado pela epopéia, sendo que, nesta,
através de um “desvio”: “enquanto o escultor nos guia por meio do mármore esculpido ao deus vivo visto por
ele em sonho, de modo que a figura que paira diante propriamente como télos se torna clara tanto para o
escultor como para o espectador, e o primeiro provoca no último, através da forma intermediária da estátua,
uma visão secundária”, para nos transportar ao estado de sonho através da poesia épica, “não devemos ver
nada com os olhos abertos e temos que nos apascentar com imagens interiores para cuja produção o rapsodo
procura nos estimular por meio de conceitos” (NIETZSCHE: 2001, pp. 20-21). Dito de outra maneira, “o poeta
épico vê a mesma figura viva e quer apresentá-la também aos outros para a contemplação”, mas, para isso,
“não coloca mais nenhuma estátua entre ele e os homens: ele narra, antes, como aquela figura demonstra sua
vida, em movimento, tom, palavra, ação” (id).
lix
Nietzsche chega a considerar a existência de um dado apolíneo na música: a “batida ondulante do ritmo”,
verdadeira transposição da “arquitetura dórica em sons, mas apenas sons insinuados” (NIETZSCHE: 2001, p.
34). “Mantinha-se cautelosamente à distância”, sublinha o filósofo, “aquele preciso elemento que, não sendo
apolíneo, constitui o caráter da música dionisíaca e, portanto, da música em geral: a comovedora violência do
som, a torrente unitária da melodia e o mundo absolutamente incomparável da harmonia” (id; cf, também,
NIETZSCHE: 2005, pp. 11-12).
lx
Talvez não seja um excesso de didatismo sugerir o seguinte quadro-resumo:
DIVINDADE
ATRIBUTO (JOGO)
ARTISTA
OBRA DE ARTE
Apolo
Sonho
Homem (força criativa individual)
Imagens similares às do real.
Dioniso
Embriaguez
Natureza (força criativa total)
O Homem.
lxi
Partindo do pressuposto de que “no mundo helênico existe uma enorme contraposição, quanto a origens e
objetivos, entre a arte do figurador plástico, a apolínea, e a arte não-figurada da música, a de Dioniso” –
“impulsos” que, “tão diversos, caminham lado a lado, na maioria das vezes em discórdia aberta e incitando-se
mutuamente a produções sempre novas, para perpetuar nelas a luta daquela contraposição sobre a qual a
palavra comum ‘arte’ lançava apenas aparentemente a ponte” (NIETZSCHE: 2001, p. 27) –, Nietzsche, em seu
primeiro livro, O nascimento da tragédia, procurará demonstrar como, na formação da tragédia ática clássica,
tais artes se encontram emparelhadas, reconciliadas.
lxii
A possível ressalva quanto ao uso que, no presente trabalho, fazemos do termo “ontologia” – por falta de
outro melhor – reside no fato de que, em êxtase, o ser se subtrai: sua “eternidade” “só pode ser revelada no
devir”, sua “paisagem” “só aparece no movimento” (DELEUZE: 1997, p. 16). Cf. n. xciii, em que falaremos de
uma “gravidade ontológica” da transformação (MORAES, 2002, p. 84).
lxiii
Seria bastante pertinente retomar, neste ponto, o conceito de “idealidade vazia”, cunhado por Hugo
Friedrich. Propondo uma leitura para o poema “Élévation”, de Baudelaire, Friedrich flagra o esquema
platônico-místico-cristão de ascensão do espírito a uma “transcendência que o transforma a tal ponto que (…)
[o espírito] penetra o véu que cobre o que é terreno e reconhece sua essência verdadeira” (FRIEDRICH: 1978,
p. 48). Entretanto, não se observa, de fato, uma concordância plena com tal ideal exatamente porque falta, no
poema, o “final da ascensão e, até mesmo, a vontade de chegar a ele. (…) A meta da ascensão não só está
distante, como vazia, uma idealidade sem conteúdo. Esta é um simples pólo de tensão, hiperbolicamente
ambicionado, mas jamais atingido” (id) – trata-se de uma fuga do mundo banal, fuga que é “sem meta” e “não
vai além da excitação dissonante” (ibid, p. 49). A idealidade vazia como “outro indefinido” aparecerá também
e mais radicalmente em Rimbaud e em Mallarmé, neste convertida em “Nada” (cf. ibid, p. 115).
lxiv
Collot quer destacar o fato de serem cognatas indo-européias as palavras “êxtase” (do substantivo grego
éktasis, derivado do verbo ekteínein, “alongar”, “estender”, “esticar”, “desenvolver”, “difundir”,
130
“disseminar”) e “existência” (do latim tardio existentia, proveniente do antigo verbo ex-sistere, “alongar-se
para fora de”, “estender-se sobre”, “sair de”, mostrar-se”, “surgir”).
