1 O poder punitivo da sociedade previne ou é inócuo ante o crime? (Uma reflexão amparada no livro Dos Delitos e Das Penas de Cesare Beccaria) Claudio Mano Bacharel em Filosofia pela UFJF Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Souza” da UFJF [email protected] O julgamento do chamado “mensalão” certamente é um marco divisório nos rumos de nossa sociedade. Mutatis mutandis, não deixa de nos trazer à lembrança a já longínqua revolução de 1964. Em ambos os casos, um processo de usurpação da representatividade democrática em favor de um projeto político unilateral foi barrado. No passado, foram nossos valorosos homens de verde que se expuseram em primeiro plano, hoje, são nossos admiráveis homens de preto que tomam as rédeas dos acontecimentos. Uma demonstração inequívoca do avanço de nossa democracia, que abre mão da solução dos conflitos pelo uso da força, característica da juventude, em favor do intransigente respeito às leis, sinal de sua crescente maturidade. Antes de prosseguirmos, vale deixar bem claro ao leitor, que a análise que se segue é de cunho estritamente filosófico, não sendo nosso objetivo qualquer investida em relação ao aspecto jurídico que o tema tratado envolve. Mesmo focado no âmbito do conceito, o ponto de partida de nossa reflexão tem raízes no mundo real. Trata-se de declarações proferidas por duas autoridades: a primeira, do ministro da justiça do atual governo, conforme o que extraímos do Estado de Minas: Um dia após o Supremo Tribunal Federal (STF) ter condenado o ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu, a dez anos e dez meses de prisão, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, disse, em palestra a empresários, que preferiria morrer a cumprir pena num presídio brasileiro. (...) “do que nós precisamos? De um bom sistema, com reinserção social, e não prisão 2 perpétua ou pena de morte”, disse o ministro da Justiça, (...) “temos um sistema prisional medieval, que não só desrespeita os direitos humanos como também não possibilita a reinserção”, (...)1. A segunda, de um dos ministros do Supremo Tribunal Federal que participa do próprio julgamento do mensalão: O ministro Dias Toffoli do Supremo Tribunal Federal (STF) fez um duro discurso contra as penas de prisão que vêm sendo aplicadas pela Corte aos réus do processo do mensalão. Ele afirmou que o conceito de privar as pessoas de liberdade é "medieval" e que não é "pedagógico". (...) "Já ouvi que o pedagógico é colocar as pessoas na cadeia. O pedagógico é recuperar os valores desviados", afirmou. "Estou aqui a justificar em relação às penas uma visão mais liberal e, vamos dizer, mais contemporâneo porque prisão, medida restritiva de liberdade, combina com o período medieval" (...)2. Uma vez estabelecido o cenário que nos inspira, voltemos ao tema principal: até que ponto a capacidade de punir que nós cidadãos outorgamos ao estado, cumpre a finalidade de tornar nossas vidas mais protegidas da ação daqueles que, em busca de seus objetivos particulares, conduzem suas ações em desacordo com os limites impostos pelas leis. Dos delitos e das penas3 O texto de Cesare Beccaria (1738-1794), publicado em 1764, trata em essência, das relações entre o individuo e o estado. Devemos nos lembrar que àquela época, o indivíduo, tal como o conhecemos – detentor de certos direitos inalienáveis – ainda não havia se consolidado. Este ser artificial, é produto exclusivo do ambiente único que somente o regime democrático oferece, onde a liberdade de cada um pode ser concebida e exercida, em meio ao respeito mútuo as inúmeras outras, que se pactuam em uma sociedade de iguais perante às leis. Essa é, em nosso entendimento, a grande novidade na perspectiva do jurista italiano. O desejo de que pelas leis implementemos “este princípio: a máxima felicidade repartida pelo maior número”4. Desse modo, a lei deixa de consagrar uma estrutura hierárquica aristocrática, 1 http://www.em.com.br/app/noticia/politica/2012/11/13/interna_politica,329662/ministro-da-justica-diz-quepreferia-morrer-a-cumprir-pena-no-sistema-penitenciario.shtml