PRÁTICAS DE LEITURA EM CONTEXTO ACADÊMICO: UMA RELAÇÃO ENTRE
TEXTO E MEMÓRIA DISCURSIVA
Luciana Cristina Ferreira Dias, Unicentro (Universidade Estadual do Centro –Oeste)
Guarapuava-PR, Unicamp (IEL/ doutoranda)
[email protected]
Resumo: Num movimento de ir e vir entre teoria e prática no campo dos estudos
aplicados da linguagem, em minha pesquisa, estou considerando as implicações da
Análise de discurso de linha francesa no tocante a práticas de leitura de ensaios em
língua materna em contexto acadêmico. Para tanto, tomo como base a imbricação
língua (entendida como materialidade) e interdiscurso (o espaço da memória do dizer)
tanto na produção dos sentidos quanto na instauração de um sujeito-leitor em práticas
letradas nas quais tenho buscado não tratar o texto como um mero produto lingüístico,
mas como instância de um processo discursivo maior.
Palavras-chaves: análise de discurso, práticas de leitura acadêmica, ensaio, memória.
1. Introdução:
Considerando-se a esfera do discurso acadêmico (BAKHTIN, 2003), tomo como
base práticas de leitura de ensaios a partir de um estudo de caso em uma universidade
pública paranaense. Assim sendo, vale destacar o caráter aplicado do trabalho que, na
tentativa de entender o problema das práticas de leitura neste contexto, buscou na
Análise do discurso (doravante AD) subsídios que iluminassem o assunto em questão
(MOITA LOPES, 1996).
Em termos de apresentação, o trabalho se divide em três partes. Na primeira,
apresento os fundamentos teóricos que iluminam uma visão discursiva de leitura, na
segunda parte trago para cena um levantamento realizado com alunos-professsores,
participantes deste estudo, sobre suas concepções de leitura e na terceira parte,
implemento uma proposta de leitura de um ensaio.
Para tanto, estou considerando, conforme Orlandi (1993:11), nas práticas de
leitura a (im)possibilidade de pensar: (i) um autor onipotente cujas intenções
controlassem todo o processo de significação; (ii) a transparência do texto que diria por
si só uma significação e (iii) um leitor onisciente que dominasse as múltiplas
determinações dos sentidos que jogam em um processo de leitura.
2. Discussão teórica:
Considerando que a leitura enquanto prática pode assumir diferentes posturas,
estou levando em conta, neste estudo, a perspectiva discursiva. Para tanto, julguei
necessário apresentar uma espécie de reflexão sobre os diferentes modos como a
leitura vem sendo concebida nos estudos da linguagem.
Em sintonia com Coracini (2005: 20) podemos depreender duas concepções
clássicas de leitura que têm determinado nosso olhar sobre o objeto (texto, mundo,
obra de arte, nós mesmos): (i) a leitura como decodificação – descoberta de um sentido
(presente sobretudo na escola) e (ii) leitura como interação - construção de um sentido(presente sobretudo na academia).
Tomando-se como base a primeira concepção de leitura como descoberta de um
sentido, um modelo que representa tal concepção, bastante cristalizado,sobretudo no
espaço da escola, é o modelo estruturalista. Em conseqüência, a leitura é concebida
como decodificação de mensagens, a partir do reconhecimento de itens lingüísticos
(meios formais da língua) e assim nessa visão caberia distinguir o significado literal em
contraposição ao metafórico, o denotativo em relação ao conotativo, da mesma forma
distinguir o objetivo do subjetivo (CORACINI, 1995, p.14). Outrossim, na visão
estruturalista, existe uma leitura única correta, seja a do professor, seja a do livro
didático.
Considerando-se a segunda concepção de leitura como construção de um
sentido, concepção cotada nos meios acadêmicos, segundo Coracini (2005) como o
próprio nome indica, a leitura constitui um processo cognitivo que coloca o leitor em
frente do autor do texto. Este modelo, de orientação cognitivista, entende a leitura como
processo ativo de construção mental. Ler consiste em acionar pacotes de
conhecimentos estruturados (os chamados blocos cognitivos), acompanhados de
instruções para seu uso. Tal modelo de leitura está presente no meio acadêmico e
representa um desejo de controle da construção do sentido, ou seja, um desejo de ser
fonte e origem do dizer. (CORACINI, 1995)
Entretanto, sabemos que ler não se restringe a uma série de estratégias (ler as
informações gerais e partir para as específicas), buscando apreender o que texto quis
dizer. É entender que a linguagem serve para comunicar e para não comunicar
(ORLANDI, 1999: 21). Ou ainda que a língua não se trata de um mero instrumento a ser
controlado ou utilizado para informar conteúdo, mas a língua se trata de um
acontecimento no sujeito.
