3ª OFICINA DE FILOSOFIA ANALÍTICA, Sociedade Portuguesa de Filosofia, Lisboa, 25-26 Janeiro 2008.
Versão de trabalho. Todas as questões, comentários e sugestões (enviadas para [email protected]) são bem-vindas.
A SOLUÇÃO DE KRIPKE PARA O PARADOXO DO MENTIROSO
NO QUADRO DA LÓGICA CLÁSSICA
Ricardo Santos
Universidade de Évora
Instituto de Filosofia da Linguagem FCSH-UNL
§ 1. Introdução.
Insatisfeito com a solução hierárquica de Tarski para o paradoxo do mentiroso, devido sobretudo à
inviabilidade da sua aplicação à linguagem natural, Saul Kripke tentou conceber uma alternativa em
“Outline of a Theory of Truth” (1975), tomando como ponto de partida a ideia de que o princípio da
bivalência deve ser limitado, se não às proposições, pelo menos às frases que expressam
proposições. Na sua perspectiva, é somente a respeito destas frases que seria correcto dizer que ou
são verdadeiras ou são falsas. Mas, como aliás Strawson já tinha mostrado, há outras frases que,
apesar de estarem gramaticalmente bem formadas, são tais que, proferidas em certos contextos,
não chegam a expressar nenhuma proposição (ou, numa formulação alternativa, não têm condições
de verdade). Para Kripke, as frases que originam o paradoxo do mentiroso – que dizem de si próprias
(directa ou indirectamente) que são falsas – pertencem a esta classe, a que a bivalência não se
aplica. Do desenvolvimento desta ideia deveria resultar a solução alternativa para o paradoxo.
Para que se possa avaliar a solução proposta por Kripke, identificando os seus méritos e as suas
fragilidades, precisamos primeiro de saber exactamente qual é essa solução. Mas a esse respeito
levantam-se dificuldades sérias de interpretação. Neste trabalho, discuto o problema da relação
entre a solução proposta e a lógica clássica. Uma primeira leitura do artigo de Kripke cria facilmente
a convicção de que a solução aí proposta envolve um abandono da lógica clássica. Isso é assim
porque, por um lado, estamos habituados a associar a lógica clássica ao princípio da bivalência,
enquanto Kripke impõe restrições a este princípio e, por causa disso, é levado a usar um conjunto de
regras de uma conhecida lógica trivalente desenvolvida por Kleene. Por outro lado, é conhecido e
geralmente aceite o diagnóstico de Tarski segundo o qual a admissão de linguagens semanticamente
fechadas e a aceitação das regras da lógica clássica são as duas condições essenciais que,
conjuntamente, permitem gerar versões do paradoxo. Como Kripke começa o artigo a justificar
precisamente a sua recusa em seguir a via de Tarski de repúdio das linguagens semanticamente
fechadas, isso cria naturalmente a convicção de que ele segue a única via restante. Todavia, contra
esta convicção, erguem-se as declarações explícitas de Kripke de que não considera que a sua
solução implique uma mudança de lógica.
Qual é, então, a lógica da solução de Kripke? O estudo mais pormenorizado do artigo permite
afirmar duas coisas: por um lado, que Kripke dá ao longo do trabalho indicações contraditórias, as
quais favorecem, umas, a manutenção da lógica clássica, enquanto outras implicam a sua revisão; e,
por outro, que os dados de facto fornecidos não são suficientes para determinar uma resposta,
ficando em aberto o modo como se poderá desenvolver exactamente o tipo de solução apontado
por Kripke. Isto é assim, porque a discussão de Kripke é quase exclusivamente semântica (usando os
instrumentos da teoria dos modelos) e descura a descrição explícita do sistema formal para o qual
está a construir modelos. Felizmente, o que Kripke não fez, outros vieram depois a fazer: Solomon
Feferman (1984) descreveu uma formalização de um sistema que tem os modelos de ponto fixo de
Kripke e cuja lógica é perfeitamente clássica. Dado este resultado, o que temos a fazer é analisar o
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modo como este sistema permite responder ao paradoxo, bloqueando o argumento que conduziria
à contradição, e avaliar os seus méritos. O resultado desta avaliação é, porém, bastante negativo. No
final do trabalho, mostro como a teoria de Kripke-Feferman obriga a aceitar restrições aos princípios
intuitivos da verdade que são altamente indesejáveis.
Além desta introdução, o trabalho tem mais quatro secções. Em § 2, revejo o diagnóstico que Tarski
fez para o paradoxo, as razões de insatisfação com a sua solução hierárquica e o modo como Kripke
mostrou que uma certa adaptação da solução hierárquica à linguagem natural não é viável. Concluo
mostrando que a intenção de admitir um predicado único de verdade e linguagens com capacidade
auto-referencial reduz a duas as condições essenciais responsáveis pela geração do problema. Em §
3, começo por passar brevemente em revista alguns dos aspectos principais da teoria de Kripke, tais
como: a ideia de uma linguagem com um predicado de verdade apenas parcialmente definido; o uso
das regras semânticas de Kleene para a interpretação das frases logicamente complexas dessa
linguagem; o método indutivo para definir modelos de ponto fixo para uma tal linguagem; e as
definições formais daí resultantes de noções como “frase infundada” e “frase paradoxal”, com um
considerável poder explicativo. Depois, formulo duas objecções que são muito frequentemente
dirigidas a teorias que, como a de Kripke, tentam evitar o paradoxo rejeitando a bivalência.