Publicação: 13/11/2012 Estado de Minas 2 http://www.em.com.br/app/noticia/politica/2012/11/14/interna_politica,329932/dias-toffoli-critica-penas-altasdo-mensalao.shtml Publicação: 14/11/2012 Estado de Minas 3 BECCARIA Cesare, Dos delitos e das Penas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2009 4 Ibid, p 62 3 onde cada qual tem seu valor e lugar pré-determinados, e abre-se a inusitadas possibilidades sob a égide do bem comum, que no entendimento do autor, é a finalidade primeira da lei. As leis são as condições sob as quais homens independentes e isolados se uniram em sociedade, cansados de viver em um contínuo estado de guerra e de gozar uma liberdade tornada inútil pela incerteza de ser conservada. Eles sacrificaram parte dela para gozar o restante com segurança e tranqüilidade. A soma de todas estas parcelas de liberdade sacrificadas ao bem de cada um constitui a soberania da nação (...)5. A nação é o que sustenta a concepção legal desenvolvida pelo autor. Assim “a verdadeira medida dos delitos é o dano causado”6 a ela. As leis devem ter como objetivo não só preservá-la, como também impedir que em seu nome seja esmagada a liberdade justamente daqueles que a compõem: Portanto, os atentados contra a segurança e a liberdade dos cidadãos são um dos mais graves delitos, (...) tanto do mais simples quanto do mais poderoso, sob o risco de destruir nos súditos a idéia de justiça e de dever, (...) substituindo pela idéia da lei do mais forte7. Temos então que o crime mais grave é aquele cometido contra a nação. Na medida em que é constituída por cidadãos, uma agressão a qualquer um deles, também agrava a pátria. Em ambos os casos, a nação, em nome de todos e respaldada por todos reage: pune. “O objetivo das penas é impedir que o crime se repita, e de dissuadir outros de o impetrarem”8. Ainda nos ensina o autor: “quanto mais pronta e mais perto do delito cometido seja a pena, tanto mais justa e útil ela será”9. Em sua opinião, “a certeza de um castigo, mesmo que moderado, causa sempre uma maior impressão, do que o temor de outro terrível, mas incerto”10, pois devemos considerar que a incerteza é trivial para quem, como nós, humanos, já nascemos condenados à morte. Beccaria também nos afirma que “para que a pena tenha efeito, basta que o mal nascido da pena exceda o bem que nasce do delito. (...) a crueldade da pena não previne o delito”11. Vale notar, entretanto, que o jurista italiano, na mesma linha de pensamento que Rousseau, de quem é contemporâneo e leitor, nos afirma que são “inúteis todas as leis que se opõem aos naturais instintos dos homens”12. Isso confere uma importância crucial ao legislador, pois na verdade, caso não interprete corretamente a vontade unânime que se 5 Ibid, p 63 Ibid, p 75 7 Ibid, p 79 8 Ibid, p 85 9 Ibid, p 102 10 Ibid, p 115 11 Ibid, p 116 12 Ibid, p 102 6 4 eclipsa por detrás dos interesses privados, ira gerar tão somente leis inúteis. Aquelas que “transmitem o seu próprio desalento às leis mais salutares”, jogando assim todas elas sob o mesmo rótulo de obstáculos a serem superados ao invés de um “depósito do bem público” 13. Pelo exposto no parágrafo acima, vemos que simplesmente “proibir não é impedir delitos, é criar novos”14. Uma sociedade que houvesse por bem optar por prevenir delitos ao invés de puni-los, jamais poderia tentar fazê-lo por intermédio de novas leis, uma vez que estas, na verdade, aumentam a possibilidade de que outros crimes ocorram. Para termos menos crimes, o caminho é justamente o inverso: “menos leis, claras e simples”15. Neste caso, também como Rousseau, Beccaria vê na educação a alternativa mais eficaz para a formação de bons cidadãos. Mas ao contrário do que parece crer-se em nosso país, o objetivo da educação não é preparar os indivíduos para a escolha dos bons representantes, mas sim de capacitá-los, de modo que qualquer um seja capaz de agir por seus pares. Deste modo, que a obra final do legislador seja aquela