Procuro deslocar uma visão de linguagem em que os sujeitos determinem
livremente os sentidos do texto ou ainda que o sentido já venha determinado a priori
pelo texto ou pelo autor. Nos termos de Mascia (2005: 48) “o discurso transcende o
lingüístico, ele é socioconstituído e também o é o sentido, que não pode ser controlado
como se fosse um objeto contido no texto”.
Segundo Coracini (1995), nos baseando em Pêcheux (1990) é interessante levar
em conta as duas ilusões das quais o autor fala e que constitui o sujeito como social e
ideologicamente constituído. No caso da primeira ilusão ou esquecimento, o número 1,
referente à ilusão de o sujeito ser fonte e origem do dizer quando na verdade retoma
sentidos preexistentes, pode-se, neste caso, problematizar a questão da leitura como
centrada no texto como produto fechado e acabado. Na visão discursiva, é preciso se
ater às relações de sentidos que se estabelecem entre um texto e outros- existentes,
possíveis, imaginários. No caso da segunda ilusão ou esquecimento, o número 2,
referente à ilusão do sentido único. Numa visão discursiva, ler é saber que tanto o
sentido pode ser outro quanto o sujeito não tem controle pleno dos sentidos
Dessa forma, numa tentativa de contribuir para as reflexões sobre práticas de
leitura em língua materna, considerando a AD como suporte teórico-metodológico, neste
trabalho busco mobilizar a relação texto (ordem da formulação) e a memória (ordem da
constituição dos dizeres) no processo de leitura. Ler é interpretar a historicidade do
dizer, nos termos de Orlandi (1998: 208) é permitir que o aluno não fique restrito à
repetição empírica (efeito papagaio) ou à repetição formal (técnica de retomar o
conteúdo lido, não produzindo a ligação com a memória discursiva), mas sim se envolva
com a repetição histórica, ou seja, com a possibilidade de inscrever o dizer no repetível
enquanto memória constitutiva do dizer. Assim, o sujeito faz aquele sentido (o da leitura)
fazer sentido em “seu discurso”, em sua memória.
3. Modos de leitura:
Vale ressaltar que as práticas de leitura de ensaios envolveram uma turma de 4o.
ano de Letras- Literatura, na disciplina Trabalho de Conclusão de Curso. Para a
realização do levantamento das concepções de leitura em contexto acadêmico dos
alunos-professores foi aplicado um questionário.
Minha intenção foi fazer um diagnóstico sobre como a leitura vem sendo trabalhada
em sala de aula em contexto acadêmico (neste caso, no contexto desta universidade
pública do interior do Paraná) e pensar em que medida a abordagem discursiva, ao ser
implementada, pode permitir uma reflexão sobre a historicidade e não uma reflexão da
historicidade. Vamos analisar alguns depoimentos acerca dos sentidos que os alunos
dão para a leitura em contexto acadêmico:
(1)
(2)
(3)
(4)
(5)
(6)
(7)
Leitura, na universidade, para mim é extrair o que há de melhor nas obras, sempre
levando em conta a minha opinião e o estilo literário
Uma leitura mais aprofundada de assuntos com análises lingüísticas e investigação do
que há por trás dos textos.
Leitura é forma de aquisição de conhecimento
A leitura é feita mais como imposição dos professores, os professores querem que
pensemos conforme eles, não há espaço para discussão nova
A leitura no contexto acadêmico acaba se tornando uma necessidade e não um prazer.
Leitura no contexto acadêmico é aquisição de conhecimento, de cultura.
A leitura neste contexto não é apenas codificação e decodificação, é muito mais que isso,
é compreensão, interpretação ligada ao nosso mundo. Todas as leituras feitas são mais teóricas e a
partir delas são construídos novos textos para a aprendizagem.
Neste caso, podemos perceber que ler está ligado à aquisição de
conhecimentos, isto é, a leitura se reduz à função referencial da linguagem, a um
conjunto de informações relevantes que precisam ser internalizadas e estocadas, como
se o conhecimento fosse organizado em blocos cognitivos e o sujeito, na ilusão da
completude, buscasse apreender cada vez mais informações para ter controle e para
ser fonte “idealizada” dos sentidos. Nas palavras de Coracini (1995: 14) “o leitor seria,
então, o receptáculo de um saber contido no texto”.