Apresentadas de modo simplificado, a primeira diz que a rejeição da bivalência resolve o Mentiroso
Simples, mas não o Mentiroso Reforçado, enquanto a segunda diz que a rejeição da bivalência
constitui, dados certos pressupostos plausíveis, uma posição inerentemente contraditória. Mostro
então que há um certo tipo de resposta a estas objecções que está disponível para um defensor de
uma teoria do género da apontada por Kripke, mas assinalo que essa resposta, além de ser
vulnerável a uma contra-objecção geralmente conhecida como Problema da Vingança, implica uma
restrição do princípio do terceiro excluído que não é compatível com a lógica clássica. Em § 4, depois
de referir a justificação strawsoniana apresentada por Kripke para afirmar que o uso de regras
semânticas trivalentes não deve ser interpretado como um abandono da lógica clássica, apresento a
axiomatização de Feferman de um sistema clássico com modelos de ponto fixo. A teoria resultante,
apesar de ter uma lógica perfeitamente clássica, admite falhas de valor de verdade. No entanto, os
seus predicados de verdade e de falsidade são predicados totais, completamente definidos. Em § 5,
discuto algumas observações que Kripke faz nas páginas finais do seu artigo (sobre um certo conflito
entre duas intuições fortes e sobre o “encerramento” de um ponto fixo) e mostro como a teoria de
Kripke-Feferman aceita apenas uma versão restritiva do esquema da verdade e é por isso que
consegue evitar o paradoxo, quer na versão simples quer na reforçada. Finalmente, aponto duas
razões para não ficarmos satisfeitos com essa teoria. A primeira é uma limitação expressiva da
teoria, que só poderia ser superada regressando a uma hierarquia como a de Tarski. E a segunda
consiste no facto de ela aceitar que, em certos casos, podemos ter justificação para afirmar uma
certa frase e, ao mesmo tempo, afirmar que essa mesma frase não é verdadeira.
§ 2. O diagnóstico de Tarski e as vias possíveis para uma alternativa à solução hierárquica.
Se um paradoxo é um sintoma de doença, como considerava Tarski, então uma cura satisfatória
deve apoiar-se num bom diagnóstico. No diagnóstico que fez para o paradoxo do mentiroso, Tarski
identificou duas condições essenciais que seriam conjuntamente suficientes para gerar a
contradição: a linguagem na qual o argumento paradoxal é formulado é semanticamente fechada e
os princípios da lógica clássica são aceites. Uma linguagem é semanticamente fechada quando reúne
as três propriedades seguintes: ter meios para referir todas as suas próprias expressões, possuir um
predicado que expressa o conceito de verdade e que é aplicável às suas próprias frases e ter todas as
instâncias do esquema da verdade (i.e., o esquema V[A] ↔ A, em que A é uma frase da linguagem,
[A] é um nome dessa frase e V é o predicado de verdade) como frases verdadeiras da linguagem.
Estas três propriedades estão evidentemente relacionadas, na medida em que, para que todas as
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instâncias do esquema sejam frases da linguagem em questão, é necessário que as duas primeiras
propriedades estejam também presentes nela.
Baseado neste diagnóstico, Tarski propôs uma solução higiénica para o paradoxo: teríamos de deixar
de usar (para fins científicos ou, de modo mais geral, para quaisquer fins no âmbito dos quais a
correcção do raciocínio seja importante) linguagens semanticamente fechadas – incluindo nesta
categoria as línguas naturais enquanto globalmente consideradas (pois a solução de Tarski é
compatível com o uso de fragmentos bem seleccionados de uma língua natural). Para referirmos as
frases de uma linguagem e falarmos da sua verdade, devemos fazê-lo numa outra linguagem (uma
metalinguagem), na qual é possível definir, usando recursos da teoria dos conjuntos, um predicado
que, demonstravelmente, é verdadeiro de todas as frases verdadeiras da primeira linguagem e de
nada mais. Como é evidente, o estabelecimento desta relação entre linguagem-objecto e
metalinguagem é iterável sem fim, originando assim uma hierarquia de linguagens L0, L1, L2, L3, …,
em que o predicado de verdade de cada Ln só está disponível na linguagem seguinte Ln+1.
Embora se tenha tornado uma prática habitual na lógica matemática, esta solução tem sido
geralmente reconhecida como filosoficamente insatisfatória, por diversos motivos1. O juízo
formulado por Tarski segundo o qual a linguagem natural seria inconsistente gerou controvérsia,
desde logo quanto à sua interpretação. E, em consequência, a muitos pareceu desejável que
houvesse uma solução do paradoxo do mentiroso também para a linguagem natural. Uma saída de
inspiração tarskiana para o problema consistiria em substituir a hierarquia de linguagens por uma
hierarquia análoga de predicados de verdade no seio de uma mesma linguagem, com meios de autoreferência. Esta linguagem poderia ser identificada com qualquer das línguas naturais, se
considerássemos que, nestas, o uso do predicado de verdade é sistematicamente ambíguo. Sem se
darem conta disso, os falantes das línguas naturais usariam diferentes predicados de verdade V0, V1,
V2, V3, …, em diferentes contextos. De acordo com esta proposta, caberia à teoria tornar explícitos os
índices subscritos que na prática da linguagem se manteriam implícitos, mas nem por isso menos
presentes.