lxv
Um aforismo de René Char citado por Collot nos parece satisfatório para a compreensão da idéia de
“matéria-emoção”: “audácia de, num instante, ser si mesmo a forma realizada do poema. Instantaneamente,
reina o bem-estar de ter entrevisto cintilar a matéria-emoção” (CHAR apud COLLOT: 2004, p. 167). Dito de
outra forma: o poema consistiria numa espécie de materialização da emoção pessoal, sendo a matéria algo
exterior – do mundo e das palavras.
lxvi
Voltaremos a tratar da articulação entre a poesia e a alquimia na segunda seção do presente trabalho.
lxvii
No mesmo poema, encontra-se uma passagem que diz: “a cabeça que socialmente eu considero minha
estava imaginando loucuras” (FRÓES: 1998, p. 167).
lxviii
FRÓES: 1998, p. 89.
lxix
Deleuze sublinha que a própria sintaxe da literatura seria uma possibilidade, um desvio em relação à língua
materna, pré-definida e dominante: se “não há linha reta, nem nas coisas nem na linguagem”, se “a sintaxe é
um conjunto de desvios necessários criados a cada vez para revelar a vida nas coisas” (Deleuze: 1997, p. 12),
“o que a literatura produz na língua já aparece melhor: como diz Proust, ela traça aí precisamente uma espécie
de língua estrangeira, que não é outra língua, nem um dialeto regional redescoberto, mas um devir-outro da
língua, uma minoração dessa língua maior, um delírio que a arrasta, uma linha de feitiçaria que foge ao
sistema dominante. (…) Criação sintática, estilo, tal é o devir da língua: não há criação de palavras, não há
neologismos que valham fora dos efeitos de sintaxe nos quais se desenvolvem” (id, p. 15).
lxx
“Goethe foi um profundo estudioso de botânica, de geologia, de mineralogia, de osteologia, de anatomia,
de morfologia e dos fenômenos físicos da ótica, das cores, do magnetismo, do galvanismo e da meteorologia”
(GONÇALVES in GOETHE: 2003, p. VIII), e “o que chama a atenção cada vez mais para a obra científica de
Goethe não é apenas a quantidade de textos e teses produzidos, mas sobretudo o ecletismo de seus temas, os
quais, porém, se mostram perfeitamente compatíveis e integrados, formando o que hoje chamaríamos de
interdisciplinaridade” (id, p. IX). As primeiras incursões de Goethe no campo das ciências da natureza “datam
de seu período de estudos em Leipzig (1765-68), durante o qual interessa-se por medicina e pelos escritos
naturalistas de Buffon, Linné e Haller. Tais estudos prosseguiram durante o período de estudos em
Estrasburgo (1770-71), anos em que estabelece contato com Johann Casper Lavater e seus métodos de
investigação. No entanto, (…) o fascínio de Goethe pelas ciências tomou grande impulso após sua mudança
para Weimar, em 1775, quando as leituras e observações de Goethe acrescem-se de uma dimensão prática”, já
que, lá, trabalhou como engenheiro florestal e geólogo, supervisionando as minas da região da Turíngia.
“Porém, foi durante o período de sua viagem à Itália (1786-88) que seus interesses pelo campo das artes e da
ciência passaram a convergir mais diretamente, levando ao desenvolvimento de um único método de
investigação capaz de promover a síntese entre os dois campos de conhecimento” (MATTOS: 2006, pp. 78-79).
lxxi
A partir dos primeiros anos do século XIX, Goethe teria criado “o hábito de registrar a qualquer tempo em
e em qualquer lugar, servindo-se de qualquer pedaço de papel disponível, fragmentos de conversas, trechos de
obras, síntese de idéias, cujas fontes quase nunca cuidava em identificar”; disso, resultou, postumamente, a
coletânea inicialmente chamada de Goethesche Spruchwerk (Obra de provérbio de Goethe), mais tarde de
Sprüche in Prosa (Provérbios em prosa), até que, finalmente, em 1907, de Maximen und Reflexionen
(Máximas e Reflexões) (GONÇALVES in GOETHE: 2003, p. V).
lxxii
Daí Herder considerar o corpo como o “fenômeno do conhecer”, o ponto a partir do qual “a alma vê os
pensamentos” (HERDER apud GONÇALVES in GOETHE: 2003, p. VIII).
lxxiii
Não estamos afirmando que Goethe abdicou do saber teórico; no aforismo 409, o poeta se posiciona da
seguinte maneira: “todos os empiristas anseiam pela idéia e não conseguem descobri-la na multiplicidade;
todos os teóricos buscam-na na multiplicidade e não conseguem encontrá-la aí” (GOETHE: 2003, p. 63). O
mais importante, parece-nos, não é propriamente a empiria, mas a maneira como ela é conduzida. Tal questão
131
será abordada logo a seguir, quando mencionarmos o aforismo 563 e, sobretudo, quando tratarmos do
Versuch, ponto básico para o entendimento do caráter empírico da Naturwissenschaft proposta por Goethe.
lxxiv
Daí o fato de Goethe considerar conversíveis os atos de descobrir (entdecken) e inventar (erfinden) (cf.
