PRÁTICAS DE LEITURA EM CONTEXTO ACADÊMICO: UMA RELAÇÃO ENTRE TEXTO E MEMÓRIA DISCURSIVA Luciana Cristina Ferreira Dias, Unicentro (Universidade Estadual do Centro –Oeste) Guarapuava-PR, Unicamp (IEL/ doutoranda) [email protected] Resumo: Num movimento de ir e vir entre teoria e prática no campo dos estudos aplicados da linguagem, em minha pesquisa, estou considerando as implicações da Análise de discurso de linha francesa no tocante a práticas de leitura de ensaios em língua materna em contexto acadêmico. Para tanto, tomo como base a imbricação língua (entendida como materialidade) e interdiscurso (o espaço da memória do dizer) tanto na produção dos sentidos quanto na instauração de um sujeito-leitor em práticas letradas nas quais tenho buscado não tratar o texto como um mero produto lingüístico, mas como instância de um processo discursivo maior. Palavras-chaves: análise de discurso, práticas de leitura acadêmica, ensaio, memória. 1. Introdução: Considerando-se a esfera do discurso acadêmico (BAKHTIN, 2003), tomo como base práticas de leitura de ensaios a partir de um estudo de caso em uma universidade pública paranaense. Assim sendo, vale destacar o caráter aplicado do trabalho que, na tentativa de entender o problema das práticas de leitura neste contexto, buscou na Análise do discurso (doravante AD) subsídios que iluminassem o assunto em questão (MOITA LOPES, 1996). Em termos de apresentação, o trabalho se divide em três partes. Na primeira, apresento os fundamentos teóricos que iluminam uma visão discursiva de leitura, na segunda parte trago para cena um levantamento realizado com alunos-professsores, participantes deste estudo, sobre suas concepções de leitura e na terceira parte, implemento uma proposta de leitura de um ensaio. Para tanto, estou considerando, conforme Orlandi (1993:11), nas práticas de leitura a (im)possibilidade de pensar: (i) um autor onipotente cujas intenções controlassem todo o processo de significação; (ii) a transparência do texto que diria por si só uma significação e (iii) um leitor onisciente que dominasse as múltiplas determinações dos sentidos que jogam em um processo de leitura. 2. Discussão teórica: Considerando que a leitura enquanto prática pode assumir diferentes posturas, estou levando em conta, neste estudo, a perspectiva discursiva. Para tanto, julguei necessário apresentar uma espécie de reflexão sobre os diferentes modos como a leitura vem sendo concebida nos estudos da linguagem. Em sintonia com Coracini (2005: 20) podemos depreender duas concepções clássicas de leitura que têm determinado nosso olhar sobre o objeto (texto, mundo, obra de arte, nós mesmos): (i) a leitura como decodificação – descoberta de um sentido (presente sobretudo na escola) e (ii) leitura como interação - construção de um sentido(presente sobretudo na academia). Tomando-se como base a primeira concepção de leitura como descoberta de um sentido, um modelo que representa tal concepção, bastante cristalizado,sobretudo no espaço da escola, é o modelo estruturalista. Em conseqüência, a leitura é concebida como decodificação de mensagens, a partir do reconhecimento de itens lingüísticos (meios formais da língua) e assim nessa visão caberia distinguir o significado literal em contraposição ao metafórico, o denotativo em relação ao conotativo, da mesma forma distinguir o objetivo do subjetivo (CORACINI, 1995, p.14). Outrossim, na visão estruturalista, existe uma leitura única correta, seja a do professor, seja a do livro didático. Considerando-se a segunda concepção de leitura como construção de um sentido, concepção cotada nos meios acadêmicos, segundo Coracini (2005) como o próprio nome indica, a leitura constitui um processo cognitivo que coloca o leitor em frente do autor do texto. Este modelo, de orientação cognitivista, entende a leitura como processo ativo de construção mental. Ler consiste em acionar pacotes de conhecimentos estruturados (os chamados blocos cognitivos), acompanhados de instruções para seu uso. Tal modelo de leitura está presente no meio acadêmico e representa um desejo de controle da construção do sentido, ou seja, um desejo de ser fonte e origem do dizer. (CORACINI, 