Kripke mostrou que esta proposta de inspiração tarskiana também não é viável. Um primeiro
problema reside na circunstância de, em diversos casos, o nível que deve ser atribuído ao predicado
de verdade usado na elocução de uma certa frase depender de factos que o falante pode não
conhecer. Por exemplo, um indivíduo x pode afirmar que tudo o que outro indivíduo y disse (num
certo dia, acerca de um certo assunto, etc.) é verdadeiro, sem que x conheça, uma por uma, todas as
afirmações feitas por y (nesse dia, acerca desse assunto, etc.). Mas, supostamente, x teria de estar a
usar um predicado de nível superior ao do predicado mais elevado usado por y. Mais grave do que
isso é o facto de serem concebíveis situações circulares em que mesmo um ser omnisciente não
poderia fazer uma atribuição consistente de níveis aos predicados usados. Basta imaginar que, num
caso como o que descrevemos, umas das afirmações relevantes de y atribui (ou nega) verdade a
uma classe de afirmações de x e que, por coincidência, a afirmação inicial de x acerca de y pertence
a essa classe. O predicado de verdade usado por x tem de ter um nível superior ao usado por y; e
este, por sua vez, tem também de ser superior ao usado por x.
O problema colocado pelo paradoxo do mentiroso tem no seu centro uma frase que, directa ou
indirectamente, diz de si própria que é falsa (ou que não é verdadeira) – a chamada Frase Mentirosa.
Ao banir as linguagens semanticamente fechadas, Tarski pretendeu eliminar sintacticamente todas
as Frases Mentirosas. As alternativas à teoria de Tarski, pelo contrário, têm procurado encontrar
maneiras de convivermos (consistentemente) com tais frases – no pressuposto (partilhado por
Tarski) de que elas são um facto inegável da linguagem natural.
1
Em A verdade de um ponto de vista lógico-semântico (2003) § 10 e pp. 205-210, desenvolvi uma
interpretação e uma defesa da solução de Tarski que já não considero adequada.
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É um facto indisputado que as línguas naturais dispõem dos meios para referirem as suas próprias
expressões – desde logo, pela técnica da citação; mas também através do uso de termos descritivos,
de pronomes demonstrativos ou até de nomes simples. Nas próprias linguagens formais, o trabalho
de Gödel (1931) colocou a possibilidade da auto-referência fora de qualquer suspeita. Qualquer
linguagem suficiente para expressar a aritmética dispõe de auto-referência completa.
Quanto ao predicado de verdade, o insucesso da aplicação da solução hierárquica à linguagem
natural motivou a procura de uma solução que reconheça a possibilidade de uma linguagem com um
predicado de verdade único, aplicável (pelo menos) a tudo o que possa ser dito nessa linguagem –
por conseguinte, aplicável também a frases que o incluem.
Mas a aceitação da auto-referência e a procura de um predicado de verdade único (auto-aplicável),
ao mesmo tempo que resultam na aceitação das Frases Mentirosas como facto sintáctico, colocam
fora de suspeita os dois primeiros elementos do diagnóstico de Tarski acima referido. Ficam a restar,
então, como possíveis causadores do problema, os dois últimos: a aceitação irrestrita do esquema
da verdade e a aceitação da lógica clássica.
§ 3. A proposta de Kripke e a restrição da bivalência.
Segundo Kripke, o problema das Frases Mentirosas não é sintáctico, mas sim semântico: são frases
infundadas. Imagine-se um falante que ignora o conceito de verdade e a quem este é explicado do
seguinte modo: pode afirmar (ou negar) que uma frase é verdadeira exactamente quando está em
condições de afirmar (ou negar) essa mesma frase (explicação cujo conteúdo parece muito próximo
do do esquema da verdade). As frases infundadas são frases que usam o predicado de verdade (de
um modo essencial) e que este falante não saberia classificar como verdadeiras nem como falsas (ou
não verdadeiras), pela razão de que não é possível reconduzi-las, por aquele princípio explicativo, a
frases que não usem o predicado de verdade (de modo essencial). Esta explicação da noção de frase
infundada é informal e não rigorosa. A teoria de Kripke proporciona uma definição formal da noção.
Kripke desenvolve este diagnóstico propondo que o predicado de verdade seja visto como um
predicado só parcialmente definido (abreviadamente, direi apenas “predicado parcial”). Um
predicado parcial é um predicado cuja interpretação é dada por dois subconjuntos do domínio, cuja
intersecção é vazia, mas cuja reunião não esgota o domínio. O predicado é verdadeiro dos objectos
no primeiro subconjunto (a sua extensão), é falso dos objectos no segundo subconjunto (a sua antiextensão) e não está definido para os restantes objectos. No caso do predicado parcial de verdade,
pretende-se que na sua extensão estejam as frases verdadeiras da linguagem e que na sua antiextensão estejam as frases falsas da linguagem e os objectos do domínio que não são frases da
linguagem. Fora da extensão e da anti-extensão estarão as frases da linguagem para as quais a
interpretação não define um valor de verdade.
A ideia de que a verdade é um predicado parcial parece proporcionar uma maneira de conciliar o
reconhecimento das Frases Mentirosas como facto sintáctico, por um lado, com a ideia de que
aquele princípio explicativo da verdade (afirmar, ou negar, que uma frase é verdadeira quando se
afirma, ou nega, a própria frase) esgota o conteúdo da verdade, por outro. Pois, nesse caso, aquele
falante imaginário não consegue classificar a Frase Mentirosa como verdadeira nem como falsa,
porque realmente, sendo a verdade e a falsidade o que o princípio diz que são, a frase não cai sob
nenhum desses conceitos; ou seja, não tem valor de verdade.