Também, no caso do depoimento ligado ao fato de que ler é extrair um sentido,
podemos notar outra visão de leitura como descoberta do sentido (CORACINI, 2005:
20). Nos termos de Coracini (2005: 20) trata-se da visão essencialista da leitura, uma
vez que se acredita na existência de uma essência no texto, escondido, de modo que
nossa tarefa enquanto leitores seria a de buscá-la, capturá-la.
Outro depoimento aponta para sentidos de que ler, na universidade, não é
somente decodificar textos, é compreender, interpretar, sendo que, a partir dessas
leituras, é possível construir novos textos para a aprendizagem. Neste caso, a prática
de leitura é entendida como produção de novos sentidos, o que, de fato, é bastante
produtivo do ponto de vista discursivo.
Também, temos depoimentos nos quais a leitura única do professor é
questionada. De fato, é urgente a necessidade de se desfazer o círculo vicioso a partir
do qual os alunos-professores perpetuam a perspectiva da leitura literal, já que seus
professores na universidade assim o fazem, ou seja, precisamos evitar que esses
alunos sejam “naturalmente integrados” a essa concepção de leitura (cf. BAGHINSPINELLI, 2002: 80). Outrossim, conforme assevera Coracini (1995: 31), não há
espaços, em salas de aulas de línguas, “para a pluralidade de leituras, já que o
professor conduz o aluno para sua leitura que, na verdade, acredita ser a única
possível, e, portanto, a única correta”.
4. Abordagem discursiva da textualidade de um ensaio: um trabalho com a
memória
Por questões de espaço, abordarei neste estudo uma problematização de um
ensaio intitulado Elizabeth Bishop como mediadora cultural. Tal texto foi extraído de
uma coleção de ensaios de vários autores organizada por João Cezar de Castro Rocha,
a antologia Nenhum Brasil existe, editada no Brasil em 2003.
O ensaio de Paulo Britto traz à tona a experiência de Elizabeth Bishop em
relação ao Brasil (um sentido que tem história). Em relação à história de leitura dos
acadêmicos, muitos desconheciam a poeta, seu trabalho e sua experiência de viver no
Brasil. Neste caso, nas palavras de Orlandi (1993: 43) os alunos puderam ampliar o que
a autora denomina de compreensibilidade dos leitores (meus grifos), uma capacidade
de leitura.
4.1 Análise pré-pedagógica do ensaio: Elizabeth Bishop como mediadora
cultural no Brasil:
Autor: Paulo Henriques Britto
A análise pedagógica que aqui se coloca é uma espécie de exemplar de leitura
de textos, que pode ser aproveitada em outros gêneros do discurso, além do ensaio.
Neste caso, vale dizer que estou me baseando em outros estudos como os de Serrani
(2000, 2005) e o de Baghin-Spinelli (2002). Diferente das autoras que enfocaram textos
em línguas estrangeiras (inglês e espanhol), em meu estudo dirijo o foco para um
ensaio em língua materna.
O ensaio da autoria de Paulo Britto apresenta, em termos de conteúdo temático,
a experiência contraditória vivenciada pela poeta Elizabeth Bishop no Brasil. A autora,
conforme o ensaio nos apresenta, passou a ser intérprete do Brasil para seus leitores
norte-americanos. Bishop, num trabalho que envolveu dentre outras coisas escrita de
livros, traduções, organização de antologia de poesia moderna juntamente com
Emanuel Brasil, produção de poemas de temática brasileira, se dedicou enquanto
esteve no Brasil, ao estudo da nossa literatura.
4.1.1. Condições de produção do discurso: Podemos dizer que em sintonia com
Orlandi (1993: 10) foi interessante questionar:
a)relação do texto com o autor: o que o autor quis dizer- Podemos dizer que o ensaísta
constrói uma representação de mediadora cultural, no caso da poeta Elizabeth Bishop,
um tanto quanto desinteressada em relação ao nosso país. Assim sendo temos
mobilizada neste texto uma memória de Brasil como lugar visto como falta, incompleto
para o estrangeiro.
(1)Para Elizabeth Bishop, a vida privada era a única que contava.
(2)Quando, em 1969, estava preparando a introdução da
antologia da poesia brasileira, escreveu a Lowell “ é terrível
pensar que provavelmente vou passar o resto da vida sendo
considerada uma espécie de autoridade em matéria de Brasil”.