1995) Entretanto, sabemos que ler não se restringe a uma série de estratégias (ler as informações gerais e partir para as específicas), buscando apreender o que texto quis dizer. É entender que a linguagem serve para comunicar e para não comunicar (ORLANDI, 1999: 21). Ou ainda que a língua não se trata de um mero instrumento a ser controlado ou utilizado para informar conteúdo, mas a língua se trata de um acontecimento no sujeito. Procuro deslocar uma visão de linguagem em que os sujeitos determinem livremente os sentidos do texto ou ainda que o sentido já venha determinado a priori pelo texto ou pelo autor. Nos termos de Mascia (2005: 48) “o discurso transcende o lingüístico, ele é socioconstituído e também o é o sentido, que não pode ser controlado como se fosse um objeto contido no texto”. Segundo Coracini (1995), nos baseando em Pêcheux (1990) é interessante levar em conta as duas ilusões das quais o autor fala e que constitui o sujeito como social e ideologicamente constituído. No caso da primeira ilusão ou esquecimento, o número 1, referente à ilusão de o sujeito ser fonte e origem do dizer quando na verdade retoma sentidos preexistentes, pode-se, neste caso, problematizar a questão da leitura como centrada no texto como produto fechado e acabado. Na visão discursiva, é preciso se ater às relações de sentidos que se estabelecem entre um texto e outros- existentes, possíveis, imaginários. No caso da segunda ilusão ou esquecimento, o número 2, referente à ilusão do sentido único. Numa visão discursiva, ler é saber que tanto o sentido pode ser outro quanto o sujeito não tem controle pleno dos sentidos Dessa forma, numa tentativa de contribuir para as reflexões sobre práticas de leitura em língua materna, considerando a AD como suporte teórico-metodológico, neste trabalho busco mobilizar a relação texto (ordem da formulação) e a memória (ordem da constituição dos dizeres) no processo de leitura. Ler é interpretar a historicidade do dizer, nos termos de Orlandi (1998: 208) é permitir que o aluno não fique restrito à repetição empírica (efeito papagaio) ou à repetição formal (técnica de retomar o conteúdo lido, não produzindo a ligação com a memória discursiva), mas sim se envolva com a repetição histórica, ou seja, com a possibilidade de inscrever o dizer no repetível enquanto memória constitutiva do dizer. Assim, o sujeito faz aquele sentido (o da leitura) fazer sentido em “seu discurso”, em sua memória. 3. Modos de leitura: Vale ressaltar que as práticas de leitura de ensaios envolveram uma turma de 4o. ano de Letras- Literatura, na disciplina Trabalho de Conclusão de Curso. Para a realização do levantamento das concepções de leitura em contexto acadêmico dos alunos-professores foi aplicado um questionário. Minha intenção foi fazer um diagnóstico sobre como a leitura vem sendo trabalhada em sala de aula em contexto acadêmico (neste caso, no contexto desta universidade pública do interior do Paraná) e pensar em que medida a abordagem discursiva, ao ser implementada, pode permitir uma reflexão sobre a historicidade e não uma reflexão da historicidade. Vamos analisar alguns depoimentos acerca dos sentidos que os alunos dão para a leitura em contexto acadêmico: (1) (2) (3) (4) (5) (6) (7) Leitura, na universidade, para mim é extrair o que há de melhor nas obras, sempre levando em conta a minha opinião e o estilo literário Uma leitura mais aprofundada de assuntos com análises lingüísticas e investigação do que há por trás dos textos. Leitura é forma de aquisição de conhecimento A leitura é feita mais como imposição dos professores, os professores querem que pensemos conforme eles, não há espaço para discussão nova A leitura no contexto acadêmico acaba se tornando uma necessidade e não um prazer. Leitura no contexto acadêmico é aquisição de conhecimento, de cultura. A leitura neste contexto não é apenas codificação e decodificação, é muito mais que isso, é compreensão, interpretação ligada ao nosso mundo. Todas as leituras feitas são mais teóricas e a partir delas são construídos novos textos para a aprendizagem. Neste caso, podemos perceber que ler está ligado à aquisição de conhecimentos, isto é, a leitura se reduz