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Um sistema formal com um predicado parcial de verdade, que obedeça àquele princípio explicativo,
poderá ser consistente? Uma grande parte do trabalho de Kripke – que aqui não irei descrever –
consiste em mostrar como se podem definir modelos – chamados “modelos de ponto fixo” – para
um tal sistema formal (provando assim a sua consistência). Para a construção desses modelos
parciais de ponto fixo, Kripke usa um método indutivo (no seu caso, com a lógica trivalente forte de
Kleene, sobre a qual voltaremos a falar adiante), que Feferman diz ter sido iniciado por Fitch (a partir
de 1948) e por Gilmore (em 1967).
Realizada a construção, Kripke usa-a para definir certas noções importantes e discute alguns
problemas que ela permite resolver. Por exemplo, uma frase paradoxal pode ser definida como uma
frase que não tem valor de verdade (não é membro da extensão nem da anti-extensão do predicado
de verdade) em nenhum ponto fixo. E uma frase infundada deixa-se definir como uma frase que não
tem valor de verdade no menor ponto fixo – sendo este o ponto fixo que se obtém quando a
indução começa com o predicado de verdade completamente indefinido, que dizer, com a sua
extensão e a sua anti-extensão ambas vazias. Um exemplo simples de uma frase que é infundada
mas não é paradoxal é a chamada Frase Verídica, que diz de si mesma que é verdadeira.
Concentremo-nos agora num aspecto central para a resolução do paradoxo: o facto de a Frase
Mentirosa não ter valor de verdade em nenhum ponto fixo. É isso que leva Kripke a filiar a sua
proposta na família das abordagens que tentam resolver o paradoxo rejeitando ou restringindo a
bivalência (the truth-value gap approach).
Kripke tem por objectivo apresentar, não uma simples sugestão sobre como evitar o paradoxo, mas
uma teoria genuína, capaz de resolver satisfatoriamente os paradoxos semânticos. Para termos uma
teoria genuína, comparável à que Tarski desenvolveu, precisaríamos de formular com suficiente
rigor um sistema formal, com uma linguagem cuja sintaxe seja suficientemente rica para permitir a
auto-referência, com uma semântica formalmente caracterizada (desejavelmente, pelas técnicas da
teoria dos modelos) e com um conjunto de axiomas e de regras de inferência (ou algum outro tipo
de sistema dedutivo) que permita formular uma noção de demonstrabilidade (no sistema).
Infelizmente, apesar deste seu objectivo declarado, Kripke foi bastante incompleto no modo como
descreveu o sistema que tinha em vista, limitando essencialmente a sua atenção ao problema
particular, acima referido, de como se pode definir um modelo para um sistema cuja linguagem
contenha o seu próprio predicado de verdade, mas sendo este apenas parcial.
A descrição da semântica para uma linguagem deste tipo enfrenta desde logo um problema: uma
vez que há frases atómicas que contêm o predicado parcial e que não têm valor de verdade, que
efeitos terá isso para as frases moleculares que contêm tais frases atómicas como elementos? Uma
vez que as regras semânticas habituais, bivalentes, para os operadores lógicos não se podem aqui
aplicar, que outras regras devemos usar em seu lugar? Existem diversos sistemas de regras
trivalentes concebidos para esse efeito, e Kripke não se compromete com a defesa de nenhum deles
como sendo o mais adequado. No entanto, é notória a sua preferência pelo sistema de regras
trivalentes fortes de Kleene (geralmente conhecido como K3), que ele usa para exemplificar a
construção. Para as conectivas verofuncionais (da lógica proposicional), as regras de K3 podem ser
representadas nas seguintes tabelas (em que na vertical está o primeiro argumento das funções
binárias, e na horizontal o segundo):
v
f
i
¬
f
v
i
∧
v
f
i
v
v
f
i
f i
f i
f f
f i
∨
v
f
i
v
v
v
v
f
v
f
i
i
v
i
i
→
v
f
i
v
v
v
v
f
f
v
i
i
i
v
i
↔
v
f
i
v
v
f
i
f
f
v
i
i
i
i
i
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Quanto às regras para os quantificadores clássicos, podemos ilustrá-las simplificamente dizendo que
uma quantificação universal (monádica) ∀x Fx será verdadeira se o predicado F for verdadeiro de
todos os objectos do domínio, será falsa se F for falso de pelo menos um objecto do domínio e será
indefinida nos restantes casos; uma quantificação existencial (monádica) ∃x Fx pode ser definida
como ¬∀x ¬Fx. Diversas extensões deste esquema valorativo são possíveis, para linguagens com
uma sintaxe mais complexa – com predicados poliádicos, com nomes e termos funcionais, com
operadores modais, com quantificadores de ordem superior, com conjunções e disjunções infinitas,
etc. –, mas não iremos aqui ocupar-nos delas.
Regressemos, então, ao paradoxo do mentiroso e ao modo como a restrição da bivalência permite
evitar a contradição. De um ponto de vista meramente intuitivo, parece muito fácil ver como é que,
na formulação mais comum do paradoxo – geralmente conhecida como Mentiroso Simples –, a
admissão de que a Frase Mentirosa Simples (FMS) – que diz de si própria que é falsa – não tem valor
de verdade permitiria bloquear a conclusão do argumento. Efectivamente, o argumento do
paradoxo tem duas partes principais: a primeira mostra que, se FMS é verdadeira, então é
verdadeira e falsa; e a segunda mostra que, se FMS é falsa, então é também verdadeira e falsa. Ora,
se não pressupusermos que FMS tem de ser ou verdadeira ou falsa, parece que não teremos
maneira de destacar a consequente destas condicionais para esbarrar na contradição.