GONÇALVES in GOETHE: 2003, p. XI).
lxxv
Uma experiência de primeiro nível seria aquela que, superficial e imediata, seria “incapaz de revelar um
sentido mais profundo” do fenômeno, isolando-o dos demais objetos (GONÇALVES in GOETHE: 2003, p. X).
lxxvi
Segundo Goethe, “a percepção imediata dos fenômenos originários transpõe-nos para uma espécie de
angústia: sentimos nossa insuficiência; somente vivificados pelo jogo eterno da experiência eles nos alegram”
(GOETHE: 2003, p. 3, aforismo 16; cf. também o aforismo seguinte). No aforismo 101, o poeta declara:
“desfrutar significa pertencer a si e aos outros em alegria” (id, pp. 16-17).
lxxvii
Qualquer pessoa, independentemente de sua cultura ou origem, poderia desfrutar, de acordo com Goethe,
de uma experiência de segundo nível, dado que esta é possibilitada pela capacidade de sensibilidade
(Empfindung) possuída por todos os homens. Vale lembrar que o conceito de Weltliteratur, “literatura
universal”, criado por Herder e levado à prática pelo jovem Goethe, também é alicerçado sobre a idéia de uma
sensibilidade (Empfindung) ou sentimento (Gefühl) enquanto elemento inerente a todos os homens
(GONÇALVES in GOETHE: 2003, p. VII).
lxxviii
No aforismo seguinte (516), Goethe completa: “por isso, até onde for possível, o melhor é estar
consciente dos objetos em meio à observação e de nós mesmos em meio ao pensamento sobre eles” (GOETHE:
2003, p. 79).
lxxix
A igualdade entre Deus e mundo natural enquanto princípios criadores, produtivos, leva Goethe a indagar,
no aforismo 9 das Maximen und Reflexionen, levando em conta a dessacralização da natureza efetuada pela
razão crítica, se “não devemos ter o direito de sentir no raio, na trovoada e na tempestade a proximidade de
um poder mais do que potente, no perfume das flores e no murmúrio suave de uma brisa um ser amoroso se
aproximando?” (GOETHE: 2003, p. 2).
lxxx
Goethe complementa a denúncia no aforismo 589: “vivemos no interior de fenômenos derivados e não
sabemos absolutamente como devemos atingir a questão originária” (GOETHE: 2003, p. 89).
lxxxi
No poema “Canto dos Espíritos sobre as Águas”, outro conceito da tradição metafísico-religiosa é retirado
da instância imutável:
A alma do homem
É como a água:
Do céu vem,
Ao céu sobre.
E de novo tem
Que descer à terra,
Em mudança eterna” (GOETHE: 1958, p. 37).
lxxxii
O método de Goethe tem uma de suas fontes na colaboração que o poeta empreendeu para a pesquisa do
suíço Johann Casper Lavater, entre 1741 e 1801. “Obstinado por demonstrar uma correlação entre a
fisionomia externa do ser humano e seu caráter, Lavater colecionava retratos de pessoas famosas de toda a
Europa, acrescida de uma descrição de suas personalidades. (…) Os retratos estudados por Lavater eram
preferencialmente traçados em silhueta (Schattenrisse) e em seguida eram submetidos a um método
comparativo para determinar a relação entre certas formas físicas e traços de caráter” (MATTOS: 2006, pp. 8384).
lxxxiii
Cf. DELEUZE: 2004, pp. 160-161.
132
lxxxiv
No aforismo seguinte (873), Goethe continua: “A vantagem que o jovem artista alcança com isto é, em
verdade, múltipla. Ele aprende a pensar, a reunir de maneira pertinente o que se coaduna e, se ele compõe
espirituosamente desta maneira, não lhe falta por fim absolutamente o que se denomina invenção, o
desenvolvimento do múltiplo a partir do singular” (GOETHE: 2003, p. 135).
lxxxv
O ponto de partida da negação do ideal antropomórfico no campo das artes estaria nas “duplicações da
identidade, amplamente tematizadas no romantismo” (MORAES: 2002, p. 21; cf. também o capítulo V da
mesma obra, pp. 93-106).