à função referencial da linguagem, a um conjunto de informações relevantes que precisam ser internalizadas e estocadas, como se o conhecimento fosse organizado em blocos cognitivos e o sujeito, na ilusão da completude, buscasse apreender cada vez mais informações para ter controle e para ser fonte “idealizada” dos sentidos. Nas palavras de Coracini (1995: 14) “o leitor seria, então, o receptáculo de um saber contido no texto”. Também, no caso do depoimento ligado ao fato de que ler é extrair um sentido, podemos notar outra visão de leitura como descoberta do sentido (CORACINI, 2005: 20). Nos termos de Coracini (2005: 20) trata-se da visão essencialista da leitura, uma vez que se acredita na existência de uma essência no texto, escondido, de modo que nossa tarefa enquanto leitores seria a de buscá-la, capturá-la. Outro depoimento aponta para sentidos de que ler, na universidade, não é somente decodificar textos, é compreender, interpretar, sendo que, a partir dessas leituras, é possível construir novos textos para a aprendizagem. Neste caso, a prática de leitura é entendida como produção de novos sentidos, o que, de fato, é bastante produtivo do ponto de vista discursivo. Também, temos depoimentos nos quais a leitura única do professor é questionada. De fato, é urgente a necessidade de se desfazer o círculo vicioso a partir do qual os alunos-professores perpetuam a perspectiva da leitura literal, já que seus professores na universidade assim o fazem, ou seja, precisamos evitar que esses alunos sejam “naturalmente integrados” a essa concepção de leitura (cf. BAGHINSPINELLI, 2002: 80). Outrossim, conforme assevera Coracini (1995: 31), não há espaços, em salas de aulas de línguas, “para a pluralidade de leituras, já que o professor conduz o aluno para sua leitura que, na verdade, acredita ser a única possível, e, portanto, a única correta”. 4. Abordagem discursiva da textualidade de um ensaio: um trabalho com a memória Por questões de espaço, abordarei neste estudo uma problematização de um ensaio intitulado Elizabeth Bishop como mediadora cultural. Tal texto foi extraído de uma coleção de ensaios de vários autores organizada por João Cezar de Castro Rocha, a antologia Nenhum Brasil existe, editada no Brasil em 2003. O ensaio de Paulo Britto traz à tona a experiência de Elizabeth Bishop em relação ao Brasil (um sentido que tem história). Em relação à história de leitura dos acadêmicos, muitos desconheciam a poeta, seu trabalho e sua experiência de viver no Brasil. Neste caso, nas palavras de Orlandi (1993: 43) os alunos puderam ampliar o que a autora denomina de compreensibilidade dos leitores (meus grifos), uma capacidade de leitura. 4.1 Análise pré-pedagógica do ensaio: Elizabeth Bishop como mediadora cultural no Brasil: Autor: Paulo Henriques Britto A análise pedagógica que aqui se coloca é uma espécie de exemplar de leitura de textos, que pode ser aproveitada em outros gêneros do discurso, além do ensaio. Neste caso, vale dizer que estou me baseando em outros estudos como os de Serrani (2000, 2005) e o de Baghin-Spinelli (2002). Diferente das autoras que enfocaram textos em línguas estrangeiras (inglês e espanhol), em meu estudo dirijo o foco para um ensaio em língua materna. O ensaio da autoria de Paulo Britto apresenta, em termos de conteúdo temático, a experiência contraditória vivenciada pela poeta Elizabeth Bishop no Brasil. A autora, conforme o ensaio nos apresenta, passou a ser intérprete do Brasil para seus leitores norte-americanos. Bishop, num trabalho que envolveu dentre outras coisas escrita de livros, traduções, organização de antologia de poesia moderna juntamente com Emanuel Brasil, produção de poemas de temática brasileira, se dedicou enquanto esteve no Brasil, ao estudo da nossa literatura. 