Neste processo de instauração de sentidos, Britto, autor do ensaio, coloca em
cena, na forma da heterogeneidade mostrada (discurso indireto, em destaque), a voz
da poeta, o gesto de interpretação de Bishop sobre o Brasil para em seguida
desconstruir aquilo que seria uma visão estereotipada sobre o país e seu povo. Os
argumentos colocados em número significativo (Bandeira e sua obra em poesia, crítica,
organização de antologias, tradutor, professor) funcionam como uma tentativa de
desautorizar o discurso de Bishop e produzir um efeito de verdade, a de que Manuel
Bandeira não era ocioso ou indolente, mas sim produtivo e versátil (transitava em vários
domínios).
(3)os escritores brasileiros gostam de se deixar fotografar gostosamente
deitados em redes com franjas. Ao que parece, muitos brasileiros de
talento genuíno muito cedo deitam-se na cama- ou na rede (Bishop,
Brazil, 104)
(4)Na época Bandeira, aos 75 anos de idade, já tinha produzido uma
notável obra poética, jornalística e crítica; havia também lecionado
literatura, organizado uma antologia de poesia brasileira em vários
volumes e traduzido muita poesia do inglês, francês e alemão; e era
reconhecido com um dos maiores poetas brasileiros do século.
b)relação do texto com outros textos: Percebemos no texto do autor a instauração da
voz da própria poeta, o que contribui para a instauração de sentidos dominantes sobre
o Brasil e seu povo. Tal representação da identidade nacional (país de coisas mal
feitas, povo pouco afoito ao trabalho, poetas indolentes) que constitui o espaço da
memória brasileira (no Brasil nada funciona, o brasileiro é vagabundo, não gosta de
trabalho). Percebemos nestes fragmentos que Bishop como mediadora cultural produz
alguns discursos problemáticos em relação ao Brasil, uma certa tendência de construir
o Brasil como um bloco único, apagando as diferenças.
(6)“ no Brasil, tudo é malfeito, sem acabamento. (Bishop, Uma arte, 258)
(7)“em seu contato com o Rio, cristalizou-se em Bishop uma imagem da cidade
como lugar adverso ao trabalho e à civilização que jamais se alteraria nas
décadas seguintes”. (p.145)
c)relação do texto com seu referente: O texto, ao abordar a relação tensa de Bishop em
relação ao nosso país, nos permite repensar a identidade sócio-cultural brasileira a
partir do olhar externo, do estrangeiro. E essa construção de sentidos sobre o que é o
Brasil se contrapõe à imagem que a poeta fazia do seu país de origem, os Estados
Unidos.
(8)Desde o início assumiu uma posição que poderia ser sintetizada, de um
modo um pouco simplificado através da idéia de que o Brasil era basicamente
natureza enquanto os Estados Unidos representavam a cultura. (p.144)
Assim a memória que ganha corpo neste ensaio representa um conflito entre o
Brasil como lugar da natureza, da beleza, da falta de cultura e Estados Unidos, país de
origem da poeta, como lugar da cultura. Natureza nesta formulação, em termos de
modos de dizer predicativo, é significada como espontaneidade, liberdade, amor,
acolhida, contudo ausência de cultura.
d)relação do texto com o leitor: O ensaio, por trazer à tona, dentre os sentidos
dominantes, representações de Brasil como lugar atrasado, primitivo, de povo irracional
mobilizam no leitor questões subjetivas que conforme notei no estudo de caso
conduzem o leitor a questionar os sentidos homogeneizantes atribuídos pela autora.
Neste caso, tomemos como base a representação de Bishop sobre a cidade brasileira
do Rio de Janeiro e ao próprio Brasil.
(9) “é tanta bagunça- uma mistura de Cidade do México com Miami, mais ou
menos, tem homens de calção chutando bolas de futebol por toda parte,
Começam na praia, às sete da manhã- e pelo visto continuam o dia todo nos
lugares de trabalho” (Uma arte, 226-7. Em contraste, os Estados Unidos lhe
pareciam caracterizar-se por sua “limpeza reluzente (que) é a coisa de que
mais sinto mais falta no início”
4.1.2. Hierarquização das dependências funcionais (direção argumentativa)Vale trazer à tona a esquematização de um parágrafo do texto. Assim sendo,
temos dominâncias por saturação (um enunciado que está amarrando outros prévios)
de modo que o autor apresenta uma espécie de resgate do que foi dito anteriormente
Escreve a poeta “ a Lota não tem o menor
interesse por nada do que seja brasileiro ou
“primitivo”.