lxxxvi
Além do “desejo profundo que instiga o ser humano a indagar os limites de sua condição” e da
necessidade de “demarcar as fronteiras da humanidade” – questões que acompanhariam o homem desde
muito –, a maneira obsessiva e urgente com a qual a possibilidade da metamorfose fora retomada e
redimensionada pelos artistas no início do século XX deixa explícito que teria ela se tornado uma
“necessidade violenta”, posto que “a cena simbólica confrontava-se com os ímpetos destrutivos que
assaltavam a cena histórica” (MORAES: 2002, p. 87). “Não foram poucas as razões que levaram a geração
modernista a formular parâmetros de uma ‘estética desumana’: primeiro, como oposição radical aos discursos
humanistas que, na sua afirmação abstrata do homem, desconsideravam a singularidade concreta dos seres;
segundo, como resposta às cenas de horror que se rotinizavam, evidenciando a falta de sentido de um mundo
em que a ameaça de desintegração sugeria uma negação das forças vitais até então desconhecida. Por último,
como reflexão sobre as fronteiras entre o humano e o inumano, dada a urgência histórica de repensar esses
limites e, desse modo, criar possibilidades de reconsiderar a noção de totalidade e (…) de conferir um novo
sentido à vida” (id, p. 89).
lxxxvii
Com a inserção de um critério arbitrário no processo de aproximação de duas realidades, os surrealistas
se afastaram das teorias de Pierre Reverdy, em cujos fragmentos de 1918 afirma-se que, embora a imagem
poética seja “pura criação do espírito”, não podendo nascer da comparação, mas da “aproximação de duas
realidades mais ou menos distantes”, sua força reside na exatidão dessa aproximação (REVERDY apud
MORAES: 2002, p. 41). Contrariando tal noção de exatidão, apoiado em Lautréamont, Breton apostava com
convicção que “a imagem mais forte é aquela que apresenta o mais elevado grau de arbitrariedade” e,
portanto, “aquela que demanda mais tempo para se traduzir em linguagem prática” (BRETON apud MORAES:
2002, p. 41). Daí Louis Aragon acreditar que a imagem poética poderia acarretar no campo da representação
“perturbações imprevisíveis” e “metamorfoses”, “pois cada imagem, a cada vez, vos força a revisar todo o
Universo. E há para cada homem uma imagem a encontrar que aniquila todo o Universo” (ARAGON apud
MORAES: 2002, p. 42).
lxxxviii
Na busca por uma técnica de composição poética em que a linguagem se libertasse de qualquer
imposição, ou pretensão de imposição, da individualidade que escreve, os surrealistas desenvolveram a
chamada “escrita automática”, a partir da qual seria possível expandir a realidade, alcançando-se resultados
surpreendentes não apenas para o leitor, mas também para o próprio criador (MORAES: 2002, p. 42). Não é àtoa que Roland Barthes inclui os surrealistas entre aqueles que teriam contribuído para a “morte do Autor”
(BARTHES: 1988, p. 67; cf. seção I do presente trabalho, n. x).
lxxxix
As técnicas criadas por Max Ernst com o intuito de transpor para o campo das artes visuais a noção de
escrita automática talvez tornem mais clara a noção de invenção surrealista (MORAES: 2002, p. 45). “Encontro
fortuito de duas realidades distantes em um plano não pertinente” (ERNST apud MORAES: op. cit., p. 44): a
definição dada pelo artista explicita que a colagem, de maneira bastante similar ao que ocorre nos poemas de
Breton, Soupault e outros, desviaria os elementos constituintes de seus sentido, destino e identidade
previsíveis, despertando-os para uma “realidade nova e desconhecida” (MORAES: op. cit., p. 44). É notória,
aliás, a diferença entre as colagens cubista e surrealista: na primeira, de que são exemplos clássicos os
papiers-collés de Braque e Picasso, “o objeto colado era o ponto de partida da organização do quadro,
comprometido com a sintaxe da tela”, num procedimento que, “segundo Aragon, era excessivamente preso
aos referentes” e “motivado por uma intenção realista” (id, p. 45). Na colagem surrealista desenvolvida por
Ernst, por outro lado, “os elementos empregados funcionavam como metáfora”, pois, em conjunto,
constituiriam uma “materialização do imaginário” (ibid), evocando – e assim se compreende o fato de ter o
artista alemão chamado tal técnica de “alquimia visual” – “o milagre da transfiguração total de seres e
133
objetos, através da modificação de seus aspectos físicos e anatômicos ou não” (ERNST apud MORAES: op. cit.,
p. 45). A tarefa não é “simplesmente desfigurar, produzindo alterações”, mas “transfigurar, operando
metamorfoses de seres e objetos” (MORAES: op. cit., p. 45). São contemplados, assim, ambos os pólos entre os
quais oscila o pêndulo da invenção segundo os surrealistas: a colagem “supõe um material preexistente, já
dado, mas sempre passível de ser deslocado até o ponto de se converter em outra realidade” (id). A alquimia
visual de Max Ernst alcançou, em 1925 sua “forma mais acabada” quando o artista, baseado em técnicas
desenvolvidas por Da Vinci, “decidiu aplicar uma folha de papel às ranhuras de um soalho e esfregá-la com
um lápis a fim de obter um decalque”: nascia a técnica batizada de frotagem, uma “interrogação à matéria” a
partir da qual “surgiu um mundo estranho, povoado por seres imaginários, cabeças humanas, vapores,
minerais e vegetais (ibid).