4.1.1. Condições de produção do discurso: Podemos dizer que em sintonia com Orlandi (1993: 10) foi interessante questionar: a)relação do texto com o autor: o que o autor quis dizer- Podemos dizer que o ensaísta constrói uma representação de mediadora cultural, no caso da poeta Elizabeth Bishop, um tanto quanto desinteressada em relação ao nosso país. Assim sendo temos mobilizada neste texto uma memória de Brasil como lugar visto como falta, incompleto para o estrangeiro. (1)Para Elizabeth Bishop, a vida privada era a única que contava. (2)Quando, em 1969, estava preparando a introdução da antologia da poesia brasileira, escreveu a Lowell “ é terrível pensar que provavelmente vou passar o resto da vida sendo considerada uma espécie de autoridade em matéria de Brasil”. Neste processo de instauração de sentidos, Britto, autor do ensaio, coloca em cena, na forma da heterogeneidade mostrada (discurso indireto, em destaque), a voz da poeta, o gesto de interpretação de Bishop sobre o Brasil para em seguida desconstruir aquilo que seria uma visão estereotipada sobre o país e seu povo. Os argumentos colocados em número significativo (Bandeira e sua obra em poesia, crítica, organização de antologias, tradutor, professor) funcionam como uma tentativa de desautorizar o discurso de Bishop e produzir um efeito de verdade, a de que Manuel Bandeira não era ocioso ou indolente, mas sim produtivo e versátil (transitava em vários domínios). (3)os escritores brasileiros gostam de se deixar fotografar gostosamente deitados em redes com franjas. Ao que parece, muitos brasileiros de talento genuíno muito cedo deitam-se na cama- ou na rede (Bishop, Brazil, 104) (4)Na época Bandeira, aos 75 anos de idade, já tinha produzido uma notável obra poética, jornalística e crítica; havia também lecionado literatura, organizado uma antologia de poesia brasileira em vários volumes e traduzido muita poesia do inglês, francês e alemão; e era reconhecido com um dos maiores poetas brasileiros do século. b)relação do texto com outros textos: Percebemos no texto do autor a instauração da voz da própria poeta, o que contribui para a instauração de sentidos dominantes sobre o Brasil e seu povo. Tal representação da identidade nacional (país de coisas mal feitas, povo pouco afoito ao trabalho, poetas indolentes) que constitui o espaço da memória brasileira (no Brasil nada funciona, o brasileiro é vagabundo, não gosta de trabalho). Percebemos nestes fragmentos que Bishop como mediadora cultural produz alguns discursos problemáticos em relação ao Brasil, uma certa tendência de construir o Brasil como um bloco único, apagando as diferenças. (6)“ no Brasil, tudo é malfeito, sem acabamento. (Bishop, Uma arte, 258) (7)“em seu contato com o Rio, cristalizou-se em Bishop uma imagem da cidade como lugar adverso ao trabalho e à civilização que jamais se alteraria nas décadas seguintes”. (p.145) c)relação do texto com seu referente: O texto, ao abordar a relação tensa de Bishop em relação ao nosso país, nos permite repensar a identidade sócio-cultural brasileira a partir do olhar externo, do estrangeiro. E essa construção de sentidos sobre o que é o Brasil se contrapõe à imagem que a poeta fazia do seu país de origem, os Estados Unidos. (8)Desde o início assumiu uma posição que poderia ser sintetizada, de um modo um pouco simplificado através da idéia de que o Brasil era basicamente natureza enquanto os Estados Unidos representavam a cultura. (p.144) Assim a memória que ganha corpo neste ensaio representa um conflito entre o Brasil como lugar da natureza, da beleza, da falta de cultura e Estados Unidos, país de origem da poeta, como lugar da cultura. Natureza nesta formulação, em termos de modos de dizer predicativo, é significada como espontaneidade, liberdade, amor, acolhida, contudo ausência de cultura. d)relação do texto com o leitor: O ensaio, por trazer à tona, dentre os sentidos dominantes, representações de Brasil como lugar atrasado, primitivo, de povo irracional mobilizam no leitor questões subjetivas que conforme notei no estudo de caso conduzem o leitor a questionar os sentidos homogeneizantes atribuídos pela autora. Neste caso, tomemos como base a representação de Bishop sobre a cidade brasileira do Rio de Janeiro e ao próprio Brasil. (9) “é tanta bagunça- uma mistura de Cidade do México com Miami, mais ou menos, tem homens de calção chutando bolas de futebol por toda parte, Começam na praia, às sete da manhã- e pelo visto continuam o dia todo nos lugares de trabalho” (Uma arte, 226-7. Em contraste, os Estados Unidos lhe pareciam caracterizar-se por