Mas aqui surgem problemas. Este modo de evitar o paradoxo rejeitando a bivalência é geralmente
confrontado com um conjunto de objecções, de onde se destacam duas principais. A primeira diz
que a rejeição da bivalência evita o Mentiroso Simples, mas não resolve uma outra versão do
paradoxo, conhecida como Mentiroso Reforçado, e que toma como ponto de partida uma Frase
Mentirosa Reforçada (FMR), que diz de si própria que não é verdadeira. Tal como o Simples, o
Mentiroso Reforçado tem também duas partes principais: a primeira mostra que, se FMR é
verdadeira, então é verdadeira e não é verdadeira; a segunda mostra, que se FMR não é verdadeira,
então é também verdadeira e não verdadeira. Tendo estas duas condicionais, o Mentiroso
Reforçado deriva a contradição sem pressupor a bivalência, apoiando-se apenas no princípio do
terceiro excluído, segundo o qual FMR ou é verdadeira ou não é verdadeira. E contra isto o lógico
não-bivalente seria impotente, pois não só o Mentiroso Reforçado não se apoia na bivalência, como
a própria negação da bivalência, ao dizer que a frase mentirosa não é verdadeira nem falsa, implica
que a frase mentirosa não é verdadeira e, com isso, concede ao Mentiroso Reforçado uma premissa
suficiente para derivar a contradição (mesmo sem usar o terceiro excluído). Em suma, diz a
objecção, a rejeição da bivalência não resolve o paradoxo do mentiroso, porque não evita o
Mentiroso Reforçado.
A objecção seguinte é ainda mais forte. Ela diz que, dados certos pressupostos plausíveis, a negação
da bivalência é inerentemente contraditória. O argumento é o seguinte. Seja A uma frase que,
devido a um certo tipo de deficiência, nos leva a negar a sua respeito a bivalência, i.e. nos leva a
dizer ¬(V[A] ∨ F[A]). Pressupondo princípios explicativos plausíveis a respeito do significado da
verdade e da falsidade (nomeadamente, os princípios V[A] → A e F[A] → ¬A), aquela afirmação tem
então como consequência ¬(A ∨ ¬A), o que, por uma das leis de De Morgan, é equivalente a (¬A ∧
¬¬A), uma contradição! Se aceitamos os pressupostos deste argumento, não podemos negar a
bivalência. Em suma, não só a negação da bivalência não seria suficiente para resolver o paradoxo,
como ela é, dados certos pressupostos muito plausíveis, inerentemente contraditória. Se queremos
resolver o paradoxo, e respeitar aqueles pressupostos, devemos procurar fazê-lo no quadro da
lógica bivalente clássica.
É frequente encontrar estas objecções dirigidas contra a proposta de Kripke. Será isso justo? A
segunda, em particular, é altamente suspeita, dado o facto de Kripke ter apresentado uma prova
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modelista (model-theoretic) da consistência de um sistema com predicados parciais e, por isso, não
bivalente. Algo tem de estar aqui errado.
De facto, uma leitura mais atenta do trabalho de Kripke sugere de imediato um certo tipo de
resposta a estas duas objecções. Quando um modelo de ponto fixo não atribui valor de verdade a
uma certa frase A, nem a extensão de V nem a sua anti-extensão possuem A como membro. Por
isso, V[A] também não tem valor de verdade. Uma vez que tanto A como V[A] não possuem valor de
verdade, o mesmo se passa (pelas regras de Kleene) com as respectivas negações ¬A e ¬V[A]. Este é
um aspecto que, por vezes, temos tendência para esquecer: em sistemas com um predicado parcial
de verdade, o facto de uma frase A ser indefinida num modelo não nos autoriza a afirmar que A não
é verdadeira no modelo (pelo menos no sentido de ser verdadeiro do próprio modelo).
Segue-se daqui que, quando A é indefinida, a respectiva instância do terceiro excluído – seja na
versão (V[A] ∨ V[¬A]), seja na versão (V[A] ∨ ¬V[A]) – é igualmente indefinida. Ora, isso é suficiente
para evitar o Mentiroso Reforçado. O preço da solução é a restrição do terceiro excluído.
Quanto ao argumento a respeito da bivalência, a resposta natural para ele, nesta mesma
perspectiva, é a de que uma teoria como a de Kripke não nega a bivalência. Ao rejeitar a aplicação
da bivalência a uma frase A, não estaremos a dizer que A não é verdadeira nem falsa, ou que nem A
nem a sua negação são verdadeiras, ou que A nem é verdadeira nem é não verdadeira (qualquer
destas afirmações seria inerentemente contraditória). Se a bivalência não se aplica a uma frase, a
negação da bivalência também não se lhe aplica. Talvez não seja adequado, nesse caso, dizer que A
sofre de uma “falha de valor de verdade”. (Alguns lógicos têm insistido na importância de distinguir
entre não ter valor de verdade e ter um terceiro valor de verdade; outros têm considerado esta
distinção dificilmente inteligível.)