xc
Breton chegou a sugerir uma leitura para a famosa imagem dada por Lautréamont: recuando até os símbolos
sexuais mais elementares, o guarda-chuva seria o homem, a máquina de costura a mulher, a mesa de
dissecação a cama (MORAES: 2002, p. 48). Também Max Ernst seguirá por tal caminho: os objetos, retirados
de seus contextos previsíveis e redimensionados, “abandonarão por completo seu destino previsível e sua
identidade, passando de seu falso absoluto, por uma série de valores relativos, para um absoluto novo,
verdadeiro e poético: o guarda-chuva e a máquina de costura farão amor” (ERNST apud MORAES: 2002, p. 48).
A interpretação sugerida não é apenas cabível para os surrealistas: é previsível, porque, além de confirmar
seus “anseios de uma poesia na qual ‘as palavras fariam amor’” (MORAES: 2002, pp. 48-49), reafirma a visão
cultivada por Breton e seus companheiros em relação ao encontro amoroso como a “expressão modelar da
ocorrência do acaso objetivo” (id, p. 48). “A exemplo do que acontece na criação da imagem poética, também
os amantes estariam sujeitos às exigências do desejo”, superando suas identidades e seus destinos individuais
(ibid).O que talvez soe limitado nessa interpretação da frase dos Chants de Maldoror advém do ideal
surrealista do amor único e recíproco entre um homem e uma mulher (ibid, p. 51), ao passo que a sexualidade
ducassiana seria mais complexa, englobando práticas homossexuais e até mesmo zoófilas – que não deixam
de ser modalidades da metamorfose aplicados à ordem sexual (cf. WILLER in: LAUTRÉAMONT: 1997, pp. 2526, 33). Sublinhemos desde já que na poesia de Leonardo Fróes é possível encontrar dados eróticos que
extravasam o padrão sexual; vale mencionar aqui um trecho do poema “Amor no mato”, no qual se diz que o
orgasmo “só se tornava mais forte e se completava quando, em vez de guardado como um valor qualquer
mofado, era dado no escuro pelo pênis, em comunhão com o gozo das espécies” (FRÓES: 2005, pp. 41-42).
xci
Note-se que “uma tal similitude entre a transmutação alquímica e as metamorfoses da imagem poética já se
fazia ler nas ‘correspondências’ de Swedenborg e de Baudelaire, na ‘alquimia do verbo’ de Rimbaud, ou no
‘demônio da analogia’ de Mallarmé. Com o surrealismo, porém, ela atingiu sua maior evidência” (MORAES:
2002, pp. 77-78), funcionando “como um dos pontos terminais de uma consciência que vinha se formando
desde o século XIX com o romantismo” (id., p. 80).
xcii
“Velho conceito, familiar à ciência grega, o pensamento analógico foi, segundo Michel Foucault, uma das
principais figuras do saber da semelhança que, até o século XVII, desempenhou um papel essencial na cultura
do Ocidente. A partir de um mesmo ponto, valendo-se de ajustamentos, liames e junturas, a analogia podia
tramar um grande número de parentescos, multiplicando-os indefinidamente. Esse caráter de reversibilidade e
polivalência conferia a ela um campo universal de aplicação, na medida em que permitia a aproximação de
todas as figuras do mundo” (MORAES: 2002, p. 78).
xciii
Bataille – tendo observado que “os seres só morrem para voltar a nascer” e, a partir daí, comparado o ciclo
da vida à atividade erótica “dos falos, que saem dos corpos para a eles retornarem” (BATAILLE apud MORAES:
2002, p. 84) – afirmava a “metamorfose contínua a que todos os seres estão sujeitos, tendo por base a idéia de
que o universo é regido por dois movimentos fundamentais, o rotativo e o sexual” (MORAES, op. cit., p. 84).
Haveria, portanto, uma “gravidade ontológica” na transformação: “não são apenas as imagens do mundo
moderno que obedecem ao ritmo de transitoriedade e de instabilidade, mas a própria condição do homem,
colocado num universo em constante metamorfose” (id). Esse “materialismo cósmico” de Bataille encontra
sua origem em Sade, que, “elevando a destruição à condição de ato criador”, “insiste na idéia de que a morte
não passa de modificações da matéria, de transformações de um estado em outro” (ibid) – de “simples
transmutação, que tem por base o perpétuo movimento, nada mais sendo que uma passagem imperceptível de
uma existência à outra” (SADE apud MORAES, op. cit., p. 85). Bataille destaca que o pensamento de Sade
134
“funda-se numa experiência comum: a sensualidade (…) é despertada não somente pela presença, mas por
uma modificação do objeto possível” (BATAILLE apud MORAES, op. cit., p. 85). “Não é, portanto, a
destruição que se sublinha aqui, mas a possibilidade de transformação” (MORAES, op. cit., p. 85).