sua “limpeza reluzente (que) é a coisa de que mais sinto mais falta no início” 4.1.2. Hierarquização das dependências funcionais (direção argumentativa)Vale trazer à tona a esquematização de um parágrafo do texto. Assim sendo, temos dominâncias por saturação (um enunciado que está amarrando outros prévios) de modo que o autor apresenta uma espécie de resgate do que foi dito anteriormente Escreve a poeta “ a Lota não tem o menor interesse por nada do que seja brasileiro ou “primitivo”. Lota “é muito anglófila”, quando Bishop a conheceu em Nova York ela afirmou admirar “coisas bem feitas”, “bem acabadas”, tão diferentes dos objetos que viam no Brasil “no Brasil tudo é mal feito, sem acabamento” Assim a poeta passou a ver-se a si própria e a Lota, que como a maioria das pessoas instruídas de sua classe era totalmente europeizada, com pessoas comprometidas com a introdução de hábitos civilizados no Brasil b) a forma predominante nas sentenças: Nota-se um equilíbrio entre orações subordinadas e orações coordenadas. Neste caso, destacam-se as orações adverbiais que exprimem circunstância. As orações coordenadas aparecem geralmente invertidas, de modo que as conjunções como no entanto, porém, mas, por outro lado dêem início aos argumentos apresentados pelo ensaísta. c)os conectivos implícitos nas pausas relevantes: Interpretamos neste caso o traço (---) como operadores implícitos de adição e exemplificação. Neste caso, notamos que o ensaísta constrói uma representação de Bishop como uma relutante intérprete do Brasil ou mediadora cultural. Assim, a formulação que segue após o traço participa da construção de uma intermediária cultural que buscava pela manutenção de sua identidade puritana, mesmo que essa continuasse ainda a viver muitos anos no Brasil, uma atualização de uma memória de estrangeiro que resiste em se tornar brasileiro. (10)“ De modo geral, a poeta colocava-se inequivocamente à favor da cultura fazia questão de afirmar que, mesmo se continuasse vivendo a maior parte no Brasil, como pretendia fazer, queria ao mesmo tempo “continuar sendo uma puritana da Nova Inglaterra e da Nova Escócia” (11) A poeta realiza inúmeras viagens pelo país e vê acima de tudo o que já esperava ver: uma natureza exuberante e uma população dividida entre pobres – “primitivos”, (..) - e aristocratas sofisticados como Lota, que falavam vários idiomas e viajam ao estrangeiro com freqüência. Assim sendo, após o traço, que, por sua vez, abre espaços para uma explicação para o item lexical pobres (definidos como primitivos) e após a vírgula que explica os aristocratas representados por Lota poderia configurar um conectivo explicativo como isto é, ou seja. Assim o estrangeiro acaba ocupando uma posição mais privilegiada que o brasileiro, de modo que o brasileiro para ser sofisticado precisa conhecer a língua do outro e estar no país do outro. d) Caracterização discursiva da seleção lexical: Levantamento dos adjetivos e advérbios (modalizações apreciativas)adjetivação: amoroso, primitivo, acolhedor, burros, atrasados, irracionais, vil (adjetivos) Advérbios: desenvergonhadamente (que modifica o adjetivo vil), certamente (modificando o verbo acentuar- Lota contribuindo para uma visão -de Bishopestereotipada do Brasil), principalmente (modificando o advérbio lugares pobres) e absolutamente (modificando o adjetivo naturais). Substantivos: o selvagem, naturalidade, primitivismo, o bárbaro Assim sendo, o brasileiro não teria vergonha de ser o que é e entre os pobres se encontraria essa naturalidade da qual Bishop fala, uma visão que a própria companheira, Lota, teria contribuído para formar na poeta. (12) Após a morte de Lota, sente-se abandonada por todos- ninguém no fundo gostava de mim e explode: “Os países atrasados geram pessoas atrasadas e irracionais”. (p. 149) (13) A Lota não tem interesse por nada que seja brasileiro ou “primitivo”. (14) Manuelzinho- poema inspirado por uma pessoa real, misto de posseiro e rendeiro, que vive na terra de Lota- apresenta a caricatura de um primitivo brasileiro: um “tonto”, um “incapaz”, “o pior hortelão desde Caim”, ignorante, supersticioso e desvergonhadamente vil. e) os sentidos produzidos pelos