Lota “é muito anglófila”, quando Bishop a
conheceu em Nova York ela afirmou admirar
“coisas bem feitas”, “bem acabadas”, tão
diferentes dos objetos que viam no Brasil
“no Brasil tudo é mal feito,
sem acabamento”
Assim a poeta passou a ver-se a si própria e a Lota, que como
a maioria das pessoas instruídas de sua classe era totalmente
europeizada, com pessoas comprometidas com a introdução de
hábitos civilizados no Brasil
b) a forma predominante nas sentenças: Nota-se um equilíbrio entre orações
subordinadas e orações coordenadas. Neste caso, destacam-se as orações adverbiais
que exprimem circunstância. As orações coordenadas aparecem geralmente invertidas,
de modo que as conjunções como no entanto, porém, mas, por outro lado dêem início
aos argumentos apresentados pelo ensaísta.
c)os conectivos implícitos nas pausas relevantes: Interpretamos neste caso o traço (---)
como operadores implícitos de adição e exemplificação. Neste caso, notamos que o
ensaísta constrói uma representação de Bishop como uma relutante intérprete do Brasil
ou mediadora cultural. Assim, a formulação que segue após o traço participa da
construção de uma intermediária cultural que buscava pela manutenção de sua
identidade puritana, mesmo que essa continuasse ainda a viver muitos anos no Brasil,
uma atualização de uma memória de estrangeiro que resiste em se tornar brasileiro.
(10)“ De modo geral, a poeta colocava-se inequivocamente à favor da cultura fazia questão de afirmar que, mesmo se continuasse vivendo a maior parte
no Brasil, como pretendia fazer, queria ao mesmo tempo “continuar sendo
uma puritana da Nova Inglaterra e da Nova Escócia”
(11) A poeta realiza inúmeras viagens pelo país e vê acima de tudo o que já
esperava ver: uma natureza exuberante e uma população dividida entre pobres
– “primitivos”, (..) - e aristocratas sofisticados como Lota, que falavam vários
idiomas e viajam ao estrangeiro com freqüência.
Assim sendo, após o traço, que, por sua vez, abre espaços para uma explicação
para o item lexical pobres (definidos como primitivos) e após a vírgula que explica os
aristocratas representados por Lota poderia configurar um conectivo explicativo como
isto é, ou seja. Assim o estrangeiro acaba ocupando uma posição mais privilegiada que
o brasileiro, de modo que o brasileiro para ser sofisticado precisa conhecer a língua do
outro e estar no país do outro.
d) Caracterização discursiva da seleção lexical:
Levantamento dos adjetivos e advérbios (modalizações apreciativas)adjetivação: amoroso, primitivo, acolhedor, burros, atrasados, irracionais, vil (adjetivos)
Advérbios: desenvergonhadamente (que modifica o adjetivo vil), certamente
(modificando o verbo acentuar- Lota contribuindo para uma visão -de Bishopestereotipada do Brasil), principalmente (modificando o advérbio lugares pobres) e
absolutamente (modificando o adjetivo naturais). Substantivos: o selvagem,
naturalidade, primitivismo, o bárbaro
Assim sendo, o brasileiro não teria vergonha de ser o que é e entre os pobres se
encontraria essa naturalidade da qual Bishop fala, uma visão que a própria
companheira, Lota, teria contribuído para formar na poeta.
(12) Após a morte de Lota, sente-se abandonada por todos- ninguém no fundo
gostava de mim e explode: “Os países atrasados geram pessoas atrasadas e
irracionais”. (p. 149)
(13) A Lota não tem interesse por nada que seja brasileiro ou “primitivo”.
(14) Manuelzinho- poema inspirado por uma pessoa real, misto de posseiro e
rendeiro, que vive na terra de Lota- apresenta a caricatura de um primitivo
brasileiro: um “tonto”, um “incapaz”, “o pior hortelão desde Caim”, ignorante,
supersticioso e desvergonhadamente vil.
e) os sentidos produzidos pelos verbos escolhidos e a modalização lógico-verbal:
Os verbos escolhidos no texto apontam para a construção de sentidos
dominantes sobre o Brasil, a partir do olhar de uma poeta estrangeira em relação a
nosso país. Os verbos apontam para tentativas de definir, de explicar, de conceituar um
povo e nação e materializam uma memória de povo simpático, alegre, que se contenta
com pouco.