xciv
“Partindo da interpretação de Bachelard aos Chants de Maldoror, talvez se possa afirmar que os
modernistas oscilaram entre esses dois caminhos: de um lado, o destino destrutivo da metamorfose que teria
sua versão solar em Sade e sua versão noturna em Kafka; de outro, o desejo de ultrapassar as fronteiras
humanas para tomar posse de novos psiquismos expresso na obra de Lautréamont” (MORAES: 2002, p. 86).
xcv
Também quanto a esse ponto, o método analógico reabilitado pelo surrealismo, preterindo a descrição
detalhada dos aspectos visíveis proposta pela ciência clássica, pretendia “investigar o funcionamento global
dos organismos animais, atendo-se às funções normalmente negligenciadas pela zoologia e pela botânica, tais
como a camuflagem, o mimetismo e a simbiose” (MORAES: 2002, p. 109).
xcvi
Nos Chants de Maldoror, podem ser encontrados grilos e sapos que conversam (LAUTRÉAMONT: 1997, p.
213) e uma coruja igualmente falante (id, p. 227). Maldoror, em determinada passagem, se dirige aos homens,
dizendo: “não sede tão presunçosos (…) a ponto de acreditar que sois os únicos possuidores da preciosa
faculdade de traduzir os sentimentos do vosso pensamento” (ibid, p. 213). “Todos os gostos estão na
natureza” (ibid, p. 170): até mesmo a poesia é algo que extravasa a esfera humana – diz Lautréamont que ela
se encontra “em todo lugar onde não estiver o sorriso, estupidamente zombeteiro, do homem” (ibid, p. 226).
Noutro trecho dos Chants, o fazer poético é colocado como algo comparável às produções do chamado
instinto animal (ibid, p. 195).
xcvii
“A justaposição de elementos não se restringe contudo ao mundo natural: a contaminação estende-se aos
objetos inanimados que, combinados a outras realidades, também passam a reclamar algumas prerrogativas da
vida” (MORAES: 2002, p. 113).
xcviii
Daí decorre o interesse que os surrealistas cultivaram pelos chamados “animais paradoxais”, como o
louva-deus e o ornitorrinco, cujos fenótipos híbridos explicitariam a ancestralidade comum de todos os seres
(MORAES: 2002, p. 112).
xcix
Não faremos uma distinção muito exata entre os poetas e os prosadores beats, já que “aquilo que os poetas
tentaram na sua poesia foi, ao mesmo tempo, tentado pelos escritores”, sendo “conseqüência disso uma maior
proximidade entre prosa e poesia, e em vários momentos uma grande dificuldade em separar uma da outra”
(BUENO & GOES: 1984, p. 47). Pode-se mesmo falar da literatura beat como uma “combinação de poesia e
prosa” (id, p. 51).
c
“Essa poesia, ao rejeitar o academicismo e o intelectualismo estéreis, criou uma série de novas e fortes
imagens e fez algo ainda mais importante: reintroduziu o som na poesia e rejeitou velhas formas de controle,
levando a poesia para fora das bibliotecas, gabinetes e escritórios burocráticos da cultura” (BUENO & GOES:
1984, pp. 61-62).
ci
Muito embora a livraria City Lights, de que é proprietário poeta Lawrence Ferlinghetti, tenha sido
transformada, já em 1955, numa editora que, a partir de então, publicou em edições inicialmente
independentes, e publica até hoje, as principais obras da dita geração beat.
cii
Vale destacar que, “ainda dentro da América dos anos 50, os Beats surgiram aliados com os Delinqüentes
Juvenis (…), mas também se ligavam ou estavam próximos de outras minorias como os Hispano-Americanos
(Chicanos), Índios, Traficantes, e uma vasta Fauna Urbana, toda ela dissidente da vida familiar e moral do
protestantismo norte-americano” – i. é, do universo square (BUENO & GOES: 1984, p. 20).
ciii
Tal erudição os permitiu dialogar com toda uma tradição literária que abrangia “as Visões magníficas de
William Blake, a potência do poeta-cantor da América Walt Whitman, a modernidade e a força dos
experimentos poéticos de E. E. Cummings, algumas lições tiradas de Ezra Pound, êxtases à la Rimbaud,
135
loucuras à la Baudelaire, a força política da poesia marxista dos anos 30 americanos, as experiências
Surrealistas e Dadaístas” (BUENO & GOES: 1984, p. 60).
civ
Fróes complementa: “na mística beat há um espaço fundamental para o esforço de se criar como gente.