Diversos elementos no trabalho de Kripke sugerem esta maneira de interpretar a proposta que nele
é apresentada. Além disso, como vimos nos parágrafos anteriores, esta interpretação proporciona
respostas eficazes e interessantes às objecções levantadas. Isto não significa, no entanto, que a
proposta assim interpretada esteja isenta de problemas e que seja suficiente para resolver
satisfatoriamente os paradoxos semânticos. O próprio Kripke parece reconhecer que não é assim
nas páginas finais do artigo, quando assinala que, embora contenha o seu próprio predicado de
verdade, a linguagem da sua construção não pode conter os predicados de “frase infundada” e
“paradoxal”, nos termos dos quais a solução para o problema foi formulada. Trata-se do famoso
problema da vingança (assim baptizado por Robert Martin (1984), mas muitas vezes confundido com
o mentiroso reforçado), ao qual a teoria de Kripke parece ser vulnerável. Soames (1999: 180) referese-lhe quando assinala o “carácter dinâmico” do paradoxo: a própria actividade de solucionar o
paradoxo gera conceitos com os quais podemos depois recriar uma nova versão do paradoxo, num
processo que é aparentemente iterável sem fim.
Deixaremos a consideração do problema da vingança para outra ocasião. Por agora, queremos
sublinhar o seguinte aspecto: esta maneira de interpretar a teoria de Kripke implica uma renúncia da
lógica clássica (particularmente visível na restrição do terceiro excluído). Ora, o próprio Kripke, numa
nota de rodapé bem conhecida (18), afirma que não pretende abandonar a lógica clássica.
§ 4. Falhas de valor de verdade na lógica clássica.
Os elementos recolhidos na secção anterior pareceriam indicar que, das duas vias para procurar uma
alternativa à solução hierárquica assinaladas no final da secção § 2, a proposta avançada por Kripke
segue a segunda opção de restringir a lógica clássica? Não exactamente. De acordo com as regras
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semânticas de K3, quando A e V[A] são ambas indefinidas, as condicionais A → V[A] e V[A] → A e a
bicondicional A ↔ V[A] são também indefinidas. Por isso, na interpretação não-clássica, a proposta
de Kripke envolveria também uma restrição do esquema da verdade. Registe-se que as regras de Ł3,
de Łukasiewicz, distinguem-se das de K3 exactamente por reconhecerem estas condicionais e
bicondicional como verdadeiras no caso considerado <i, i>. Mas isso origina outros problemas (como
ausência de monotonia).
O facto é que, contra a expectativa naturalmente criada, Kripke afirma peremptoriamente que o seu
uso das regras de K3 não deve ser interpretado como significando um abandono da lógica clássica.
Na sua opinião, “indefinido” deve ser lido como ausência de valor de verdade, e não como um
terceiro valor. Dizendo-se influenciado pelas ideias de Strawson em “On Referring” (1950), Kripke
associa a sua admissão de falhas de valor de verdade à visão das frases (ou da sua elocução) como
tentativas de expressar proposições. Nessa medida, as regras de K3 seriam adoptadas apenas como
convenções para lidar com frases que não expressam proposições (análogas a convenções na
aritmética para lidar com termos que não designam números, como 1÷0). A adopção de tais
convenções não pode ser vista como uma mudança de lógica. Os princípios da lógica clássica
mantêm-se válidos quer para o universo inteiro das proposições (às quais é possível que eles se
devam aplicar primeiramente) quer para todas as frases que expressam proposições. Mas se uma
frase A não expressa nenhuma proposição, nada garante que uma frase composta a partir de A,
mesmo que tenha a forma de uma tautologia (clássica), seja verdadeira.
Qual é então a lógica do sistema que Kripke tem em vista? Os dados disponíveis não são suficientes
para dar uma resposta. Kripke concentra sobretudo a sua atenção em descrever o método para
construir um modelo para o tipo de sistema desejado e cuida pouco da descrição explícita do
próprio sistema, à excepção das observações necessárias sobre a sua sintaxe. Ficamos sem conhecer
qual é o procedimento de prova do sistema e, se se trata de um sistema axiomático, quais são os
seus axiomas e regras de inferência.
Esta deficiência foi resolvida por Feferman (1984). Surpreendentemente, Feferman veio fornecer
uma justificação técnica para as declarações “de princípio” de Kripke, ao mostrar como um sistema
com predicados parciais com um modelo de ponto fixo pode ser formalizado com uma (extensão
conservadora da) lógica clássica. A axiomatização apresentada por Feferman no quadro da lógica
clássica é geralmente conhecida como KF, ou teoria de Kripke-Feferman. (Feferman faz acompanhar
este seu resultado positivo de considerações críticas contra a formalização com lógicas não-clássicas,
às quais aponta o facto de limitarem grandemente a capacidade de raciocínio.)
A teoria KF é muito elegantemente apresentada em Reinhardt (1986: 230-1), cuja exposição
resumirei aqui. Considere-se uma linguagem para expressar a aritmética de Peano, à qual se
acrescenta um predicado de verdade V e um predicado de falsidade F. Trata-se de uma linguagem
com capacidade de auto-referência e com os seus próprios predicados semânticos, cuja sintaxe e
cujas regras de inferência são perfeitamente clássicas. Além dos axiomas propriamente aritméticos,
são acrescentados axiomas que expressam as “condições de verdade” e as “condições de falsidade”
de cada categoria gramatical de frases, os quais estão de acordo com as regras de K3. Por exemplo,
os axiomas relativos à negação e à conjunção são:
V[¬A] ↔ F[A]
F[¬A] ↔ V[A]
V[A ∧ B] ↔ V[A] ∧ V[B]
F[A ∧ B] ↔ F[A] ∨ F[B]
3ª OFICINA DE FILOSOFIA ANALÍTICA, Sociedade Portuguesa de Filosofia, Lisboa, 25-26 Janeiro 2008.