verbos escolhidos e a modalização lógico-verbal: Os verbos escolhidos no texto apontam para a construção de sentidos dominantes sobre o Brasil, a partir do olhar de uma poeta estrangeira em relação a nosso país. Os verbos apontam para tentativas de definir, de explicar, de conceituar um povo e nação e materializam uma memória de povo simpático, alegre, que se contenta com pouco. (15)Meus alunos são muitíssimos simpáticos, quase todos- mas devo dizer que estou um pouco preocupada com a Juventude Americana. (30) Eles são inteligentes, quase todos eles, mas não parecem se divertir muito (...) quando penso o quanto os jovens brasileiros se divertem com um violão, com uma festa, ou apenas um cafezinho (sic) e uma conversa. Consideramos o eixo da formulação, da ordem do texto, da linearidade do dizer para a partir das marcas lingüísticas pensar a interdiscursividade da textualidade, a ordem das memórias implícitas que, a meu ver, precisam ser acionadas no processo de leitura. Em consonância com Serrani (2005:75) procurei não me restringir ao conteúdo dos textos, ao sentido fixo que seria necessário extrair dos textos, mas sim procurei mobilizar a textualização da memória nacional que ganha corpo no texto. (Orlandi, 2001, meus grifos) 5.Considerações finais: Concordo com Baghin-Spinelli (2002:96) para quem a AD possibilita o trabalho com a materialidade lingüística que, por sua vez, pode (e deve) ser trabalhada em nossas salas de aula. No entanto, vale dizer que essa materialidade foi trabalhada não como um fim em si mesma, mas sim com a consideração do processo discursivo do qual ela faz parte. Esperamos que com essa proposta, possamos evidenciar nos estudos de leitura e da língua não somente o texto como produto lingüístico, mas todo o processo discursivo do qual fazem parte memórias discursivas e as condições de produção. Procuramos com essa abordagem discursiva da textualidade deslocar uma visão na qual o texto fosse um produto e a leitura exercício de decodificação, de modo que ler seria extrair um sentido que estaria fixo no texto. Interessou-me colocar em cena o processo de produção de leitura de um ensaio e não a leitura de um texto como estrutura fechada em si mesma. E neste processo, ler é interpretar a historicidade, é refletir sobre a memória do dizer e não meramente refletir a memória, no efeito papagaio, nas palavras de Orlandi (2008). (meus grifos) 6. Referências bibliográficas: BAGHIN-SPINELLI, D.Uma proposta de leitura nos cursos de formação de professores de língua Inglesa. In: SERRANI, S. (Org.) Línguas e Processos Discursivos - Teoria e Prática. Fragmentos 22. Florianópolis: Editora da UFSC, 2003 BAKHTIN, M. Gêneros do discurso. In____ Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. CORACINI, MJ. (org.) O jogo discursivo em sala de aula: um jogo de ilusões. Campinas: Pontes, 1995 CORACINI, M. Concepções de leitura na (pós) modernidade. In: LIMA, Regina Célia de C. P. (Org.). Leitura: múltiplos olhares. Campinas, SP: Mercado de Letras; São João da Boa Vista, SP: Unifeob, p. 15-44, 2005 MASCIA, M.Leitura: uma proposta desconstrutivista. In: LIMA, Regina Célia de C. P. (Org.). Leitura: múltiplos olhares. Campinas, SP: Mercado de Letras; São João da Boa Vista, SP: Unifeob, p. 45-57, 2005 MOITA LOPES, L.P. Oficina de Lingüística Aplicada. Campinas: Mercado das Letras, 1996. PÊCHEUX, M.. (1975) Semântica e Discurso. Uma Crítica à Afirmação do Óbvio. Trad. Eni P. de Orlandi et alii. Campinas: Editora da UNICAMP, 1988. ORLANDI, E, Discurso e leitura. São Paulo: Cortez Editora, Campinas: Editora da Unicamp, 1993. ORLANDI, E. Identidade lingüística escolar. In: Signorini, I (org.) Língua(gem) e identidade. Elementos para uma discussão no campo aplicado. Campinas: Mercado das Letras, p. 203-212, 1998. ORLANDI, E. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999 SERRANI, S. Discurso e Cultura na Aula de Língua Currículo – Leitura – Escrita. Campinas: Pontes, 2005 SERRANI, S. (Org.) (2003): Línguas e Processos Discursivos - Teoria e Prática. Fragmentos 22. Florianópolis: Editora da UFSC, 2003 SERRANI, S. Discurso sobre língua, textualidade e línguas próximas. In: Anais da Anpoll, Niterói, RJ, 2000.