Diante do funil social do enquadramento, que ameaça tragar todos os sonhos numa direção pré-moldada, que
apara o risco das rebarbas para vedar à personalidade suas danças mais cheias, seus vôos mais iluminados,
seus processos mais ricos, o jeito é manter-se frio, to keep cool, e salvar o motor mesmo dinamitando a alma”
(FRÓES: 1984, p. 14).
cv
O próprio termo “beat” é esclarecedor quanto a essa mistura de elementos sagrados e profanos, marca da
literatura que o tem como adjetivo. Pode ser associado à batida do Jazz, a partir da qual se têm os sentidos de
“ritmo, movimento, embalo, ligação diretamente com o corpo e com a sensualidade”, e, por extensão,
“fluência, improviso, ausência de normas fixas, na vida e no texto, envolvimento profundo que traz música,
balanço, liberdade e prazer” (BUENO & GOES: 1984, pp. 8-9), afinal a “liberação emotiva foi fermentada com
Jazz”: “diante de tantas experiências novas e fortes, só se as palavras saíssem como notas, em total
improviso” (FRÓES: 1984: p. 12). “Beat” também significava, ao mesmo tempo, “bater e beatificar, céu e
inferno, anjos e demônios, numa curiosa mistura em que a atitude de contestar, de agredir, de ir contra o
existente vem desde logo associada com o beatífico, o convencimento pacífico, o ativismo político com fortes
doses de espiritualidade” (BUENO & GOES: op. cit., p. 9). Um dos grandes méritos dos beats foi ter percebido,
desde a década de 50, “que a transformação política e social não exclui necessariamente a espiritualidade,
nem as drogas, nem as experiências sexuais, nem os poderes extáticos, visionários da mente humana” (id, p.
61).
cvi
Roberto Muggiati ainda acrescenta que “no Zen, a palavra meditação não deve ser interpretada no seu
sentido contemplativo, mas muito mais como a fusão de dois movimentos, que poderia ser equacionada neste
jogo de palavras: medita + ação” (MUGGIATI: 1984, p. 109).
cvii
Muggiati lembra que, “dos beats, Jack Kerouac foi o que mais ajudou a difundir o Zen”, mas “não o
verdadeiro Zen, mas uma versão muito pessoal do Zen, impregnada de todo o seu misticismo católico”
(MUGGIATI: 1984, p. 106), por força do qual “se voltou para o ramo Mahayana do budismo e usava como
lema a primeira verdade de Sakyamuni: ‘Toda vida é sofrimento’” (id, p. 107). E arremata: “Kerouac era
muito inquieto e angustiado, na melhor (ou pior) tradição ocidental, para se submeter à dura e longa disciplina
Zen” (ibid, p. 106).
cviii
Bueno & Goes, ao contrário de Muggiati (cf. nota anterior), acreditam que “no começo da década de 50,
em São Francisco, foi através de Gary Snyder que Ginsberg e Kerouac receberam os primeiros toques acerca
do Zen. No romance The Dharma Bums (Os Vagabundos do Dharma), de Kerouac, todo ele recheado de
frases feitas e lugares comuns sobre o Zen, Snyder entra como um dos personagens mais importantes, com o
nome de Japhy” (BUENO & GOES: 1984, pp. 70-71).
cix
Disserta Leonardo Fróes: “Gary Snyder (…) redigiu uma nota sobre as tendências religiosas dos beats que
especifica até mesmo alguns conselhos de moralidade prática quanto ao uso de drogas. O poeta, que dentro de
toda a efervescência se destacou por reter grande serenidade na imagem, admite as vantagens da marijuana (‘a
daily stanby’) e do peiote (‘the real eye-opener’) como auxiliares da imersão no espírito, mas não se esquece
de fazer uma advertência (…). No mesmo texto, Snyder menciona o amor, o respeito pela vida, o abandono, o
pacifismo e o anarquismo entre os itens da pauta beat, lembrando que a realização dessa pauta depende de
serem compreendidos seus três aspectos básicos: a contemplação, a sabedoria e a moralidade, que para ele é
com freqüência sinônimo de protestação social” (FRÓES: 1984, p. 16). Mais a frente, diz Fróes: “Em 1969,
‘em resposta a uma evidente necessidade de algumas sugestões visionárias e práticas’, Gary Snyder
confirmou sua índole – ele é talvez o mais ‘ideológico’, o mais ‘compromissado’, o mais socialmente
responsável de todos os grandes beats – ao lançar uma plataforma em Four Changes, panfleto posteriormente
agregado a seu livro Turtle Island. Saímos da esfera poética, nesse panfleto, para o trato escancarado de
vários temas políticos, desde a necessidade de conter a explosão demográfica à de proibir o DDT e outros
agentes químicos. Mas o autor, que se apresentou noutro texto como discípulos dos índios americanos e
alguns budistas japoneses, naturalmente permanece um poeta e não propõe coisas ocas. O que ele quer são
136
rios limpos, linguagem pura, pluralismo cultural e individual, um basta aos mitos do progresso e ‘um novo
tipo de família – responsável, embora mais relaxada e festiva” (id, p. 17).