Versão de trabalho. Todas as questões, comentários e sugestões (enviadas para [email protected]) são bem-vindas.
Os axiomas para os quantificadores são dados em termos da substituição das ocorrências de uma
variável v numa fórmula A por ocorrências de nomes (no pressuposto de que todos os nomes
referem objectos do domínio e todos os objectos do domínio têm um nome). Por exemplo:
V[∀v Av] ↔ ∀n V[An]
F[∀v Av] ↔ ∃n F[An] 2
As frases atómicas da linguagem dividem-se em dois grupos: as que são puramente aritméticas e as
que envolvem os predicados semânticos. Para as primeiras, as suas condições de verdade são
expressas, como habitualmente, em termos aritméticos, através de alguma fórmula complexa R.
Portanto, se Ar é uma frase atómica aritmética, temos que:
V[Ar] ↔ R
F[Ar] ↔ ¬R
Para as frases atómicas que envolvem os próprios predicados semânticos, os axiomas são:
V[V[A]] ↔ V[A]
F[V[A]] ↔ F[A]
V[F[A]] ↔ F[A]
F[F[A]] ↔ V[A]
Por fim, o último axioma diz que nenhuma fórmula tem os dois valores de verdade:
¬(V[A] ∧ F[A])
Pelo método indutivo de construção de um ponto fixo, usado por Kripke e por Feferman, prova-se
que esta teoria é consistente. Trata-se de uma teoria bastante curiosa, que consegue juntar duas
coisas que geralmente se pensaria terem de andar separadas: a admissão de falhas de valor de
verdade e um modelo clássico bivalente. A teoria admite falhas de valor de verdade, porque há
frases na linguagem – como as frases mentirosas, a frase verídica e outras frases infundadas (que
Kripke diria não expressarem nenhuma proposição) – que não são verdadeiras nem falsas. No
entanto, pode dizer-se que a teoria tem um modelo clássico, na medida em que ela possui os seus
próprios predicados de verdade e de falsidade e, para cada frase da linguagem, estes predicados ou
se lhe aplicam ou não se lhe aplicam. Aliás, na medida em que todas as frases da linguagem ou são
verdadeiras ou não são verdadeiras e, de igual modo, ou são falsas ou não são falsas, pode dizer-se
que os predicados de verdade e de falsidade desta teoria são afinal predicados totais (totalmente
definidos).
§ 5. Uma solução para o paradoxo, mas a que preço?
Nas páginas finais do artigo, Kripke tece algumas considerações a respeito do tipo de teoria clássica
que descrevemos na secção anterior. O seu ponto de partida é um contraste entre duas intuições: a
primeira diz que, se uma frase A é indefinida, então a afirmação de que A é verdadeira é também
2
A quantificação sobre n pode causar perplexidade. O axioma deve ser lido assim: uma quantificação universal
∀v Av, em que v é uma variável que ocorre na fórmula A, é falsa se e somente se existe pelo menos um
nome n tal que a fórmula que resulta de substituir todas as ocorrências livres de v em A por ocorrências de n é
falsa. Na formulação dada por Reinhardt, em vez de “existe pelo menos um nome n”, surge “todos os nomes
n”, mas isso parece ser um lapso.
3ª OFICINA DE FILOSOFIA ANALÍTICA, Sociedade Portuguesa de Filosofia, Lisboa, 25-26 Janeiro 2008.
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indefinida (confirmando assim o princípio de que A e V[A] devem ter sempre o mesmo estatuto); a
segunda intuição, pelo contrário, diz que, se A é indefinida, então não é verdadeira, pelo que V[A]
será falsa. Qual destas duas intuições devemos privilegiar? A teoria KF, que como vimos dá
substância à preferência pela manutenção da lógica clássica, desenvolve a segunda intuição. Mas
Kripke, de modo algo contraditório, diz que decidiu enfatizar a abordagem baseada na primeira
intuição, porque considera que há razões filosóficas que justificam a sua primazia.
Um outro aspecto menos acertado nestas observações finais de Kripke encontra-se quando ele,
referindo-se à segunda intuição, diz que de acordo com ela o predicado de verdade se torna um
predicado totalmente definido (como observámos no fim da secção § 4) e deixa de haver falhas de
valor de verdade. Mas, se for possível dar substância à distinção entre não ter valor de verdade e ter
um terceiro valor, é na interpretação clássica que faz sentido dizer que as frases paradoxais sofrem
de uma falha de valor de verdade. Pois é essa a interpretação que admite que tais frases não são
verdadeiras nem falsas. (A interpretação não-clássica que referimos nos últimos parágrafos da
secção 3 não aceita esta afirmação.)