que qualquer outro nas mesmas condições a fizesse, e assim, “ao ver o código de leis bem feito e ao verificar não ter perdido senão a funesta liberdade de fazer o mal a outrem”16 cada um crescesse em amor por sua pátria. Em uma época em que a tortura era o meio usual de se obter a confissão dos suspeitos de cometer crimes, Beccaria nos diz que ela “é o meio de absolver robustos culpados e condenar frágeis inocentes”17. Sendo assim, “um homem acusado de delito, encarcerado e absolvido, não deveria trazer consigo sinal algum de infâmia. (...) no mesmo antro, acusados e condenados, a prisão é mais um suplicio que uma custódia”18. Quando diante da gravidade de um crime, ainda resta alguma dúvida sobre a autoria, embora tudo aponte para o acusado, Beccaria sugere sua expulsão da pátria19. Em nossos dias, quando a expulsão de um indivíduo de sua pátria torna-se inviável, quem sabe, preservando-se os direitos inerentes ao homem, privá-lo de todas as demais prerrogativas de cidadão, não fosse uma pena adequada. Certamente seria a punição mais grave de todas; tornar-se um estrangeiro em seu próprio país. Talvez essa penalidade, uma “morte social”, também pudesse ser aplicada àqueles que traem a confiança do povo. Um crime contra a pátria 13 Ibid, p 137 Ibid, p 154 15 Ibid, p 155 16 Ibid, p 156 17 Ibid, p 93 18 Ibid, p 127 19 Ibid, p 110 14 5 Neste ponto, cabe uma reflexão sobre a nossa realidade; mais precisamente sobre o crime de que trata a manifestação expressa por duas autoridades no início deste texto. Como o tema tem sido extensamente divulgado pela mídia, abriremos mão de considerações iniciais, e iremos direto ao que nos interessa nesta reflexão. O “mensalão”, conforme nos foi apresentado durante este memorável julgamento da corte suprema de nosso país, trata-se da confirmação do que já havia antes sido amplamente divulgado pelas mídias noticiosas: a deslavada compra de votos de parlamentares de modo a garantir a aprovação de leis de “interesse” do executivo. O pacto social expresso em nossa constituição federal, obriga a minoria a curvar-se à vontade da maioria, sempre que esta for expressa livremente nas urnas. Por outro lado, não votamos diretamente nos assuntos que são do interesse da sociedade, e sim, delegamos poderes para que representantes o façam em nosso nome. Em princípio, escolhemos aqueles que acreditamos que, em determinados temas que nos são caros, votariam tal qual nós mesmos. Assim, nossa vontade prevalece por seu intermédio. Ora, a partir do momento em que parlamentares “vendem” seus votos, quer seja em troca de favores, de cargos, ou na falta deles, em espécie, como foi o caso no mensalão, a representatividade é irremediavelmente perdida, o pacto constitucional rompido, e as leis votadas destituídas de qualquer valor. Vale notar, que as práticas acima apontadas, não estão circunscritas a um episódio isolado; a mídia nos tem constantemente apontado indícios desde longa data, por diversas legislaturas. Aléxis de Tocqueville (1805-1859) já nos apontava sua preocupação em relação ao formidável perigo que a “tirania dos legisladores”20 pode representar. O jurista francês, também nos alerta para algo que precisamos estar atentos, caso desejemos evitar esse tipo de servidão: “o dia em que for diminuída a independência dos magistrados, não será apenas o poder judiciário o atacado, mas a própria república democrática”21. Mas voltando ao nosso tema, o que fazer diante da possibilidade de estarmos em meio a um período de vazio legislativo? Porque aceitar pacificamente a constatação de que vivemos sob a força de leis que podem não representar nossos anseios, mas tão somente interesses momentâneos e particulares exclusivos de nossos representantes? Bem, caso confirmada a hipótese, de que as leis que deveriam assegurar nossa liberdade, na verdade nos aprisionam, só nos resta seguir com cautela rumo a um momento 20 21 TOCQUEVILLE Aléxis, de la Démocratie en Amérique I, Paris, Flammarion, 1981, p 360 Ibid, p 370 6 futuro, quando cidadãos