cx
André Bueno e Fred Góes complementam: “seus poemas estão repletos de magia, contato direto e nãoverbal com realidades distantes das Cidades, traduzindo como pontos luminosos sacações que, no melhor
estilo Zen, não se traduzem em longos discursos, mas em shots, tomadas curtas e secas, algo entre o verbal e o
não-verbal” (BUENO & GOES: 1984, p. 71).
cxi
Para Snyder, o interesse pela natureza “pode ser uma extensão do pós-modernismo, já que a vanguarda
modernista era eminentemente centrada no urbano” (SNYDER: 2005, p. 259).
cxii
Snyder critica, inclusive, o chamado “desenvolvimento sustentável”: “o desenvolvimento não é compatível
com a sustentabilidade e a biodiversidade. Temos que parar de falar de desenvolvimento e nos concentrar em
como atingir uma condição estável de sustentabilidade real. Muito do que se passa por desenvolvimento
econômico é simplesmente a extensão ainda maior das funções desestabilizantes, entrópicas e desordenadas
da civilização industrial” (SNYDER: 2005, p. 264).
cxiii
Diz Snyder em seu ensaio “A política da etnopoética”: “Desde muito pequeno me vi reverenciando o
mundo natural. Eu sentia gratidão, maravilhamento e uma consciência de preservação” (SNYDER: 2005, p.
219).
cxiv
Assim sugere Snyder: “imaginem uma aldeia que inclui suas árvores e pássaros, suas ovelhas, cabras,
vacas e iaques, e os animais selvagens das altas pastagens (…) como participantes da comunidade. Os
conselhos de aldeia, então, em algum sentido, dariam voz a todas essas criaturas. Dariam espaço a todos”
(SNYDER: 2005, pp. 256-257).
cxv
Nas palavras de Snyder, o homem está
a serviço
do mundo selvagem
da vida
da morte
dos seios da Mãe! (SNYDER: 2005, p. 133).
cxvi
“A disciplina e a liberdade não se opõem uma a outra. Nos tornamos livres pela prática que nos permite
dominar a necessidade, e nos tornamos disciplinados pela nossa livre escolha de assegurar esse domínio. Ao
nos tornarmos amigos da ‘necessidade’, vamos além do ‘dominar’ uma situação e, assim, não sermos – como
colocaria Camus – nem vítima nem algoz. Só uma pessoa brincando no campo do mundo” (SNYDER: 2005, p.
276).
cxvii
“O viés ecológico em Fróes não é de ordem estritamente intelectual: o poeta retirou-se da cidade grande e
foi morar com a família por longos anos em um sítio afastado, imergindo-se, assim, por completo no mundo
natural” (HENRIQUES NETO: 1999, pp. 94-95).
cxviii
“Libertador”. Cf. n. xiv.
cxix
Sabe-se que, além da poesia, da tradução, da crítica e do jornalismo, Leonardo Fróes se dedica ao
montanhismo, à plantação e outras tantas atividades que lhe oferecem contato direto com o ambiente natural.
cxx
Coincidentia oppositorum era, para Nicolas de Cusa, a definição menos imperfeita de Deus, pois implicava
na união dos contrários de que resultaria a totalidade (ELIADE: 1991, p. 80). A mesma idéia já se encontrava
em Heráclito: “Deus é dia noite, inverno verão, guerra paz, saciedade fome: isso quer dizer todos os opostos”
(cf. id, n. 2).
137
cxxi
Muito embora o poeta e crítico Afonso Henriques Neto encontre, na poesia de Leonardo Fróes,
“correspondências entre imagens estranhíssimas” (HENRIQUES NETO: 199, p. 94) que poderiam conduzir a
“abismos surreais” (id, p. 95), o diálogo entre a escrita automática e as concepções de Fróes acerca da ruptura
com a subjetividade lírica mereceria um estudo mais aprofundado que, no entanto, deparar-se-ia com uma
série de problemas, quase todos advindos do fato de o poeta não ter demonstrado, nem em sua obra, nem em
sua biografia, qualquer interesse direto pelas práticas surrealistas, ao contrário de alguns poetas de sua
geração – como os paulistas Roberto Piva e Cláudio Willer – este último responsável, aliás, pela tradução dos
Chants de Maldoror utilizada no presente trabalho –, além de Sérgio Lima, criador do Grupo Surrealista de
São Paulo.
cxxii
“Viva invoque vislumbre invente mas não pergunte nada” (FRÓES: 1998, p. 72).
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Mauro Cezar de Souza Junior - Programa de Pós