(15)Meus alunos são muitíssimos simpáticos, quase todos- mas devo dizer que
estou um pouco preocupada com a Juventude Americana. (30) Eles são
inteligentes, quase todos eles, mas não parecem se divertir muito (...) quando
penso o quanto os jovens brasileiros se divertem com um violão, com uma festa,
ou apenas um cafezinho (sic) e uma conversa.
Consideramos o eixo da formulação, da ordem do texto, da linearidade do dizer
para a partir das marcas lingüísticas pensar a interdiscursividade da textualidade, a
ordem das memórias implícitas que, a meu ver, precisam ser acionadas no processo de
leitura. Em consonância com Serrani (2005:75) procurei não me restringir ao conteúdo
dos textos, ao sentido fixo que seria necessário extrair dos textos, mas sim procurei
mobilizar a textualização da memória nacional que ganha corpo no texto. (Orlandi,
2001, meus grifos)
5.Considerações finais:
Concordo com Baghin-Spinelli (2002:96) para quem a AD possibilita o trabalho com
a materialidade lingüística que, por sua vez, pode (e deve) ser trabalhada em nossas
salas de aula. No entanto, vale dizer que essa materialidade foi trabalhada não como
um fim em si mesma, mas sim com a consideração do processo discursivo do qual ela
faz parte.
Esperamos que com essa proposta, possamos evidenciar nos estudos de leitura e
da língua não somente o texto como produto lingüístico, mas todo o processo discursivo
do qual fazem parte memórias discursivas e as condições de produção.
Procuramos com essa abordagem discursiva da textualidade deslocar uma visão na
qual o texto fosse um produto e a leitura exercício de decodificação, de modo que ler
seria extrair um sentido que estaria fixo no texto. Interessou-me colocar em cena o
processo de produção de leitura de um ensaio e não a leitura de um texto como
estrutura fechada em si mesma. E neste processo, ler é interpretar a historicidade, é
refletir sobre a memória do dizer e não meramente refletir a memória, no efeito
papagaio, nas palavras de Orlandi (2008). (meus grifos)
6. Referências bibliográficas:
BAGHIN-SPINELLI, D.Uma proposta de leitura nos cursos de formação de
professores de língua Inglesa. In: SERRANI, S. (Org.) Línguas e Processos
Discursivos - Teoria e Prática. Fragmentos 22. Florianópolis: Editora da UFSC,
2003
BAKHTIN, M. Gêneros do discurso. In____ Estética da criação verbal. Trad.
Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CORACINI, MJ. (org.) O jogo discursivo em sala de aula: um jogo de ilusões.
Campinas: Pontes, 1995
CORACINI, M. Concepções de leitura na (pós) modernidade. In: LIMA, Regina Célia de
C. P. (Org.). Leitura: múltiplos olhares. Campinas, SP: Mercado de Letras; São João da
Boa Vista, SP: Unifeob, p. 15-44, 2005
MASCIA, M.Leitura: uma proposta desconstrutivista. In: LIMA, Regina Célia de C. P.
(Org.). Leitura: múltiplos olhares. Campinas, SP: Mercado de Letras; São João da Boa
Vista, SP: Unifeob, p. 45-57, 2005
MOITA LOPES, L.P. Oficina de Lingüística Aplicada. Campinas: Mercado das Letras,
1996.
PÊCHEUX, M.. (1975) Semântica e Discurso. Uma Crítica à Afirmação do Óbvio.
Trad. Eni P. de Orlandi et alii. Campinas: Editora da UNICAMP, 1988.
ORLANDI, E, Discurso e leitura. São Paulo: Cortez Editora, Campinas: Editora da
Unicamp, 1993.
ORLANDI, E. Identidade lingüística escolar. In: Signorini, I (org.) Língua(gem) e
identidade. Elementos para uma discussão no campo aplicado. Campinas: Mercado
das Letras, p. 203-212, 1998.
ORLANDI, E. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas:
Pontes, 1999
SERRANI, S. Discurso e Cultura na Aula de Língua Currículo – Leitura – Escrita.
Campinas: Pontes, 2005
SERRANI, S. (Org.) (2003): Línguas e Processos Discursivos - Teoria e Prática.
Fragmentos 22. Florianópolis: Editora da UFSC, 2003
SERRANI, S. Discurso sobre língua, textualidade e línguas próximas. In: Anais
da Anpoll, Niterói, RJ, 2000.
Download

PRÁTICAS DE LEITURA EM CONTEXTO ACADÊMICO: UMA