Kripke chama “encerramento” (closing off) à operação que permite transformar um ponto fixo num
modelo para uma teoria que respeite a segunda intuição. Se, no ponto fixo de partida, S1 e S2 são,
respectivamente, a extensão e a anti-extensão do predicado de verdade, o que o encerramento faz é
modificar a interpretação deste predicado de modo a torná-lo falso, não apenas dos membros de S2,
mas de tudo o que não pertença a S1. No modelo que assim se obtém, uma frase paradoxal A, que
não pertença a S1 nem a S2 (que é agora a extensão do predicado de falsidade), é uma frase que não
é verdadeira, quer dizer, é uma frase relativamente à qual a afirmação V[A] é falsa e a negação
¬V[A] é verdadeira. Torna-se assim evidente que, nesta teoria, o esquema da verdade V[A] ↔ A não
pode ser afirmado de modo irrestrito. Na realidade, KF tem como teoremas V[A] → A e F[A] → ¬A,
mas não A → V[A] e ¬A → F[A]. (Pelas tabelas de K3, quando A=i, as duas primeiras condicionais
recebem o valor (f → i) = v, enquanto as duas últimas recebem (i → f) = i.) O esquema da verdade
aceite em KF tem a seguinte forma restrita: (V[A] ∨ F[A]) → (V[A] ↔ A). E isto parece estar em
consonância com o desejo de Kripke de que todos os princípios clássicos (aqui, os princípios da
verdade) se mantenham válidos para as frases que expressam proposições. Por outro lado,
confirma-se a afirmação de Feferman de que podemos solucionar os paradoxos sem restringir a
lógica clássica se, em compensação, aceitarmos uma restrição dos princípios da verdade.
Como é que KF evita os paradoxos? O Mentiroso Simples é bloqueado pela negação da bivalência: a
frase mentirosa não é verdadeira nem falsa. E tanto o Simples como o Reforçado são também
bloqueados pela não aceitação do princípio A → V[A]. No caso do Simples, não podemos passar da
suposição de que a frase mentirosa é falsa para a conclusão de que então ela é verdadeira, com a
justificação de que falsa é precisamente o que ela afirma ser. E, no caso do Reforçado, não podemos
passar da suposição (ou da premissa, se já tivermos negado a bivalência) de que a frase mentirosa
não é verdadeira para a conclusão de que então ela é verdadeira, com a justificação de que não
verdadeira é precisamente o que ela afirma ser. Pois estas justificações pressupunham que aquele
princípio fosse aceite.
Mas, em balanço final, apesar dos seus méritos inegáveis, não se pode dizer que a solução proposta
seja satisfatória. Pelo menos por dois motivos, o primeiro dos quais foi apontado por Kripke. Uma
vez que KF tem uma linguagem LK perfeitamente clássica, com todos os seus predicados
completamente definidos, será possível, numa metalinguagem LM, definir à maneira de Tarski um
predicado de verdade para LK. Teremos, então, dois predicados de verdade para a mesma
linguagem: o predicado VK da própria linguagem-objecto (o qual terá de ter uma tradução na
metalinguagem) e o predicado VM da metalinguagem. Supondo que β é o nome em LM de uma frase
mentirosa de LK, a definição tarskiana de verdade terá como consequência que VM se aplica a β se e
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somente se VK não se aplica a β. Ou seja, os dois predicados não têm a mesma extensão. Uma vez
que, efectivamente, no modelo de KF, VK não se aplica a β , a metalinguagem usará o predicado VM
para dizer que β é verdadeira. Quer dizer, a metalinguagem faz a ascensão de A para V[A] que em KF
não era permitida (para bloquear o paradoxo). Isso não origina nenhuma nova versão do paradoxo,
mas justifica a pretensão de VM a representar o autêntico predicado de verdade para LK e, ao fazê-lo,
conduz-nos de volta à hierarquia de Tarski.
A segunda razão de insatisfação com a adopção de KF como solução para o paradoxo do mentiroso é
interna à própria teoria KF. Como vimos, no modelo de KF a frase mentirosa não é verdadeira: V[A] é
falsa e a sua negação é verdadeira. Mas nós, ao afirmarmos que a frase mentirosa não é verdadeira
(i.e., ao afirmarmos ¬V[A]), estamos a afirmar a própria frase mentirosa (i.e., estamos a afirmar A). É
certo que daqui não se segue nenhuma contradição, pois o facto de afirmarmos A não nos autoriza
(em KF) a concluir que A é verdadeira. Mas o preço a pagar por esta barreira contra a contradição é
demasiado elevado. Pois, embora não seja contraditório, é claramente irracional afirmar-se uma
frase que, ao mesmo tempo, se afirma que não é verdadeira3.
Referências
Solomon Feferman, “Toward Useful Type-Free Theories, I”, Journal of Symbolic Logic, 49, 1984, pp.
75-111.
Hartry Field, “Solving the Paradoxes, Escaping Revenge”, 2008, no prelo.
Saul Kripke, “Outline of a Theory of Truth”, Journal of Philosophy, 72, 1975, pp. 690-716.
Robert L. Martin, “Introduction”, in Martin (ed.), Recent Essays on Truth and the Liar Paradox,
Clarendon Press, Oxford, 1984, pp. 1-8.
William N. Reinhardt, “Some Remarks on Extending and Interpreting Theories with a Partial
Predicate for Truth”, Journal of Philosophical Logic, 15, 1986, pp. 219-251.
Scott Soames, Understanding Truth, Oxford University Press, New York, 1999.
Alfred Tarski, “The Semantic Conception of Truth and the Foundations of Semantics”, Philosophy and
Phenomenological Research, 4, 1944, pp. 341-375.
3
Esta consequência de KF é também apontada por Hartry Field, em “Solving the Paradoxes, Escaping Revenge”
(a publicar em 2008 num volume colectivo intitulado The Liar’s Revenge, mas disponível na página do autor na
internet), que eu não conhecia quando fiz este trabalho.
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A SOLUÇÃO DE KRIPKE PARA O PARADOXO DO