crescidos e educados em meio aos valores éticos que dão suporte às democracias, possam ascender ao parlamento. Caberá a estes, paulatinamente, reverter o crime cometido contra a nação por seus antecessores, e assim restituir um conjunto de leis que reflita as reais aspirações da sociedade. Considerações finais Como vimos, muitas das idéias de nosso ilustre ministro e do digníssimo magistrado citados no início deste texto, coadunam com as de Beccaria, ou seja, não é a “dureza” da pena que garante a recuperação do delinqüente, ou mesmo a reparação do mal causado à sociedade. Em nossos dias, a penalidade aplicada, além de ter como objetivo desestimular em outros o desejo de cometer os mesmos crimes, também carrega em si a tarefa de reinserção do criminoso no convívio social. Há de se considerar, entretanto, que a sociedade que se esmera na recuperação do delinqüente, foi a mesma que falhou originalmente em sua educação para o pleno exercício da cidadania. Foi aquela que não lhe garantiu a devida inserção no meio social. Sendo assim, por que razão, em primeiro lugar, acreditar que tendo falhado em sua preparação, terá agora a sociedade melhor êxito em sua recuperação? De qualquer forma, é confortador saber que o ministro da justiça e ao menos um dos magistrados de nosso tribunal supremo estão sensibilizados para agir de forma dissonante à ânsia irracional que o povo brasileiro tem manifestado por punições cada vez mais severas e a tudo transformar em crime. Como aprendemos com o jurista italiano, essas são medidas ilusórias, dificilmente trarão de fato uma tranqüilidade real a nossa sociedade. Mas e no caso do mensalão? O crime em questão foi, como nos aponta Beccaria, o mais grave que pode ser cometido. Foi contra à pátria. Praticado por pessoas de nível social elevado, boa educação e situação financeira confortável. Dada a cultura de “acordos políticos” que reina pública e soberana em nosso país, os réus muito provavelmente nem consideram que tenham cometido crime algum. Será possível “educar” esses indivíduos a serem outras pessoas, com outro caráter, com outros valores éticos? Como chamá-los à razão para o mal que perpetraram contra a sociedade? Como garantir que por de trás das grades cesse sua influência nefasta? Vale notar que vivemos em um país onde as cadeias, mais que qualquer coisa, degradam o ser humano que é submetido à custódia do estado – como bem lembrado pelos ministros citados –. Por outro 7 lado, não se consegue impedir que contumazes criminosos continuem de dentro dos presídios a aterrorizar a sociedade. O desafio que se impõem agora ao nosso Superior Tribunal Federal é, como dentro dos limites da lei, impedir que essas mesmas pessoas continuem a praticar os mesmos crimes. Também se faz imperativo sinalizar de forma clara e inequívoca, que os que se lançarem na mesma aventura encontrarão o mesmo destino. Uma vez que existem aqueles, que mesmo aprisionados, ainda assim representam perigo para a sociedade, deixamos a seguir para a reflexão do leitor, algumas palavras de Beccaria, para quem a pena de morte jamais seria justa, uma vez que um homem não pode atribuir-se do direito de executar seu semelhante: Não é, portanto, a pena de morte um direito, tal como acabo de demonstrá-lo, mas é uma guerra da nação com um cidadão. (...) A morte de um cidadão não pode ser considerada necessária a não ser por duas razões. A primeira, quando, mesmo privado de liberdade, ele tenha tais relações e tal poder que interesse à segurança da nação; quando a sua existência possa originar uma revolução perigosa para a forma de governo estabelecida. (...) mas sob o reino tranqüilo das leis, em uma forma de governo que reuni os votos da nação (...) onde as riquezas compram prazer e não autoridade, não vejo necessidade alguma de destruir um cidadão (...) quando a sua morte fosse o verdadeiro e único freio para dissuadir outros de cometerem delitos, segunda razão pela qual pode considerar-se justa e necessária a pena de morte22. 22 BECCARIA, op cit, p 118-119